O auto da terra do pé rachado: o livro

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O LIVRO do Auto da Terra do Pé Rachado

ALLAN DENIZARD (Dramaturgo do Grupo Espírita de Teatro Leopoldo Machado)

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1ª Parte: A Peça

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O auto da terra do pé rachado Personagens: 1. Cancioneiro Agalopado/ Poeta de Cordel 2. Joaquim 3. Teobaldo 4. Coronel Figueira 5. Mãe de Terezinha 6. Pai de Terezinha 7. Irmão de Terezinha 8. Terezinha

9. Véa do Badalo 10. Moço-Anjo 11. Mulher doente 12. Homem1 13. Homem2 14. Sertanejo 15. Jagunços 16. Povo

PARTE 0 – APRESENTANDO Cancioneiro Agalopado

Eu vou lhes contar uma história bonita Do jeito que vi num romance antigão No meio de um povo aqui do sertão Com Deus, alm’engenho, amor e desdita Com tanta aventura que nem se acredita Em terra sofrida de tanto rachar Com pés machucados de tanto esperar Do céu logo a chuva, do mar a esperança Que o pouco que plantam não enche a pança Cantando galope, querendo o mar Se eu for lhes dizer onde é que ela fica Não vou conseguir me fazer entender Pois de onde eu estava só dava pra ver O solo rachado e uns pés de oiticica A seca danada que a tudo caustica As plantas de espinho sem nada a secar Um leito de rio deixado pra lá O sol lá em cima luzia malvado Descendo o chicote naquele cerrado Queimando em galope bem longe do mar Tudo era tão seco que os home’era forte Com a testa enrugada qual couro curtido E um olhar meio triste, mas muito garrido De quem luta sempre, peitando a morte Saindo das bandas das terras do norte Deixando a casa pr’um dia voltar Saindo daqui, com desdita sem-par

Pensando no verde da volta querida Depois de umas gotas de chuva bendita Caindo em galope, voltando do mar No meio do povo havia Joaquim Que desde criança sofria tormentos Os vultos que via espantando os jumentos Deixav’ele em claro por noites sem fim Rezava com medo de ter farnizim Pedia assustado pr’alguém lhe ajudar E até que dormia de tanto esperar Um sono tão calmo quanto ele podia Seguindo folgado de noite e de dia Cantando galope até se acal-mar De longa odisséia era o amigo Teobaldo Jogavam de bola, pisando no chão Brincavam de pipa, rodavam pião De bila, de roda, não davam rescaldo A idade e a alegria lhes dando respaldo O ar se animava e passava a soprar As nuvens ficavam pesadas de amar Moleques brincando gritavam pra tudo Pra dor, pro calor e pro céu que era mudo E o galope descia em água do mar Mas como alegria de pobre é fugaz Vivia nas bandas um tal coronel Se achando o dono da terra e do céu

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Dizia ser santo e arauto da paz “Só quero o que é meu, não preciso de mais” Piedoso, bondoso, gostava de dar Querendo de volta, sem nem trabalhar, A terra, o gado e três quartos da renda Dos pobres vassalos dali da fazenda Cantando galope bem longe do mar O céu não demora a mandar uma criança Mais pura e bendita dos seres humanos Deixando bem claro que não há enganos Que Deus se preocupa com nossa esperança! Tereza é bondade que canta, que dança É flor de salgueiro, bonita sem-par Alegra o mundo sem nem se esforçar

Bailando tão leve no ar que desliza Que um moço entoa assim que a divisa Canção de galope de tanto a-mar Aqui me despeço que eu devo sair Pra grande atração se adentrar no espetáculo Cortando paixões e o pão no cenáculo Torturas de um amor que não deixa mentir Se alegre bastante nas horas de rir Mas pegue um lenço se acaso chorar Que o riso no choro se pode mudar Correndo esse drama no meio da cena Que pra escrever ele rezei uma novena Cantando galope na beira do mar!

Uma cena introdutória de Joaquim e Terezinha brincando no verde do cenário, felizes, até Terezinha desaparecer. Som de marulho e depois de estalado de fogo. Prelúdio pra canção do lamento.

PARTE I – O LAMENTO CENA I JOAQUIM (O ELEVADO DE DEUS) Barulho de ferrugens ao redor em som monótono. Sai a caminhar como que sem destino. Encontra retirantes. Se junta a eles. Os passos fazem som de folha rastejando. Cada vez que os retirantes passam, um outro se soma ao grupo. Logo começam uma dança que chama a clemência de Deus para tudo ao redor.

Coro: No calor da tarde inteira Me despenca uma canseira Meu Deus Meu Deus Joaquim, olhando pra cima, espera uma resposta do céu. Teobaldo o interpela.

Teobaldo: Faz tempo que não vem coisa daí. Joaquim: Só tava olhando. Teobaldo: A gente olha muito o que tem desejo. Joaquim: Só olhando. Coro: Nesse mar de lua cheia Se espalhando no horizonte Pra além daquele monte Um punhado de amigos Tão carentes tão aflitos Com olhos sem cor nem tom Teobaldo: Não há muito tempo de se conversar na estrada. Joaquim: Tem de poupar força. 4


Teobaldo: Verdade. Coro: Pai nosso Que há? Pai nosso Nem consigo mais cantar Joaquim: Onde você estava? Teobaldo: Em lugar nenhum. Joaquim: Eu também. Teobaldo: A gente anda e esquece. Joaquim: Mas se chover a lembrança volta. Coro: Pai nosso, Não dá Não posso, Só o que faço é andar Teobaldo: Que gosto a chuva tem, cê lembra? Joaquim: Saudade... Coro: Andar Andar Andar Teobaldo: Ali! Uma casa... Todos correm.

Joaquim: Ô de casa?! Eco.

Teobaldo: Tem alguém aí?! Eco.

Joaquim: Não tem vida nessa casa, não. Teobaldo: Mas tem água nessa terra! Joaquim: Salgada dá é mais sede. Teobaldo: Desgraça. Tá tudo bichado por aqui. Sons de sino de gado.

Joaquim: O resto tá se afastando. Teobaldo: Tá não. Pararam logo ali onde o sol tá deitando também. Joaquim: É bom aproveitar o teto antes que ele desabe. Preparam um canto de dormir.

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Teobaldo: Consigo não. Joaquim: O quê? Teobaldo: Fechar os olhos. Joaquim: Conta carneiro. Teobaldo: Tão tudo morto. Joaquim: Conta estrela. Teobaldo: Tão forte demais. Me deixa acordado. Joaquim: Se cubra que os olho fecha. Grilos e coaxares.

Teobaldo: Ei... Joaquim: Que foi? Teobaldo: Boa noite, Joaquim. Joaquim: Boa noite, Teobaldo. Teobaldo: Boa... Joaquim tem pesadelo. Risada da Véa do Badalo. Sons de sino de bode e ventania.

Voz da Véa do Badalo: Menino... menino... De que tempo você é? De que tempo você é? Menino... Menino... Quanto tempo você tem? Quanto tempo você tem? Menino... Menino... De quem é o tempo? De quem é o tempo que você tem? Três mil anos não bastam para expulsar o demônio. Três mil séculos não cabem na tua sela. Três mil vozes não falam o que o teu coração sente. O que o teu coração sente? Menino... menino... Cuidado! Cuidado! O demônio se aproxima. Se aproxima teu amor. Que amor do mundo te leva ao demônio? Que demônio no mundo traz o teu amor? Que demônio traz o teu amor?... Acorda! CENA II O CORONEL FIGUEIRA (DA FIGUEIRA SECA) Coronel Figueira aparece em cima de um cavalo grande, se confundindo com o sol, cegando Joaquim que está acabando de acordar.

Joaquim: Oi, senhor. Bom dia! Coronel: Coronel, faz favor. E de bom não vejo muita coisa, não. O que vocês tão fazendo na minha terra? Joaquim: (ainda acordando) A gente num sabia que essa terra era de ninguém, não. Tamo saindo lá de onde a seca acabou com tudo e tamo indo de encontro ao mar. Coronel: Decidiram parar aqui pra fazer arruaça. Teobaldo vai acordando.

Joaquim: Somo arruaceiro não, senhor. Viemo em paz, ninguém tem intenção de tirar terra de ninguém. Não precisa se arreliar. Coronel: Quem diz o que eu preciso fazer sou eu e Deus. Como ele mal fala, ficamo com minha opinião na maioria das vezes. Teobaldo: (mal acordando e vendo o coronel) Valei-me! Joaquim: Que foi, Teobaldo? Teobaldo: (pegando Joaquim de lado) Ta vendo, não, homi! Ta cego! Joaquim: To sabendo o que você tá falando, não. 6


Teobaldo: Você ta falando de cabeça erguida com Coronel Figueira, o homem mais poderoso desse sertão. Joaquim: (assustado) E é? Teobaldo: Em que mundo você vive, Joaquim? Desgraça! Tanta terra pra gente parar, vimo parar justo na terra do Coronel. A gente tem de acordar todo mundo e partir sem demora. Joaquim: Não tava pensando diferente, mesmo. Teobaldo: Quando falar com homem, faça olhar de abestado e sorria, não olhe no olho e concorde com tudo. Mais cedo a gente termina a prosa, mais cedo a gente salva nosso couro. E deixe que eu fale. Joaquim não obedece a Teobaldo. Esse, sim, faz cara de abestado e não olha para o Coronel, mas fala.

Teobaldo: Ô, coronel! O senhor perdoe a prosa do meu amigo... Coronel: (estranhando a cara de abestado repentina de Teobaldo) O que foi que houve com ele, deu trombose do nada. Joaquim: (arreliado com a humilhação de Teobaldo) É que o bichim é assim, meio doente. Numa hora ta bom, noutra ta mau. E assim vai levando. Coronel: Você dizia? Teobaldo: Perdoe a gente. Só foi uma dormida ligeira. Vamo já se arrumar pra sair. Não se preocupe que a coisa se resolve e a gente vai pra longe. Coronel olha ao longe e vê alguns sertanejos pegando água no cacimbão mais adiante.

Coronel: Que ladroagem é essa ali? Joaquim: Onde? Coronel: Ali? Teobaldo: (arregalando os olhos) Onde? Coronel: Além de abestado, você é cego? Ali! Teobaldo: Danou-se! Joaquim: O quê? Teobaldo: Nada. Vamo lá! Joaquim: Vamo! Coronel sai com seu cavalo para fora de cena. Entram em cena três sertanejos, dois pais e um filho doente. A mãe com o menino no colo dando água aos poucos numa cuia. Coronel volta como se tivesse chegado aonde tinha ido.

Coronel: Devolva o que você tomou! Pai: Tenha piedade, Coronel! Coronel: Cada gota! Pai: Eu sei que o senhor é homem bom, sei que é temido, também. Sei que o senhor é dono de tudo nessas terras. Nunca quisemo lhe roubar. Coronel: Pois cuspa a água de volta e coloque o que tem no balde na cacimba. Pai: Não posso. Coronel: Por quê? Mãe: É que quem bebeu não foi ele, foi o menino que tá doente demais e teve precisão de resfriar o corpo. Coronel: Diacho! Parte pra apelar pra vida de um garoto pra questionar minha virtuosidade. Olhe! Eu conheço gente como vocês. É peste daninha que invade 7


plantação sem permissão e no silêncio pra depois tomar tudo que a gente plantou. Eu me compadeço do menino e esqueço que vocês suaram no chão da minha terra, esqueço que vocês esbaldaram meu poço e beberam da minha água sem permissão. Mas, antes de o sol se por, quero tudo do jeito que tava e esqueço até que vocês fizeram rastro. Teobaldo: Combinado! Joaquim: Mas viajar assim não dá! Coronel: Quê? Teobaldo pisa no pé de Joaquim e Joaquim, agora, faz cara de abestado, mas de dor.

Coronel: Diabo de gente esquisita. É melhor sair mesmo antes que eu descubra que isso pega e mande matar os dois. Teobaldo: Se aperreie, não. É de nascença. Joaquim: Que de nascença o quê?! Teobaldo tenta dá outro pisão em Joaquim, mas Joaquim desvia e desconta. É a vez de Teobaldo fazer cara de abestado de dor. Joaquim sai pra ver o menino que arde em febre.

Coronel: (saindo) Antes do sol se por! CENA III TEREZINHA (CEIFEIRA E CAÇADORA) Toca melodia.

