Diálogo de Crepúsculo

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Como começou Eram uma e meia da madrugada. Acordei com alguns bêbados tagarelando perto da janela do quarto. Apesar do incômodo, não costumo perder o sono por isso. Deveria voltar a dormir, mas o sono não veio. Rolei da cama, tomei o celular para tentar terminar um ebook que havia começado há um tempo. Foi quando ouvi um sino de mensagens chegando.

Tilintou uma, duas, três vezes. Não era uma mensagem qualquer. Alguém insistia em falar comigo, pensei. Quando olhei, era um amigo querido que há mais de ano não nos falávamos. A última vez, eu que lhe abordara querendo entender um pouco mais de política. Desta vez, me veio querendo falar sobre Deus.

Para que saiba você o que significa essa angústia do rapaz, ele era católico, agora se diz agnóstico. Foi um dos mais brilhantes alunos da minha época em matemática. Passou em uma faculdade de engenharia bem difícil de entrar. Terminou a formação superior por lá.

Lembrei de um episódio de quando estudávamos juntos, o que ocorreu por oito anos. Certo dia paramos para conversar sobre Espiritismo. Expliquei tudo o que sabia sobre esta doutrina criada no século XIX na França do segundo império. Este amigo cobria-me de perguntas, algumas visavam aumentar o conhecimento no assunto, outras tentavam me opor desafios que mostrassem falhas na minha exposição. Acredito que foram três dias de conversa e sabatina. Ao final dos quais ele fecha com alguma frase parecida com essa: “tudo é muito lógico, mas o catolicismo é meio que visceral para mim”.


Nunca mais falamos sobre nossas religiões. Desse diálogo para cá, já se vão cerca de quinze anos. Eu fiz família, sou pai de dois filhos. Acho que ele ainda não os tem. Mas, possui um currículo invejável de múltiplas gerências assumidas em grandes e médias empresas. Sabe do valor do risco, da instabilidade da vida e da necessidade do coração de ter algum chão que nos dê segurança.

Feitas estas considerações iniciais, vamos ao diálogo.


Brasil, 28 de abril de 2018. 1:40h.

Amigo: Filosofando, gostaria de ouvir pessoas cristãs inteligentes e pensantes sobre uma dúvida que tenho no meu agnosticismo. Tô vendo se chego a alguma conclusão. Por que Deus quer que a existência dele seja uma dúvida?

Allan: E eu, sem entender porque Ele me fez acordar às 1:30h da manhã. Foi pra conversar com você.

Amigo: Olha aí!

Allan: Querido, primeiro, quando a gente conversa sobre Deus, vamos entrar em questões que nos transcendem largamente, embora passem por nós de alguma forma. É o que nos toca (com um toque) que podemos conversar. Então, seria conversar sobre toda uma Pessoa, mas tentando entendê-la, às apalpadelas, apenas pelo toque dela em nós.

Se a existência de Deus, do jeito que descreve a tradição judaico-cristã, se manifestasse pelo menos da forma como se manifestou a Moisés (a montanha fumegante), já seria alguma coisa. Se a existência de Deus, do jeito que se manifestou em Jesus (o milagre ambulante), seria, de fato, de outra coisa que estaríamos falando. Contudo, nós estamos falando de uma dúvida que possui uma circunstância e uma história que a deixa ainda mais


pungente nos dias de hoje: Por que montanhas fumegantes não mais tremem e o milagre-encarnado não pisa mais nosso chão?

Amigo: Mas, tirando para algumas pessoas que ele apareceu objetivamente, para os demais cabe a fé da experiência subjetiva (real ou imaginária) e acreditar nos relatos de outros (reais ou imaginários).

Allan: Isso! A fé no testemunho é uma característica muito particular do cristianismo. Então, nós estamos falando da dúvida não para todas as pessoas. Estamos falando de por que Deus permite que algumas pessoas tenham a experiência Dele através da necessidade de confiar em outros, em intermediários?

Amigo: E, por tabela, permitir que intermediários falsos apresentem verdades erradas e distorções bizarras.

Allan: Sim! Isso é muito importante, também.

Amigo: Certo.

Allan: A sua pergunta se transforma, então, em "por que Deus quer que a existência Dele seja uma dúvida para mim?"

Amigo: Na verdade, dúvida para a maioria das pessoas. Porque ainda tendo fé, ela tem fé e não certeza.

Allan: De fato, estamos passando por momentos sombrios, a que a Igreja Católica chama de neopaganismo. De todo


modo, essa questão deve ser abordada por estas duas perspectivas: 1. a dúvida para você, indivíduo singular; 2. a dúvida comunitária. Essa abordagem é necessária pela própria natureza da fé que o Cristianismo inaugurou.

