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ANAISDASCAP ECOLOGIA DOS SABERES: tecendo novas relações
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Unidade São Gabriel
V SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA Belo Horizonte, 16 de setembro de 2013
ANAIS DA SCAP ECOLOGIA DOS SABERES: tecendo novas relações
Belo Horizonte 2013
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Semana de Ciência, Arte e Política (5. : 2013. : Belo Horizonte, MG) S612a Anais da SCAP: ecologia dos saberes: tecendo novas relações / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2013. 119 p.: il. ISSN: 978-85-8239-017-7 1. Ciência e civilização – Congressos. 2. Multiculturalismo. 3. Índios Educação. 4. Quilombos - Usos e costumes. 5. Ciganos - Usos e costumes. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.
CDU: 301.175
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EXPEDIENTE
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Frei Mário da Paixão Taurinho
Assessora de Comunicação da PUC Minas no São Gabriel:
Michelle Stammet
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EDITORIAL A Universidade é uma instituição
ou humanístico, que a universidade
social, portanto uma prática social
produz, e saberes leigos, populares,
reconhecida legitimamente pelas
tradicionais, urbanos, camponeses,
suas atribuições e pela busca e
provindos de culturas não ocidentais
conquista da ideia de autonomia
(indígenas, de origem africana,
do conhecimento, além de sua
oriental, etc.) que circulam na
invenção, descoberta e transmissão.
sociedade”.
A Semana de Ciência, Arte e Política (SCAP), realizada anualmente na
Para o sociólogo Edgar Morin,
Unidade São Gabriel da PUC Minas é
a ecologia dos saberes é a
uma iniciativa relevante e inovadora
construção do paradigma da
que envolve toda a comunidade
complexidade. A ecologia dos
acadêmica e valoriza a produção
saberes atua tanto na extensão
de conhecimento da Universidade
como na pesquisa e na formação.
ao dar visibilidade aos trabalhos e
O objetivo é confrontar o saber
permitir o compartilhamento
científico com outros saberes, um
de experiências acadêmicas.
projeto essencialmente político
Como resultado, apresentamos
porque implica colocar no mesmo
hoje, os Anais da V Semana de
campo a universidade, o estado e
Ciência Arte e Política (SCAP 2013)
os atores sociais, já que a injustiça
que teve como tema norteador de
social tem em seu âmago uma
sua programação e discussões a
injustiça cognitiva.
“Ecologia dos Saberes”.
Para Morin, no século XX, o conhecimento esteve dominado
Para o sociólogo, professor e
por uma ideia de unidade.
ativista de movimentos sociais,
Já no século XXI predomina o
Boaventura de Sousa Santos, a
reconhecimento da inesgotável
ecologia dos saberes é “uma forma
diversidade epistemológica
de extensão ao contrário, de fora
do mundo, a existência de
da universidade para dentro da
uma pluralidade de formas
universidade. Consiste na promoção
de conhecimento além do
de diálogos entre o saber científico
conhecimento científico.
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Assim, a tarefa acadêmica da Universidade e a responsabilidade sociocultural da V SCAP ficam documentadas e registradas na publicação dos Anais da V SCAP: Ecologia dos Saberes – tecendo novas relações. Esta publicação levou e leva a Universidade a lugares que ela ainda não esteve, mas deveria. Desta forma, a Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel apresenta uma valiosa reflexão crítica acadêmica contribuindo para o desenvolvimento da sociedade em suas relações sociais, econômicas, políticas, culturais, ambientais e garantindo a todos o direito a uma Universidade democrática de qualidade. Leiam e reflitam – os Anais da V SCAP.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel
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ÍNDICE
INFILTRAÇÕES
José Luiz Quadros de Magalhães 16
A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Myriam Martins Alvares 43
QUILOMBOS URBANOS OU URBANIZADOS?
Ricardo Ferreira Ribeiro
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CIGANOS NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES
Rodrigo Corrêa Teixeira
Vinícius Tavares
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ÉTICA, COTIDIANO E CORRUPÇÃO
Adriana Maria Brandão Penzim
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O SONHO TRANSDISCIPLINAR
Hilton Ferreira Japiassu
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INFILTRAÇÕES
(Direito à diferença e direito à adversidade) José Luiz Quadros de Magalhães1
A Constituição brasileira anuncia
estado e da economia moderna.
uma nova perspectiva de
Partindo desses pressupostos,
compreensão dos direitos de
vamos desenvolver a ideia de um
igualdade e diferença ao reconhecer
direito à diversidade individual e
o direito à diferença como direito
coletivo como um novo paradigma
individual e coletivo. A modernidade
constitucional que ultrapassa
se funda em um projeto hegemônico
a lógica binária e um direito à
e europeu que para justificar-se
diferença como direito também
estabeleceu e reproduziu a lógica
individual e coletivo.
binária de subalternização do outro diferente: nós versus eles.
Antes de analisarmos a diferença
Assim, o direito e o estado moderno
entre estes direitos de diferença
têm um objetivo essencial que
e diversidade, vamos procurar
persegue nestes duzentos anos de
compreendê-los como infiltrações
modernidade e do qual depende a
modernas. O que seriam
continuidade do poder centralizado,
essas infiltrações? Como elas
hegemônico e hierarquizado deste
ocorrem e quais podem ser suas
estado moderno: a uniformização
consequências?
de valores e comportamentos que passa pela uniformização do
No conceito que brevemente
direito de família e de propriedade,
construímos de modernidade, vimos
o que viabiliza o poder central do
que é europeia.
1 Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8271201946056867
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Não existe para todos, é hegemônica e necessita de uniformizar os menos diferentes, expulsando, excluindo, exterminando, encarcerando os considerados mais diferentes nesses 500 anos de modernidade europeia. Delimitando o conceito de modernidade em sua tarefa hegemônica de criação de uniformidades (padrões), podemos compreender como “infiltrações” os movimentos que contrariam este objetivo. Temos uma hipótese que se abre para comprovações e refutações que muito poderão ajudar na compreensão deste projeto moderno. Em medidas distintas, os movimentos de resistência, e por ruptura, reproduzem os elementos essenciais da modernidade: padronização, uniformização e pensamento binário subalternizado (nós civilizados versus eles incivilizados), que se reproduzem em discursos mitológicos da modernidade como o “universalismo” europeu; a separação do indivíduo da natureza; o desenvolvimento linear que sustenta o discurso civilizatório ocidental. Mais, em medidas distintas, os pensamentos político, econômico e filosófico modernos reproduzem estas hegemonias e mitos, o que pode ser encontrado, por exemplo, em Hegel, Kant, Marx e nas construções políticas, econômicas e filosóficas do
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liberalismo, socialismo, comunismo,
daqueles grupos ou pessoas que
social-democracia e claro, no
resistem ou não se adequam à
conservadorismo de direita, assim
padronização. O padrão moderno
como nas exacerbações modernas
de hegemonia do “homem branco
do fascismo e do nazismo.
europeu” construiu uma sociedade
Há algo de não moderno?
androcêntrica, estabelecendo a
Onde existem as infiltrações e quais
sua primeira “outra” diferente: a
são os movimentos de resistência
mulher. A relação entre homens e
efetiva que escapam do núcleo
mulheres, marido e mulher, explicita
moderno?
o dispositivo “nós” superior e “elas” inferior2. As lutas das mulheres pela
Neste sentido, analisamos o direito
ressignificação de seu sentido social,
à diferença (individual e coletivo) e
pode se apresentar de três formas:
o direito à diversidade (individual e
como resistência; como busca por
coletivo).
ruptura; ou ainda, como infiltração, ao negligenciar o padrão masculino.
DIREITO À DIFERENÇA
Em todos os casos, vemos uma ameaça ao projeto moderno.
Em que medida ou quantas vezes a luta e a conquista de direitos dos
Esta luta por direitos das mulheres
grupos subalternizados não foi
(direito à diferença como um direito
transformada em permissões de
individual) e os seus mais recentes
“jouissance” que enquadraram os
fatos e construções teóricas,
“diferentes” nos padrões modernos?
é importante para exemplificarmos
O direito à diferença pode ser
o que entendemos por resistência;
considerado uma infiltração na
busca de ruptura (confronto);
modernidade que pode destruir
negligência (infiltrações); assim
sua represa de uniformização e
como a transformação desta luta
subalternização?
em assimilações e permissões por contaminações pela modernidade.
O direito à diferença confronta e desafia a tarefa do estado e do
A luta pelo direito à diferença
direito moderno de uniformização
pode ser entendida como uma
de comportamentos e valores,
infiltração no projeto moderno de
e de encobrimento, expulsão,
uniformização e subalternização
encarceramento ou eliminação
do outro (diferente) na medida em
2 O lugar da mulher não é o mesmo nas “outras” culturas que foram subalternizadas na modernidade, embora a subalternidade feminina possa ser encontrada em vários outros tempos históricos.
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que, os movimentos sociais diversos,
do século XX: “Fora a derrota total
que lutam por “reconhecimento”,
do sistema capitalista, não vejo
forçam sua entrada no sistema,
nenhuma solução. Em meu juízo,
criando tensões e contradições que
o pai que vota pela perpetuação
podem levar ao comprometimento,
deste sistema é tão assassino quanto
transformação e até ruptura do
se pegasse um revólver para matar
sistema moderno. Será? Como o
seus próprios filhos.”
sistema reage a essas tensões?
(GORN, 2012, p.19).
Primeiro, ao pedir reconhecimento, este pedido significa entrar
O projeto de mudar todo o sistema
no sistema. O pedido de
é transformado, nas últimas décadas
reconhecimento pelo sistema é um
do século XX, em reivindicações
pedido de acolhimento pelo sistema,
pontuais e fragmentadas, de grupos
o que pode significar que estamos
que passam a atuar individualmente
a um passo da transformação de
e reproduzem a lógica moderna
um direito em uma permissão,
“nós x eles” como por exemplo
assim como a contaminação dessa
“nós” mulheres versus “eles”
luta pela lógica do sistema. Assim,
homens. Judith Butler (2011) nos
essa luta por reconhecimento deixa
chama atenção para muitos casais
de ser contradição em relação
gays femininos que reproduzem
ao sistema (moderno) e passa a
a lógica binária “masculino versus
ser comandada pelos mesmos
feminino” fundado no pensamento
princípios uniformizadores e binários
binário de subalternidade do
subalternizados da modernidade.
outro, em que se vê uma pessoa assumindo o papel masculino de
Um exemplo disso podemos
opressão (com violência física e/
encontrar na história, na luta de
ou moral) sobre a outra pessoa
mulheres revolucionárias, que já
do casal que desempenha o papel
foi por um novo sistema (ainda há
histórico moderno da subalternidade
exceções) que supere as exclusões e
feminina.
passou a ser majoritariamente uma luta pelo reconhecimento de direitos
Butler nos chama a atenção
pelo sistema, o que mantém algum
para a necessidade de superar o
tipo, sempre, de exclusão. A líder
pensamento binário na questão
operária norte-americana “Mother
de gênero (ou mesmo superar
Jones” (Mary Harris, imigrante
o gênero) para evitar reproduzir
pobre irlandesa que participou da
a opressão binária presente no
fundação do partido socialista dos
conceito de sexo (biológico) e de
EUA em 1901) discursou no início
gênero (social cultural naturalizado).
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Citando Judith Butler:
ainda a entender como, mesmo
Aunque algunas lesbianas afirman que la identidad lésbica masculina no tiene nada que ver con “ser hombre”, otras sostienen que dicha identidad no es o no ha sido más que un camino hacia el deseo de ser hombre. Sin duda estas paradojas ha proliferado en los últimos años y proporcionan pruebas de un tipo de disputa sobre el género que el texto mismo no previó. (BUTLER, 2011, p. 13)
Ao se referir ao não previsto no texto, Judith Butler se refere a um texto seu que fundamentou o início
exigindo uma outra sociedade igualitária economicamente (e não só), a esquerda caiu em várias armadilhas modernas: En la noche del 27 de Junio de 1969, la polícia irrumpe en Stonewall Inn, un bar gay de Nueva York frecuentado por travestis afroamericanos y portorrinqueños. Aropellos, redadas, arrestos: el control se excede e degenera. Se suceden tres noches de motines que radicalizan el movimiento homosexual y desenbocan en la creación del Gay Liberation Front (GLF). (BREVILLE, 2012, p.19).
do desenvolvimento da teoria Queer. Na obra “Gay Manifesto” de Carl Vemos aí o exemplo de que,
Wittman (1970) citado por Breville
o que aparece como resistência,
(2012, p.19), o autor assinala
se transforma em luta por ruptura
que é necessário unir a luta dos
e reconstrução de sentidos, e pode
oprimidos associando compromisso
acabar por se transformar em
revolucionário com emancipação
aceitações de “permissões” que
social. Para o autor é necessário
contaminam a luta por direitos de
perceber que os heterossexuais,
diferença, reproduzindo de novo o
assim como os brancos, homens,
padrão moderno “uniformizador” e
anglófonos e capitalistas, só
“binário opressivo” que rebaixa ou
percebem o mundo em um registro
subordina um outro, qualquer outro.
binário hierarquizado onde 1 é inferior a 2 que é inferior a 3 e assim
A história do movimento gay,
por diante. Não há lugar para a
em busca de revolução e construção
igualdade e as oposições binárias
de uma outra sociedade onde
sempre remetem a um inferior:
haja espaço para “todxs” , nos
homem/mulher; heterossexual/
ajuda a compreender as perigosas
homossexual; patrão/empregado;
armadilhas modernas e nos leva
branco/negro; rico/pobre.