Joaquim: Que é isso? Pai: Graças a Deus! É Terezinha! Terezinha entra cantando música de roda (de domínio popular) com movimentos leves e o mundo (Joaquim mais que o mundo) pára para vê-la como se fosse uma pétala flutuando até o pequeno doente. Terezinha faz dueto em canção com Joaquim, mas essa cena é como se fosse dentro da mente do jovem. Quando Terezinha entra, ela carrega o povo em ciranda como se o povo a seguisse como a uma deusa. O povo, dançarinos ao seu redor, ficam, ao final numa metade do palco, e a família sofredora na outra metade.

Mãe: Que bom que você chegou, filha! Terezinha: Amornei um pouco a água num fogo que o povo fez logo ali. Joaquim: Teobaldo, que formosura! Teobaldo: É. Meu pé realmente era uma formosura antes de você pisar nele. Joaquim: Por Deus, nunca vi coisas igual! Teobaldo: Nem eu, arrancou até o casco da unha (tira o casco) Joaquim: Dá vontade de parar e ficar olhando o resto do dia... Teobaldo: Pra ver se sai sangue do pobre infeliz. Ah, miserável! Terezinha: Ele alucina, mãe... Mãe: Ah! Terezinha! Não há de ter alguma rezadeira no meio de tanta gente? Teobaldo: A gente tem é de ver como é que vamo levar esse povo todo daqui. Joaquim: Eu tenho de falar... Teobaldo: Você tem coragem? Joaquim: Nunca tive tanta na vida.

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Teobaldo: Pois diante de tamanha bravura, vô esquecer do meu dedo e preparar o povo pra te ouvir. Teobaldo sai para o povo que está ao lado do palco (mas que na realidade está ao longe). Joaquim se aproxima de Terezinha. Foco na família.

Joaquim: Posso ajudar? Terezinha: Ah! Moço... Joaquim: Joaquim! As suas ordens! Terezinha: ô Seu Joaquim... Joaquim: Seu só se for seu, porque fora disso sem o seu tá bom! Terezinha: Desculpe, Seu... digo, Joaquim... Não sei o que pode ser feito que até agora já não tenha sido com um pouco que a gente tem nessa terra sem ajuda. Mãe: Esse moço falava com coronel Figueira, filha, nesse instante. Terezinha: Coronel Figueira? O dono dessas terras, num é verdade? Joaquim: Parece que é. Talvez com um pouco de prosa ele deixe a gente ficar. O foco fica alternando entre Teobaldo (Aquele do Povo famoso) e o Povo, e Joaquim com Terezinha e sua família, dependendo de quem fala se os de Teobaldo ou se os de onde está Joaquim.

Teobaldo: (para o povo) E teve ele coragem de olhar olho no olho do coronel... Pai: Conversa, homem! Que Coronel Figueira lá vai dar ouvidos a gente pequena como você! Joaquim: Mas, ora se vai! Perceba que ele era homem bondoso! Deixou a gente ficar... Teobaldo: (para o povo) E Joaquim fez negócio direito pra ficar nessas terras... Pai: Até o sol se por. Teobaldo: (para o povo) Que bondade do coronel, respondendo a coragem de Joaquim, pois o Coronel Figueiras deixou um prazo bom...

Joaquim: (para o povo agora) Pra depois ele esquecer... Pai: Dos rastros que a gente vai deixar. Isso significa que a bondade só vai até o fim do dia e ele quer a gente fugindo que nem bicho do mato. Joaquim: (para o pai de Terezinha) Ou que ele é de Lua e que a maldade só vai até onde a bagunça da gente deixar. Todos: É o quê?! Teobaldo: É o quê?! Joaquim fala para todos do palco.

Joaquim: Vou conversar com o Seu Coronel pra que ele ache que o sol poente seje no mesmo instante que a doença do menino se for. Vozes do Povo: Ele vai!... Tem coragem!... É justo...! Ele vai!... Joaquim: Não tem do que temer, minha gente. Temos necessidade do que vou pedir. Não há de ser muito o espaço que vai ceder. É engano dos pequenos pensar que os

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grandes são surdo à súplica. De outro modo, piedade tem seu poder. Não tem do que temer! Pai chega para Joaquim.

Pai: Diacho! Você faz isso porque é novo. Tem pouco conhecimento da maldade humana. Mas, se fizer isso, vai ter minha admiração mesmo sem conseguir. Espero que não se frustre com o que vai ouvir. Você pelo menos ganhe tempo pro meu filho. Joaquim: Não se preocupe. Pai volta para cuidar do menino. O povo se dispersa e com ele o Pai e a Mãe da criança doente junto com a criança. Joaquim fica contemplando Terezinha cuidadora do menino.

Joaquim: (para Terezinha que saía) Espero, posso lhe falar? Terezinha o espera. Teobaldo o interpela. Joaquim fica fazendo que vai ao encontro de Terezinha, mas Teobaldo sempre a atrapalhar. Teobaldo: Qual o plano que você tem pra enganar o Coronel? Joaquim: Dizer a verdade! Teobaldo: Quê? Mas como você vai enganar dizendo a verdade? Joaquim: Não tem o que enganar. A verdade basta a si. Teobaldo: Não acredite nisso. Deve ter com o que se sustentar, caso a terra desabe. Vamos pensar em um acordo, em uma trapaça, em uma gaiatisse. Tem que ser dos astutos, Joaquim. Venha sentar comigo e matutar numa artimanha. Joaquim: Se fie nisso, não, meu amigo. Nunca tive tanta esperança que bondade pode existir em coração de velho. Teobaldo: Que você ta com conversa de quem tá abestado! Parece que foi picado por cobra e ta vendo visagem. Pra onde você tá olhando? (segue a linha dos olhos de Joaquim e vê Terezinha). Arri égua! Você vai entregar seu pescoço pra faca por causa de mulher. Pouco importa o menino que ela ta cuidando. É ela que vale a briga, não é? Joaquim: Deixe de conversa e me deixe pr’eu pensar. Vá se vê com suas astúcias pra lá. Teobaldo: Desgraça! Apaixonado perde até o amigo. Ainda vou salvar sua pele, infeliz. (vai saindo) Vive no mundo da Lua. Joaquim se aproxima de Terezinha.

Terezinha: Eu vejo o que você ta fazendo, moço. E agradeço mesmo antes de você ta lá. Joaquim: Mas a causa é muito nobre pr’eu deixar passar assim. Terezinha: Qual a certeza que você tem de conseguir o que quer? Joaquim: É pouco, mas eu vi nos seus olhos uma certeza das coisas boas que ainda nem puderam acontecer. Terezinha: Mas os meus olhos não disseram nada mais do que o desejo de ter esse moleque de volta a vida. Joaquim: Ora, se isso já não é suficiente pra fazer homem lutar. Se sua canção triste traz afago pra esse pequeno, e ainda com o coração em migalhas você sorri feito sol de manhã de primeira chuva, que dirá feliz com a volta da saúde. Terezinha: Fico sem jeito com tanta gentileza sua. Mas te peço uma coisa. Joaquim: Eu te escuto bem. 10


Terezinha: Se fizer isso pensando na vida que vai salvar talvez tenha mais chance do que se fizer pensando no meu coração esmigalhado. Parece valer mais a pena. Joaquim: Com todo respeito, moça Terezinha. Se a coragem por um inocente vale um tanto. A peleja pelo retorno bom do seu coração vale somado. Terezinha: Joaquim significa “Enviado de Deus” dizia minha avó. O amor dela se chamava também Joaquim. Joaquim: Espero que eu mereça esse “também” tanto pelo amor quanto por Deus. Terezinha: Só não te digo tanto como bate essas palavras no meu peito, porque ele ta ocupado com o pequeno. Perdoe. Joaquim: Estamos os dois. Terezinha: Quando o senhor vai lá? Joaquim: Vou seguindo o sol. Ele vai me guiando pra lá. Vou ta vendo ele da janela quando eu tiver em frente do coronel. Preciso ser convincente. Como eu disse pra Teobaldo. Quem tem a verdade num teme. Terezinha: Acho melhor preparar um discurso bom. Ainda temo o coronel. Vou te deixar um pouco só. Joaquim: Só se teme a Deus, Terezinha. Terezinha: Vou ta pedindo a Ele por ti. Foco em Joaquim. Tereza sai de cena com o menino.

CENA IV A VÉA DO BADALO. (PROFETA DO LIXO) Vem um sino de bode de longe. Joaquim estranha. Entra a Véa do Badalo com um sino de bode.

Véa: Joaquim... Joaquim... Joaquim: Conheço sua voz... Véa: Joaquim... Joaquim... Joaquim: Você é a louca do badalo, não é? Já ouvi falar da senhora... Véa: Menino... Menino... Joaquim: De onde conheço sua voz? Véa: Eu sou os olhos que tudo vê... Joaquim: O quê? De onde a senhora é? Véa: (apontando para vários cantos) Dali... Dali... Sou do sol... Sou da lua... Sou da terra... Eu vim do barro... Eu sou o ar... Menino... Menino... Quantos anos você tem? Joaquim: Sou novo. Véa: (risada sinistra) Novo tanto quanto eu... Menino... Menino... Você teve mais couro do que cobra. Voltou... Voltou... encontrou quem você queria... Não vive sem mim... E o amor... E o demônio... Você vai querer dizer que é de agora... Menino... Menino... Mas não é. Joaquim: Do que está falando? Véa: (grita) Eu sou os olhos que tudo vê! Não escapa de mim... Você... Você... Quer saber? Quer saber como vai ser tua vida? Quer saber de onde vem tua morte? Menino... Menino... Joaquim: Você enlouquece, velha! Nada dá pra entender de ti. Joaquim tenta sair e é barrado pela Véa.

Joaquim: Saia da frente! Você tresvaria...

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Véa: Não vai ser a primeira vez que você morre... Dizem eles que tudo estava previsto... Dizem eles que o amor comanda os atos... Dizem eles que o amor cega os mansos... Dizem eles que o Demônio desafiou Deus por amor... Joaquim: Do que está falando? Eles quem? Como pode o homem morrer mais de uma vez? Véa: Eles... Os olhos... Eles... Eu... Os olhos... Não entende... Pois vai ver... Mas antes que vá... Antes que se entregue... Vá conosco... Vá com Deus... Enviado de Deus... Por isso te chamaram assim... Joaquim... (risada sinistra)... Mas não esqueça de salvar... a pele... Menino... Menino... Mas não esqueça de se lembrar de mim... Que eu te avisei... Que eu te mostrei... o futuro... Que eu te dei... ciência... Joaquim: Ciência? Ciência de que? A Véa do Badalo começa a rodar tocando e dançando ao redor de Joaquim com uma música ao fundo. Repetindo sempre seu refrão:

Véa: Menino... menino... De que tempo você é? De que tempo você é? Menino... Menino... Quanto tempo você tem? Quanto tempo você tem? Menino... Menino... Ela roda, dança, canta seu refrão. Roda e roda e quando pára, Joaquim está tonto. Luz forte no palco indicando que Joaquim está no meio do deserto. O eco da voz de Terezinha é ouvido, de quando em quando, cortado com o gemido do menino com febre. Joaquim: (tresvariando) Terezinha, não se preocupe, eu vou conseguir o que intento. Terezinha... Não chore menino... sua febre logo passa. E a minha? Por Deus, que eu pensei que não fosse tão longe... Onde estou?

CENA V PEITANDO O CORONEL. Joaquim um pouco tonto e algumas coisas que ele diz teria dito melhor se não tivesse tonto. Parece até que ele fala como se tivesse vomitando pensamento. Uma lâmpada de fio de tungstênio desce do teto com um fio longo e fica pendulando entre o coronel Figueira e Joaquim.

Coronel: Eu vejo que a saída não se sucedeu. Joaquim: Coronel Figueira? Coronel: O que vem fazer aqui? Joaquim: Vim lhe falar. Coronel: Do que, eu não sei. Joaquim: Lhe explico. Coronel: Não precisa, mas pode tentar. Joaquim: Terezinha sofre por conta do menino. Coronel: O menino eu conheço, mas quem é Terezinha? Joaquim: Se há ser humano para salvar a criação de Deus é Terezinha que veio das mãos dele. Coronel: Te-re-zi-nha... Joaquim: Mas o menino é que importa, disse ela. Coronel: Claro! O menino. Joaquim: E vim aqui por conta dela, porque eu queria salvar ele. Coronel: Mas é nobreza da sua parte. Coragem até demais. É bom. Joaquim: É bom? Coronel: Não gosto de homem frouxo.

