Paiesia

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Paiesia


Introdução para Você Como posso me introduzir para você? Sou seu pai. Escrevo tudo o que vem por aí a partir do momento em que não tem ainda como me responder. E tem. Os gestos dessa sua minúscula existência tomam um significado que nos domina a todos. A mim é do que falo. Não pretendo me revelar nestas páginas por inteiro. Quem pretenderá se revelar nas páginas de toda uma vida por inteiro? Só Deus se revela todo Ele, e nós, mal O captamos o dedo mindinho. Mas, só o dedo mindinho Dele já preenche nossa percepção. Não precisa ser tão grande quanto Deus para conseguir isso, filho, isto é, preencher toda a nossa percepção com algo. O seu dedo mindinho, que mais parecia um chaveirinho, já preenchia toda a minha percepção. Parece que o amor magnifica. Falo preenchia, no passado imperfeito, porque embora escreva isso no presente da sua existência bebê, creio só vá ler estas minhas bobagens de pai em algum lugar da adolescência. Ou talvez leia como eu li os meus livros preferidos da infância. Desde de lá até hoje os releio encontrando dez outros significados. Você vai encontrar aqui, então, filho, a minha percepção sobre as muitas coisas miúdas suas que hipnotizaram a minha atenção. Tudo está em ordem cronológica. Portanto, verá eu crescer junto com você. E assim tem que ser, assim terá que ser, assim teve que ser para que eu conseguisse abarcar você em mim. Quando eu, já velho, não poder conter tudo o que você se tornou aos meus olhos, nos meus olhos, no meu corpo, nascerá você uma segunda vez para o mundo, e eu ficarei em casa, curtindo o meu resto de vida com sua mãe. As coisas se tornam resto quando são corrompidas, quebradas. Mas, não falo delas aqui no sentido ruim. A casca da semente teve de se tornar resto para a árvore sair. A placenta da sua mãe teve de se tornar resto para você ganhar a luz. Se nossa vida vai se tornar resto, conclua o resto... Essas poesias, portanto, são, de algum modo, os meus restos. São, também, os meus rastros. Para você não só, um dia, saber um pouco mais quem foi seu pai, um pouco mais que teve um pai, mas, principalmente, mais, e cada vez mais que ler tudo de novo, que estive aqui sendo com você, por você.

Angústias de pai Paiesia As madrugadas do pai acolhem o filho que madruga A madrugada do filho: A madrugada do pai O alvorecer do dia tira pai e filho da madrugada Alvorece o pai com o alvorecer do filho Acordam os dois: você é meu filho, você é meu pai! O sol singra o céu desfazendo a sombra de pai e a sombra de filho Não tarda a vida de entardecer os dois: você não é meu pai, sou filho da vida! Anoitecido o pai, ensolarado o filho Ergue-se a lua em pleno dia A barba paternal é feita de estrelas


O peito filial, de terra Curva-se o velho para beijar a terra Abre-se a terra para abraçar o pai Dorme o homem finito no seio do rapaz Madruga um filho, de repente, em seu ventre É o pai que nasce no filho É o filho que dá à luz o pai

Queria te ver Seu pai tá gordo, filho Mas, queria te ver Crescer Nesses tempos corridos Três coisas nos matam Comida, Trabalho e Amor Trabalho demais Durmo de menos Como bem muito E quase não bebo Aos menos não fumo Mas, o que mais me consome, hoje em dia, meu filho É o amor por você

Aperto no peito Aperta o peito da tua mãe, filho Tira dela o leite que não tirei da minha Dizem os entendidos no assunto Que isso teria me protegido da asma Mas, deu uma doida no peito E ele só goteja Não é culpa dela Mamãe se esforça bem muito Aguenta o que pode Mas, chega uma hora Que o teu choro de fome Aperta tanto mais Que o peito dela se tranca E, o outro leite, a gente faz Parece que o destino


Quer que eu e você Sejamos juntos Sedentos de ar

Tuas avós Te peço que não esqueças que tens duas avós Uma firme, Que não te deixa cair Que não te deixa sujo Que não te deixa chorando Que não te deixa com fome Que não te deixa com frio Que não te deixa desnudo Uma distante, Não porque queira Não porque te despreze Não porque não te queira Não porque não sonhe contigo Não porque te não sorria Não porque não sofra por ti Mas é que a vó distante, filho, Já não pode ser firme É porque a vó firme, filho Mora bem ao lado Uma te bota pra dormir A outra já está acordada quando você madruga Só que você não vê A uma, porque teu olho esta fechado A outra, porque teu olho não alcança Vai, que Deus nos livre, aconteça algo contigo E verás que as duas são a mesma vó A firmeza se esvai e a distância some Os corações se igualam, enchem e se esvaziam Se esvaziam todo instante para que não ocupe o lugar que elas querem que seja só teu

O pouco peito No peito, um aperto E a mama seca Algumas gotas apenas São lágrimas. Vem de outros seios: Os da face de sua mãe! Queria tanto que você mamasse


Mas há um desespero na sua boca Que nos perturba a todos Desistimos, então, da fonte doce Da fonte rala, porque pouca Da fonte rara, porque preciosa E nos entregamos Aos artifícios que o homem criou para suprir o desespero do homem Na sua idade, chamamos de mamadeira De chupeta De ordenhador automático Mais na frente, serão outros nomes Todos com a mesma função Mas, o líquido precioso da vida, filho, Está guardado no fundo do peito dela Não é fácil chegar lá Tem que aprender a extrair o que é bom Tem que se esforçar, às vezes muito Tem que aceitar o fluxo pequeno que No futuro Jorrará de prazer em seu ventre Desculpe-nos o desespero e a desistência, filho! Não é porque não o amássemos É porque estávamos frágeis de tanto amor

