A construção da família moderna

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A Construção da Família Moderna Por Allan Denizard


Introdução É sua primeira aula de Ações Integradas em Saúde, então devo falar onde estamos na medicina Eu sei que estou escrevendo para recém-ingressos no curso de medicina, portanto, vou me esforçar para não ser prolixo, sem deixar, contudo, de passar o essencial. A missão é passar para vocês o que seria a família, conceituá-la e evidenciar a sua construção histórica. As faculdades de medicina estão se voltando para isso pelo menos nos últimos quarenta anos porque perceberam que certo modelo vigente de medicina estava ignorando algumas dimensões do ser humano quando lidando com sua doença. Parece óbvio o que vou dizer agora, vem se tornando senso-comum, mas devo dizer: para tratar o indivíduo é preciso ver mais do que só o indivíduo. Vamos passear pelos caminhos mais óbvios. Por exemplo, quando Sigmund Freud, se valendo de técnicas de hipnose, percebeu que existia um vasto mundo escondido na mente das pessoas e empreendeu o esforço intelectual para codificar uma forma de abordagem que trabalhasse com esse


esconderijo. Hoje, qualquer ponto obscuro de uma conversa as pessoas metem a frase: "Freud explica". É porque de fato muitos pontos ele conseguiu elucidar mais do que a medicina seca do seu mestre Charcot pode explicar. Vamos para o menos óbvio. Quando as bases do que entedemos por ciência hoje foi fundada por Isaac Newton, atrelando natureza a cálculo integral, ou quando o método de Descartes virou moda nas elites intelectuais, atrelando natureza a geometria, um movimento de contra-corrente surgiu na Alemanha: o romantismo. Este defendia que a natureza era inapreensível pela mente humana. Sobrava sempre um excesso que nos deslumbrava, podendo conduzir ao fascínio ou ao horror. Os movimentos de crítica social denunciaram os discursos científicos como portadores de uma intenção de subjugação do homem a uma cultura burguesa, clamavam pelo respeito a cultura das massas. O movimento escolanovista, que buscava dar novos ares para o ambiente escolar, foi gerado pela redescoberta do universo infantil e o quanto ele era irredutível ao do adulto, isto é, a criança não era um adulto em miniatura. O nietzscheanismo buscou devolver à arte um papel superior ao da ciência como concessor de significado e vontade de vida


para os homens. Um conjunto de movimentos que fazem o caleidoscópio que é a era pós-moderna prosseguiram libertando ainda mais discursos minoritários, o que se vê de forma bem clara em um fórum plural conhecido como Fórum Social Mundial

Ufa! De Newton até o Fórum Social Mundial eu engoli trezentos anos sem mastigar. Isso é pouco em termos de história da humanidade. Mas, é só para lhe alertar o quanto saímos do lugar de ver só o indivíduo isolado para vê-lo libertado em várias dimensões e globalizado, dialogando com várias posições.


E apesar de tudo isso, quando chegamos dentro do consultório médico, geralmente o interrogatório gira em "como é que o senhor está?". Se o homem que buscou a consulta começa a falar da própria família, ou das paixões, ou dos sonhos, o médico se perde, porque sua ciência não lhe deu meios de conectar família, paixões e sonhos no quadro clínico do paciente. "Não há evidências que mostrem essa correlação". O que você acha? Eu não vou ter condições, apenas por este texto, de lhe provar estas relações. Meu humilde papel agora é apenas apresentar-lhe uma dimensão do humano que geralmente esquecemos no cotidiano médico: "como vai sua família?".


Começando pelas crises do casal Decidi começar pelo assunto das crises porque acho ele uma espinha dorsal, em que as crises representam as cristas que nos conduzem para o formato do todo. Pode prestar atenção, como primeiro exercício de exame físico médico, que certas espículas presentes na coluna de seu irmão, irmã, pai, cachorro apontam que ali há um caminho de ossos. Talvez se tudo fosse homogêneo demais você não pudesse diferenciar esse trajeto. São as cristas (processos espinhosos) que iluminam a forma. Então, fiz um texto bem sintético (e poético) falando sobre elas. Joguei no facebook e, em menos de 24h, tive 22 curtidas, 2 corações, 1 carinha de espanto, 5 comentários, 5 compartilhamentos, 281 acessos ao blog em que coloquei o texto primário. Você sabe que isso é uma repercussão e tanto para uma postagem longa, teórica, sem tirinhas, fotos de bebê ou insultos políticos. Segue o que publiquei:


Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus (Gênesis 3:7)

É sabido que a família percorre fases. As transições sempre são críticas. Percebi que a nudez cai bem como modelo de compreensão das crises da família moderna. Aqui vai um esboço didático, obviamente sujeito às variações das singularidades. A primeira crise de um casal é quando se vêem nus no cotidiano. Logo após o casamento, liberto dos pais, entregues a sua forma de gerir a casa que compartilham, tem que acordar os papéis de cada um no sistema que se inicia. A segunda crise é quando vêm os filhos pequenos, e o casal se reconhece nu de conhecimento para criá-los, e, no começo, os pequenos tremem nus em frente do ambiente agressivo. A terceira crise é quando os adolescentes desnudam as imperfeições dos pais. Descobrem que eles não são aquela autoridade toda que se tinha em mente quando criança. E os próprios pais, caindo em si, nus, questionam-se sobre a própria


autoridade. Revêem radicalmente a forma de serem pais para os filhos. A quarta crise é quando chega a hora de os filhos voarem definitivamente. Criarem seu próprios ninhos. O mercado de trabalho cobra a presença, mas por vezes não dá oportunidade. As paixões cobram amores, por vezes cobram demais. Estariam os filhos com roupa suficiente para enfrentar o frio lá fora? O mundo é enorme, maior do que a casa. Os pais estão nus de poder para fazer curvar o mundo aos pés dos filhos. A quinta crise é quando todos os filhos saem de casa, os pais voltam a ficar nus no cotidiano. Toda uma consciência do envelhecimento corporal de repente assoma-se ao indivíduo. São os mesmos corpos nus do começo da história, à época, gozando de uma jovem beleza imortal, mas agora revelados na própria historicidade, desnudos sob o lençol do tempo. A sexta crise é quando a vida de um dos dois se desnuda por completo. O Espírito se despe. Quando se conseguiu percorrer todas estas fases até aqui, é a saudade que imita, com a leveza porosa da velhice, aquela ansiedade que se tem enquanto o amor se despia à sua frente no quarto jovem. Ansiedade que prenuncia o desnudamento final de quem ficou.


- Eu espero o momento em que minha roupa se gaste, enfim, para me entregar de novo a ti. - fala do lado de cá. - Eu aguardo ansiosamente o último botão ceder. responde do lado de lá. É assim que, às vezes, a morte não os separa.

Por que esse texto fez tanto sucesso? Porque fala verdades que várias pessoas vem vivendo. Lídia Valesca, socióloga que debate temas de cultura de paz, comentou o seguinte nessa postagem: - Excelente reflexão. Tenho um item a acrescentar: A sociedade moderna parece que exige a paixão, e, como sabemos, não vivemos apaixonados por anos. Viver a amizade e a companhia é ao mesmo tempo a base de sustentação do tempo. Conviver com a exigência de "casar apaixonados" é para muitos um enorme desafio. Aproveitando a deixa da professora Lídia Valesca que introduzo vocês neste tema: a construção da família moderna.


Construção da família moderna ou o Imperativo do Amor-Paixão Quando passei pela cadeira de ginecologia, pegamos uma professora antiga que nos dava aula sobre sexologia. Ela parecia ter uma visão muito "libertadora", mas na verdade expressava um pensamento muito antigo, que datava no mínimo do século XVIII. Fazia ambulatório de alterações do colo do útero, das quais a que mais os médicos ficavam em alerta eram as lesões pré-cancerígenas. E como o vírus HPV sexualmente transmissível era o principal indutor destas lesões, para toda mulher que entrava em seu consultório ela tinha um diálogo mais ou menos assim: - Use camisinha. Não confie nele. - Mas se eu não confiar nele, como posso estar casada? - Besteira, menina! Casamento não deve se pautar em fidelidade, não. Se ele é um bom esposo e bom