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Joaquim: Não sou desses. Coronel: Admiro os destemidos. Joaquim: Aqui estou. Coronel: Mas não gosto de concorrência. Joaquim: Não quero medir força. Coronel: Mas já ta medindo. Joaquim: Só vim aqui falar. Coronel: É suficiente. Joaquim: Só queria o bem do meu povo. Coronel: E não o amor de Terezinha? Joaquim: É por conseqüência que isso vem. Coronel: Tem o preço ficar nessa terra. Joaquim: A gente paga. Coronel: Você nem sabe quanto? Joaquim: O que for. Prometi voltar com resposta boa. Coronel: Pois lascou-se, menino. Que dentro do preço está você não voltar mais. Joaquim: O quê? Cabras do coronel pegam Joaquim, tiram muito do seu sangue e penduram-no numa corda, no ar.

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PARTE II – A RESPOSTA DIVINA CENA VI VOLTANDO DO DESERTO. Estirado em cima onde havia a lâmpada pendulando está Joaquim. Lá no fundo, uma voz vinda de longe canta uma cantiga triste e serena (uma “Excelência”). É Terezinha que num lamento acorda Joaquim. Ao lado de Joaquim aparece um anjo fazendo acrobacias em cordas, descendo-o até o chão. Aparece o bumba-meu-boi dançando em palco com uma pele toda espelhada. Um holofote verde incide sobre sua pele-espelho que reflete vários raios verdes ao redor. Joaquim tonto de sua ressurreição se movimenta igual ao bumbameu-boi, no mesmo balanço, no mesmo ritmo. Olha ao redor e se admira daquele verde todo e sai a contemplar o paraíso em que se encontra. A música de lamento que inicia a peça no início se repete aqui, mais lenta, mais sofrida, cortada, como se fosse apenas lembranças misturadas, confusos os versos. Os batuques que fazem dançar bumba-meuboi aumentam em intensidade. Bumba-meu-boi vai se postando em um extremo do palco e Joaquim vai se afastando dele quando, de repente, é surpreendido por uma explosão dos batuques coincidente com uma forte luz que ilumina uma sarça (ou um cacto – qualquer planta do sertão cheia de espinhos) na sua frente rodeada por um fogo que arde, mas não queima – um holofote sobre ela. Dela sai uma voz que canta para Joaquim:

Eu te chamo na surdina Meu filho, coisa mais linda Só meu Só meu Ti mostro todo esse povo Sofrendo de horrores tantos Sangrando dos oi um pranto Faltando fé no futuro Sem Deus, sem força, nem muro Pros póbi se encostar Meu filho Não dá Meu filho Nem consigo mais cantar Meu filho Vá lá Ti digo Só o que basta é amar Amar Amar Amar

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CENA VII NA SALA DOS MISTÉRIOS. Nossa senhora iluminada, a mesma atriz que faz Terezinha (velada com um pano branco e azul na cabeça) se aproxima de Joaquim. No cenário descem três retalhos, dois com desenhos rupestres e o terceiro, no centro, manchado de vermelho. Joaquim não enxerga bem com quem fala. Seja porque está tonto, seja porque a luz que vem dela é forte.

Joaquim: Me sinto tonto. Senhora: Você passou muito tempo olhando pro chão. Joaquim: Ainda nem sei direito o que aconteceu. Só vi sangue e o mundo pra baixo. Senhora: Teu sangue realmente desceu na ampulheta do mundo. Mas, Deus decidiu virar pra dar um novo começo. Joaquim: Por que eu? Senhora: Os heróis. Ah! Os heróis. Todos vêem eles montados em cavalos gigantes e fortes, com um couro mais grosso que a casca do umbuzeiro e com braços torneados de segurar boi com uma mão só. Joaquim: Eu passo longe disso. Senhora: E por isso Deus te escolheu. Mesmo sem ter nada disso ainda foi em frente pra encarar um diabo do povo, sem medo de morte. Joaquim: Mas eu tinha antes ingenuidade que coragem. Lá ia saber que o homem tava disposto a fazer o que fez comigo. Senhora: É da ingenuidade que crê na boa mudança que Deus ta atrás. Há tanta soberba no mundo querendo ser Deus. Os ingênuos nunca levantaram a mão que não fosse pra louvar. Suplicar também. Oferecer em seguida. A caridade vinha mais reluzente das mãos suplicantes dos ingênuos que da sacola cheia de ouro dos donos da terra. Joaquim: Eu queria te confessar uma coisa, senhora. Me sinto livre para confessar a você meus segredos. No meu peito não tinha muito amor que não fosse por Terezinha. Senhora: É estranho. Nos livros de Deus não encontrei direção pro amor. Nunca vi ele indo ou vindo de algum lugar. Deus parece ter perdido a noção do sentido. Pra ele amor não vai nem vem, pra ninguém, de ninguém. Ele enxerga somente amor. Joaquim: Que língua complicada a sua, senhora. Até parece a véa que lá na Terra repica o sino. Senhora: É difícil lá em baixo falar das coisas santas em língua que se entenda. Aqui é um pouco melhor, mas depende também de quem escuta. Joaquim: (triste) Se eu tô em cima é porque não vou mais voltar pra cumprir os desejos do meu coração. Senhora: O abismo que separa a gente de lá pode ser ultrapassado por apenas uma chave, Joaquim. Joaquim: Qual seria? CENA VIII A ASSUNÇÃO Canção da “Excelência” cantada por Terezinha ao longe é ouvida de novo ao fundo. Faz dormir Joaquim que é acordado pela Véa do Badalo. Ela chega de onde a Nossa Senhora sai.

Véa: Menino... Menino... tá vivo? Tá vivo! Ninguém pode te matar! Ninguém! Joaquim: Que ouve? Voltei? Véa: Quantos anos você tem? Quantas vezes cê voltar! Menino... Menino... vejo estranho algo em ti. Que luz é essa ao teu lado? Não! Não! Que luz é essa que sai de ti? Menino... Menino... teus tormentos te serviram. Grandes mãos te abençoaram. 15


Joaquim: Onde está Terezinha? Onde está Teobaldo? Véa: Menino... Menino... onde está você? Quando vai se encontrar? Teobaldo chega com mais dois homens a lhe acompanhar. Parecem estar bêbados. Enxotam a Véa do Badalo que ainda tenta revidar, mas é expulsa a ponta pés pelos homens. Joaquim ainda esboça a intenção de ajudá-la, mas é puxado por Teobaldo.

Teobaldo: Que aconteceu contigo, homem? Todo sujo. Todo maltratado. Joaquim: Fui torturado pelos jagunços do Coronel Vieira. Teobaldo: Devia ter lhe impedido de ir naquele dia, mas você se fascinou. Joaquim: Não me arrependo. Teobaldo: (falando aos companheiros) Pessoal, conheçam o Senhor Coragem! Este é meu amigo Joaquim. Não se metam com ele que as almas estão ao seu redor. Os homens galhofam.

Joaquim: Não brinque com isso, Teobaldo! Teobaldo: (imitando) “Não brinque com isso, Teobaldo!” Falo alguma mentira? Não! Acho que os seus fantasma te deixaram louco. Joaquim: Onde estão os outros? Vejo que não foi em vão meu encontro com o Coronel. Vocês permanecem nessa terra. Teobaldo: Menos por você que por Terezinha. Joaquim: Como assim? Teobaldo: Coronel Figueira parecia ter se esquecido da gente. Pensávamos que você tinha conseguido acordo. Mas, ficamo preocupado porque você não voltava. Aqui e ali passava um jagunço vigiando nossas tenda. De vez em quando passava ao longe o Coronel como se procurasse um negócio. Um dia ele se aproximou de repente e, falando pro povo, dizia que se havia tolerado a habitação era porque daquele povo ele havia visto um motivo para bem tolerar. Joaquim: Terezinha... Teobaldo: Ele vinha com o nome dela na boca como se sonhasse com ele. Joaquim: Não. Teobaldo: Miserável! Terezinha secou. Ficou branca. Mas nada podia fazer. Seus pais, traidores, nem se levantaram contra aquele velho. Joaquim: Tentavam defender o filho doente. Teobaldo: Vá lá... Terezinha entregou-se a morte, dia seguinte já era o casamento, horas depois o casamento se firmou. (Postam-se frente ao lençol sujo com vermelhosangue). Joaquim: (espantado) Não! Não! Não! Teobaldo: Foi castigo o que aconteceu depois, Joaquim. A peste do menino começou a se espalhar pelo povo, cada dia é mais um amaldiçoado. Já faz 40 dias e 40 noites e metade dos nossos se foram. Joaquim: (olhar perdido) Não... Teobaldo: Pelo menos de uma coisa você tinha razão. Não é pra temer Coronel. Mas, conversar com ele, só se for na beira da morte. Olho no olho, preparado para cuspir no rosto do moribundo. Entra uma moribunda em cena. Para aumentar o poder simbólico dessa moribunda, ela deve ser a mesma atriz que interpreta Terezinha, que interpreta, também, a senhora da sala dos mistérios. Os homens alertam sua presença e se afastam. Joaquim permanece pasmado no seu lugar, digerindo tudo o que ouviu.

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Teobaldo: Saia daí, homem! Não vê que a doença é contagiosa demais. Doente: Desculpe, moço, espero não lhe fazer mal. Só queria ir rumo a água. Joaquim: Pois vá, senhora. Doente assim você precisa inda mais dela. Teobaldo pega grande galho seco e afasta a doente.

Teobaldo: Não passa daqui. Que a água da cacimba é a única fonte limpa que a gente tem. Se afaste e volte para morrer de onde veio. Doente: Moço, me deixe passar que a sede é grande. Teobaldo: Mate a peste de sede, que afogada não é jeito de matar. Joaquim: Deixa a senhora passar, Teobaldo. Joaquim tenta ir contra Teobaldo que aponta o galho para Joaquim.

Teobaldo: Não deixo! Joaquim: O que houve com você, homem de Deus! A seca corroeu seu coração? Teobaldo: Sem coração, mas vivo. Joaquim: Me chama de louco pelos meus tormento, mas quem se atormenta é você agora. Teobaldo: Fácil ver as coisa assim, de fora, vindo de longe. Você deve ter fugido pro mundo e deixado a gente pra trás. Deve ter recebido guarida do Coronel pelas semanas de sofrimento que passamo do lado de cá. Entregado o nome de Terezinha e trocado sua paz e essa terra pela virgindade dela. Joaquim: Não diga besteira! Meu amor por Terezinha era forte como se já amasse antes mesmo de conhecer ela. Nunca faria isso. Fui sangrado pelo Coronel e jogado a terra. Teobaldo: E como sobreviveu? Nenhum homem passa tantos dias ao relento e sangrando e volta andando. Como ele sabia do nome dela! Só você para entregar. Joaquim: Não! Joaquim vai para cima de Teobaldo que o joga no chão num golpe de galho. A Doente corre, com o pouco da força que tem, para acudir Joaquim. Joaquim se levanta aos poucos (um sino começa a repicar enquanto se levanta). A Véa do Badalo e uma figurante vestida de Senhora da sala dos mistérios (velada pelo manto) se postam cada uma em um extremo do palco.

Doente: Desculpe, moço. Não queria te fazer mal. Joaquim: Um amigo com toda sua força joga um amigo no chão. A senhora com a pouca força que tem ainda vem e me levanta. Nunca vi bondade igual. Doente: Desculpe ter lhe tocado. A doença é fácil de pegar. Joaquim: A senhora tem sede? Doente: Essa doença mata a gente assim. Joaquim pega um pouco de terra do chão, levanta a mão ao céu. Um coro canta as últimas palavras de Deus (Ti digo/ Só o que basta é amar/ Amar, Amar, Amar) Joaquim traz a terra a doente.

Joaquim: O que eu tenho pra te dar te dou. O que te ofereço é água viva para saber que você tem um Pai que te faz eterna. A doente sente a água despejada em sua mão e cai prosternada diante de Joaquim.

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Doente: (admirada) Senhor! Não tenho mais febre! Minha sede se foi! Minhas forças voltam! Quem você é? Joaquim: Quem você diz que sou? Doente: Você é filho de Deus Vivo! Joaquim: Assim como você! Vá e diga aos doentes que Deus lhes manda salvar. Teobaldo e seus homens assistem de longe os milagres. Vários doentes chegam para Joaquim e uma grande coreografia representando as muitas curas é dançada no palco junto com a canção de Assunção de Joaquim:

Das estrelas do horizonte Sou feito também da fronte De Deus De Deus Vejo aqui todo o passado Da história de minhas vidas Em outros corpos vividas Sofrendo nesse monturo Trago luz para esse escuro Pro meu povo libertar Ti sinto No ar Ti sinto O meu peito vai rachar Ti sinto Pulsar Não minto Meus irmãos hei de salvar Salvar Salvar Salvar CENA IX CONSOLANDO O SEU POVO. Joaquim sobe em um nível alto que aparece no palco e o povo todo chega para ouvir o que ele iria falar. Teobaldo e os seus homens com o povo. Entra o cancioneiro.