Não tão fácil Sua mãe recupera o fôlego Toma ar Insufla o peito Preenche-o de coragem e de leite É preciso muita coragem para suportar o seu sofrimento Nisso ela foi guerreira Quando já não acreditávamos no alimento dela Ela se deixa faminta de teu conforto E insiste em te dar o próprio sangue convertido em branco “Nem que ele me chame de 1 em 1 minuto, eu estarei lá!” Tu até que aceitaste de volta este sacrifício Mas, ao ver uma gota tão enorme escorrer do canto do teu pequeno olho Ela se dissolve em tua lágrima E pede o outro leite Ainda posso ver o pó pálido das indústrias


Que se mistura à água do garrafão encostado na cozinha Esse pó turva meus olhos Devolvidos à luz quando encontram os teus Recém-molhados, mas agora, menos sofridos Pela fome que passa Desculpe-nos o desespero e a desistência, filho! Não é falta de amor É um amor que sente a tua falta quando não sorri

Ilusão Conflitos entre pais e filho Origem de muitos conflitos entre os homens Entre o homem e ele mesmo Pensei que podia consertar tudo Se desde o início não falhasse em nada Não me lembrava de tudo que me circunda E de tudo que o peito cala Esqueci que a fábrica grita sua buzina E me acorda Eu querendo continuar a dormir Esqueci que os olhos marejam de saudade de quem já muito amei Eu querendo nunca esquecer Como, filho, diante de tantas coisas incontroláveis Eu posso querer controlar você? Ensinar-te-ei a viver o que aprendi na vida Mas, oh maravilha da existência renascida!, Você me ensinará, com a sua vida, outros viveres

Teu corpo Pelos teus olhos Teus olhos são claros Parece que são Lembram-me tua mãe Me apaixonei uma segunda vez pelo olhos dela - nos teus Teu rosto é peludo Parece com o meu Mas, dizem que passa Passam os olhos Passam os pêlos


O vento passa e faz cair as coisas (Caem meus olhos sobre os teus Pouso a mão nos teus cabelos) Só não passa a gratidão de ter o corpo aqui, pertinho do teu

Lágrimas de coração É o coração que palpita Quando você chora O nosso coração Quase que chora, também Falta o fôlego Af! Quase não volta! Quase não volto, também Se o aperto no peito Acochasse a torneira por onde escapam tuas lágrimas Serviria, ao menos, para isso Nesse momento da vida, Diz apenas o quanto amo você.

Róseo rosto Se encheu de espinhas teu rosto Tão cedo, já jovem! Se encheu de medo tua mãe Tão nova, já mãe! Não tem escola pra mãe A não ser ter filho Como você é o primeiro Se enche de tudo a gente E bem rápido, com qualquer coisa que acontece contigo!

Espreguiçadeira sem fim Parece que vai sair por aí Mal tem perna que sustente Mal tem mãos que apoiem Uma cabeça gigante que a custo se equilibra Parece que vai sair por aí


Quer o leite depressa A mama sem hora Se demora, chora e chora No berço, irrequieto Lhe coloco no alto Num instante escorrega Se o escorregador fosse dar lá na rua Por você já estava na lua Agitado que é! Todo tempo eu paro e contemplo Penso e repenso A alma quer voltar a voar Mas, como o corpo é pesado E a carne não deixa - Ao menos me deixa, papai, Eu sair por aí!

Ainda os teus olhos Tua córnea Que hoje deve ser transparente como o mais polido vidro Nos primeiros meses ainda tinham umas manchas Nada doentio Pareciam os arco-íris que deslizam pela fina pele da bolha de sabão Pareciam, ainda, os teus olhos Como que recém-saídos das mãos de Deus Daí, ainda, os teus olhos Estarem sujos da divina impressão digital Para além da córnea, filho Uma íris acinzentada Confusa Indecisa Se escolheria a cor dos olhos do pai Ou, dos olhos da mãe Eu rezo Para que tua mãe prevaleça Mas, agradecerei Se sobrar alguma coisa dos meus

Teu Espírito Só um riso Curvado no meu braço, Só um Basta para albergar teu corpo inteiro


Englobado em meus olhos Os dois Admiro tua quietude Perdido não sei em que mundo Sorri E, no teu sorriso, Teus poucos dias dominam todos os meus

Espiralado Meu corpo, teu corpo - caracóis Enovelado sobre ti Me faço concha Dorme, filho! Escuta a artéria que chia pra te acalentar E o cadente batuque do peito Que ressoa pelos meus ossos Vibrando essa carne Que te agasalha É frio aqui fora, Mas dentro de mim, Dorme, filho!

Voltas Quero entender de onde vieste. Nem bem sabes onde está E já quero saber de onde vieste. Como se para te acolher Precisasse de referências Tolo eu! Adquires salvo conduto Logo aos meus braços Mal sabes quem és. Todos estão informes na tua córnea São tantos e confusos Acho, que nesse amálgama da gente, Acaba que a pergunta se volta Se revolta contra mim! De onde vim, filho? Quem eu sou para ser teu pai? Sou teu pai.


Inconclusão Findo o primeiro livro que são as poesias infindas do primeiro ano seu. Sei que elas acabaram, mas digo infindas porque há um sentimento de que não. É o que faz o segundo ano ser bem-vindo neste peito que está aberto lhe pulsando. Quero ainda que saiba do presente que sua mãe me deu ao primeiro dias dos pais. Silenciosa e diligentemente fiou um filme que ligava várias fotos de nossos contatos em uma música que fizemos para você com a poesia que inicia este conjunto. Adicionei apenas algumas doses de lágrimas ao que ela fez. E prossigo nessa aventura de ser pai com olhos umedecidos.


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