3
3 “Todxs” é uma tentativa de comunicar o que os idiomas modernos e sua gramática padronizada não nos permite. Todxs significa incluir para além de homem e mulher, qualquer dos diversos gêneros socialmente construídos e existentes, assim como para além de qualquer gênero ou classificações limitadoras.
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Nos EUA, o movimento
com o capitalismo e o que este
revolucionário gay pretende
sistema econômico traz com ele:
estabelecer uma nova ordem que
a uniformização de costumes
lute por um mundo sem os padrões
e valores, assim como com os
uniformizadores e o padrão binário
registros binários (o dispositivo
de subalternização do outro. Na
moderno nós superiores versus
década de 1960/70 o discurso do
eles inferiores). Tratava-se mais do
GLF seduziu o Black Panther Party
que uma resistência, era a ruptura
(BPP) e os lemas “Black is Beautiful”
e a ressignificação do mundo.
e “Gay is good” foram vistos juntos.
Em que medida esta ruptura
Em 1970, na “Revolutinary People’s
poderia efetivamente romper
Constitutional Convention” defendia-
com os elementos essenciais da
se a união das lutas dos “outros”
modernidade acima mencionados?
subalternizados e excluídos pela
O movimento representava mais do
modernidade: a união de negros,
que uma infiltração nas estruturas
mulheres e gays para a construção
modernas, não se tratava apenas
de um outro mundo.
(o que não é pouco) de pessoas e coletivos fazendo diferente no
Na década de 1970, dezesseis
meio do sistema4, era abertamente
grupos revolucionários como o Gay
contrário, combatia os alicerces
Liberation Front, representando
modernos uniformizadores e
10 países, se reuniram para formar
binários: não apenas negligenciava
uma Internacional Homossexual
(profanava) o sistema mas o
Revolucionária (IHR). Na França,
combatia frontalmente5.
a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) associava a
Na luta por transformação a FHAR
defesa de mudanças radicais dos
procurou alianças políticas.
costumes e transformação social.
Os militantes atuavam em grupos
Essa história nos é especialmente
de trabalhos temáticos, distribuíam
importante para pensarmos nossa
folhetos e organizavam reuniões
hipótese. A defesa da frente é a
de informação. A aproximação
mudança da sociedade, ruptura
com o Partido Socialista francês
4 A ideia de infiltração como contradição interna no sistema, com a presença de práticas que negam a sua essência e pode, em um momento, comprometer o funcionamento deste, pode ser complementada pela ideia de negligência, profanação do sistema, na ideia desenvolvida por Giorgio Agambém em seu livro Profanações da editora Boitempo. 5 Não quero dizer que negligenciar não tem a força de destruir o sistema. Talvez hoje a negligência em relação ao sistema (a profanação no significado trabalhado por Giorgio Agambem) seja a maneira mais eficaz de construir um outro mundo.
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não funcionou. Bem moderado,
compreender a modernidade para
o partido atuava dentro do jogo
compreender o capitalismo e as
político representativo moderno
possibilidades de sair deste sistema),
e entendendo ser prudente e
o discurso binário de esquerda é
conveniente para seus interesses,
reafirmado: a luta é entre capital
dizia que as preferências sexuais
e trabalho; trabalhadores versus
pertenciam à esfera privada (grave
capitalistas, e não entre normais e
equívoco) e que não mereciam
anormais. Este discurso ignora todos
posições políticas. O Partido
os ataques ao pensamento e à luta
Socialista Unificado é mais simpático
de esquerda que foi criminalizada
às FHAR, mas não compartilha das
e “anormalizada” no decorrer do
propostas revolucionárias da frente.
século XIX e XX, sendo combatida
Diante disso, os olhares se voltam à
com o direito penal, a medicina e a
extrema esquerda.
psiquiatria.
Guy Hocquenghem, comprometido
Esse discurso reproduz o
com a organização maoísta VLR
pensamento binário subalternizado
(Vive la Revolution) sugeriu a
e a uniformização, essenciais à
utilização do periódico “Tout”,
modernidade, e tarefa principal
na época dirigido por Jean Paul
do estado e do direito modernos.
Sartre, que abre as portas à frente.
A esquerda caía na armadilha
Alguns membros das FHAR
moderna, se é que, efetivamente,
redigem as quatro páginas centrais
esteve, de forma majoritária, fora dos
do periódico. Defendem, entre
grilhões da modernidade , em algum
outras coisas, que os homossexuais
momento. A concepção de história,
saiam do gueto mercantil em que
de esquerda, foi, e ainda é, em
a sociedade burguesa os colocou.
muitos casos, uma concepção linear
No dia 1º de maio de 1971 as FHAR
moderna, encontrando, entretanto,
procuram se aproximar ainda mais
importantes críticas em autores
do movimento operário. Alguns
como Walter Benjamin. (BREVILLE,
gays radicais desfilam ao lado dos
2012, p.35).
sindicatos carregando um grande cartaz que diz: “Abaixo a ditadura
O flerte entre o movimento
dos normais”. Entretanto, a aceitação
revolucionário e o projeto
do movimento revolucionário gay
revolucionário operário tem um triste
encontrará muitas dificuldades e
episódio que pode ilustrar como o
será combatido à direita e à esquerda.
Partido Comunista Francês sucumbe à modernidade6, e logo, compromete
De maneira que ilustra bem a
qualquer projeto revolucionário
nossa hipótese (da necessidade de
efetivo7 . Em 1972, Pierre Juquin
31
resume a posição do Partido
os grupos oprimidos (“elxs”) e
Comunista Francês afirmando que:
inviabiliza ou dificulta extremamente
“La cobertura de la homossexualidad
qualquer projeto alternativo de
o de la droga nunca tuvo nada
construção de uma sociedade plural,
que ver con el movimiento obrero.
não hierarquizada (entre nós versus
Tanto una como la otra representan
eles) e não excludente. Um ponto
incluso lo contrario del movimiento
para investigação e reflexão pode ser
obrero.”(BREVILLE, 2012, p.19).
realizado a partir destas conclusões: em que medida o movimento
Durante um encontro do Partido,
gay, os movimentos feministas,
Jacques Duclos (que foi candidato
entre outros, de movimentos
à presidência da França pelo PCF),
de resistência, de ruptura ou de
ao ser perguntado por um militante
negligência (profanação) em relação
das FHAR se o Partido Comunista
à modernidade, se transformaram
tinha revisto suas posições sobre
em movimentos reivindicatórios de
supostas perversões sexuais, agride
permissões de “jouissance” por parte
verbalmente de forma violenta todos
do estado. Fica, por enquanto,
os militantes gays com um discurso
a provocação.
muito semelhante a um discurso religioso de direita, ao afirmar que
Ao combater o capitalismo
“as mulheres francesas são sãs; o
moderno, as esquerdas e vários
PCF é são; os homens são feitos
de seus mais importantes
para amar as mulheres”.(BREVILLE,
pensadores (não generalizando,
2012, p.19).
é claro), reproduzem a lógica binária; a linearidade histórica
O que assistimos, desde então, é
e o universalismo “europeu”,
uma cada vez maior fragmentação
estranhando e subalternizando o
das lutas por direitos, o que
diferente. Mais uma vez ocorre a
compromete o seu sucesso,
contaminação pela modernidade
facilita o atendimento de demandas
de lutas de resistência ou de lutas
por meio de permissões, divide
por rupturas. Vislumbramos lutas
6 Para entender o texto é necessário lembrar o sentido de “modernidade” empregado no texto. 7 Na perspectiva de que a modernidade (representada pelo estado e o direito moderno) cria e sustenta o capitalismo e logo, qualquer tentativa de superar este sistema econômico deve implicar na compreensão para superação da modernidade nos seus elementos nucleares: uniformização e logo rejeição da diversidade; falsa universalização; justificativas de poder sustentadas sobre o pensamento binário de subalternização do outro; história linear; separação do indivíduo da natureza e concepção de um indivíduo monolítico, não processual e isolado.
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33
34
internas de transformação da
moderna ou sua superação por
modernidade, mas as pretensões
meio de transformações estruturais.
de rupturas revolucionárias não
Um trabalho a ser feito, pode ser o
se mostraram tão profundas,
de identificar as pequenas diárias
pois, ao pretender romper com a
“profanações”.
economia capitalista moderna, esses movimentos não foram capazes
Judith Butler começa a nos falar em
de ver dispositivos modernos
diversidade, para além da diferença.
uniformizadores e excludentes, mantendo-os intactos.
DIREITO À DIVERSIDADE
Pensando dessa forma, a ruptura
Quando falamos em direito a
não era tão grande assim, e talvez
diferença devemos perguntar:
este ponto tenha sido um de seus
diferente de quê?
grandes problemas: a violenta ruptura revolucionária manteve
Se o direito à diferença como
funcionando os dispositivos
direito individual é uma infiltração
e mecanismos modernos
na modernidade, o direito à
mencionados. A revolução deve ser
diferença como direito coletivo
para a superação da modernidade
traz um potencial ainda maior de
(sua essência excludente
comprometimento da uniformização
uniformizadora e binária opressora)
moderna. O estado moderno sempre
e não apenas contra um sistema
reagiu com enorme violência a toda
de produção essencialmente
tentativa de se estabelecer um
excludente, pois binário opressor
sistema alternativo de organização
e uniformizador: o capitalismo.
social que não funcionasse sobre
Acrescentamos neste ponto uma
as bases modernas uniformizadas,
reflexão importante a partir de
hierarquizadas e binárias
Agambem e o seu conceito de
subalternas.
profanação: talvez a revolução não precise e não deva ser contra
No Brasil, apenas no século XXI
a modernidade, mas a revolução
encontramos alguns processos mais
radical ocorrerá com a “profanação”
efetivos de “reconhecimento” de
da modernidade, com a negligência
direito dos povos quilombolas e
diária aos seus mecanismos
sua forma distinta de organização
excludentes e uniformizadores:
de direito propriedade. Entretanto,
a isso chamamos de infiltrações.
se de um lado se ampliam os
Essas infiltrações diárias aumentam
reconhecimentos e aumenta a
constantemente até um ponto de
população quilombola, de outra
possível ruptura da “barragem”
aumentam os ataques no sentido de
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descaracterizar sua cultura e forma
majoritária e a reconstrução
de viver e se organizar.
da relação entre Constituição e Democracia; a superação da
Mas, tudo isso ainda é muito
fórmula “Roma Locuta, Causa
moderno: ao admitirmos um
Finita” que marca o funcionamento
direito à diferença como direito
do Judiciário moderno e da
individual ou coletivo, admitimos
mesma democracia representativa
que o estado (moderno) ainda
majoritária; a superação de um
pode e deve estabelecer padrões
sistema monojurídico com um único
superiores de organização social e
direito de família e de propriedade,
comportamento individual. Quando
por um sistema plurijurídico; uma
falamos em direito à diferença
nova concepção de pessoa singular
devemos nos perguntar: diferente
plural e processual e uma nova
de quê? Respondemos: do padrão
concepção de natureza que inclui
civilizatório, do padrão do bom, do
toda a vida, incluindo da pessoa.
melhor, estabelecido pelo estado e seu direito: “reconheço o outro
O núcleo destas transformações
diferente, na sua diferença, mas
está na construção de um espaço
deixo claro sua diferença como algo
de diversidade, na proteção
estranho, que foge aos padrões
constitucional ao direito à
de civilização moderna masculina,
diversidade como direito individual
branca e europeia”.
e coletivo. O direito à diversidade não se confunde com o direito
As Constituições da Bolívia e
à diferença, que mencionamos
Equador vêm construir um outro
anteriormente. No direito à diferença
direito: o direito à diversidade como
(individual ou coletivo) o estado e o
direito individual e coletivo.
sistema jurídico moderno continuam atuando no sentido de reconhecer,
Como mencionado no início
de incorporar aos seus padrões,
deste texto, vários são os pontos
ainda estabelecendo uma referência
de ruptura com a modernidade
de melhor. O processo pode ser
que podem ser percebidos e
expresso na seguinte equação: o
precisam ser discutidos. Esses
ordenamento reconhece o outro
pontos de ruptura podem significar
diferente (estranho, esquisito, fora
uma reconstrução da Teoria da
dos padrões), enquadra na lei,
Constituição, da Teoria do Estado
protege sua manifestação como
e mesmo da Teoria do Direito
algo fora do padrão, e permite
modernas. Em vários outros textos
a existência e manifestação. Um
trabalhamos alguns destes aspectos,
reconhecimento de existência
como a superação da democracia
(como se para existir fosse preciso
36
o olhar deste grande pai: o estado e seu direito) e uma permissão de “jouissance”. As lutas de diversos grupos “minoritários” por direitos é uma luta por reconhecimento e permissão ou por conquista de direito? É uma luta pela incorporação no sistema ou pela construção de um outro sistema? O direito à diversidade segue outra lógica. Em primeiro lugar não há permissões nem reconhecimentos. Não há inclusão porque não pode haver exclusão. A lógica pode ser resumida nas seguintes frases: “existo e me apresento na minha existência”. “Não dependo do seu olhar ou de seu registro para que eu exista”. Reconhecimento significa conhecer de novo, significa enquadrar no já conhecido. Tratase de uma forma de enquadrar o novo nos padrões existentes ou de simplesmente não conhecer o novo, ou ainda não possibilitar a existência do novo, como tal, de forma autônoma. Reconhecer significa ainda manter a lógica binária incluído/excluído. Se sua existência depende do reconhecimento, ao reconhecê-lo afirmo a possibilidade, também, de não reconhecê-lo. Na lógica da diversidade não há mais reconhecimento, pois não há mais um padrão do melhor: diferente de quê? Não há mais este “que” ou “quem” que se estabelece como referência do bom.