O povo então não cansava de ouvir A boca do moço inquieta a falar Da vida que viu para além do lugar Distantes nem tanto das terras daqui Pois era bem perto de se conseguir

Bastava que ao outro um quisesse amar Sem medo ou receio ou pra quê duvidar Sem ter que chorar e nem mesmo cair E não se deixar pela dor possuir Mensagem mais linda que vinha do mar 18


Pra sede do povo dizia haver água Mais limpa que a chuva, melhor que remédio Pois quem dela bebe não morre de tédio Nem fica rodando em torno de mágoa Falava das leis lapidadas na tábua Com gosto tamanho de até levedar O pão dos mistérios de santo lugar No peito da gente que sente a fé Na alma daqueles que andam a pé Cantando em galope querendo o mar

Praqueles cansados de tanta injustiça Falava o moço de coisa estranha Dizia que o homem, de volta à entranha Do ventre da mãe, fecundada e roliça Veria o reino de Deus que é justiça Amor e respeito pros bons do lugar Sem dor para o pobre que quer trabalhar Que a vida daqui, se for só ilusão Tem outra depois, que te traz galardão Brilhando formosa na beira do mar

Som de marulho. Um do povo pergunta e Joaquim responde.

Sertanejo: E como era lá, Seu Joaquim? Joaquim: Era verde de se admirar. Parecia que cada verde era um espelho pro outro. O clima parecia que era regado a sereno de manhã. E a gente sentia Deus como se Ele estivesse no sereno. O mato que a gente se deitava não tinha espinho, parecia algodão. E não coçava nas costa, não ardia. Não carecia de couro pra se proteger dos bicho do chão, dos carrapicho. Os animais eram tudo bonito, saudável e forte. Não tinham medo da gente. Me deu uma paz tão grande de tudo aquilo que eu me senti leve, leve, leve, tão leve, que comecei a voar. Sertanejo: E como faz pra chegar lá? Joaquim: Tem que seguir tudo aquilo que o senhor nosso Deus ensinou. Não é pra matar, não é pra roubar, não é pra trair. É pra amar uns aos outro e a Deus servir. Sertanejo: E se a gente não conseguir? Tem inferno aguardando a gente? Joaquim: Não me apresentaram o inferno, nem vi a cara do demônio. Mas vi um bocado de gente descendo pra Terra de novo, tudo feliz com a oportunidade nova que Deus tinha dado. Elas não começavam do zero, mas de onde tinha parado. Lá embaixo cada uma tinha um caminho, preparado pela metade por elas mesma. Só voltavam, dizia o anjo, pra completar. Tinha umas que tavam com o caminho mais longo, quase acabando. Tinha outras que faltava um montão. Mas, a senhora que me guiava dizia que todo mundo ia receber do mesmo tanto. E naquele exato momento já eram amadas, todo mundo igual, por Deus. O povo começa a sair encantado e conversando sobre o que haviam ouvido.

CENA X A MALDADE DE TEOBALDO. Teobaldo e seus homens falam à parte.

Homem1: Vocês viram o que foi que ele fez? Homem2: Curou todo mundo da gente. Teobaldo: Metade era fingimento e a outra foi ilusão. Homem1: Como é que se ilude pra se curar? Teobaldo: Nunca ouviu falar que a pessoa se cura só de acreditar? Homem2: Importa é que curou. Tamo salvo. Teobaldo: Não enquanto o Coronel tiver vivo.

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Joaquim desce e abraça a ex-moribunda que pedia água. Fala com Teobaldo.

Joaquim: Pode ela beber água, agora. Homem1: Se preocupe, não, seu Joaquim que eu mesmo levo. Homem2: E eu dou escolta. Teobaldo: Você conseguiu enganar o povo direitinho. Joaquim: Falei só do que vi. Teobaldo: E por que você não mostra se tem tanta força? Joaquim: Você sabe reconhecer quando o dia tá pra chover, mas não repara que Deus se manifestou pra nossa gente. Teobaldo: Tá faltando a obra final de Deus. Joaquim: Do que você fala? Teobaldo: Você parece crer que Deus se manifesta por você, meu velho amigo. E, eu acredito mais ainda em você, quando diz que Ele pode se manifestar por qualquer um. Pois fique sabendo que mais do que curar doentes, é nossa salvação fazer adoecer quem deixou isso acontecer. Joaquim: Do que você fala, Teobaldo? Teobaldo: Falo que pra balança do mundo ficar igual tem de haver cura, sem tirar o espaço da morte. Enquanto o cordeleiro conta a malvadeza de Teobaldo, uma encenação pode ser feita representando o feito.

Poeta de Cordel: Teobaldo cala de vez O assunto com Joaquim Não queria lhe dizer Que fizera de ruim O plano que fez Figueira Encontrar seu triste fim Conhecera sua empregada E com ela paquerou A moça toda abestada Logo se apaixonou Dizia enfeitiçada - O que quiser eu te dou! Teobaldo fez com que a pobre Pegasse lençol doente Pra de noite colocar Na cama desse valente Coronel Figueira Bastos Ficaria assim bem quente Depois de feito o serviço A moça ficou de lado Chorava sempre nos cantos Olhando desconfiado

Não sabia disfarçar A falta de seu amado Não deu três dias a pobre Caiu no chão de repente Passou a arder em febre A delirar bem demente Pra piorar a história Queimando tinha mais gente Não se esqueçam que Tereza Deitava na mesma cama Esposa do Coronel Que ardia feito uma chama Delirava assim a moça Vendo céu e vendo lama Na lama ela viu a si Que perdera a virgindade Sem amor por desespero Na sua imaturidade Mas se não salvara o irmão Pro povo fez caridade No céu tinha Joaquim N’outra parte do delírio

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O moço que tinha feito Os seus olhos te’outro brilho Achava que o moço tinha A cura desse estribilho

Da sua filha adoentada Sabia que na loucura Ela não estava enganada O menino Joaquim Podia lhe fazer curada

Seu pai viu o tresvario

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PARTE III – O SACRIFÍCIO CENA XI O MARTÍRIO DE JOAQUIM. Pai de Terezinha vai ao encontro de Joaquim para pedir pela vida da filha. Joaquim em cena rezando para Deus como se sentisse que um cálice ruim estivesse para tomar. Sentia isso desde seu último encontro com Teobaldo. O efeito da luz de tugstênio que desce de cima pode ser repetido aqui. Ela pendulando do alto entre Joaquim e o Pai de Terezinha.

Pai de Terezinha: Seu Joaquim. Joaquim: Me chame só de Joaquim, senhor. Não me deve respeito. Pai: Respeito aquele que pode curar minha dor. Joaquim: Só quem cura é Deus e se você deixar. Pai: A dor não é bem minha, meu filho. Joaquim: Temia que o senhor me falasse assim. Pai: Creio que Deus lhe dê ciência das coisa. Joaquim: Só daquelas que não envolvem meu coração. Pai: Sei que daquela vez amaste Terezinha. Joaquim: Parece que não foi só eu que amei ela de primeira. Pai: Esqueça o que houve depois dali. Importa o que pode haver a partir de agora. Joaquim: Me diga o que dói nos meus ouvido ouvir. Pai: Terezinha morre da mesma morte que ia matar todo mundo aqui. Joaquim chora.

Pai: Por que se desespera, meu filho, se curar é o teu dom? Joaquim: É a mensagem de Deus que num tá clara pra mim. Pai: Não é só por as mãos e a cura sair? Joaquim: Sempre sinto uma fé a me possuir. Pai: E o que sente agora? Joaquim: Sinto que perderei Terezinha de qualquer jeito. Pai sai desolado. Entra a Véa do Badalo. Junto com ela dois leitos. Em um está o Coronel e no outro está Terezinha. Os leitos se postam nos extremos enquanto a Véa canta suas profecias.

Véa do Badalo: Três mil anos não bastam para expulsar o demônio. Três mil séculos não cabem na tua sela. Três mil vozes não falam o que o teu coração sente. O que o teu coração sente? Menino... menino... Cuidado! Cuidado! O demônio se aproxima. Se aproxima teu amor. Que amor do mundo te leva ao demônio? Que demônio no mundo traz o teu amor? Que demônio traz o teu amor?... Acorda! Terezinha: Hã? Quem está aí? Joaquim? Joaquim: Não esqueceu meu nome, Terezinha. Terezinha: Nunca esqueci aquele moço que trouxe alegria pro meu pequeno coração Joaquim: Como pode o mundo ter desabado em tão pouco tempo? Terezinha: Mas eu vejo... eu vejo sua face pintada de ouro. Cada palavra é verso-canção. Seus passos brilham no meu corpo. Sinto frio. Muito frio. Coronel: Quem é que está aí? Terezinha: É o Doutor, querido. Coronel: Mande ele embora que se já disse que não tem remédio deixe a gente morrer em paz. 22


Terezinha: É um outro doutor. Esse é bom. Poderá curar a gente. Joaquim: Não quero. Se curar só você poderemo viver juntos. Nosso povo entenderia. Terezinha: Mas, Deus não. Não creio que Deus tenha te dado tamanho poder pra que pudesse você escolher quem salvar. Diz Ele, e eu sei que Ele diz, que os inimigo precisam ainda mais do nosso poder de amar. Joaquim: Mas é a ti que amo, Terezinha. E não mais ninguém. Se Deus soubesse que na primeira mulher que curei é que te via ali, me teria castigado por não amar o povo, mas só a ti. Terezinha: Ele não castigou, porque sabe que teu coração é dividido e que se parte dele é meu, como o meu é teu, a outra parte é do povo sofrido que você acalentou. Eu te vi no céu, Joaquim. Fiz escolha precipitada. Se morta não ia precisar te fazer passar esse suplício. Mas, já que vivo e que não deixo de ter piedade, faz do teu amor caridade e salva aquele que não te quer bem. Que o inimigo pode se tornar um devoto e uma alma convertida pra Deus no além. Joaquim: Eu lembro bem que a senhora que eu encontrei no céu havia me falado da chave da Terra e do Céu. Com ela tudo o que eu abrisse aqui se abriria lá. Disse ainda que o amor pra Deus não tem sentido nem nome. E me lembro de Deus, que falou comigo, que só o que basta é amar... Seja feita a Tua vontade. Uma percussão gloriosa se faz pano de fundo para a cura de Terezinha e de Coronel. Terezinha se levanta, cantando “Excelência”, beija o rosto de Joaquim que está prostrado no chão, sem forças. Segue passos para o Coronel que acorda como se saísse de pesadelo e que sai de cena apoiado por Terezinha. Antes de sair, Terezinha canta, lento, alguns últimos versos.

Terezinha: Que se nessa vida não deu pra te amar A outra te espera com uma paixão Deitando tua fronte no meu coração Dançando ciranda na beira do mar CENA XII TRAGÉDIA ENTRE IRMÃOS. Teobaldo entra em cena para falar com Joaquim. Joaquim e Teobaldo são amarrados um na mão do outro, com a outra livre. Teobaldo carrega na calça uma peixeira. O diálogo se passa com movimentos de quem duela, até o final.