Quando Saulo saiu caçando cristãos, ele tinha fé em um Deus comunitário, cuja definição sagrada estava sendo manchada pelos cristãos. Sua fé era comunitária. E, no círculo judeu, a existência e, por assim dizer, a "forma" de Deus era uma obviedade que acalentava o cérebro desde o berço. Quando, na estrada de Damasco, Jesus aparece para Saulo em todo Seu esplendor, Deus deixa de ser uma verdade comunitária e passa a ser uma verdade individual, que o faz entrar numa comunidade alienígena para sua alma e redescobrir a “forma” de Deus como que a partir da infância do entendimento. Saulo, o jurista, doutor da lei, se transforma em Paulo, o pequeno.

Amigo: Entendo.

Allan: No cristianismo, muito particularmente no cristianismo, essa forma de ter fé se tornou a singularidade dessa religião: muito embora tenhamos construído uma comunidade de fiéis, importa que Deus se revele a você, e apenas a você. É no encontro muito especial e muito particular com você que a questão de Deus deve se dar. Por mais que evangelizemos, nada será tão autêntico senão o dia em que você se encontrar com Deus. Você e não outro por você. E não a comunidade por você. E nem mesmo um raciocínio por você. É você em toda a sua nudez.

Amigo: OK.


Allan: Cabe ressaltar um pouco este último ponto: o do raciocínio entre você e Deus. É algo que se construiu na era após o cristianismo primitivo, isto é, a construção de uma doutrina que quis substituir a experiência de Cristo na vida dos cristãos. Esse desvio histórico é algo que devemos tomar consciência. Trocamos a experiência do Deus manifesto em Cristo por raciocínios.

Amigo: Mas, eu não quero "acreditar em Deus" porque é mais confortável. Pra ter alguém pra me dizer o que fazer. Pedir perdão. E pra cuidar de mim quando eu não tiver chão. É ótimo ter alguém comigo todas as horas, alguém pra recorrer.

Allan: No caso de Paulo de Tarso, acreditar em Deus a partir da experiência de Jesus não foi nada confortável. Ter a verdade nas mãos, que comumente ameaça toda a sua cosmovisão de antes, provoca uma tensão na alma dilacerante.

Amigo: Sim.

Allan: O que devia martelar a cabeça de Paulo, se é que ouso arriscar, é que os olhos dele cegaram por causa de Cristo e um cristão o curou com as mãos.

Amigo: Descobrir que a sua verdade não era verdade.

Allan: Sim. Toda vez que vinha a prisão, que o chicote o lambia, que as amizades o deixavam, que a fé queria falhar, “mas eu estive cego, caí do cavalo, andei quilômetros no escuro, e aquele cristão, o seguidor do que me provocou a


cegueira, me curou.” Não se podia falar nem de cura pelo artifício do compartilhamento simbólico, pois Saulo odiava os cristãos.

Amigo: Entendo.

Allan: Vamos tomar a experiência de Paulo como paradigma. Você foi um dia bem católico, resistiu mesmo à chuva de argumentos que te dei a favor do Espiritismo, falando ao final “tudo é muito lógico, mas o catolicismo é meio que visceral para mim”. Agora vem me falar do seu agnosticismo. Eu diria que está vivendo o momento em que a comunidade de crenças está ruindo, embora ainda não tenha visto Cristo em todo Seu esplendor. A experiência de Paulo foi muito densa, muitos fatos em pouco tempo, mas muitas vezes nossa vida a imita em mais vasta escala, por mais longos anos.

Amigo: Admiro as lições cristãs. Os valores e ideais. E os sigo. Porque os acho valiosos. E me parecem certos. Mas o querer crer tá ali. Aí, desde então, procuro dar umas lidas em textos, ver vídeos, argumentações lógicas e reflexivas para tentar fazer eu me achar mais.

Vi certa vez um debate de um cristão bem interessante Dinesh D’sousa com um ateu. Argumentou uma coisa bem legal, que deu uma avançada em relação a Deus. Ele diz que ele acredita em uma entidade de 3 letras que criou e dá razão a tudo: GOD. E os ateus acreditam numa entidade de 4 letras que eles querem que explique tudo: TIME. E ele diz que, cada vez mais, quando se é estudada a complexidade do universo ou do olho humano, que é um que ele cita, mais e mais tempo é exigido ao universo para que ele pudesse provir do acaso e chegar neste estado de


complexidade. E aí ele fala que antes disseram que eram tantos milhões de anos. E aí depois aumentaram quando descobriram não sei o que, e foi aumentando a estimativa. Essa eu achei uma argumentação lógica e interessante que ele endereçou.

Allan: Certo, é uma boa! Mas, a sua pergunta parte de um lugar. Se Deus existe, por que Ele quer que a existência Dele seja uma dúvida? Você me trouxe uma figurinha desse álbum "De Deus" que você está tentando completar.

Amigo: De fato.

Allan: Se eu fosse argumentar a partir do lado da sua singularidade, e da sua relação com Deus, partindo do pressuposto de que esta relação existe, e que realmente se importa com a singularidade, eu diria que Deus quer de você uma adesão muito própria que lhe faça transcender a lógica. E transcender aqui é passar adiante sem perder as conquistas da lógica, mas que de alguma forma precisa de um salto, que lhe faça cair do cavalo.

Outros diriam, e acho que eles tem certa razão, que toda a matemática na qual seu intelecto foi forjado é um desvio do olhar. É preciso olhar a carne e não os números.