37
38
O outro não é mais o inferior,
diálogo obrigatório nos espaços
a ameaça, o medo; o outro se
de diversidade não será uma fusão
transforma na possibilidade do novo.
de argumentos, nem uma soma de
O outro é aquele que tem o que eu
argumentos, muito menos a vitória
não tenho, e eu tenho o que ele não
de um argumento, mas sim um novo
tem. Assim os outros representam
argumento, construído pela postura
uma possibilidade imensa de
de abertura, onde todos devem
crescimento e aprendizado para
abrir mão de alguma coisa para que
todos os outros e para mim.
todos possam ganhar alguma coisa, e tudo pode ser permanentemente
Portanto, um espaço de diversidade
discutido e rediscutido.
é um espaço de existência livre comum. O espaço de diversidade
O direito à diversidade (individual e
é o espaço de diálogo permanente
coletivo) parte do pressuposto da
em busca de consensos sempre
complementaridade. No lugar de
provisórios. O espaço de diversidade
hegemonias, linearidades históricas,
requer uma postura de abertura para
superioridades culturais, missões
com o outro, os outros.
civilizatórias ou proselitismos,
Ouço o outro não para derrotar
a diversidade é convivência
seu argumento, não para vencê-lo,
que tem por base a lógica de
o que impossibilita o diálogo, ouço
complementaridade: os que os
o outro para aprender com ele
outros têm eu não tenho, os que os
assim como o outro me ouve para
outros não têm, eu tenho, somos
aprender comigo. A resultante do
assim complementares.
39
REFERÊNCIAS BREVILLE, Benoît, “Homosexuales e subversivos” in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores);
BUTLER, Judith. “El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de la indentidad”, Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression, marzo 2011.
Revoluciones que cambiaran la historia -
BUTLER, Judith. “El genero en disputa
sociales, políticas, nacionales, culturales,
- el feminismo y la subsversion de la
sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital
indentidad”, Paidós, Barcelona, Buenos
Intelectual, 2012, pagina 19.
Aires, México, 4 impression, marzo 2011,
BREVILLE, Benoît, “Homosexuales e
página 13.
subversivos” in BREVILLE, Benoît et
GORN, Elliot J., “Motehr Jones, la madre
VIDAL, Dominique (compiladores);
del sindicalismo norteamericano” in
Revoluciones que cambiaran la historia -
BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique
sociales, políticas, nacionales, culturales,
(compiladores); Revoluciones que
sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital
cambiaran la historia - sociales, políticas,
Intelectual, 2012, pagina 35.
nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, página 19.
40
41
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43
A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA uma nova fronteira entre o tradicional e o nacional Myriam Martins Alvares1
O processo de escolarização das
a partir do Império, o Estado aliado à
populações indígenas no Brasil nos
Igreja assume sua realização.
convida a realizar uma reflexão sobre
A educação escolar indígena esteve
as relações entre a Antropologia
sempre definida por um projeto
e a Educação, particularmente, no
claro – catequizar e civilizar os
que se refere à escolarização das
índios – abolir a diferença. Apesar
populações indígenas no Brasil.
dessa longa história de experiências escolares entre os povos indígenas
Embora contemporâneos à
(que apenas recentemente começam
colonização, o ensino escolar e
a se transformar em objeto de
a implantação de escolas nas
estudos antropológicos sob a
sociedades indígenas se tornam
perspectiva da “história indígena”),
objeto de uma reflexão mais
é somente dentro do contexto
sistemática somente nestas últimas
dos movimentos indígenas e
quatro décadas. Fruto do contato,
indigenistas que a educação escolar
a educação escolar indígena esteve
indígena ganhará novos contornos
primeiro a cargo dos Jesuítas e de
e assumirá um novo papel frente
outras ordens religiosas,
às sociedades indígenas, tornando-
1 Professora do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1189207945915564
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se, então, objeto de uma reflexão
nacional de educação escolar
crítica sobre a sua prática e sobre
indígena, com o objetivo de garantir
os processos desencadeados para
a oferta de qualidade aos povos
e pelos próprios grupos indígenas.
indígenas, caracterizada por ser
A educação escolar indígena passa
específica, diferenciada, intercultural
de instrumento de dominação a
e bilíngue.
instrumento de reafirmação étnica e cultural, fonte de conhecimento da lógica da sociedade nacional e veículo para a autodeterminação dos
PANORAMA ATUAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL
povos indígenas. Em 1999, foi realizado, pelo INEP É, portanto, dentro de um discurso
(Instituto de Pesquisas Educacionais
de resistência político-cultural e
Anísio Teixeira)/MEC, o primeiro
de luta pelos direitos indígenas
censo escolar indígena.
que a questão escolar vai se
Foi o primeiro levantamento
configurar. O contexto de luta
específico, que possibilitou traçar
dos movimentos indígenas por
um panorama da situação escolar
seus direitos, garantidos por lei a
indígena no Brasil, com informações
partir da Constituição de 1988 e da
sobre escolas, professores e
publicação pelo MEC das “Diretrizes
estudantes indígenas de todas as
para a Política Nacional de Educação
regiões do país.
Indígena” em 1993 e, posteriormente, consolidados pela LDB de 1996 e
Mas é somente com o documento
pelo “Referencial Curricular Nacional
“Estatísticas da Educação Escolar
para as Escolas Indígenas” lançados
Indígena”, produzido, em 2007,
em 1998, instituem, oficialmente, as
por INEP/SECAD/MEC que podemos
“Escolas Indígenas Diferenciadas,
traçar um quadro comparativo da
Interculturais, Específicas e
realidade escolar indígena brasileira.
Bilíngues”, que deverão ser levadas
Segundo o documento, os números
a cabo pelo Estado em parceria
levantados pelo Censo Escolar
com os povos indígenas. Toda a
de 2005 indicam um aumento do
legislação brasileira, a partir da
número de escolas indígenas e de
Constituição de 1988, portanto, deu
estudantes indígenas, bem como
base para a construção de um novo
maior progressão em termos das
paradigma em relação à educação
séries frequentadas. O aumento
intercultural, entendendo-a como
do número de escolas indígenas,
um direito constitucional dos povos
que passou de 1.392 em 1999 para
indígenas e abriu caminho para a
2.323 em 2005, explica-se não
implementação de uma política
somente pela criação de novas
45
escolas, fato que certamente
relação ao aumento de estudantes
ocorreu nesse período, mas também
da quinta à oitava série, é um
pela regularização de um grande
dos reflexos dos programas de
número de escolas e salas de aula
formação de professores indígenas,
que antes não eram reconhecidas
que possibilitaram que esses níveis
como indígenas. Em muitos Estados
de ensino começassem a ser
da Federação criou-se a categoria
ministrados em algumas aldeias.
escola indígena como unidades autônomas dentro do sistema de
Chama a atenção também o
ensino, e, com isso, se regularizou
aumento do número de matrículas
a situação de muitas escolas
no ensino médio. Em 1999 elas
localizadas em terras indígenas,
totalizavam 943 e, em 2005,
antes consideradas salas de
passaram para 4.270. Apesar do
extensão de outras escolas.
crescimento evidente, o número de matrículas no ensino médio
O documento também analisa o
nas escolas indígenas é ainda
número de estudantes indígenas:
absolutamente incipiente, revelando
um expressivo aumento desse
a baixa estruturação dos níveis
número, que, em cinco anos,
de ensino nas terras indígenas.
aumentou em quase 50%.
Ao não oferecer esse nível, os
Nesse período, impressiona ainda
alunos indígenas interessados em
o crescimento das matrículas na
prosseguir nos estudos devem
educação infantil e em creches .
sair das terras indígenas e buscar
Em relação aos estudantes, o dado
a continuidade dos estudos em
significativo é que a distribuição
escolas não indígenas, nas zonas
dos alunos pelas diferentes séries
rural e urbana.
do ensino fundamental (antes concentrados na primeira série do
Várias escolas passaram a contar
ensino fundamental) melhora o que
com materiais didáticos específicos.
demonstra maior estruturação e
Produzidos, em sua grande maioria,
organização das escolas indígenas.
em contextos de formação de
A melhor distribuição dos alunos
professores indígenas, esses
indígenas pelas séries do ensino
materiais, editados em português,
fundamental, principalmente em
nas línguas indígenas e em versões
2 Cabe chamar a atenção para o fato que a expansão “para cima”, ou seja, para a conclusão do ensino obrigatório, é quase da mesma ordem de grandeza que a expansão “para baixo”, isto é, na educação infantil que, por lei, não é obrigatória. Esse é um fenômeno que, a nosso ver, merece maior atenção e necessita ainda ser mais bem estudado.
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47
bilíngues, resultam de uma política
que diz respeito à formação de
de estímulo à produção de materiais
professores indígenas como autores
diferenciados para uso nas escolas
e pesquisadores.
indígenas, que tem recebido recursos e sido priorizada pelo Ministério
Para a elaboração de materiais
da Educação nos últimos anos,
didáticos diferenciados, um
apoiando iniciativas de secretarias
investimento importante não só de
estaduais e municipais de educação,
recursos financeiros, mas também
de universidades e de organizações
humanos, é necessário. É preciso
indígenas e de apoio aos índios.
envolver os professores indígenas
Não obstante esses investimentos,
em atividades de pesquisa,
menos da metade das escolas
sistematização e organização
indígenas do País (41,54%) conta com
de conhecimentos, a partir de
algum tipo de material diferenciado.
propostas de ensino que busquem
Apesar do avanço, sabe-se que este
a integração dos conhecimentos e
percentual é ainda insatisfatório
saberes tradicionais no cotidiano das
para o cotidiano de uma escola
salas de aula.
indígena que tenha entre os objetivos valorizar as línguas indígenas e os conhecimentos tradicionais.