Teobaldo: Como pode fazer isso com seu povo? Joaquim: Me deixe, Teobaldo. Já sofro dobrado. Teobaldo: Mentira! Pela segunda vez foi traidor. Pela segunda vez entregou Terezinha ao lobo. Pela segunda vez vai trazer mais dor pro seu povo. Joaquim: Só fiz o que pedia Deus. Nada mais. Teobaldo: Não use o nome de Deus em vão, infeliz. Joaquim: Não entende nada mesmo de tudo que vi. Dos mistérios, das lembranças de um mundo melhor. Se queremo esse mundo, é preciso mudar o nosso homem velho de tantos desejos. Foi isso que a senhora iluminada me falou quando morri. Teobaldo: Pois volte pra lá de onde você diz que veio. Que a Terra sem traição é melhor que sem desejo. Ninguém mais te quer nas bandas daqui! Teobaldo tenta por quatro vezes fincar a peixeira no corpo de Joaquim. Cada vez que tentou, não conseguiu pelos desvios de Joaquim, mas deixou uma ferida em quatro cantos do corpo do amigo: em ambas as mãos, em ambos os pés. Até que consegue fincar a peixeira embaixo da

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costela dele (a quinta chaga!). Joaquim grita e se solta de Teobaldo. A sombra de uma cruz aparece detrás de Joaquim que abre os braços de dor. A multidão ouve o grito de dor de Joaquim. A multidão circunda Joaquim. Teobaldo se afasta com temeridade. Vozes no fundo cantam a morte de Joaquim como se fosse um lamento:

Feito um fogo bem formoso Aquecendo nosso rosto Viveu Viveu Sem ver bem como se deu Ti vimos tal qual um Deus Ser divino entre mortais Das tribos dos canibais Sofrer nos canaviais Estirado numa cruz Ó mestre Não dá Ó mestre Eu não posso te ajudar Ó mestre Que há? Faz logo Um milagre te soltar Não dá Não dá Não dá O povo circunda Joaquim de tal forma que não dá pra ver o que há dentro da roda. Colocam um dos atores dentro da rede e saem como se carregassem o corpo de Joaquim. Joaquim, de verdade, fica de pé para trás. É o corpo espiritual que não seguiu o corpo morto! Parte do povo se desgarra da procissão encolerizado e volta para pegar Teobaldo, quando se deparam com Joaquim em corpo espiritual na frente deles. Sobe ao mesmo plano elevado em que havia pregado pela primeira vez e fala:

Joaquim: Este é meu amigo querido em quem me comprazo. Se de sua vítima ele recebe o perdão que dirá de vocês que nada tem contra ele, que nunca atentou contra vós. Tudo que fez foi por amor ao povo. Um amor errado, mas que tentava acertar. Me deixem ir em paz, na paz que vocês deixarem ele ir. Joaquim ascende ao céu. Teobaldo cai prosternado. Confetes e picotes de papel laminado caem do céu e uma festa se faz no povo.

De repente o céu se abriu E de lá se escapuliu

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Choveu Choveu Água e fogo em serpentina Ouro, prata e diamante Era velho e era infante Falando coisas de Deus Eram crentes e ateus Chorando em consolação Pai Nosso Te vi Pai Nosso Não duvido mais de ti Pai Nosso Vivi Tão logo Eu passei a te sentir Sentir Sentir Sentir Cancioneiro Agalopado:

O povo dançou como nunca dançara Diante do inverno chegando enfim Rezando pra alma do moço Joaquim Que após triste vida enfim descansara As frutas surgiam de ruma em vara O gado comendo capim a engordar O rio voltava ao leito a nadar No meio do mato se ouvia o carão Cantando essa chuva em todo o sertão Molhando seu bico na beira do mar

Teobaldo se doa ao ofício de fé Dizendo a todos “Vi Deus no tormento” E escuta uma donzela a chorar um lamento Postada na igreja, uma tristeza feroz Jurava que sim, já ouvira tal voz Por ela ele viu o seu peito pulsar Largou a batina e quis se casar Pois era a mocinha que um dia enganou Que cego de raiva então rejeitou E agora se via tranqüilo pra a-mar

Tereza dá filho ao cruel Coronel Garoto que traz de pequeno uma luz Sem choro, sereno, parece Jesus Presente divino que veio do céu Nos olhos se enxerga um doce de mel Que fez o Figueira perdido de amar Tornou-se bem logo um pai, exemplar Amigo do povo, de fato um irmão Só tinha bondade no seu coração Cantando galope na beira do mar

Aqui me despeço da nobre platéia Pois finda a história que quis lhes contar Com tudo indo bem vou embora pra lá Tirando os meus versos em uma apnéia Mais doces que mel da mais pura colméia Pros contos que conto bonitos deixar Querendo ver mais, pode vir visitar Durante outro causo, num outro cenário Que o pouco que ganho não vale um salário Cantando galope na beira do mar. FIM

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2ª parte: Interpretando o texto

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Mapeando os Atalhos Introdução Decifrar nunca é um trabalho fácil para se fazer em uma obra literária. Alguns enveredam pelo sentimento passado pelas figuras de linguagem e montagens de expressões. A tentativa de encaixar o estilo no ponto certo. No ponto ótimo. É uma poesia, é uma prosa, é uma narração, é isso ou aquilo combinado. É um texto de teatro, então é um drama, é uma comédia, é uma tragicomédia. É um romance, é um suspense. E a análise vai se desenrolando para deixar desnudas as letras que a compõe. Outros enveredam na análise histórica do tempo que gerou a obra. Quem ou o que a influenciou? Genealogia das crenças do autor. Eu, autor da peça, ei de tentar passar meus sentimentos. E não vou prescindir de minha vivência espírita. Sentia que, por mais só que estivesse quando dominado pela insônia em madrugadas de inspiração, em um arrebatamento, meu espírito transcendia um pouco o meu corpo, e dialogava com amigos que não vejo e nem ouço se não com os sentidos da alma. Mário de Andrade diria que o personagem havia se mostrado certo dia com todas as suas cores e nuances para ele. Chico Xavier disse que havia sido Emmanuel, seu querido guia espiritual, que mostrara antes a história a ser romanceada em sua tela mental. De uma forma ou de outra, é o reconhecimento de que somos seres interexistenciais que anima essas discussões. Bailamos dentro de um barco a deriva, diria Herculano Pires, de quando em quando olhando como está o mar do Universo, cheios de gotas de estrelas, e voltando a atenção para o leme desta vida de madeira e terra. Para o lema desta vida: nossa morada não se restringe aqui. A arte é um dos eventos humanos que nos faz lembrar disso. Falarei dos meus sentimentos, como não posso deixar de falar. Falarei de uma filosofia aqui e ali que me encantou. E do que surgiu de mim quase que como inconsciente, mas que, nublado pela minha razão, se deformou em texto.

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A concepção do texto A canção que norteia Estava motivado há muito tempo a escrever uma peça que fosse nossa, de nossa terra, com nossa nordestinidade, com nosso folclore e nosso povo. Sempre fui apaixonado por conflitos e não queria, portanto, deixar de lado a nossa luta, tão nossa. Falar sobre o sofrimento e sobre a religiosidade devota e resignada a tradições, igrejas e profetas de chuva. Queria mostrar a seca, queria fazer descer a chuva. Sentia a desolação, marca registrada destas terras rachadas pela irregularidade das chuvas, que aparecem em dias santos fazendo prenúncios de invernos fartos, ou não aparecem, deixando a cena para verões causticantes. Sentei certo dia em casa e preenchi de versos uma melodia feita pela companheira Paula Jucá. Eram estrofes e refrães que falavam da migração do sertanejo e dos lamentos do caminho que faziam subir ao céu calado preces chorosas. Terminavam em aflição, sem resolução, nem consolação. Um andar sem rumo. O céu sem voz. Os amigos do grupo de música Espírito de Arte que ouviam essa estrofe não negaram a beleza dela, mas perceberam que não poderia terminar ali, ainda que a melodia ali tivesse parado. E lá mesmo a ideia do resto da música me toma por assalto. A problemática era chorada em andança infinda. O céu respondia com a voz do Pai. Convidava um sertanejo para assumir a missão salvadora: amar. Esse escolhido lutava curando a sede e a fome do povo: salvando. Assumindo sua herança divina, era morto pelos seus, por motivos que se escondiam na incoerência ou na crueldade do coração do homem. O choro se transmudava em apelo para mais um milagre de salvação. O homem que trouxera o alívio e a vida para tantas pessoas não podia ser derrotado pela morte que ele espantava com seu poder. Desejavam um milagre que o libertasse do nada em que se transformava seu corpo ensanguentado. Mas, vencer a morte parecia impossível: não dava. De repente, do céu, que dialoga incessantemente com a terra, desce a chuva, grande símbolo de novos tempos. O sertanejo morto não ressuscitara em carne, mas o Espírito que dele se desprendia subia aos céus como seta a apontar a misericórdia do Criador que sempre derramou suprimentos para seu povo amado, filhos queridos, nos momentos mais difíceis. O martírio era apenas luz para os olhos e chamamento para os ouvidos, lembrando de que as pessoas devem trabalhar a terra, mas não deixar de ver o espaço que volita sobre suas cabeças, trazendo surpresas que dormem no seu seio. Talvez sem entender os propósitos divinos, mas sentindo-os, profundamente. Não há nada que esconder. A história era de um Jesus. Não era um Jesus secularizado. Mas também não era um Cristo-Deus. Era esse homem prodígio deste mundo mesmo que nascia normalmente do seio do povo, embora com um brilho na fronte – das estrelas, disse ele – que o distinguia e o faria o mais propício para ser escolhido. Poderia ser outro. Mas tinha de ser humilde. Haveria de ser uma solução que ao mesmo tempo vem do céu, é o que brota de suas mãos em graças, e da terra, é o que o deixa limitado e em dúvidas. Angustiado e sofrido. Contudo, a piedade é o sentimento que surge ainda mais puro de um coração que já sofreu o que os outros ainda sofrem. É o médium mais perfeito para deixar atuar o amor de Deus. A seca, o mar e o martelo agalopado A música que dava corpo a peça, a fiz em dois tempos. O resto dela, pelo menos.

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Cheguei à casa de um amigo querido e, enquanto ele lutava contra as rimas e as métricas de outra música que queria dar à luz, eu pari as outras minhas partes de O Auto da Terra do Pé Rachado que tinha ficado partido no meio, apresentando começo, mas faltando recheio e fim. Merecendo um “já” admirado do pobre que se arrastava ao meu lado no papel. Não foi bem mérito meu. A melodia te faz correr nos versos e as ideias já tinham sido sopradas. Ao fim, ficaram quatro partes bem definidas que denominei assim: o lamento, a divina resposta, a assunção do messianato, a morte do salvador e o cântico dos anjos. O povo, pessoas do povo, Deus, todos cantavam a vida, e cada parte de suas vidas. Mas queria um cancioneiro que falasse sobre a vida de todo esse mundo. Meu avô, por exemplo, nunca descreve um fato, ele sempre conta uma história. É cantador. Cheio de provérbios. Dia desses, ele queria que eu me elegesse junto com meu primo para sermos, respectivamente, prefeito e vice-prefeito da cidadezinha onde morava. Começou a prosa dizendo assim: - Meu filho, quem canta de dois colega, quando um solta o outro pega! Já agora, no final de sua vida, decide contar o que viveu... em cordel. O cordel, com suas sete sílabas, com seus seis versos, fechando uma forma, que só em a gente recitar já brota da garganta, como se viesse do sangue, a vontade de cantá-lo, era uma opção atraente e não poderia deixar de faltar. Mas para iniciar, descrever a terra, os personagens e um caldo da trama, me veio à mente o martelo agalopado à beira mar. Aqui, sim, tive o desafio das rimas e métricas. São dez versos de onze sílabas métricas com tônicas na segunda, na quinta, na oitava e na décima primeira. A rima da primeira estrofe se dá com a quarta e a quinta, a segunda com a terceira, a sexta com a sétima e a décima, a oitava com a nona e deve terminar cada estrofe com a palavra mar. Antes se admire que há quem o faça em um fôlego só! São os nossos cancioneiros do sertão. Seria um deles que, como coringa, não só apresentaria a peça, mas a costuraria com cortes de alegria aqui, ali e acolá. Dentro do martelo agalopado, a utilização do primeiro grande elemento simbólico de toda a poesia do texto: a água. A seca não representa só a falta de chuva, mas a escassez de tudo. E, atentem-se para isso quando correrem os olhos na trama, a falta de Deus também. Até dentro de você pode haver seca, que te faz cheio de paixões ruins e não te deixa produzir bons frutos. O coronel Figueira, por exemplo, remete a parábola evangélica da Figueira Seca. Em suas terras pode até ter água, mas essa é feito terra e não sacia. O cancioneiro cantará sempre que o povo está longe do mar na desolação daquele deserto e perto do coronel. Mas, o mar já está presente, mesmo que distante, nas brincadeiras dos meninos Joaquim, nosso herói do céu, e Teobaldo, o justiceiro da terra, porque suas alegrias, quando eram crianças, independente dos galhos secos cortando a paisagem, diz o cancioneiro, faziam bem às nuvens. É como se fosse canção de chuva. Ao falar de Terezinha, “bondade que canta e que dança”, não fala de mar ao final, vai mais além e nos revela que mar é só o final do verbo que vai salvar toda a gente. Já dizia Jesus quando nos pedia para simplesmente a-mar. Tinha de ser martelo agalopado, e tinha de ser à beira mar.