pai, que importa o resto? Confie, desconfiando, e use camisinha. Obviamente que esse tipo de conselho pode durar um tempo, e se dissolve. Tudo isso por causa desse tal de amor-paixão que criamos para fundamentar os casamentos de hoje. Ele não só exige fidelidade absoluta, mas também que a relação fogosa nunca apague. Nem sempre foi assim. Ao contrário do que podemos imaginar, essas exigências não são a materialização dos dogmas da igreja. Tudo parece começar no processo de urbanização com a revolução industrial. Vamos tomar como exemplo a mulher e tentar traçar a história da mudança de mentalidade grosso modo. Antes submetida a um regime patriarcal, em que se via dócil às vontades da família no que tange ao casamento, é empurrada para a cidade grande. Aqui ela entra no mercado de trabalho, é explorada, mas ganha um dinheirinho que começa a dar para si, de forma incipiente, o poder de compra, o que significa certa dose de liberdade. Longe das vistas do pai, do padre e da comunidade, vem morar em complexos de moradia onde arranja grupos de amizade que passam a conhecê-la não pelo sobrenome, que não vale nada nesta selva de pedras, mas pela máscara social que ela deseja


vestir. Com o aumento dos direitos das mulheres, as lutas operárias pela diminuição da exploração e o aumento digno da remuneração, bem como o advento dos métodos anticocepcionais de alta eficácia, que permitiam o coito e o prazer, evitando a gravidez, a mulher foi ganhando uma emancipação tamanha que permitiu a escolha dos próprios amores, das formas de amar, do tempo de amar. Os homens, induzidos por estas e outras pressões sociais, em breve também abriram suas mentes para mudar o formato das relações. Em pouco tempo, passamos a ter uma geração que escolhe individualmente o próprio parceiro, com toda a autonomia do mundo, até mesmo contra os anseios da família. Delibera tendo em mente o critério de "estar apaixanados", entendem que a relação deve ter investimento, mas se não der certo, não é para morrer, e sim procurar o amor verdadeiro em outro lugar. Isso é uma revolução na história das relações! Paixão sempre existiu, mas nunca foi critério de casamento. Existia mesmo certa vista grossa para os homens que iam buscar esfriar suas paixões nos bordéis. A mulher em casa era a mãe dos filhos. Sem anticoncepcional, ter sexo com ela poderia


significar aumentar a prole, por exemplo. A meretriz era a que podia ser instrumentalizada para o sexo sem pudores, não corria o risco de acontecer na da sério. O amor de dentro de casa era o de respeito e sobriedade. O amor da rua era o de desejo e loucura. A sociedade moderna trouxe a paixão para dentro de casa, e com ela, a loucura. Loucura porque a paixão, não sendo mais o encontro furtivo, mas o sentimento cotidiano, se faz ditadora dos sentimentos, exige atenção plena, surpresa, presença. Isso se já não é loucura, é façil de provocar uma. Não quero dizer aqui que esteja errado o que vemos agora e que o certo era o patriarcalismo que instrumentalizava a mulher nos dois polos, casagrande e senzala. Todavia, que parece haver um excesso no que vemos hoje, parece. Ao ponto de as relações não conseguirem sobreviver como antes. Pergunte em sua sala de aula quantos são filhos de pais divorciados ou casados pela segunda, terceira vez. Século passado essa taxa não só era bem menor como os filhos dos divorciados eram vítimas da maledicência. Maria Montessori (1870-1952), criadora do método Montessori de educação, primeira mulher médica na Itália, viveu a repressão dessa sociedade patriarcal duplamente na pele: ao


desafiar a faculdade de medicina e ao entregar-se apaixonadamente para um professor. Mas, ele já estava comprometido por um amor-tradição, uma mulher reservada para ele pela sua família. A vida não é lógica. Alguns bônus vêm com ônus. Enfraquece-se a família patriarcal, emancipa-se a mulher, concede-lhe direitos. Fragilizam-se os casamentos, neurotizam-se as relações, insulam-se as pessoas. Até mesmo os filhos passam a ser difíceis de criar. Na sociedade patriarcal, de caráter comunitário, a grande família crescia próximo, os papéis eram definidos a priori, o suporte vinha de todos os lados. Na sociedade industrial, a família é nuclear, sobrevive longe das raízes, o bairro muitas vezes é um aglomerado de estranhos, o suporte inexiste. Marido e esposa tem de se revesar nos cuidados com a casa e com os filhos, e estes devem ser hipnotizados pela "Galinha Pintadinha" a fim de permitir aos pais respirarem. É assim que surge outra característica central da família moderna: a pequenez. Os pais decidem ter pouquíssimos filhos, quando não apenas um. Sobre este é depositado todo o afeto e a expectativa. Cria-se a noção de criançareizinho do lar. A antiga autoridade do patriarca que