A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS
Fazendo um balanço final desta análise comparativa, podemos
O que significa, neste contexto da
concluir que: apesar dos avanços
educação intercultural, construir
conquistados nos últimos anos
políticas públicas de formação,
pelos povos indígenas quanto ao
de modo que esses profissionais
direito a uma educação intercultural,
possam exercer uma educação
muito ainda é preciso ser construído
qualificada em benefício das
em termos de prática de sala de
crianças indígenas? Uma das
aula, de formação de professores
primeiras ações para se efetivar
indígenas, de produção de materiais
esse propósito foi a criação, em
para que as escolas em terras
várias regiões do Brasil, de cursos de
indígenas ofereçam uma educação
formação de professores indígenas
diferenciada, de qualidade e que
em nível de magistério – tendo por
valorize a língua e os conhecimentos
princípio básico a construção de
tradicionais desses povos. Para que
uma educação intercultural. Dos
este quadro possa ser revertido, é
quase seis mil professores indígenas
necessária uma política mais incisiva
atuando nas escolas indígenas no
tanto em relação ao financiamento
país, 60% estão cursando ou já
de materiais específicos como no
concluíram cursos de formação em
48
magistério indígena, em nível médio,
pedagógicos, as diferentes formas
que passaram a proliferar por todo
de organização escolar (onde os
Brasil, principalmente nos últimos 20
tempos e espaços correspondem
anos, organizados pela sociedade
à lógica da aldeia e não à da
civil ou pelo Estado.
cidade), o material didático (livros, cartilhas, jogos, vídeos, discos,
Apesar de bastante diversos,
CD-ROM, feitos pelos próprios
os cursos, normalmente, são
professores) e outros instrumentos
organizados em quatro anos,
pedagógicos (constantes reuniões
através de etapas intensivas de
com as respectivas comunidades;
ensino presencial, desenvolvidas,
professores de língua e cultura
normalmente, durante os meses
indígenas contratados para atuar na
de férias e etapas intermediárias.
escola), revelam uma prática que,
Nos intervalos entre as etapas
na realidade, aponta um caminho
intensivas, os estudantes realizam
para uma forma mais democrática
estudos complementares, pesquisas,
de acolher a diversidade no espaço
trabalhos de observação e registro
público.
de prática em sala de aula, produção de material didático. Assim, os
Analisando a política de formação
professores indígenas podem
de professores indígenas no Brasil,
estudar e continuar dando classes
é importante ressaltar a participação
nas escolas, utilizando o espaço
do Movimento Indígena na gestão
de sala de aula para atividades
dos cursos. As organizações
de pesquisa e de reflexão sobre a
indígenas, principalmente as
prática pedagógica. Os currículos,
organizações de professores
pensados na perspectiva da
indígenas têm um papel de destaque
interculturalidade, apresentam
na realização dos cursos, seja como
disciplinas relacionadas aos
professores de algumas áreas,
conhecimentos do mundo não
seja no planejamento e avaliação.
indígena e também disciplinas e
Nesse sentido, um intenso processo
projetos de pesquisa relacionados
de politização e mobilização se
aos “conhecimentos tradicionais”,
desenvolve durante os cursos
que posteriormente são organizados
de formação dos professores.
como livros e outros materiais
Em muitos casos, as etapas de
didáticos.
ensino presencial oferecem a esses novos agentes políticos,
Um dos aspectos mais significativos
oriundos de diferentes contextos
desses projetos de formação é
culturais, a oportunidade de se
garantir a autoria indígena. Os
articularem, organizarem as pautas
programas curriculares, os projetos
de reivindicações, conquistarem
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50
aliados e avanços na luta pelo
e a Universidade Federal de Roraima
fortalecimento de identidades,
(UFRR), as primeiras universidades
línguas e culturas.
brasileiras a criarem estes cursos, seguidas pelas Universidade
É importante ressaltar que
Federal de Minas Gerais (UFMG)
praticamente todos os projetos de
e a Universidade do Estado do
magistério indígena no Brasil foram
Amazonas (UEA). Hoje, inúmeras
construídos numa parceria entre
universidades, por todo o Brasil,
Estado e sociedade civil, criando
têm cursos de licenciatura indígena.
um rico espaço público de debates e negociações na construção de
Seguindo as propostas curriculares
políticas públicas de formação
dos cursos de magistério indígena,
intercultural.
essas licenciaturas se organizam
São alguns exemplos de experiências
através das etapas intensivas,
de magistério intercultural:
geralmente ministradas nas
o Magistério Intercultural da
universidades, e das etapas
Comissão Pró-Índio do Acre
intermediárias, com atividades de
(CPI-AC), o Projeto Tucum do
pesquisa, projetos e produção de
Governo do Mato Grosso, o Projeto
material didático, desenvolvidos no
de Formação de Professores
espaço das aldeias. Esses cursos
Indígenas para o Magistério nos
de formação têm se configurado
Postos Indígenas Diauarum e
como espaços privilegiados de
Pavuru/ Parque Indígena do Xingu, o
desenvolvimento de uma educação
Projeto PIEI da Secretaria de Estado
intercultural, com a formação de
de Minas Gerais em parceria com a
um quadro de intelectuais indígenas
Faculdade de Educação da UFMG,
capaz de pensar e estar à frente da
entre outros.
educação escolar de seu povo. Tem também trazido novos desafios para
Com o fortalecimento e a ampliação
se pensar a educação intercultural
das escolas indígenas de educação
no âmbito das universidades
básica, surge, a partir dos últimos
brasileiras.
anos, a demanda por uma formação em nível superior, qualificando os
No caso específico da Universidade
professores para lecionarem nos
Federal de Minas Gerais, a aprovação
últimos anos do ensino fundamental
e implantação do FIEI/PROLIND,
e no ensino médio nas escolas de
a partir de 2006, foi um marco,
origem. Fruto dessa luta, começam
garantindo a presença de 142
a surgir os cursos de Licenciatura
estudantes indígenas. Em 2009,
Indígena, sendo a Universidade
através do Reuni, este curso se
Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)
transforma em curso regular da
51
Faculdade de Educação da UFMG,
Dentro desse panorama
garantindo, assim, o direito à
fortemente marcado por políticas
universidade aos povos indígenas
e noções como “indianidade”,
brasileiros, agora não mais como
“identidade cultural”, “práticas
curso especial de matrícula única,
próprias de aprendizagem”,
como era o FIEI/PROLIND, mas
“bi ou multilinguismo”, agora,
como curso regular, oferecido a
paradoxalmente, estabelecidos
cada ano, resultado da experiência
claramente como norma e projeto
bem-sucedida do FIEI e da luta das
definidos pelo próprio Estado,
lideranças indígenas no sentido
como pensar a construção desta
de ampliar esse direito a todos os
instituição social – a escola
indígenas brasileiros, interessados
(estrangeira, mas só na sua origem,
em formar-se como educadores
visto que nascida na cultura
interculturais. A proposta curricular
ocidental) – entre os próprios
apresentada ao PROLIND, um curso
grupos indígenas? Dito de outra
de turma única, previa a formação
maneira, que formas de apropriações
do professor de primeira a oitava
específicas aos grupos indígenas
série em caráter multidisciplinar e
podem ocorrer desta educação
por área de conhecimento no ensino
escolar oficialmente definida em sua
médio, uma possibilidade inovadora
“diferenciação” e “indianidade”?
que é prevista pela LDB. Já a proposta que foi aprovada dentro do
Os problemas concretos colocados
programa Reuni, e, portanto de um
pelos processos específicos de
curso regular, acabou por ter que se
implantação de escolas indígenas
moldar muito mais às licenciaturas
nas aldeias que devem articular
existentes e que são todas de
as questões de ordem cultural
caráter disciplinar.
às dimensões burocráticas das administrações públicas tanto
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
municipais e estaduais quanto federais levaram à percepção de que é necessário considerar cada situação escolar específica e as particularidades de cada cultura.
Podemos dizer, ancorados em dados
Neste sentido, criou-se um interesse
estatísticos, que, hoje, as escolas
e uma expectativa quanto às
indígenas são uma realidade no
pesquisas antropológicas sobre
Brasil, apesar desta realidade ser
estes povos.
recente e com muitas variáveis, se
Contudo, como coloca Tassinari:
considerarmos as regiões brasileiras.
52
... na relação entre pesquisas acadêmicas e soluções concretas para as escolas indígenas, pode-se entrever um certo descompasso entre a urgência das soluções impostas pelo dia-a-dia da sala de aula, de um lado, e a lentidão e o ritmo próprio da investigação científica séria, que busca compreender a fundo os casos e problemas analisados. (...) Neste quadro, (...) a escola indígena começa a ser vista também como espaço/momento privilegiado para o aprofundamento das próprias pesquisas sobre os etnoconhecimentos, e os professores e alunos indígenas, por sua vez, revelam-se como pesquisadores e pesquisados no contexto local. (TASSINARI, 2001, p. 46)
Portanto, refletir sobre a instituição escolar indígena como agente promotor de novas formas de sociabilidade indígena e de produção simbólica de novos significados culturais se constitui como uma questão de fundo para a compreensão da proposta da educação diferenciada e para melhor assessorar os processos de funcionamento dela – os impasses e as dificuldades que estes apresentam. A Antropologia clássica tomou como objeto privilegiado as formas “tradicionais” da sociabilidade e da cosmologia indígena. Essa vertente teórica geralmente ignorava ou não considerava como relevantes para uma análise mais profunda
a educação escolar, assim como outras instituições localizadas na aldeia: como o posto da Funai, as igrejas localizadas nas aldeias, por serem consideradas instituições “estrangeiras” às culturas indígenas, pois as origens se encontrariam, fora dessas, na sociedade nacional. Geralmente, as instituições eram tratadas a partir da perspectiva dos “estudos do contato”, mas que muitas vezes acabaram, também, por tratar as escolas indígenas como externas às culturas indígenas, buscando compreender as relações com os povos indígenas e o impacto causado nas sociedades, prioritariamente, a partir da dimensão política. Considerar as escolas indígenas como “instituições de fronteiras” como propostas por Tassinari (2001, p. 50) “... considero muito adequado definir as escolas indígenas como espaços de fronteiras, entendidos como espaços de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, índios e não-índios”, permite a possibilidade de identificar variantes nas formas assumidas pelas novas formas de sociabilidade indígena e de produções simbólicas, considerando-as como precedentes de uma “estrutura cultural” inicial resultantes da reinterpretação indígena das novas situações de
53
54
contato – novas relações e novos
em uma ideologia do individualismo
conhecimentos advindos de outra
e na lógica do trabalho ocidentais,
matriz cultural – como um processo
encontrariam resistências para a
criativo e produtor de significado.
adequação aos contextos próprios das culturas indígenas.
Contudo, é preciso alertar também para as situações de entraves e
Pensar a educação escolar indígena
de impossibilidades de retradução
como uma instituição inserida
de significados entre certas
em um contexto intercultural
situações de contato e algumas
implica em considerar as múltiplas
dimensões tradicionais das
relações entre as várias disciplinas
culturas indígenas. Os limites da
e os problemas abordados por
apropriação totalmente indígena
elas. Questões sobre a cognição,
da instituição escolar. As fronteiras
conhecimento e aprendizado se
como regiões de passagens e
relacionam às questões como
transformações permitem o fluxo
processos próprios de aprendizado,
da retradução entre significados
processos identitários em
distintos culturalmente entre ambos
situações de contato interétnicos,
os lados da fronteira. Ou seja, tanto
apropriação e ressignificação de
para a sociedade nacional na sua
conhecimentos/ideias/valores,
apreensão das culturas indígenas e a
classificação e simbolismo de
sua resignificação dentro do próprio
noções como cosmo, sociedade, ser
referencial ocidental, quanto do
humano etc. Refletir sobre a relação
seu inverso. Haveria, porém, “zonas
entre as definições e projetos
incomunicáveis” que permaneceriam
governamentais homogeinizantes
fora desse fluxo por não permitirem
sobre a educação escolar indígena
uma reapropriação significativa e
e a extrema diversidade das várias
possível entre ambas as matrizes
realidades concretas dos processos
culturais.
de implantação das escolas entre os diferentes povos indígenas,
Situações como os entraves
se impõem como premissa
burocráticos e legais impostos pelo
fundamental para melhor adequação
Estado para a implantação das
das práticas e políticas educacionais
escolas indígenas, que se enraízam
indígenas (ARACY, 2001).
55
REFERÊNCIAS ALVARES, Myriam M. 1999 “A Educação Indígena na Escola e a Domesticação Indígena da Escola”. Belém, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Série Antropologia vol.15(2). __________________. 2004 “Kitoko Maxakali: a criança indígena e os processos de formação, aprendizagem e escolarização”. In: Revista Antropológicas, Ano 8, volume 15 (1). Recife, ______________. 2009 Crianças, Espíritos e Brancos. Mediação e transformação. In: Anais do 53º. ICA – Congresso Internacional de Americanistas. México. 2009. ALVARES, Myriam M. & outros. 2003. “Krenak, Maxakali, Pataxó e Xacriabá: a formação de professores indígenas em Minas Gerais” Em Aberto. Volume 20 n. 76. ALVARES, Myriam M., GOMES, Ana M. R. e GERKEN, C. H. 2004. Sujeitos Socioculturais na Educação Indígena: uma abordagem interdisciplinar Relatório Técnico Final. Projeto Integrado de Pesquisa FAPEMIG/SHA 668/01. CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a educação indígena no Brasil (1975-1995) resenha de teses e livros. Brasília/São Paulo: MEC/MARI-USP, 1995. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (organizador). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994. SILVA, Aracy Lopes da. 2001a. “A educação indígena entre diálogos interculturais e multidisciplinares:introdução.” In: Antropologia História e Educação. A questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp/Editora Global/MARI. ________________ 2001b. Práticas Pedagógicas na Escola Indígena. São Paulo, FAPESP/MARI/Editora Global. SILVA, Aracy Lopes da, NUNES, Ângela e MACEDO, Ana V. L. da S. (orgs.). 2002. Crianças Indígenas Ensaios antropológicos. São Paulo, FAPESP/MARI/Editora Global. SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luis Donisete. A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1 e 2 graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1997. TASSINARI, Antonella Maria Imperatiz. “Escolas indígenas; novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação.” In: Antropologia História e Educação. A questão indígena e a escola. São Paulo: FAPESP/editora Global/MARI, 2001.