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Os personagens A “véa” do badalo Nossa urbanidade foi ofuscada pelas luzes. Todas as luzes. As luzes da cidade não nos permitem mais ver a abóbada estrelada. E a gente esquece que a noite tem suas próprias luzes. Os faróis dos carros, voltando tarde do trabalho, deixam escapar barulhos que nos inquietam tanto a ponto de já não nos importar os uivos do vento frio. Nossas luzes nos submergiram em trabalhos que as consomem tanto que nos apaga à noite, em um sono tão superficial e agitado que o sonho falha. Após um dia cansado, também, mas sob um céu reluzente de tanta estrela, com os uivos tagarelas do vento, Teobaldo não conseguia dormir, mas os olhos de Joaquim pesavam tão profundamente que conseguiram penetrar no mundo místico de velhas que enredam profecias de amores e demônios, tempos milenares idos e vindos de mil vidas. Quem são elas? Perguntam quem ele realmente é. A personagem “véa” do badalo foi tirada de histórias populares por ter associações fortes com profetas do sertão. Um personagem místico, uma médium perturbada, de cuja boca saem as vozes de mil Espíritos, não se sabe se do bem ou do mal. Certamente não são malvados, e sua ciência não é tão futura. Falam do presente, ou presente bem próximo, ainda incerto para Joaquim, mas que já se tece por trás da coragem do rapaz. Na antiguidade, em Sófocles, seria Tirésias, cego. A boca do destino, o primeiro nó da tragédia. E qual não foi minha surpresa quando o diretor me aparece com a “véa” sendo três em uma. Trindade! Três atrizes a interpretavam, ao mesmo tempo, trocando as falas repetidas dela entre elas. A fala era realmente confusa, propositalmente. Com seu badalo, dobrava e repicava chamando o menino Joaquim e falando coisas sobre seu passado, sobre seu futuro. O desafio era ser uma só, sendo três! A personagem, então, fechava seu significado mítico, místico, transcendente. Eram as parcas, as moiras da mitologia grega. As que tecem o fio do destino. Se fosse à época de Jesus, quem seriam? Legião. Contudo, não eram demoníacas, antes maliciosas, perturbando a mente de Joaquim que já sofria tormentos mediúnicos desde pequeno, relatava o cancioneiro. O público, vimos após algumas apresentações, exultava com suas entradas. O badalo e as gargalhadas se aproximavam! A figueira seca e o demônio Na fala da “véa” do badalo há um trocadilho sinistro a respeito de amor e demônio. Um jogo de palavras incompreensíveis à primeira escuta: - Que amor do mundo te leva ao demônio? Que demônio no mundo traz o teu amor? É um vai e vém que me faz lembrar o profeta do sertão dizendo: - O sertão vai virar mar! E o mar vai virar sertão!

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Parece uma onda que lambe a terra e que volta ao mar. Uma terra molhada pela onda e que volta a secar. São prenúncios de que o mar, esse símbolo da salvação, vai chegar, mas que antes haverá luta, haverá fogo, esse fogo de inferno piorando ainda mais a seca. É o momento em que o Coronel aparece, montado em um cavalo, acordando todo o povo, destruindo aquela tranquilidade de terra de descanso, de Canaã, expulsando o mundo todo. Não quer perder sua altivez, por isso nunca desce do cavalo. Não quer perder sua fama de bom, daí ainda dar um prazo em fingida piedade a doença de um garoto que arde em febre, para piorar o fogo, em meio aos retirantes. O nome do coronel é Figueira. E seu coração é seco. Só dá fruto para si. Ninguém come do que é dele. É vaso caiado por fora, bem vestido, engomado. Cheio de podridão por dentro! A família do garoto quer apenas um momento para banhar o filho, dar água em sua boca, tentar conter a sede infinda que essa febre dá. Mas, essa água é salobra. Saturada com o ódio e o rancor que escorre do coronel. Não importa quantas latas, quantos baldes, nunca saciará. Por que pararam os emigrantes nas terras do demônio? Que cansaço os fizeram sentar e parar a busca? Talvez estivessem andando em círculos. Procurando por lugares errados. Precisariam realmente de mar? Não bastaria uma terra, um pouco menos rachada do que a que eles vinham? Se fosse a terra que eles precisavam herdar, que filho daqueles homens a poderia conquistar? O pequeno Joaquim Joaquim é um menino virando rapaz, criado no meio desse povo, sem grandes luzes, sem grandes dons. A história de suas visões antes o afligia do que o glorificava. Quantos daquela gente humilde, entre os que lhe conheciam desde criança, não devem ter comentado pejorativamente sobre aquelas alucinações? Um garoto que tinha diálogos com o demônio! Essas perturbações vividas por Joaquim lhe deixaram forte e destemido de alma, embora franzino de corpo. Para um menino que enfrentara tanta aventura invisível, falar com o coronel olhando de frente é só mais um diálogo com mais uma assombração. Teobaldo, seu melhor amigo, não entendendo aquela serenidade ainda tenta salválo, conduzindo-o a uma veneração covarde que curva a fronte ao chão, em vez de mirar o coronel no alto de seu cavalo. Tolo Teobaldo! Joaquim ao olhar Coronel Figueira não via propriamente um homem grande amedrontador, mas uma sombra, só mais uma sombra, contrastada com aquele sol de manhã nascente reluzindo atrás dele. Figueira trazia a morte em suas mãos. Ora! No fundo, no fundo, Teobaldo era o amedrontado da morte e Joaquim, o sereno que falava com ela, porque já vinha sabendo, como vago aprendizado, que o que importa é a luz que vem depois dela. Terezinha: a luz do sol

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Nos umbrais da morte, tudo era sombra. Toda sombra carregava um misto de cansaço e fracasso. Perdidas pelo espaço, erravam entre os mortais, se confundido com eles. Joaquim não sabia o que era vida ou o que era morte. Pareciam todos um só mundo, até chegar Terezinha. Leve, dançante e bela. A menina saltava aos olhos dos transeuntes. Em meio a confusão de pessoas iguais, unidas pela busca de sobrevivência de si, Terezinha chamava atenção por querer salvar um outro: seu irmão menor e indefeso. Tudo isso iluminava a garota, ainda mais, a fazia luz. A luz que Joaquim aprendeu a contemplar para escapar dos temores que as sombras inspiravam com seus sussurros estava encarnada. Com ela, não haveria de ter mais confusão. A verdade era clara. A justiça bem nítida. O motivo por que lutar estava ao seu lado. Pelo povo? Pelo menino? Pela terra? Que importa! Por qualquer coisa que fizesse ainda mais brilhar a luz. Na bíblia existem algumas passagens de grandes namoros. Relacionamentos que se iniciam do lado de um poço na busca por água, nos revela Haroldo Dutra Dias em seu livro “Parábolas de Jesus, Texto e Contexto”. Eu não sabia disso. Fui descobrir esse segredo da escritura sagrada muito tempo depois da peça concluída e apresentada. Não é que, seguindo a lógica de esse texto ser um reflexo rachado da figura do nosso mestre, ele anda por metáforas bíblicas que passavam longe da minha percepção completamente consciente. Que entidades me ajudaram a escrevê-lo? No capítulo 24 do livro Gênesis, lá está a moça prometida ao filho de Abraão solícita para saciar a sede não só do mensageiro, mas dos camelos. Era Rebeca que logo se uniria a Isaque. No capítulo 29, Jacó conhece Raquel na boca do poço, e feliz a moça correu para contar ao seu pai. Não por acaso, narra João no capítulo 4, Jesus sentado em um poço, no começo de sua missão, encontrando uma mulher de Samaria. O divino mestre a esposa, no sentido de fazê-la se compromissar para divulgar a revelação de que Ele era o messias esperado. Nada mais de poços, mas a água viva que andava pelas terras, fertilizando as sementes já prontas no meio do caminho. Joaquim encontra Terezinha trazendo a água do poço, despejando a caridade de cuidar do irmão febril. Eis o sinal do amor que envolve seu coração peregrino, e que encontra agora o lugar para repousar seus sentimentos. Por que Joaquim transparece tanta coragem e pouca aflição? Não é só porque estava acostumado com as sombras, é que, enfim, havia encontrado a luz. Quando amamos, nossa esperança cessa, porque já é chegado o momento da festa. O passado se apaga e o futuro se consome feito fio de vela acesa. Só o presente importa. A chama viva queimando o coração apaixonado. Deve ter sido esse o sentimento que motivou a mulher que não cessava de beijar os pés de Jesus e molhá-lo com perfume e enxugá-lo com os cabelos (Lc 7: 37-47). “Os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou”, libertou de sua boca essas palavras salvadoras o messias. Teobaldo: os caminhos do mal Duas forças se personificam em cada um dos amigos Joaquim e Teobaldo. Andam de mãos dadas, e se confundem no coração das pessoas que querem fazer o bem. Um escolhe o diálogo sincero e pacífico, o poder da persuasão suave, paciente, sem conflito. O

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outro não aguenta a espera, quer a briga, a guerra, e não raro, por entrever nos fins a justificativa de suas ações, envereda, conduzido pelas trevas de seu coração, no assassinato do próprio irmão. Sustenta Herculano Pires, em seu livro O Espírito e o Tempo, que foi o assassinato de nosso irmão o pior crime a nos expulsar do paraíso, o que nos faz encobrir nossa face com culpa, escondê-la de Deus, mancharmo-nos com sangue inocente. Mas para chegar a tal ponto, tudo tem um começo: a decisão do seu caminho. Os dois garotos foram criados na mesma terra, compartilharam o mesmo sol e a mesma sombra. Mas um deixa-se invadir pelo sol do amor. O outro se deixa contaminar pela sombra da guerra. Aí mora a instabilidade arenosa das construções humanas. São construídas no terreno movediço das paixões que não comungam com a verdade, com a bondade e com o belo. Não se chega à paz pela confusão. Os caminhos traçados por Teobaldo o enliçaram em um labirinto difícil de se arredar sem a ajuda de alguém de fora, longe desses muros tortos. Por vezes é preciso mesmo uma grande tragédia que nos faça acordar, resgatando-nos da prisão que nós mesmos urdimos nos esconderijos de nossa mente. Alguns estranham o fim de Teobaldo como muitos estranharam o desfecho de Judas, o discípulo traidor, mas poucos enxergam o essencial para a resposta: que caminho ele escolheu seguir?

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As grandes cenas A primeira morte de Joaquim Joaquim se arremessa ao coronel sem entender que era um encontro de uma ovelha e de um lobo. Nesse momento, não faz ideia que suas palavras honestas de solidariedade e compaixão, como flores nascidas espontâneas da terra, são uma língua incompreendida nos ouvidos dos poderosos que construíram impérios, separando-os da sabedoria da natureza virgem. Vestido com o bem-aventurado manto dos pobres de espírito, ingênuo no seu pedido que vê na salvação do garoto doente o valor mais nobre que pode acalmar qualquer fera, recebe do Coronel Figueira mordidas rápidas em um diálogo de frases curtas que não querem ouvir palavras, mas apenas encontrar o ponto fatal da presa. Saiu de entre os seus com uma nobre insígnia de que “a verdade basta por si” para morrer descolado de sua terra, pois estirado o corpo para baixo em uma corda, com um gemido incompreendido de o que acontecera. Sua primeira morte foi uma surpresa, não foi um sacrifício. Foi um descuido, não foi um heroísmo. Mas, foi uma porta para começar a enxergar as respostas que salvariam a si e aos que esperavam pela vitória dele. Que vitória seria essa? De que natureza? Que salvação? A resposta do Deus que sofre A resposta divina cantada pela voz de um Deus que chora o sofrimento dos filhos nos remete a duas realidades inquietantes: um deus que chora, um filho imortal. A imortalidade da alma não é novidade para os espíritas, e a primeira ressurreição de Joaquim nessa cena pode muito bem ser contada mais como um fenômeno de cura do que como de ressurreição propriamente dita. A cura milagrosa de um garoto que foi ensanguentado até deixar de responder não é das mais espantosas intervenções que Deus e os Espíritos Bons podem fazer na matéria. A tontura inicial de Joaquim nos faz perceber mais ainda que talvez não estivesse morto, mas que apenas dormisse. O que deve chocar os nossos ouvidos racionais é o Deus que verte lágrimas. Aprendemos com nossas discussões teológicas rebuscadas que Deus, sendo perfeito, não pode sentir as dores que sofremos. Sua infinita superioridade torna-o inatingível às nossas mesquinhas imperfeições. Mas, por algum motivo, não foi esse Deus que foi passado pelos séculos de tradição cristã. Não é esse Deus indiferente e impessoal que é louvado pelos nossos sertanejos. Pelo contrário, é exatamente porque os aflitos enxergam no Deus cristão aquele Pai todo tempo presente e preocupado com o bem estar dos filhos, como “a galinha a envolver os pintinhos” (Mt 23:37), no dizer singelo de Jesus, que eles se convertem e se prostram diante dos Céus, que eles não se desesperam e sempre se consolam, mesmo diante de provações tamanhas que fariam desistir qualquer ateu. Repetem como um mantra que o pastor nunca abandona as ovelhas. E entendem bem o que seja esse apascentamento, porque sentem esse cuidado nos afazeres do seu dia. É um Deus que não mais faz nascer filhos dos corações de pedras pela violência das conquistas, mas que faz brotar filhos das lágrimas de compaixão que deixa descer dos 34