calava as crianças só com o olhar e a sombra do castigo detrás de si é transmutada para a lassidão e a permissividade. Aumentou-se consideravelmente o amor e a oportunidade de educação. Esfacelou-se o poder do não, do dever, da obrigação. Até mesmo o Estado assumiu o papel de repreender os pais, caso estes queiram educar de forma violenta os filhos. Antes era impensável o Estado se meter na intimidade das casas, hoje cada vez mais ele se capilariza. Mas isso não foi bom, aumentar a fiscalização contra a violência doméstica? Sim, e com o bônus o ônus: a criança reizinho, a fragilidade dos relacionamentos, etc. Antes de passar para a parte final desse texto, deixe-lhe fazer uma ressalva. Contei a história das coisas de forma leviana, não porque mentisse, mas porque caricaturizei em muitos pontos. Tentar complexificar meu pensamento poderia me afastar muito de você. Quero que você capte o tipo-ideal: uma família moderna murcha que se infla de amor pelos poucos filhos, a crise da criação deles, o abalo da instituição do casamento. É nesse contexto que devemos buscar agora entender as fases da família moderna.


As fases da família moderna segundo suas crises Até agora espero que você tenha entendido que a forma como a família se constitui e é respeitada na sociedade se modifica na história e na cultura. O que falaremos a seguir sobre as fases da família, portanto, refere-se a um tipo-ideal de uma família moderna ocidental de uma civilização industrial. Apesar dessa especificação, é possível encontrar semelhanças nas famílias que você encontrar no contexto rural, em pequenas cidades. Contudo, já não posso lhe garantir que seja um modelo extrapolável para comunidades em microcontextos específicos: quilombola, indígena, ribeirinha ou de imigrantes de forte influência cultural (p. ex. japoneses, judeus ou islâmicos). Alerto desde já, porque estes contextos você poderá encontrar em sua prática médica Brasil afora. Caberá estudar as particularidades. Vamos ao tipo-ideal que construímos até aqui. Voltemos àquela famosa postagem do facebook, agora comentando algo mais de cada item.


A primeira crise de um casal é quando se vêem nus no cotidiano. Logo após o casamento, liberto dos pais, entregues a sua forma de gerir a casa que compartilham, tem que acordar os papéis de cada um no sistema que se inicia. COMENTÁRIO: Esta é a família que alguns autores denominam de "o novo casal". Em países de cultura anglo-saxã, há uma fase anterior de jovens solteiros alcançando independência. No Brasil, geralmente saímos do nosso lar de origem para constituir nova casa. Essa realidade vem mudando com o fenômeno da unificação nacional do teste de ingresso no ensino superior, induzindo uma mudança cultural no cenário da família brasileira que ainda está para ser estudado. CASO CLÍNICO: Ao consultório, um paciente se apresenta pior da depressão. Os remédios estão em doses otimizadas e você decide abordar o contexto familiar. O paciente é recém-casado e era fortemente conectado a mãe. Ela ditava sua vida. Sem ela, ele se viu perdido. A esposa não tem a mesma força para substituir aquela autoridade. Um casal novo tem de divorciar-se da família de origem para ter espaço para casarem entre si de fato. Órbitas vão se alinhar agora para que não haja choque entre os astros. E se houver, que haja também mecanismos de proteção contra a dissolução fácil. Ao contrário do que os românticos dizem, a crise financeira é um dos principais