56
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QUILOMBOS URBANOS ou URBANIZADOS? Ricardo Ferreira Ribeiro1
Já faz alguns bons anos que
preconceitos que carregavam.
pesquiso e trabalho com comunidades quilombolas em Minas Gerais, em especial desde
Sempre que uma nova turma se
2006, quando criamos o Projeto de
preparava para ir a campo, fazíamos
Extensão Lições da Terra, que busca
várias reuniões para, de certa forma,
aproximar estudantes e professores
“antecipar” um pouco do que iriam
de diversos cursos e unidades da
ali viver e para afastar certas ilusões
PUC Minas não só da realidade
sobre o que esperavam poder
dessas comunidades, como também
encontrar.
dos povos indígenas, assentamentos
Em 2009, fizemos um pequeno
de reforma agrária e vários outros
cordel intitulado “A peleja do
movimentos sociais do campo.
estudante para aprender as lições da
Creio que temos obtido sucesso
nossa terra”, em que destacávamos
neste objetivo, pois muitos
o processo de aprendizado do
estudantes revelam que conviver,
projeto, através dos seguintes
por alguns dias, durante o período
versos:
de férias, com as famílias de tais comunidades, experimentando as dificuldades e alegrias dessa gente, marcou a vida acadêmica deles e contribuiu para modificar vários
Mas também ensina, Realiza muita troca, Descobre que índio Já não vive em oca, Nem imagina o Seu mundo como toca.
1 Professor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8265879063684745
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Já usa sua internet Pra ouvir boa fofoca, Tem celular de moda Toma muita coca, E fica tanto plástico Que de lixo se sufoca. Aprende que ser índio, Não é andar pelado, Coberto de pena, mas Guardar de antepassado, Aquilo tudo que merece Ser por ele conservado. O camponês e o quilombola Não querem viver no passado, Desejam melhoria na casa, E no trabalho do roçado, Sofrer na enxada, no escuro Vai ficando desusado.
Como antropólogo, procurei, assim, na Roda de Conversa com a Comunidade Quilombola de Mangueiras, realizada na V SCAP, mostrar que, quando falamos de comunidades quilombolas, em pleno século XXI, não devemos ter em mente a imagem nem de Palmares, nem dos guerreiros de Zumbi, fugitivos da escravidão do período colonial, que perdurou até pouco mais de cem anos. É certo que também tivemos, em Minas, dezenas, podemos mesmo falar em algumas centenas de quilombos ao longo dos séculos XVIII e XIX, espalhados por várias partes do território, onde muitos africanos e descendentes resistiram ao cativeiro. Porém, na contemporaneidade, o conceito de quilombo ganha novas dimensões e amplia a perspectiva dessa resistência. Sabemos, hoje,
61
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que muitas foram as estratégias
menos o seguinte: “Esse negócio de
para buscar a liberdade e para
quilombo urbano, eu não sei, não...
manter as identidades em meio a
Não fomos nós que viemos para
uma sociedade racista e autoritária.
a cidade, é a cidade que está nos
As comunidades de “pretos”,
engolindo! ”
como eram chamadas, buscavam ocupar ou adquirir as terras
Em um primeiro momento, pode-
marginais às grandes fazendas,
se pensar que, na prática, dá no
onde continuavam, muitas vezes,
mesmo, ou seja, a comunidade está,
trabalhando mesmo após a alforria
cada vez mais, inserida no contexto
ou a abolição. Ali resistiram, através
urbano de periferia e vivenciando
da solidariedade interna, procurando
todos os problemas daí advindos.
manter as tradições e absorvendo as
Essa realidade é muito diferente
novidades que vinham da sociedade
daquela experimentada pela maioria
mais ampla.
das comunidades quilombolas, localizadas em áreas rurais, cuja
Dentre essas transformações,
vida está assentada nas atividades
continuando minha exposição
agropecuárias, no extrativismo e no
na V SCAP, apresentei como
artesanato. As principais ameaças
exemplo o fato de existirem o que
ao território vêm dos conflitos com
a literatura vem consagrando como
os fazendeiros vizinhos, da chegada
“quilombos urbanos”, apontando
de grandes empresas mineradoras
entre eles, o caso de Mangueiras.
ou da criação de unidades de
Localizado às margens da rodovia
conservação, como parques e
MG-20, que liga Belo Horizonte a
reservas biológicas.
Santa Luzia, e em meio a bairros regulares e ocupações populares,
As comunidades quilombolas
esse quilombo está em área de
inseridas no contexto urbano, em
grande concentração urbana. E
grande parte, têm dificuldades de
não se trata de um caso isolado.
desenvolver aquelas atividades
Existem outras comunidades
econômicas e dependem do
quilombolas em situação semelhante
trabalho assalariado e informal,
na Região Metropolitana de Belo
pois não contam mais com
Horizonte e de outras cidades pelo
uma abundância de terras que
país afora. No entanto, logo em
permitam manter várias daquelas
seguida a esses meus comentários,
práticas tradicionais. A expansão
o presidente da Associação
urbana vem, ao longo de décadas,
Quilombola da Comunidade de
“comendo pelas beiradas” o
Mangueiras, Maurício Moreira dos
território, “regularizando” o que
Santos, corrigiu-me, dizendo mais ou
antes lhes pertencia por tradição e
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uso. Assim, se a luta por território é
Os quilombolas de Mangueiras
um elemento comum a comunidades
ressentem-se com o fato do esgoto
quilombolas rurais e urbanas, cada
das vizinhanças poluir o principal
realidade possui modos de vida
córrego do território deles, que
específicos e adversários diferentes
atravessa vários dos quintais.
nesses confrontos.
Embora não utilizem essa água para consumo doméstico, ela era
Para entender, no entanto, o ponto
empregada para o lazer e para os
de vista de Maurício dos Santos,
rituais de fé.
creio que partilhado pelos vizinhos, é preciso ir ao Quilombo de
Sem estarem cercados, os limites
Mangueiras, observá-lo de fora,
do território estão ameaçados
de certa distância e depois entrar
pelas ocupações vizinhas e pelo
com calma e muito respeito,
livre trânsito para uso de eventuais
indo além mesmo das casas dos
recursos naturais: as dificuldades
moradores. O que salta aos olhos de
socioeconômicas colocam em
qualquer um é que a área ocupada
disputa comunidades que possuem
pelo quilombo é uma “ilha verde” em
níveis de renda semelhantes. No
meio a um “oceano” de urbanização.
entanto, a principal ameaça à
As casas das famílias ocupam cerca
comunidade está associada aos
de dois hectares, com quintais de
impactos socioambientais da
hortas e várias árvores frutíferas,
expansão do chamado Vetor Norte,
mas que representam pouco menos
com o revigoramento do Aeroporto
de 10% do total do território atual,
de Confins e a implantação da Linha
dominado por uma pequena mata
Verde, da Cidade Administrativa e
com expressiva biodiversidade.
de vários novos projetos naquela
Os quilombolas não só conhecem
região. Tal expansão contribuiu
como utilizam essa vegetação
para um maior interesse imobiliário
para fins medicinais, alimentares,
e para a elaboração de projetos
religiosos e outros. Eles valorizam
viários correspondentes, como é o
o ambiente natural não apenas por
caso da Via 540 e o entroncamento
esses usos, mas pelos significados
com a MG-20, que atingiriam
simbólicos associados às crenças de
parte do território do Quilombo de
matriz africana. Alguns moradores
Mangueiras.
são carroceiros e dependem também desse ambiente para criar
Muitos são os problemas dessa
os animais, mostrando que um
comunidade e constituem-se em
pouco de rural sobrevive no modo
desafios para a atuação de extensão
cada vez mais urbano de viver.
da PUC Minas que, por meio da
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Coordenação de Extensão da Unidade São Gabriel, foi contatada pela comunidade para contribuir neste processo, assessorando os moradores e a associação na busca de soluções sustentáveis. Se a cidade vem “engolindo” o quilombo, ela vai ter que “digerir” também os problemas advindos da fome de espaço, sabendo respeitar as diferenças socioculturais e ambientais próprias dessa comunidade.
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CIGANOS no BRASIL:
breves considerações Rodrigo Corrêa Teixeira 1 Vinícius Tavares 2
Entre as inúmeras hipóteses acerca
Como a experiência de desrespeito
das origens das populações ciganas,
está ancorada nas vivências dos
as mais consistentes são aquelas
ciganos, de modo que possa dar
que os situam no nordeste da Índia,
motivação para a resistência social,
baseando-se em estudos linguísticos
para o conflito e, sobretudo, para a
do romani. Desconhecem-se as
luta por reconhecimento?
causas que motivaram a diáspora dos ciganos, nem em quais datas
A luta por reconhecimento é um
precisas se iniciaram diversas
aspecto central na formação das
informações sobre a presença em
identidades pessoais e coletivas,
distintos países europeus.
como elemento no qual se movem e se constituem as subjetividades
Quais são as características dos
cotidianas. Ao longo do processo
chamados “ciganos”? Será o termo
de construção da identidade, em
“cigano” um identificador de uma
seus diferentes estágios, ocorrem
tradição cultural homogênea ou,
interiorizações de esquemas
antes, a unidade cultural de um
padronizados de reconhecimento
conjunto de minorias heterogêneas
social. Nesse processo, o indivíduo
e autônomas? Ou, mais, será
aprende gradativamente a
este apenas um estereótipo, uma
perceber-se como membro de um
categoria social imposta a grupos
grupo social, com necessidades
sociais minoritários dominados?
e capacidades peculiares à sua
1 Professor do Departamento de Relações Internacionais na PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5175996400497848 2 Vinicius Tavares é bacharel e mestrando em Relações Internacionais pela PUC Minas.
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personalidade, através da reação positiva de seus parceiros de interação. Em seu processo de socialização, cada sujeito interioriza formas de reconhecimento social inerentes ao seu grupo sociocultural (HONNETH, 2003). As interações sociais de reconhecimento mútuo favorecem a construção de uma identidade do “eu” autônoma e, ao mesmo tempo, socialmente integrada. A supressão dessas relações produz experiências de frustração, vergonha e humilhação, trazendo consequências nefastas ao processo de construção da identidade (HONNETH, 2003). Os conflitos gerados por ataques à identidade pessoal ou coletiva e as ações que neles se originam têm em seu cerne a busca pela restauração de relações de reconhecimento mútuo. O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau da autorrealização positiva crescem com cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si mesmo
como sujeito: desse modo, está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do autorrespeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da autoestima (HONNETH, 2003, p. 272).
Ao tentar compreender perspectivas ciganas (“vozes ciganas”) e discutilas no contexto da sociedade civil no Brasil, torna-se necessário colocar a luta pelo reconhecimento dos ciganos no Brasil no contexto da interpretação de suas ações. Significa compreendê-los em suas possibilidades de desenvolver, nas interações sociais, os componentes de reconhecimento num dado contexto sociocultural, promovendo a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima. Desde o século XV a palavra “cigano” é utilizada como um insulto (FRASER, 1992. p. 48). De fato, o termo aparece registrado pela primeira vez em português em Farsa das ciganas, de Gil Vicente, provavelmente em 1521. Nessa peça teatral, os ciganos são considerados como originários da Grécia (VICENTE, s.d., p.319-329). No século XIX, no Brasil, não se fala nem que são originários da Grécia nem da Índia, apesar de ganhar cada vez mais força, na Europa, a explicação de que os ciganos teriam vindo do subcontinente indiano. No entanto, há menções
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sobre ciganos, no Brasil, em que
kalderash, autoproclamada a mais
eles se diziam descendentes de
“autêntica” e “nobre” entre as
antigos egípcios. Além disso, muitas
comunidades ciganas. A segunda
vezes foram chamados de “turcos”,
é a do grupo linguístico vlax
talvez pela associação ao Império
romani, considerado, por muitos
Turco-Otomano mencionada nos
pesquisadores, como portador da
passaportes.
“verdadeira língua cigana”.
Nas últimas décadas, pesquisadores,
Os sinti, também chamados
ciganos ou não, consagraram
manouch, falam a língua sintó e
a distinção dos ciganos, no
são numericamente expressivos na
Ocidente, em três grandes grupos.
Alemanha, Itália e França.
O grupo rom , demograficamente
No Brasil, nunca foi feita uma
majoritário, é o que está distribuído
pesquisa apurada sobre sua
por um número maior de países.
presença. Provavelmente, os
É dividido em vários subgrupos
primeiros sinti chegaram ao país
(natsia, literalmente, nação ou
também durante o século XIX,
povo), com denominações próprias,
vindos dos mesmos países europeus
como os kalderash, matchuara,
já mencionados.