céus como estrelas cadentes para iluminar os passos dos perdidos na terra. Aqui a terra rachada encontra outro significado: é a estrela de Deus que caiu bem aqui pertinho para nos velar. Caiu para mim e caiu para você. Para cada um, bem pertinho. Por que ele se manifesta através de uma planta com espinhos? Uma aparição que propositadamente coloquei em consonância com a aparição de Deus no Antigo Testamento (Ex 3:2). Essa pergunta é da mesma natureza de inquirimos o porquê de Jesus ter nascido de uma manjedoura, filho de pessoas simples, confundido nas massas, sem grande alarde, a não ser uma estrela a iluminar, feito fogo no céu, seu berço. Um fogo, que apesar da sua majestosa luz, só é percebido por quem costumava paquerar as estrelas. É para mostrar que ele estava ali, sofrendo junto. Do meu lado, do seu lado. Do lado de cada um, bem pertinho. A primeira ressurreição de Joaquim O texto original nos mostra um Joaquim que acorda e contracena com um bumbameu-boi. Seus movimentos vertiginosos imitam como que por reflexo os movimentos da figura alegórica. Alegoria de quê? Da ressurreição de Jesus! Poucos talvez saibam, apenas aqueles mais afeitos ao nosso folclore, mas o bumbameu-boi representa o ressurgimento de Jesus no seu corpo glorioso, no terceiro dia de sua morte física. A figura do boi remete ao símbolo de poder característico da cultura das comunidades pastoris. Os senhores do curral são eles, os machos de chifres. Um boi revestido de um manto brilhante, cheio de adereços a espalhar luzes por todos os lados, simboliza o corpo espiritual ressuscitado de que falava Paulo em sua primeira carta aos Coríntios (15:44). A profundidade da ressurreição abordaremos ainda mais adiante quando falarmos da segunda, e verdadeira, ressurreição do menino Joaquim. Essa agora é, como dissemos há pouco, mais um sonho do que uma morte. Como em todo sono, Joaquim caiu nele sem consciência, sem vontade própria do Espírito. Foi uma armadilha do seu entusiasmo. Porém, toda pretensa morte dos nossos dias, entendendo morte como toda aflição em que nós caímos, não passa de um chamamento para um re-pensar e um re-começar. Entra aqui, então, o sentido maior por trás da agressão letal do Coronel Figueira. Era preciso que Joaquim morresse para se deparar com suas motivações mais íntimas, tomar consciência de seus propósitos mais nobres e acordar com a resolução de salvar de forma mais consciente o seu povo. Sem a morte de tudo o que somos iludidos a ser dificilmente conseguimos ouvir Deus que canta suavemente aos nossos ouvidos. O feminino na Sala dos Mistérios Jorge Rizzini, biógrafo do professor Herculano, resgata um pormenor de sua vida:

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“Curioso o fato de Herculano Pires todas as manhãs orar a Maria. Ele próprio, porém, explica-nos: - Espírito elevadíssimo, a quem coube a missão indiscutivelmente superior de conceber o corpo que devia servir a Jesus de Nazaré na sua missão divina, Maria ocupa lugar de relevância no pensamento espírita. O Espiritismo a reverencia, portanto, como expressão de pureza espiritual, de elevação moral, de abnegação e de obediência às determinações do Alto. Uma prece a Maria, portanto, terá tanto valor como a prece dirigida a um espírito da mais elevada hierarquia espiritual.” Lembramos ainda a inquestionável devoção que o nosso querido médium Chico Xavier dirigia a esse Espírito. Recordamos, enfim, a participação singular que o Espírito Maria teve na mudança de rumos de outro grande médium mineiro, Eurípedes Barsanulfo, ao deixar com ele poesia humilde sobre a formação do primeiro colégio espírita do Brasil. E se nenhum argumento for válido para os críticos ácidos que empunham uma bandeira excessivamente iconoclasta, aquietamos a nossa consciência por estarmos apenas transmitindo um valor à peça de uma crença que vigora imortal entre os sertanejos: Maria a interceder incansável pelos homens. Na Sala dos Mistérios, em uma região entre a vida e a morte, uma figura feminina encandeia Joaquim, que não a consegue reconhecer senão o suficiente para chamá-la pelo inespecífico epíteto “senhora”. Ela fala com o pequeno homem através de figuras poéticas incompreensíveis para sua razão atordoada. Após ser despertado pela voz do Pai, é acolhido nos braços da Mãe. Por que ela fala em parábolas? Para chegar mais perto do coração, que é o ouvido do Espírito. Duas grandes dúvidas são respondidas por esse Espírito Luminoso: Por que escolher como salvador um garoto fraco? - É a ingenuidade que crê na boa mudança que Deus busca. Há tanta soberba no mundo querendo ser Deus. Os ingênuos nunca levantaram a mão que não fosse para louvar. Suplicar também. Oferecer em seguida. A caridade vinha mais reluzente das mãos suplicantes dos ingênuos que da sacola cheia de ouro dos donos da terra. Mas, não foi bem uma ingenuidade virtuosa e desinteressada que motivou o rapaz. Uma confissão envergonhada surge do fundo da alma de Joaquim: tudo que fez foi por amor a Terezinha e não ao povo. E a Mãe dos Aflitos, lembrando que Deus, na sua grandeza incalculável, ama singularmente desde a pedra lascada que sofre os tormentos do Sol, passando pelo próprio astro que flameja sem querer fazer mal nenhum a ninguém, até cada espírito que dorme, sonha, se agita e acorda na esteira do tempo, revela uma verdade que vai calar incompreendida por muito tempo no íntimo daquele Dom Quixote do sertão: - É estranho. Nos livros de Deus não encontrei direção pro amor. Nunca vi ele indo ou vindo de algum lugar. Deus parece ter perdido a noção do sentido. Pra ele amor não vai nem vem, pra ninguém, de ninguém. Ele enxerga somente amor. Como esse ser angélico pode responder com ares de estranhamento sobre as grandes verdades do Criador? Para chegar mais ao coração, que é o ouvido do Espírito.

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Como o espírito desprendido do corpo pode voltar? – pergunta o pequeno Nicodemos aflito - O abismo que separa a gente de lá pode ser ultrapassado por apenas uma chave – introduz a senhora sua resposta para o obstáculo milenar da migração dos espíritos entre as dimensões da existência (Lc 16:26). A resposta, contudo, só poderia vir da própria experiência do rapaz, e o menino é devolvido, sem saber como, para a vida de que foi temporariamente arrebatado. As libertações de Joaquim Depois de ter recebido a mensagem da missão, depois de ter sido envolvido nas palavras de mistério, ainda assim Joaquim não se via pronto para o seu mandato. Por três rupturas com os seus apegos passados ele deveria passar antes de sentir Deus pulsar em seu peito. A primeira vem da boca de seu amigo Teobaldo, que revela não ter sido a bravura de Joaquim que os permitiu ficar na terra, mas o sacrifício da virgindade de Terezinha ao Coronel. A segunda vem das mãos de Teobaldo, que, tendo coberto Joaquim de injúrias, incita o coração pacífico do rapaz a um resto de violência que ainda tinha lugar no seu resto de corpo. Joaquim quer agredir Teobaldo, mas este o empurra para o chão a comer terra. O apego ao amor carnal imaculado se foi. Junto com ele, a última tentação de entender que alguma coisa poderia ser resolvida com violência. Se não possuía mais o motivo Terezinha para ajudar as pessoas, se não possuía forças para levantar uma guerra entre corpos, o que lhe restou foi apenas a cena comovente, a força inquestionável dos pobres daquela terra que, mesmo corroídos pelo mal físico, não se negavam a socorrer aqueles que caíam. O amor pela humanidade nascera, enfim, no peito do garoto. A senhora leprosa que Teobaldo impedira de se aproximar do poço d’água foi a única a, sem pensar, nem duvidar, ir em busca de Joaquim caído para tentar lhe levantar. Poucos minutos antes, tivera ele um encontro com uma senhora no céu, que o levantara da poeira da carne. Agora, tinha o resgate de uma senhora da terra, a sacudir a poeira do chão que lhe cobria. Seria a mesma senhora? Jogá-lo à poeira, limpá-lo dela, o que ela haveria de estar querendo mostrar? Eis a terceira ruptura: a visão do amor não mais a uma pessoa singular, mas à humanidade inteira dos aflitos. Ele sentira, em seu primeiro momento de lucidez, a Vontade do Pai. Não é à toa que vai cantar o seu peito que pulsa tanto que parece querer rachar. A terra rachada, os pés rachados, o peito rachado. Ainda mais coisas rachariam, mas seria necessário um segundo momento de lucidez, e a concretização da grande ruptura moral que o libertaria, enfim, da mortalidade da vida, lhe entregando à serenidade de uma vida eterna. Novamente uma cena que escapou de minhas mãos semiconscientes. A ideia do tempo de 40 dias e 40 noites (Mt 4:2), que me veio num ímpeto na tela mental, a sofrer em privação refaz o simbolismo de Jesus provado no deserto ao encontrar com o demônio que lhe quer afastar de Deus.

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São três tentações as de Jesus, assim como três as rupturas de Joaquim. Mas essa tríade passou longe da minha vontade. A natureza dessas tentações também coincide. Lá era o mestre sendo requisitado a ter pão, poder e vida eterna pela própria vontade. Aqui é Joaquim se emancipando da vida eterna ao lado de Terezinha virginal, do poder pela violência que o igualaria a Teobaldo, e preferindo a caridade despertada pela piedade da senhora humilde que o acolhera (no céu e na terra). A areia que Joaquim provou quando foi ao chão, agora em suas mãos que assumiram a Vontade do Pai, transformam-na em água límpida para saciar a sede dos que têm sede. Dizia eu, no começo dessa história, que os retirantes pareciam mais andar em círculos e que talvez fosse outra espécie de terra que eles deveriam herdar, outra espécie de mar. De fato, necessário andar o foi, mas não era necessário chegar a lugar nenhum. A salvação de Deus se manifesta no momento certo para os seus filhos que buscam, que pedem, que batem à porta, fazendo brotar surpresas de onde ninguém aguardaria. Transformar areia em água, como fez a mediunidade de efeitos físicos de Moisés e dos anciões de Israel (Ex 17:6), ou mesmo a de Jesus nas Bodas de Caná (Jo 2:9), é simbolismo profundo da verdade de todos os tempos que nos chama a ver em todos os pontos a misericórdia do Criador a alimentar os pássaros e vestir os lírios, a matar nossa sede e nossa fome, e abençoar nossa alegria com Seu amor. De volta ao Martelo Agalopado à beira-mar Agora que assume a missão, pode-se considerar o Cavaleiro do Céu, mas entendendo que sua armadura é o seu Espírito, uma armadura interior, feita de estrelas, ou da luz delas, concebida pela fronte do Pai. Para todo cavaleiro, uma montaria e uma arma. A arma era a Palavra santa de revelação das coisas superiores. A montaria, um estilo próprio de contar estas coisas. Ressurge, então, na peça o estilo cativante do Martelo Agalopado que vai brincando a galope com as palavras que Jesus deixou em seus sermões e parábolas, que eram também outras poesias de um povo, de um lugar. Foi um terno desafio traduzir as palavras imortais do Mestre de Nazaré para essa forma tão nordestina de se cantar. E recitar Seu amor ao próximo, Seu jugo leve, Sua água viva, Seu levedo e Seu pão, e sua Santa notícia sobre os homens reencarnantes. A vida para além da vida. E para deixar ainda mais clara a mensagem cantada, Joaquim descreve, com as comparações da vida no sertão que verdeja nos bons tempos, as consolações, os caminhos e a verdade para uma boa vida. Quando vejo Jesus utilizar-se da mesma natureza de pregação, sou levado a acreditar que as comparações não são apenas para se enquadrar na linguagem do povo, mas que é na linguagem da natureza que encontramos as mais sublimes lições. Pois Deus não haveria de se submeter a línguas humanas, reservando ao nosso esforço entender o Seu falar pela Sua obra. Salvação pelo amor ou pela violência?