Eu acho que carne e números não precisam ser inimigos. Se sairmos um pouco do indivíduo e olharmos a comunidade, o propósito de Deus em colocar a tensão da dúvida em almas lógicas, mas também de fé, é permitir que a lógica seja desafiada para novos patamares de compreensão, que permita conduzir a massa por caminhos seguros de crença. Dessa forma você se insere em um projeto de Deus para a comunidade cristã. Algo como os avanços daquele matemático George Cantor a respeito do


mistério de Alef. Através de vários saltos intuitivos, foi desvendando a natureza do infinito.

Amigo: Sim, conheço a diagonal de Cantor. Para provar que existem mais reais que números racionais. O cara é excepcional. E alef seria os tamanhos diferentes de infinitos, né?

Allan: Isso! Se a crença absoluta de Deus está no infinito, como comunidade de buscadores, cada contribuição importa no desenrolar do mistério. Contudo, para o indivíduo singular do aqui e agora a angústia só tem a possibilidade de ser sanada no encontro pessoal com a Verdade.

Amigo: Ainda estou a procura. Tô lendo até um livro meio filosófico do William Lane Craig. “On Guard: defending your faith with reason and precision”. Tem umas argumentações que ele vai levando, mas umas conclusões medíocres. Ainda tô nos 20%. Vamos ver se sai algo. E eu te enchendo o saco às 2h da manhã. E já dando 3h. Obrigado pela paciência de Jó.

Allan: Que é isso! Tem um metafísico italiano, de nome Julius Evola, que acreditava no Kali Yuga. É uma crença hindu que falava do nadir da história. Ele entendia estarmos enfrentando essa era. Não há nada que possamos fazer para “salvar a história”. Devemos aprender a “cavalgar o tigre”. O que significa lidar com nossas angústias insanáveis por ora, esperando a exaustão da fera que a tudo devora. Quando cair esgotada, desceremos dela.


Há um filósofo brasileiro, Olavo de Carvalho, que não acredita em “evolução histórica”. Não acredita que o ser humano, a partir de nossos raciocínios científicos e de nossas ações históricas dissociadas das intervenções divinas possam “salvar” qualquer coisa. Muito embora ele se esmere por iluminar consciências. Mas, sendo católico, é mais no sentido de salvar cada alma em particular apresentando-a para o Cristo, e não de salvar a história.

Amigo: Entendo.

Allan: Eu acho que a história cresce como o Antigo Testamento a narra: um fluxo de ações humanas fecundadas pelo divino. Fecundadas diuturnamente e com grandes saltos, de tempos em tempos, com gênios proféticos. Talvez estejamos passando por um lapso de profetas de Deus. Contudo, Deus se manifesta em cada desabrochar de flor, para isso precisamos despertar nossa visão mística, para não perder o azimute. Os argumentos lógicos fazem parte das tábuas de salvação, mas o desabrochar da flor (ou a perfeição do olho) não o são menos. Você já leu “Morte e Vida Severina”?

Amigo: Não li.

Allan: Vou findar minha fala aqui:

"— Severino, retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;


nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga,

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, Severina.

Mas se responder não pude à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida Severina."

Amigo: Opa, muito bom!

Allan: “Saltar da ponte e da vida” seria cometer suicídio. Mas, tomando metaforicamente para essa nossa conversa, posso ler como “saltar fora dessa busca por Deus”.

Amigo: Sim. Viver e aprender o que rodeia.

Allan: Quando a gente vai olhando esses milagres diários, como o nascimento de um filho, vida explodida, Deus que


se explode na matéria, a dúvida diminui um pouco, o amor aumenta mais, a razão parece ser menos necessária, a presença de Deus, no amor pela vida pequenina, severina, mostra um pouco daquele esplendor que apareceu para Saulo.

Amigo: Verdade. Os milagres da vida e do dia-a-dia.

Allan: E é uma presença de Deus desafiadora a cada minuto, que às vezes nem te deixa pensar, quase te sufoca, e, pela falta de tempo, e de fôlego, a exalação da dúvida dá uma trégua. E, ainda a cada minuto, a inspiração daquela presença, que tinha tudo para nem existir, te faz acreditar que há um fundamento além.

Amigo: Inspirado nessas últimas palavras!

Allan: Prazer falar contigo, irmão!

Amigo: Valeu, Allan! Prazer é todo meu.

Allan: Vou ver se consigo dormir aqui.

Amigo: Valeu pela atenção. And kind words!

Allan: Boa noite!

Amigo: Boa noite!


Quem sou eu Allan Denizard A medicina me alimenta, mas é a arte que me nutre. A filosofia me mantém vivo, mas é a espiritualidade que me arrebata. Médico de família e comunidade, orientador artístico-filosófico do Projeto Y de palhaçoterapia da Universidade Federal do Ceará, professor de saúde comunitária da Universidade de Fortaleza. Espírita. Para ler mais reflexões como estas acompanhe meu blog:

Por uma filosofia espírita


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