3
lovara e tchurara. Teve a história profundamente vinculada à Europa
Os calon, cuja língua é o caló,
Central e aos Bálcãs, de onde
são ciganos que se diferenciaram
migraram a partir do século XIX
culturalmente após um prolongado
para a Europa Ocidental e para
contato com os povos ibéricos.
as Américas. Muitas organizações
Da Península Ibérica, onde ainda são
ciganas e vários ciganólogos têm
numerosos, migraram para outros
tentado substituir, no léxico, ciganos
países europeus e da América.
por roma. A esse processo tem-se
Foi de Portugal que vieram para o
denominado romanização, e tem a
Brasil, onde são aparentemente o
intenção de conferir legitimidade
grupo mais numeroso. Embora os
a estes grupos como sendo o dos
calon tenham sido pouco estudados,
“verdadeiros ciganos”. Há ainda,
acredita-se que não haja entre eles
pelo menos, duas derivações dessa
algo que se assemelhe à complexa
política. A primeira, a do subgrupo
subdivisão étnica dos rom.
3 Rom, substantivo singular masculino, significa homem e, em determinados contextos, marido; plural roma; feminino romni e romnia. O adjetivo romani é empregado tanto para a língua quanto para a cultura. Apesar disso, como fazem muitos ciganólogos, a seguir sempre escreveremos “os rom” e não “os roma”, da mesma forma “os calon”, “os sinti” etc.
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Apesar dos inúmeros trabalhos nas
desejar o centro que está fora.
últimas décadas sobre os ciganos no Brasil, o conhecimento objetivo
No transcurso da história,
da população cigana ainda é
os ciganos souberam subverter
bastante precário, pois raríssimos
quase todas as situações que o
estudos produziram informações
contexto desfavorável lhes oferecia.
demográficas de qualidade que
Adaptaram-se, penetrando nas
pudessem nos orientar quanto à
lacunas que as dinâmicas econômica
produção de estimativas sérias.
e social criavam. A adaptação para a
A maior parte das estimativas sobre
sobrevivência foi o grande trunfo da
ciganos no Brasil se baseia em
condição cigana. Mesmo tendo uma
vagas impressões mais ou menos
identidade aparentemente frágil,
qualificadas, mas sempre imprecisas.
eles a recriaram frente às mais
Encontramos estimativas que vão
díspares circunstâncias.
dos 100 mil até 1 milhão de ciganos
A sobrevivência foi a realização mais
espalhados no território nacional
duradoura, o grande evento,
(MOONEN, 2011a, p.115-117),
da história cigana.
mas nenhuma representa números
Por isso Angus Fraser, autor do
embasados demograficamente.
melhor trabalho historiográfico sobre ciganos, escreve na primeira página
Os ciganos constituem-se em uma “cultura de fronteira”. A característica de cultura de fronteira é a vocação para práticas cartográficas: desenham mapas que definem a parte de dentro e os que habitam como mais significativas do que tudo o que se encontra do lado de fora e em situação de desconforto. É em função de tal
de seu livro: Quando se consideram as vicissitudes que eles encontraram – porque a história a ser relatada agora será antes de tudo uma história daquilo que foi feito por outros para destruir a sua diversidade – deve-se concluir que a sua principal façanha foi a de ter sobrevivido (FRASER, 1992, p.1).
mapeamento que as culturas de
Na perspectiva de longa duração,
fronteira olham para elas mesmas
a história dos ciganos na América
em autocontemplação. As culturas
Portuguesa e no Brasil, Império e
na fronteira, por outro lado,
República, é um conjunto de
contemplam o que está fora mais
práticas de resistência às políticas
do que está dentro, porque, não
anti-ciganas.
tendo o poder de exercitar práticas
Em vivências bastante diversificadas
cartográficas centralizantes e tendo
econômica e culturalmente, os
as fronteiras definidas pelas culturas
ciganos produziram formas de
centrais, devem necessariamente
sociabilidades que permitiram as
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comunidades sobreviverem no
Os ciganos do Brasil são uma
transcurso dos séculos, apesar
cultura singular no mundo, diferente
da discriminação generalizada da
de qualquer outra, e, entretanto,
sociedade nacional e das políticas
dividem com aqueles que os
anti-ciganas do Estado Português e,
acolhem um grande número de seus
a posteriori, do Estado Brasileiro.
aspectos culturais. No encontro
Na curta duração, novas
das culturas. Em tempos de
perspectivas para os direitos das
globalização, é preciso conceber
comunidades ciganas são delineadas
todas as culturas como agentes de
no século XXI.
unidade e de diversidade, recriando
No entanto, neste caso, são enormes
o sentido de humanidade.
os desafios para construção da justiça social.
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ÉTICA, COTIDIANO E CORRUPÇÃO1 Adriana Maria Brandão Penzim2
Discussões sobre ética têm-se
por exemplo, é bem claro que se
popularizado nos últimos anos
está a suscitar uma reflexão ética.
ultrapassando os limites acadêmicos
Tudo isso é muito interessante,
e passando a integrar de modo
uma vez que faz com que se
recorrente nossas conversas
ampliem as possibilidades de
cotidianas: fala-se em ética na
transformação social e política.
política, discute-se a ética no futebol, nos negócios...
Contudo, lamentavelmente, noto
O assunto circula em sites e blogs.
que a palavra “ética” cada vez mais
Além disso, quando se discutem,
parece ligar-se ao individualismo
como neste evento, temas relevantes
contemporâneo, popularizando-se
e complexos como a ecologia,
a ideia de que cada situação e cada
a fome no mundo, a violência,
indivíduo devem ser portadores de
a saúde, a cidade e suas vicissitudes,
uma ética particular. É por isso que
1 Trata-se da fala de abertura da mesa-redonda “Ética, Cotidiano e Corrupção”, promovida pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) em parceria com o Curso de Psicologia da PUC Minas São Gabriel, realizada em 20 de setembro de 2013, integrando a V Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel. Na ocasião deu-se o lançamento do segundo volume da série “Cadernos do Nesp”, intitulado “Ética, Política e Corrupção”. Como forma de provocação ao debate, faz-se uma breve reflexão sobre ética, moral e modos de existência no mundo contemporâneo, com destaque para a participação do sujeito na construção da sociedade. 2 Psicóloga, Mestre em Ciências Sociais, Doutora em Psicologia Social. Professora da Faculdade de Psicologia e membro do Grupo Gestor do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5267024290997213
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se diz, volta e meia, da ética (que é
leis e lógicas de condutas que se
um substantivo, isto é, substância)
constituem em modo de viver.
como um adjetivo personalizado.
No êthos, habita o ser.
Dizemos, por exemplo, fulano é um político ético...
Ética difere de moral. Ainda que não haja um consenso
A título introdutório, proponho uma
entre os pensadores sobre o que
breve reflexão sobre o tema. Fique
pertence ao domínio da moral e ao
claro que a minha contribuição
domínio da ética, tomo aqui Deleuze
restringe-se à proposição de alguns
(em entrevista a Didier Eribon),
pontos que podem vir a instigar o
para quem
debate. E este é o convite que faço a vocês, para que algo de novo possa surgir desta introdução que se constitui simplesmente em uma provocação, em que trago mais dificuldades que afirmações, e mais questões que soluções. Ética é uma palavra que se origina do grego êthos: modo de ser, caráter. Liga-se à ideia de costumes e disposições afetivas, intelectivas,
a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindoas a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética, entretanto, faz-se como um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função de modos de ser e de existir que disso resultam. Dizemos isso, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? (DELEUZE, 1998, p.125)
libidinais, comportamentais que sustentam uma determinada
Tem-se aí a pergunta central que
coletividade e orientam a ação
nos cabe, a cada um e a todos,
humana em sua existência social.
fazer: — que modos de existência
Ou seja, quando falamos em ética,
se conectam e se produzem (ou se
estamos falando de estilos de
reproduzem) no meu agir, no meu
vida, da permanente invenção de
fazer, no que digo?
possibilidades de vida e de modos de existência. Uma existência
Vejam que assim pensando ética
compartilhada, coletiva.
diria respeito a algo imanente e moral a algo transcendente.
Não sem razão, êthos liga-se,
Qual o significado desses termos?
também, desde os gregos, à ideia de
De modo bem simples, podemos
morada do ser; isto é, o ser humano
dizer que é imanente àquilo que
promove uma maneira própria de
está inseparavelmente contido ou
existir, não sujeita à mera regulação
implicado na natureza de um ser e
da natureza, mas, dando-se normas,
que produz efeito em si.
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E é transcendente aquilo que o
O sujeito poderá atuar apenas de
excede, ou seja, coloca-se em um
modo moralista; porém, à ética não
plano exterior ao ser.
basta o conhecimento do código e a ele obedecer. São necessários
A moral transcende o sujeito
a assimilação e o amadurecimento
constituindo-se como um conjunto
de si como ser humano, para que a
de códigos, de proibições e
pessoa se humanize como produtor
permissões, ligados a valores
de uma conduta ética. Assim, se a
assumidos em um período histórico
conduta meramente moral é lugar
determinado e em dado contexto
de obediência, a conduta ética é
social; conjunto esse que já está
exercício de potência, pois a ética
posto de antemão, constituído por
é o ponto de partida da atuação
preceitos de teor regulatório.
humana em direção à realização da
Ou seja, a moral impõe-se ao sujeito
vida.
e sua desobediência pode resultar em medidas repressivas e castigos.
Nessa linha de pensamento,
Vale lembrar que a moral é proposta
podemos entender que o
aos indivíduos e grupos por meio de
ser humano constitui-se
aparatos institucionais (a família,
processualmente ao longo de sua
a escola, a justiça, as igrejas,
existência e sua ação no mundo
o Estado, etc.).
implica um trabalho do sujeito sobre si mesmo, tendo como pressuposto
Mas, não é a existência de um
a liberdade e a autonomia nas
código moral, ou as penalidades
escolhas que empreende em seu
e medidas repressivas aplicadas
percurso de vida.
a quem infringe esses códigos, que modificará o sujeito e o
Não nascemos prontos, somos à
transformará em sua dimensão
medida que nos constituímos.
ética. Provavelmente ele não voltará
Em permanente mutação, ser
a transgredir o código por temor,
humano é ser em construção: nunca
não se tratando de experiência
está feito de uma vez por todas;
de um aprendizado ético, mas,
configuração provisória é ser sempre
de mera submissão. “É por medo
aberto ao novo, ao devir, à invenção.
dos castigos e esperança das
Ser humano é tornar-se humano.
recompensas que o indivíduo
E é esse o nosso grande desafio,
submete-se a um poder que o
a nossa consigna permanente,
separa da sua própria capacidade de
que nos acompanha por toda a
agir e pensar livremente, desejando
vida. E é também a nossa fortuna.
sua própria servidão. ”
Podemos sempre mudar, inventar,
(FUGANTI, s/d)
caminhar no sentido de transformar
94
a existência, promover novos
Sobre isso, em um belo texto,
modos de ser e de existir. A ética é
Castoriadis afirma que
imanente aos modos de existência que inventamos, que produzimos como seres do devir no exercício da liberdade. Contudo, a invenção exige um sujeito consciente da potência do existir. Um sujeito capaz de distinguir entre o que produz vida e o que produz morte. Esse sujeito tem consciência de si e do outro, tomando-o como semelhante (tem-se aí a questão da alteridade). É também um sujeito que se reconhece como autônomo, capaz de agir, seja individual ou coletivamente, em conformidade com suas próprias normas e leis, e de deliberar e de decidir, responsabilizando-se por suas ações e suas consequências para si e para os outros. É um sujeito que se reconhece produtor da vida e age como cidadão, ou seja, sujeito da pólis, sujeito político. É o sujeito político aquele que institui a sociedade. Mas, para isso, é preciso ultrapassar uma visão da realidade existente como natural e absoluta, para que possamos pensar e agir em direção a uma outra realidade, diferente e melhor, que
A história é criação: criação de formas totais da vida humana. As formas sócio-históricas não são ‘determinadas’ por ‘leis’ naturais ou históricas. A sociedade é autocriação. ‘Quem’ cria a sociedade e a história é a sociedade instituinte, em oposição à sociedade instituída [...]. A auto-instituição da sociedade é a criação de um mundo humano: de ‘coisas’, de ‘realidade’, de linguagem, de normas, valores, modos de viver e de morrer [...] acima de tudo, ela é a criação do indivíduo humano no qual a instituição da sociedade está solidamente incorporada.” (CASTORIADIS, 1987, p.280).