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Todos olham Judas Iscariotes, aquele que traiu, como se ele tivesse sido possuído pelo Espírito do Mal. Um mal personificado que inquieta as criaturas de Deus com pensamentos que as afastam Dele. Que esse Espírito pode soprar a discórdia, que não seja apenas um, mas uma legião, não é de se admirar, já que todos os que nos circundam, vivos e mortos segundo a carne, participam dos sentimentos que animam a Terra. Não são poucos os que entendem mal o amor, sua força e sua capacidade de transformar. Antes de pensarmos que havia uma obsessão a subjugar a pessoa num caminho diferente da sua vontade, recordemos que o mais das vezes é a própria pessoa que se fascina em uma ideia que ela concorda e que absorve todas suas energias. Judas acreditava, junto com a tradição dos Macabeus, que a salvação do povo de Israel deveria se dar através da guerra. E que o Deus dos hebreus estaria ao seu lado. Outro significado não há para as palavras de Teobaldo: - Você parece crer que Deus se manifesta por você, meu velho amigo. E eu acredito mais ainda em você, quando diz que Ele pode se manifestar por qualquer um. Pois fique sabendo que mais do que curar doentes, é nossa salvação fazer adoecer quem deixou isso acontecer. Era o que Judas queria: fazer adoecer Roma para libertar Israel. Acreditou ser essa sua missão e levou essa pretensão até às últimas consequências. Jesus se apresentava radiante à sua frente, não mais com letras desgastadas em papiros ou pedras riscadas por pedras, mas como a Verdade, por fim imorredoura, esculpida pelos milênios de trabalho nobre manifestada na carne perecível de nossa gente. Não adiantaram milagres, não adiantaram curas, nem multiplicação dos pães, nem levitação nas águas. Não é, definitivamente, pelas maravilhas que Deus converte os homens. - Você sabe reconhecer quando tá pra chover, mas não repara que Deus se manifestou pra nossa gente. (Lc 12:56) Deus permitiu que Judas e Teobaldo, mesmo frente às provas inquestionáveis do caminho certo, enveredassem pelo atalho da astúcia, entregando o próprio mestre, amigo, irmão para a fúria da morte violenta. Jesus não permitiu que Pedro continuasse a cortar a carne de seus semelhantes em nome de Deus. Precisava que todas as orelhas, e também os olhos, estivessem em seu devido lugar para que ninguém tivesse o pretexto de não ter ouvido ou visto Sua passagem e Seu martírio na Terra. Sua grande dor e Seu inigualável sacrifício. Traído por Teobaldo, que vitimara Terezinha, contaminando-a com o mal que a todos afligia, tendo o Coronel Figueira como alvo, Joaquim se vê na última encruzilhada de sua vida. O poder de curar que inflamava suas mãos enfim teria seu destino último. Qual seria? A quem curar enfim? Pois se se reduzisse ao bem de seu amor, deixaria que a morte consumisse aquele que fora pivô de toda essa miséria. Salvaria o povo? Mas sentia que se usasse assim esse poder, Deus não mais estaria com ele, e seguiria só. Para onde? Nunca esse andar levou a lugar algum. Não, não era a cura que importava. Quantas almas Jesus não devolvera à saúde? Quantas vezes nós não temos nossos corpos novamente inocentes, na figura de um bebê sem pecado e desperdiçamos as oportunidades derramadas do céu em novos assassinatos do amor verdadeiro? Por quantos séculos não migramos e transmigramos sempre para o mesmo lugar, o do interesse pessoal? Se Joaquim quisesse dar nova vida a todos, deveria ser mais

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do que um jovem apaixonado. Precisaria ser um homem a amar de verdade. Precisaria assemelhar-se ao Filho do homem. - Por mim mesmo juro - disse o Senhor Deus - que não quero a morte do ímpio, senão que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva. (Ez, 33:11.) Foi o que Joaquim escolheu. Escolheu bem. Virtuosamente. Com excelência. Salvara o seu amor e o Amor. O seu derradeiro momento de lucidez que crava a maior ruptura do homem em seu peito, rachando seus ossos e rasgando sua carne para deixar ascender o Espírito a Deus. Não importa quantos pregos tenham feito sangrar Jesus, nem quantos cortes tenha Teobaldo desferido em Joaquim. O grande Mestre perdoa seus algozes, nas últimas palavras do Cordeiro, e, feito estigma sobre Joaquim, deixa falar a sua misericórdia para com Teobaldo. Não é, definitivamente, pelas maravilhas que Deus converte os homens, mas pelo amor. - Qual a chave que ultrapassa o abismo entre a morte e a vida? – perguntava a senhora da sala dos mistérios onde Joaquim ficou preso por um instante enquanto seu corpo ensanguentado jazia perdido no meio das terras do Figueira. A resposta não fora dada àquela hora, porque precisaria ser completamente vivida. Porque o Amor é dessas energias que só se entendem quando se vive. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá - Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto? (Jo 11:25,26) Um recurso cênico provocou arrepios nos espectadores. Resgatava o sentido natural de todos da plateia. Tocava na transcendência que há em cada um e em todos nós. Joaquim, depois de morto pela cólera de Teobaldo, que vira seu plano doentio se desfazer pelas santas mãos do jovem curador, é envolto pela multidão que o admirava. Colocam seu corpo dentro de uma rede. Não tendo madeira para fazer caixão, nem por isso deixam de fazer as exéquias. E enquanto o foco segue a multidão, a rede e o corpo que nela jaz, na penumbra, em pé e reluzente vence a morte o menino-homem Joaquim. Não é que Joaquim tenha se apoderado do poder miraculoso de Jesus. Nem muito menos que o nosso herói seja um arremedo do Rabi de Nazaré. É que Jesus fez nascer Deus na carne do homem de forma bem diferente do que pensou a nossa história da religião cristã: ele fez desabrochar em pétalas de infinito todas as potencialidades que a nossa existência humana permite. Deixou claro como uma aurora o quanto somos leves como uma brisa da manhã e cheios de gloriosos raios que nos arrebatam desse mundo de pedras em direção ao Criador do universo. Todos podemos curar. Allan Kardec concluía que, de todas as mediunidades, a única que se permitia desenvolver sem mais senões era a de cura. Todos deveremos ressuscitar. O corpo espiritual ressurge em outro plano tanto mais vistoso quanto mais utilizamos o corpo material para o bem dos outros. Mas, ainda os que

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vagam perdidos por essas terras, sem amor, o sol da imortalidade nasce para eles após todo o crepúsculo da morte. - Ora, Deus não é Deus de mortos, mas de vivos; porque para Ele vivem todos. (Lc 20:38) E muito embora Jesus tenha vindo fazer um chamado, não é uma questão apenas de escolha segui-lo ou não, mas uma questão de tempo. Eis o limite do nosso livre-arbítrio: não o possuímos para sermos infelizes para sempre. Nosso destino inexorável é o júbilo ao lado do Pai. A vontade humana é um mero acelerador ou freio desse processo. A dor, um despertar dessa vontade para o Bem, o Belo e o Justo, isto é, para a Caridade, língua com que Deus construiu tudo o que conhecemos e o que ainda haveremos de conhecer. Como Joaquim, existem mil outros emissários do Cristo na Terra que passam despercebidos na noite do cotidiano, no escuro humilde das casas que partilham o pão com afeto e de mãos sempre dadas, apesar da friagem da matéria. O apóstolo Paulo percebeu que a nossa família cristã deveria trocar cartas, como os irmãos amados as trocam quando a saudade aperta. Ele se fez médium não só dos Espíritos que trabalham pela união de todos, mas da própria carta que Jesus deixou escrita dentro de cada coração reencarnante. Qual é a mensagem que dorme no seu peito? Qual é a mensagem que se esconde no meu? E se insistirmos em borrar o que está escrito em nós, em calar o que quer ser lido, falado, cantado a cada pulso de nosso sangue, serão nossas células que falarão. - E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, Que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, Os vossos jovens terão visões, E os vossos velhos terão sonhos. E também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão. (Atos 2:17,18) Quando Joaquim perdoa a Teobaldo em sua última aparição entre os seus, convertendo o jovem amigo que se perdera na mancha do fratricídio, o povo pacifica o olhar na chuva de consolações que finalmente cai dos céus. Não foi uma migração sem sentido que os conduziu ao mar. Mas, a ciranda das atitudes nobres que, qual redemoinho humano, trouxe o mar até eles. É o Paracleto que desce das nuvens, “semelhante às estrelas cadentes”, envoltas pelas gotas de chuva. De repente o céu se abriu E de lá se escapuliu Choveu, choveu Água e fogo em serpentina Ouro, prata e diamante Era velho e era infante Falando coisas de Deus Eram crentes e ateus Chorando em consolação 41


Pai Nosso Te vi Pai Nosso Não duvido mais de ti Pai Nosso Vivi Tão logo Eu passei a te sentir Eu vivo e vós vivereis Jesus está prestes a ser imolado no seu momento extremo, durante sua passagem aqui na Terra, e, no entanto, nos deixa, em sua última ceia, essa revelação que mostra nosso destino de vencedores da morte. - Eu vivo e vós vivereis. (Jo 14, 19) Passando os olhos rápidos não percebemos que ele ainda não nos considera vivos. Mas, profetiza o nosso nascimento. Diz São Luiz, em um artigo escrito em 1868 na Revista Espírita, que Jesus fazia parte de uma plêiade de Espíritos que já haviam atingido um círculo refratário ao erro. Não era o círculo de Deus, efetivamente. Tudo o que teve começo, todos os filhos do Pai, não poderão nunca ser eternos. Mas, poderão se assemelhar a Ele, em virtude, por ressoar a Sua vontade de forma, enfim, natural. De onde nós estamos, não conseguimos pensar nessas esferas senão como luzes intensas. Os olhos do nosso pensamento são cegados no arrebatamento desse infinito. Ainda assim, podemos experimentar um pouco dessa eternidade que deixa sua marca em nosso plano como as mãos pintadas de uma criança no tecido branco. Entender a marca, seus contornos, sua cor, sua textura, são noções ainda imprecisas de tudo o que é o corpo dessas mãos, mas nos enche de uma plenitude, de uma presença, de um amor a que Jesus chamou repetidas vezes de Vontade do Pai ou de Reino de Deus. A cena mais marcante de toda essa peça, penso eu, não é o momento físico em que Joaquim se mostra em corpo espiritual. É o momento em que ele abandona tudo o que poderia chamar de sua própria vontade para cumprir em si a Vontade de Deus. Foi o momento em que seu amor deixou de amar a si mesmo e aos seus para amar até mesmo quem era contra si. - Eu lembro bem, diz Joaquim, que a senhora que eu encontrei no céu havia me falado da chave da Terra e do Céu. Com ela tudo o que eu abrisse aqui se abriria lá. Disse

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ainda que o amor para Deus não tem sentido nem nome. E me lembro de Deus que falou comigo que só o que basta é amar... Seja feita a Tua vontade. Eis o momento em que Joaquim vive. Deveria haver uma sinfonia de mil vozes angélicas, um clarão de dez mil relâmpagos, uma suspensão de seu corpo no ar, uma suspensão de seu pensamento, um esvaziamento de sua carne, porque já não era mais ele que vivia, mas o Cristo que se apoderara dele (Ga 2:20). Ariano Suassuna falou certa vez que havia um momento em que o artista era arrebatado pela própria criação e que todos os outros momentos serviam de sustentáculo para este. Como espírita eu digo que há um momento em que nós artistas somos arrebatados pelo próprio Criador, que a mesma coisa acontece com todos os seres humanos em situações cruciais de suas vidas, todos os outros momentos... Não tenho pretensão de dizer que por uma ou duas vidas teremos acesso ao círculo dos Cristos, mas que nossa alma, a cada passo de nossa longa existência é trazida para tocar no espelho d’água que nos separa deles. E quando esse espelho é perturbado, ondula de tal forma que passamos a confundir nosso reflexo com o de todos os nossos semelhantes que entendemos, enfim, porque chamá-los de irmãos. Um dia, a perder de vista, ultrapassaremos esse espelho, um mergulho de ascensão. Será, quando então, viveremos.

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