agentes estressores. Aliás, o dinheiro (a falta e o excesso) tende a dissolver sorrateiramente qualquer romantismo. SUGESTÃO: Não é nosso objetivo que você se transforme em um terapeuta familiar. Isso é uma especialidade da psicologia. Já é um grande passo você reconhecer que pode haver alguma interferência no tratamento relacionado a isso. Por vezes, o simples elucidamento da defasagem do processo de amadurecimento dele, convidando-o a tentar se realinhar com a nova condição em que se encontra, provoca o reajuste. A segunda crise é quando vêm os filhos pequenos, e o casal se reconhece nu de conhecimento para criá-los, e, no começo, os pequenos tremem nus em frente do ambiente agressivo. COMENTÁRIO: A sociedade industrial tende a afastar a família nuclear da família maior, onde estariam tios e avós disponíveis para dar suporte físico e consultivo na criação dos menores. Um provérbio africano diz que "é preciso uma vila para criar nossas crianças". E já não temos vilas, as praças são poucas e podem ser inseguras. Restam os shoppings, cuja dinâmica de convivência não é equivalente. As creches responderam a essa realidade e passaram a aceitar bebês de quatro meses em suas instalações. Contudo, o sistema


imunológico está mais apto para enfrentar o ambiente apenas aos três anos, tanto melhor se tiver havido aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses. Sem as famílias extensivas tão perto, pai e mãe tem que se revesar no cuidado da casa e dos novos integrantes da família. O Unidade Básica de Saúde da Família entra com alguns recursos para suplantar esta carência. O agente de saúde acompanha de perto a presença do aleitamente e o ganho de peso. A enfermeira avalia as dificuldades de se manter o aleitamento (que não são poucas) e esclarece os marcos do desenvolvimento neuropsicomotor normal das crianças, encaminhando ao médico ou ao dentista quando algo foge do rumo certo. CASO CLÍNICO: Uma lacturiente chega ao consultório com fissura na mama. "O menino não larga o peito, doutor!". Você avalia junto à enfermeira a pega. Ela corrige algumas falhas. "Mas, de noite vai ser impossível eu me atentar para estes detalhes.". Sugere-se que o marido aprenda a colocar o bebê no peito da mãe, para ajudá-la quando a consciência dela de madrugada estiver obnubilada. Ela rejeita aprender, pois isso é coisa de mulher.


SUGESTÃO: Averiguar qual o suporte familiar que este casal tem. Caso haja outros familiares que possam ser convidados a estarem mais presentes neste momento, fazê-lo. Se não, tentar contornar a barreira sexista do marido da paciente, esclarecendo que eles estão vivendo uma conjuntura que já não permite essa atitude evasiva. A terceira crise é quando os adolescentes desnudam as imperfeições dos pais. Descobrem que eles não são aquela autoridade toda que se tinha em mente quando criança. E os próprios pais, caindo em si, nus, questionam-se sobre a própria autoridade. Revêem radicalmente a forma de serem pais para os filhos. A quarta crise é quando chega a hora de os filhos voarem definitivamente. Criarem seu próprios ninhos. O mercado de trabalho cobra a presença, mas por vezes não dá oportunidade. As paixões cobram amores, por vezes cobram demais. Estariam os filhos com roupa suficiente para enfrentar o frio lá fora? O mundo é enorme, maior do que a casa. Os pais estão nus de poder para fazer curvar o mundo aos pés dos filhos. A quinta crise é quando todos os filhos saem de casa, os pais voltam a ficar nus no cotidiano. Toda uma consciência do envelhecimento corporal de repente assoma-se ao indivíduo. São os mesmos


corpos nus do começo da história, à época, gozando de uma jovem beleza imortal, mas agora revelados na própria historicidade, desnudos sob o lençol do tempo. A sexta crise é quando a vida de um dos dois se desnuda por completo. O Espírito se despe. Quando se conseguiu percorrer todas estas fases até aqui, é a saudade que imita, com a leveza porosa da velhice, aquela ansiedade que se tem enquanto o amor se despia à sua frente no quarto jovem. Ansiedade que prenuncia o desnudamento final de quem ficou. - Eu espero o momento em que minha roupa se gaste, enfim, para me entregar de novo a ti. - fala do lado de cá. - Eu aguardo ansiosamente o último botão ceder. responde do lado de lá. (EM CONSTRUÇÃO)


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