Construtor da sociedade, o ser autônomo está em permanente repensar sobre a sua obra — o seu fazer humano sobre o mundo. A relação com o social e com a história — que é o desenvolvimento do social no tempo —, é inerente ao ser humano (Castoriadis, 1982). A auto-transformação da sociedade diz respeito ao fazer social — e, portanto, também político no sentido profundo do termo — dos homens na sociedade e nada mais. O fazer pensante e o pensar político — o pensar da sociedade como se fazendo — é um componente essencial disso (CASTORIADIS, 1982, p. 418).
se coloca como utopia ativa, como horizonte a alcançar. Trata-se de
Em permanente questionamento,
fazer uma experiência de liberdade
há que se escolher entre ser
em direção à vida.
produtor do novo ou mero reprodutor do mesmo, de ser sujeito
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ou ser assujeitado. Se abrimos
a grande fortuna que temos como
mão da autonomia, aceitamos a
seres instituintes da sociedade
heteronomia. Se não inventarmos
implicará sempre em “um bom
a própria vida viveremos uma vida
caminho”. A história é farta ao nos
inventada por outros.
mostrar o quanto e com que força as civilizações têm sido capazes de
Mas isso não é simples. A liberdade
promover situações de exploração,
está inserida em jogos de poder e
dominação e mistificação que
nos pode parecer muito assustadora.
impedem a vida em plenitude.
Provocando em nós insegurança,
A nossa capacidade de instituir
somos tentados a escolher aceitar as
não somente criou a democracia,
coisas como estão. Entre as muitas
a justiça, a liberdade, a beleza.
forças em jogo, regulados em nossa
Criou também monstruosidades
liberdade, vivemos, cada vez mais,
(CASTORIADIS, 1987).
uma naturalização da vida e isso nos acua, nos impele a não desejarmos a
O exercício da liberdade em busca
novidade, a transformação. Mais que
da novidade exige que submetamos
isso, os conduz para que desejemos
nossos modos de vida a permanente
a manutenção do instituído.
questionamento e constante reformulação.
A auto-instituição da sociedade requer sujeitos capazes de, em
Vale lembrar, retomando o tema
conjunto e em mútua cooperação
em destaque neste debate, que a
com os demais, intervirem na
palavra “corrupção” vem do latim
realidade de modo inventivo e
corruptus, referindo-se àquilo que é
autônomo, persistindo na construção
quebrado em pedaços, apodrecido,
de uma ordem social e política
tornado podre. O que se quebra,
democrática, justa e solidária.
o que apodrece em uma situação de corrupção? Eu diria que a nossa
Livre para produzir sua percepção
casa, o nosso êthos.
do mundo, suas formas de socialização, suas instituições,
E diante da realidade, perguntamo-
suas relações, seus amores, seu
nos: – como engendrar
estilo de vida, etc., o ser humano
acontecimentos transformadores, o
pode inventar o mundo, inventar a
que fazer em nosso cotidiano?
vida. Inventar seus modos de ser e de existir, ou seja, seu ethos, sua
Não há como pretender que existam
morada.
caminhos dados, receitas prontas. Mas, certamente, há uma infinidade
Todavia, ingênuo seria pensar que
de possíveis a esperar que sejam
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99
100
realizados, mas que exigem que
por exemplo, o que entendemos
nos esquivemos do conformismo
por “crimes contra a humanidade”,
individualista em que nos temos
ou, “porque há fome no mundo”,
colocado. Isso demanda de nós a
ou sobre “a escalada do poder e
disposição para um desenvolvimento
a globalização econômica”, etc.
contínuo das nossas competências
Neste momento específico, passa
de resistência social, não somente
por nos debruçarmos sobre o tema
na dimensão do pensamento, mas,
da corrupção. Vale dizer: — Porque
sobretudo, na prática.
há corrupção no Brasil? O que eu tenho com isso? A que (e a quem)
É necessário conseguir expressar a
estamos servindo quando assistimos
ética em exercícios cotidianos.
passivos ao avanço da corrupção?
O que eu quero dizer é que
Que modos de existência estão aí
princípios éticos só adquirem
implicados?
significado efetivo quando confrontados com a realidade vivida. E para que possamos fazêlo, a compreensão do que acontece requer a sua localização no tecido da sociedade, como sustentáculo da ação. Sabendo-se da gravidade das tragédias e contradições sociais e políticas presentes no mundo contemporâneo — guerras, xenofobia, terrorismo, racismo,
Acreditar no mundo é o que mais nos falta [...] Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou engendram novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1998, p. 218 – grifo do autor)
desarranjos ecológicos e tantos mais —, e na sociedade brasileira, cujos problemas vão da corrupção à fome, da desigualdade social à violência cotidiana, dentre muitos outros, é preciso procurar respostas para essas e outras questões. E isso passa por nos determos na reflexão séria e paciente, em contraposição ao “fast thinking” (BORDIEU, 1997) cotidiano que banaliza a tragédia e a morte. Trata-se de refletir sobre,
O novo se instala no mundo dos grandes agenciamentos sociais e institucionais ao mesmo tempo em que nas mais íntimas esferas de indivíduos. “Toda a catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo e, às vezes, a partir dos meios mais minúsculos”. (Guattari, 1997, p.56)
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REFERÊNCIAS BAPTISTA, Isabel. Razão, sensibilidade e bom senso. Jornal “a Página da Educação”, n. 106. Ano 10. Out 2001. Porto (PT). BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CASTORIADIS, C. A Polis Grega e a Criação da Democracia. In: CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto II, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 277323. DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. Le Nouvel Observateur, 23 de agosto de 1986, entrevista a Didier Eribon. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 118-126. DEMO, Pedro. Educar pela Pesquisa. 4.ed. Campinas: Autores Associados, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia; saberes necessários à prática educativa. 21.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
FUGANTI, Luiz. A ética como potência e a moral como servidão. s/d. Disponível em: <http://www.luizfuganti.com.br/>. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 6.ed. São Paulo: Papirus, 1997. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. SAVATER, Fernando. Ética para meu filho. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SUNG, Jung Mo e SILVA, Josué Cândido. Conversando sobre ética e sociedade. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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O SONHO TRANSDISCIPLINAR1 Hilton Ferreira Japiassu2
O grande desafio lançado ao
que pretende ser, mas como
pensamento e à educação neste
abordagem cultural e social que
início de século e milênio é a
é, o transdisciplinar diz respeito
contradição entre, de um lado,
ao que está entre as disciplinas,
os problemas cada vez mais globais,
através delas e além de cada uma.
interdependentes e planetários e,
Seu projeto utópico? Contextualizar
do outro, a persistência de um modo
e globalizar, isto é, ver e avaliar um
de conhecimento ainda privilegiando
problema sob todos os seus ângulos
os saberes fragmentados,
e em todas as suas dimensões,
parcelados e compartimentados.
implicando a construção de uma
Daí a necessidade e a urgência,
visão ao mesmo tempo transcultural
para uma reforma do pensamento
e transhistórica permitindo-nos
e da educação, de valorizarmos os
compreender o mundo atual em sua
conhecimentos interdisciplinares e
complexidade e o ser humano em
promovermos o desenvolvimento,
suas ambiguidades e contradições.
no ensino e na pesquisa, de um espírito propriamente
Creio que pode ser aplicado ao
transdisciplinar.
pensamento o que Péguy dizia da poesia: “quando a poesia está em
Como abordagem “científica”
crise, a solução não consiste em
1 Conferência apresentada em 19 de setembro de 2013 na V Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas no São Gabriel. Texto revisado por Antônio Cota Marçal. 2 Licenciado em Filosofia na PUC do Rio de Janeiro (1969). Pós-Graduação em Filosofia (Epistemologia e História das Ciências) na Université des Sciences Sociales de Grenoble (França). Pós-doutorado em Filosofia na Université des Sciences Humaines de Strasbourg (França) (1985).
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decapitar os poetas, mas em renovar
distintas”, obrigando-nos a reduzir
as fontes de inspiração”. Porque
o complexo ao simples, a separar
a reforma do pensamento, longe
o que é unido, unificar o que é
de constituir um luxo intelectual,
múltiplo, eliminar tudo o que fornece
responde a uma necessidade vital:
desordens e contradições em nosso
constitui um dos componentes
entendimento. Ora, como nos vem
fundamentais para “salvarmos” a
alertando Edgar Morin, o problema
humanidade face às forças terríveis
crucial em nosso tempo é o da
que ela desencadeou sem ter
necessidade de um pensamento
condições de controlá-las.
capaz de enfrentar o desafio da complexidade do real, quer dizer,
O que podemos fazer quando
de apreender as ligações, interações
tomamos consciência de que nossos
e implicações mútuas, os fenômenos
conhecimentos atuais revelam
multidimensionais, as realidades ao
uma tremenda incapacidade de
mesmo tempo solidárias e conflitivas
pensar o mundo globalmente e em
(a democracia é um sistema que
suas partes? O que devemos fazer
alimenta antagonismos e ao mesmo
quando, diante da extraordinária
tempo os regula).
complexidade do mundo atual, constatamos que nosso pensamento
Já no século XVII, Pascal,
se encontra preso às cegueiras
ao formular este imperativo de
e miopias que caracterizam
pensamento que precisamos
nossas universidades divididas em
introduzir em todo o nosso ensino
departamentos sem comunicação?
dava-nos a seguinte orientação:
Se nossos espíritos permanecem
“considero impossível conhecer as
dominados por um modo mutilado
partes se não conheço o todo e é
e abstrato de conhecer, pela
impossível conhecer o todo se não
incapacidade de apreender as
conhecer particularmente as partes”.
realidades em sua complexidade
E acrescenta: “é mais belo saber
e em sua globalidade; e se o
algo de tudo do que saber tudo
pensamento filosófico continuar
de alguma coisa. Eis a verdadeira
se desviando do mundo em vez de
universalidade”. Queria dizer: se
enfrentá-lo para compreendê-lo,
quisermos dominar um objeto,
então, nossa inteligência passa a
não podemos confiar no
viver na miopia ou na cegueira.
conhecimento fragmentado nem apenas na apreensão holística.
Uma tradição de pensamento bastante enraizada em nossa cultura
Precisamos romper com o velho
tem nos ensinado a conhecer
dogma reducionista de explicação
o mundo por “ideias claras e
pelo elementar e considerar os
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sistemas complexos, onde as
que perdemos no conhecimento?
partes e o todo se interfecundam
E onde está o conhecimento que
e se interorganizam. Porque o
perdemos na informação? ”.
conhecimento deve efetuar, não só
E eu afirmo: o excesso de
um movimento dialético entre o nível
informação não só desinforma,
local e o global, mas de retroação do
mas deforma.
global sobre o particular. Ao mesmo tempo em que precisa contextualizar
O risco que correm as novas
o singular, o pensamento deve
gerações? Tornarem-se obesas
concretizar o global, quer dizer,
de informação e anoréxicas de
relacioná-lo com suas partes.
conhecimento. A este respeito,
Não nos esqueçamos: “a
Einstein já profetizava: “Temo o
simplificação é a barbárie do
dia em que a tecnologia venha
pensamento; complexidade,
se sobrepor à interação humana;
a civilização das Ideias”.
teremos uma geração de idiotas”. Dizia também: “Duas coisas são
Tem-se tornado preocupante o
infinitas: o Universo e a imbecilidade
estado lamentável de esfacelamento
humana. Da primeira tenho dúvidas”.
do saber. Surge por toda parte a exigência de se instaurar pelo menos
Ora, um saber em migalhas revela
um diálogo ecumênico entre as
uma inteligência esfacelada.
disciplinas científicas.
O desenvolvimento da
Porque ninguém mais parece
especialização, com todos os
entender ninguém. Mas essa
seus inegáveis méritos, dividiu
exigência apenas revela a situação
ao infinito o território do saber.
patológica em que se encontra
Cada especialista ocupou, como
nosso saber. A especialização sem
proprietário privado, seu minifúndio
limites culminou numa fragmentação
de saber onde passou a exercer,
crescente do horizonte
ciumenta e autoritariamente, seu
epistemológico. Chegamos a um
minipoder. Ao destruir a cegueira
ponto em que o especialista se
do especialista, o conhecimento
reduziu ao indivíduo que, à custa
interdisciplinar recusa o caráter
de saber cada vez mais sobre cada
territorial do poder pelo saber.
vez menos, terminou por saber
Substitui a concepção do poder
tudo (ou quase tudo) sobre o nada,
mesquinho e ciumento do
em reação ao generalista que sabe
especialista pela concepção de
quase nada sobre tudo. Ele é alguém
um poder partilhado. O espírito
que possui grandes lacunas em sua
interdisciplinar pressupõe que
ignorância. Em 1934, o poeta T. S.
reconheçamos: “o coração tem
Eliot já dizia: “Onde está a sabedoria
razões que a Razão desconhece”.
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Possuímos qualidades de coração,
ter fome. Este saber mofado,
entusiasmo e maravilhamento
armazenado nessas “penitenciárias
que representam as raízes da
centrais” da cultura (as instituições
inteligência. E devemos renunciar, se
de ensino), além de ser indigesto
não ao desejo de dominação pelo
e nocivo à saúde espiritual, passa
saber, pelo menos à manipulação
a ser propriedade de pequenos
totalitária do discurso da disciplina.
mandarinos dominados pelo espírito
Não podemos dialogar com quem
de concorrência e carreirismo.
erige em absoluto a verdade que defende. O especialista tenta impor
É por isso que o interdisciplinar
a causa de sua especialidade como
provoca atitudes de medo e
se fosse a resposta a todo por quê;
recusa. Porque constitui uma
ou identificar seu discurso com
inovação. Como todo novo,
a origem de tudo. Este instinto
incomoda. Porque questiona o já
teológico é muito celebrado nas
adquirido, o instituído, o fixado
capelas da ciência: colóquios,
e o aceito. Se não questionar,
simpósios ou congressos.
não é novo, mas novidade. O conservadorismo acadêmico tem
De um modo geral, repete-se que
um medo pânico do novo que
o futuro pertence às pesquisas
põe em questão as estruturas
interdisciplinares. De fato, são muito
mentais, as representações coletivas
difíceis de ser organizadas. Por
estabelecidas, as ideias sobre o
causa de ignorâncias recíprocas
mundo, a educação e a boa ordem
por vezes sistemáticas. Em nosso
das coisas. O que se encontra em
sistema escolar, encontram-se
jogo, no fundo, é certa concepção
ainda relegadas ao ostracismo. Os
do saber: o modo de se conceber
arraigados preconceitos positivistas
sua repartição e o processo de seu
cultivam uma epistemologia da
ensino. Porque o interdisciplinar
dissociação do saber. Sob esse
aparece como um princípio novo
aspecto, ensina-se um saber
no processo de reformulação e
bastante alienado e em processo
racionalização, não só das disciplinas
de cancerização galopante. Seus
científicas, mas das estruturas
horizontes epistemológicos são
pedagógicas de seu ensino.
demasiado reduzidos. Ensina-se um saber fragmentado que constitui
Lamentamos que em nosso
um fator de cegueira intelectual. As
atual sistema educacional seja
escolas estão mais preocupadas
praticamente inexistente a prática
com a distribuição de suas fatias
interdisciplinar. O que existe são
de saber (ração intelectual) a
encontros multidisciplinares: frutos
alunos que nem mesmo parecem
mais da imaginação criadora e
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combinatória de alguns sabendo
obstáculo entre outros. A famosa
manejar conceitos e métodos
cabeça bem feita, arrumada,
diversos do que algo propriamente
estruturada, organizada e objetiva,
instituído e institucionalizado.
não passa de uma cabeça mal
Mesmo assim realizam-se como
feita, fechada, produto de escola,
práticas de indivíduos abertos e
modelagem e manipulação. Trata-
curiosos, com o sentido da aventura
se de uma cabeça que precisa
e sem medo de errar; de indivíduos
urgentemente ser re-feita. O espírito
que não buscam nenhum porto
interdisciplinar ajuda a refazer essas
seguro, mas se afirmam e se definem
cabeças mal-feitas, pois cultiva
por um solene antiautoritarismo e
o desejo do enriquecimento por
um contundente antidogmatismo.
enfoques novos e o gosto pela
Vejo no dogmatismo de um
combinação das perspectivas;
saber definitivo, acobertado pela
ademais, alimenta a vontade de
etiqueta “objetivo” ou pelo rótulo
ultrapassar os caminhos batidos e os
“verdadeiro”, o sintoma de uma
saberes adquiridos. Não nascemos
ciência agônica. A este respeito,
com cabeças “desocupadas”, mas
faço minhas as palavras de F.
inacabadas. A escola e a sociedade
Jacob: “Não é somente o interesse
pretendem ocupá-las pela instrução
que leva os homens a se matarem.
e pela linguagem, pela pedagogia
Também é o dogmatismo. Nada é
entupitiva. Donde a necessidade
tão perigoso quanto a certeza de ter
de se psicanalisar os educadores a
razão. Nada causa tanta destruição
fim de que se tornem agentes que
quanto a obsessão de uma verdade
despertem, provoquem, questionem
considerada como absoluta.
e se questionem, e não se reduzam
Todos os crimes da história são
ao papel ridículo de disciplinadores
consequência de algum fanatismo.
intelectuais, capatazes da
Todos os massacres foram realizados
inteligência ou revendedores de
por virtude: em nome da religião
um saber-mercadoria sem as
verdadeira, do acionalismo legítimo,
técnicas do marketing, sendo pagos,
da política idônea, da ideologia justa;
e mal pagos, para responder a
em suma, em nome do combate
questões que ninguém lhes coloca.
contra a verdade do outro, do
O professor que não cresce, não
combate contra Satã”.
estuda, não se questiona e não pesquisa deveria ter a dignidade
Ora, um saber que não se questiona
de se aposentar, mesmo no início
constitui um obstáculo ao avanço
da carreira: já é portador de uma
dos saberes. A pretensa maturidade
paralisia intelectual ou esclerose
intelectual, orgulho de tantos
precoce. Max Weber nos lembrava:
sistemas de ensino, constitui um
assim como o sacerdote rotiniza a
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mensagem do profeta, o professor
catalisadores e núcleos de inovação.
rotiniza o discurso do pesquisador,
Mas como o interdisciplinar
dele fazendo desaparecer o
constitui um fator de transformação
fundamental: o problema, tal como
capaz de restituir vida às nossas
foi posto pelo criador. Deveria
esclerosadas instituições de ensino,
também aposentar-se o que
alguns obstáculos precisam ser
prefere as respostas às questões ou
superados: a situação adquirida
ensinar a pesquisar. Tinham razão
dos “mandarinatos” no ensino
os estudantes quando escreveram
e na pesquisa (inclusive na
nos muros de Paris (maio de 68):
administração; cargos ocupados
“pesquisadores que pesquisam,
pelos medíocres); o peso da rotina
encontramos; pesquisadores que
e a rigidez das estruturas mentais;
encontram, procuramos”. Balzac já
a inveja dos conformismos e
havia profetizado: “Crie e invente,
conservadorismos em relação às
e morrerás perseguido como
ideias novas que seduzem (ódio
criminoso; copie e imite, e viverás
fraterno); o positivismo anacrônico
feliz como um idiota”.
que, preso a um ensino bastante dogmático, encontra-se à míngua
Mas é ilusório pensar que uma lei
de fundamentação teórica; a
ou medidas administrativas possam
mentalidade esclerosada de um
colocar um paradeiro a hábitos tão
aprendizado por acumulação; o
arraigados e a estruturas mentais
enfeudamento das instituições
solidamente estabelecidas. Donde a
(“departamentalização”); o
necessidade de se criar instituições
carreirismo buscado sem
dotadas de estruturas flexíveis,
competência; a ausência de crítica
capazes de absorver conteúdos
aos saberes adquiridos, etc.
novos e integrar-se em função dos verdadeiros problemas. E de adotar
Todavia, o interdisciplinar não pode
métodos fundados, não em táticas
ser praticado sem o cumprimento de
e estratégias de distribuição dos
certas exigências: a criação de uma
conhecimentos estocados, mas no
nova inteligência e de uma razão
exercício de aptidões intelectuais e
aberta capazes de formar uma nova
de faculdades psicológicas voltadas
espécie de cientistas e educadores
para a busca do Novo.
utilizando uma nova pedagogia e ousando pensar de outra forma.
Mas nada será feito de durável
Por isso, o candidato a ingressar
se não estiver fundado na
nessa aventura deveria preencher
adesão apaixonada de alguns
os seguintes pré-requisitos: ter a
e em experiências inovadoras
coragem de fazer a seguinte prece
desempenhando o papel de
ao Pai, “Fome nossa de cada dia nos
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daí hoje”; ter a coragem de devolver
um eclipse quase total, em grande
à razão sua função turbulenta e
parte, causado pela onda crescente
agressiva; ter a coragem de, no
das privatizações, da despolitização
domínio do pensamento, fazer da
e do individualismo avassalador.
imprudência um método; saber
Um sintoma concomitante: a
colocar questões (não só buscar
atrofia da imaginação política e
respostas) e não ousar “pensar
o empobrecimento intelectual de
antes de estudar”; estar consciente
nossas lideranças.
de que ninguém se educa com ideias alheias; ter a coragem de
Sócrates dizia: não posso deixar
sempre fornecer à sua razão
de filosofar, pois uma vida sem
razões para mudar; não cultivar o
exame não merece ser vivida.
gosto pelo “porto seguro” ou pela
Donde a necessidade de aceitarmos
certeza do sistema, porque nosso
uma razão aberta, o que implica
conhecimento nasce da dúvida e
admitirmos, como racionalmente
se alimenta de incertezas; não fazer
necessária, sua “desdivinização”.
concessões ao Saber, etc.
Só uma razão absoluta, fechada e autossuficiente é tão intolerante
Numa época de conservadorismo
que não consegue dialogar com o
como a nossa, precisamos ter a
irracional e o suprarracional. Por
coragem de: opor-nos a ela; ter
isso, a transformação de nossa
uma visão crítica do neoliberalismo;
sociedade é inseparável do “auto-
não ter medo de organizar nossa
ultrapassamento” da Razão. O que
esperança e de resgatar as utopias.
estou querendo dizer é que o sonho
Porque nosso conhecimento deve
transdisciplinar não somente nos
aparecer como a reforma de uma
ajuda a desmontar metodicamente
ilusão e uma retificação continuada.
o velho edifício da razão fechada,
Claro que navegar é preciso. E viver,
fonte de “verdades” acabadas e
muito mais preciso ainda. Mas se
absolutas, de visões dogmáticas e
não navegarmos com uma bússola
moralistas do mundo que alimentam
na mão e um sonho na cabeça,
os renascentes integrismos e
ficaremos condenados à rotina do
fundamentalismos, mas a nos
sexo, da droga e do credit card. E o
libertarmos do medo, inclusive do
ideal de vida proposto à juventude
medo de nossos próprios desejos.
(viciada em divertimento, ou melhor, em infotenimento) passará
Claro que o verdadeiro Topos
a ser apresentado como o mais
(lugar) do transdisciplinar ainda
compulsivo consumismo e vivido
não existe em nenhum mapa-múndi
no mais vazio niilismo. Os projetos
do saber. É um lugar inteiramente
de autonomia individual sofrem
u-tópico: transcende nossos
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conhecimentos. Por vezes aparece
para responder, racional e
como o resultado de um desejo
objetivamente, as questões
de tipo sentimental ou filosófico,
colocadas por essas três instâncias.
ideológico ou social, poético
Piaget já dizia nos anos 70, ao
ou espiritual. Tendo como fonte
reconhecer a importância da
paradoxal o sonho de compreensão
Filosofia para os cientistas:
dos resultados gerais das ciências,
o cientista que não tiver uma
aparece como a exigência de uma
sólida cultura filosófica tem um
necessidade histórica: não só de
câncer incurável. E acredito que
uma reconciliação entre o Sujeito e
seria correto dizer: nos dias de
o Objeto, entre o homem exterior
hoje, o Filósofo, o Teólogo ou
e o interior, mas de uma tentativa
qualquer outro Intelectual que
de recomposição dos diferentes
não tiver uma sólida cultura
segmentos de nossos atuais
científica, também tem um câncer
conhecimentos.
incurável! Por isso, não devemos nos esquecer da importância das
Mas, atenção! Sem os filósofos,
três características fundamentais
os expertocratas, por mais
da visão transdisciplinar: a do rigor
competentes que sejam, ficariam
na argumentação nos alerta para a
embaraçados para responder a
proteção que precisamos sempre
questão do programa kantiano:
ter contra os eventuais desvios;
“o que devo fazer? ” Se o Cosmos
a da abertura nos impulsiona a
grego foi liquidado pela ciência
estarmos sempre dispostos a aceitar
moderna, e se a Natureza não pode
o desconhecido, o inesperado e
mais ser considerada como um
o imprevisível; a da tolerância nos
modelo harmonioso permitindo-
permite sempre reconhecer as ideias
nos decifrar as finalidades morais,
e verdades contrárias às nossas.
compete à filosofia moral, política e social responder a essa questão:
Porque, como já dizia Heráclito
como devo me comportar com
(séc. VI a.C.), “a mais bela harmonia
justiça em relação aos outros?
nasce das diferenças”.
Não nos esqueçamos de que os saberes filosóficos, artísticos e religiosos constituem os melhores laboratórios a partir dos quais podemos contemplar a experiência humana em sua totalidade. Porque a Filosofia, as Artes e a Religião são as três antenas do Saber. A ciência chega sempre atrasada
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AGRADECIMENTOS Comunidade de Ciganos Guiemos Kalons - MG Comunidade Quilombola de Mangueiras - MG Comunidade Quilombola de Monte Alegre - BA Comunidade Velha Boipeba - BA Kรกtia de Alexandria
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ISBN:
978-85-8239-017-7