6 minute read

Pinhole

Next Article
Rua Aurora

Rua Aurora

46 Por que uma rua é importante? Por que uma rua? Importante para quem? Se Aurora fosse uma mulher, como você a descreveria, imaginaria? É possível relacionar-se afetivamente na cidade? Você se sente seguro na Aurora? Qual qualidade você pontuaria na rua Aurora?

As saídas para trabalho de campo ocorreram de diversas formas e com propósitos distintos. Houve saída cujo objetivo era o de caminhar por todo o perímetro da rua Aurora apenas anotando as considerações qualitativas dos espaços percorridos: temperatura, cores, sons, segurança, estética e outras características. Em outros momentos o objetivo foi abordar os citadinos: trabalhadores, moradores, passantes e coletar seus relatos e vivências relacionadas à Aurora. E por fim as saídas exclusivamente fotográficas, registrando diferentes pontos da rua. O instrumental utilizado foi: caderneta para anotações, gravador de voz, máquina pinhole e celular.

Advertisement

Rua Aurora

Localizada no centro da cidade de São Paulo, caracteriza-se pela heterogeneidade dos ocupantes, das edificações locais e por ser uma região altamente sexualizada, alocando grande concentração de estabelecimentos comerciais e pontos de prostituição. Está situada próxima ao Largo do Arouche, região de forte expressão e resistência LGBTQ. É uma rua extensa, e seu início se dá na Luz, expandindo-se até a Praça da República, atravessando as seguintes ruas: Andradas, Santa Ifigênia, Rio Branco, Guaianazes, Conselheiro Nebias,

São João e Vieira de Carvalho. Ao longo do percurso a paisagem evidencia construções arquitetônicas com sacadas balaustradas, rococós, brasões, portões de ferro com arabescos, dentre outras peculiaridades. Cada quarteirão são mundos em convivência, sendo possível encontrar, em um curto espaço percorrido, restaurantes variados como o Bar do Leo, Riconcito Peruano, e também hotéis, estacionamentos, prédios residenciais, cortiços, boates, saunas, motéis, lojas de aparelhagem eletrônica, farmácias, papelarias, condomínios decorrentes da especulação imobiliária, loja de discos, lojas de tecido, metrô e editoras como a Edições Aurora, que recentemente se mudou para o Bom Retiro. A rua Aurora, em meados de 1810, era nomeada de Santo Elesbão, em homenagem ao Santo e à igreja de Santa Ifi gênia. Apenas em 1865 fi rmou-se o nome de Aurora em virtude dos êxitos alcançados pelo Exército Brasileiro na Guerra do Paraguai. Aurora simbolizava o presságio de uma nova era, de tempos melhores. Na região existem mais duas ruas adjacentes, Triunfo e Vitória, formando juntas uma trinca que potencializa as condecorações das conquistas contra o Paraguai. As três ruas tiveram seus nomes ofi cializados nos órgãos públicos no mesmo período 24 de agosto de 1916/Ato n.º972.

Imagem do Google Maps.

47

48

Pinhole

Uma caixa de fósforos, um instrumento e um dispositivo. “Mais um coletivo”, desacreditados, imaginários

A escolha do processo fotográfico Pinhole para o registro das imagens da deriva na rua Aurora deu-se por meio de uma oficina realizada no Sesc 24 de Maio, ministrada por um grupo de três mulheres: Carolina Rolim, Iza Guedes e Mayara Maluceli, educadoras e artistas visuais que trabalham com fotografia e vídeo e são fundadoras de um coletivo intitulado + UM Coletivo. A proposta da oficina era a de desenvolver uma máquina pinhole utilizando como estrutura uma caixa de fósforos. O uso da pinhole agrega ao conceito estrutural do projeto, pois opera no campo experimental e subjetivo no que tange a captura da imagem. É um processo fotográfico artesanal que opera com a precariedade, por seu baixo custo de produção e uso de materiais acessíveis economicamente, e com inesperado pois, sendo uma técnica manual, não há um controle determinante dos resultados obtidos. O conjunto de variáveis é inesgotável e incontrolável. Entretanto é um instrumento capaz de produzir imagens com características tão próprias e tão peculiares. Durante o registro das imagens a sensação de quem opera o instrumento é de insegurança e maravilhamento, pois tem-se um objeto totalmente naturalizado no cotidiano, uma caixa de fósforos, cuja mecânica do engenho, pinhole, foi por você construída, o maravilhamento surgindo a cada giro do filme sob autoquestionamentos: será que houve a captura? Será que houve luz suficiente? Será que eu consegui o enquadramento? Quantas boas cenas foram perdidas, quantos vazios nos frames, uma angústia de não ter revelado imagens únicas das quais a única testemunha daquelas composições foi você.

O que interessa não é a perfeição, mas sim essa imagem ruidosa e imprevista. Imagem captada na forma mais simples, subvertendo um discurso da velocidade máxima, do altamente sofi sticado e tecnologicamente desenvolvido. (MAUÉS apud HERKENROFF, 2008, p.35).

O objetivo era o de optar por uma técnica de registro que comungasse da mesma perspectiva experimental da deriva, ou seja, a subjetividade do caminhante, a subjetividade do operador do dispositivo. A fotografi a pinhole utiliza-se da câmera obscura para registrar em material fotossensível as imagens por ela capturadas. Como a imagem é produzida por furos, é bem menos luminosa e focal que as produzidas por lentes. Os tempos de exposição podem durar segundos ou até horas. Conforme a experiência, cada indivíduo constrói um parâmetro de abertura/exposição para capturas em diferentes ambientes com diferentes intensidades de luz. O pinhole foi um invento do século XVIII. Seus criadores Robert Boyle e Hobert Hooke, ambos ingleses, tinham por fi nalidade adaptar o fenômeno da câmera obscura para uma escala menor, facilitando assim o trabalho de artistas profi ssionais. Uma prática de registro que recebeu muitos adeptos pictorialistas no fi nal do século XIX, proporcionando aos artistas e fotógrafos uma fuga das técnicas fotográfi cas altamente fi gurativas e fi dedignas do real que predominavam até então.

49

50 Nas pinholes a imagem é formada pelo contato direto da luz com o material fotossensível. A luz então passa pelo orifício, o furo, e não necessita de nenhum condutor para que os raios cheguem ao interior da câmera. Ao contrário do que acontecia com a pintura ou com as câmeras convencionais, não existe nada que se interponha entre o objeto inicial e sua representação, nem a mão do pintor, nem as lentes objetivas, exceto a subjetividade do operador. O fato curioso que ocorreu inúmeras vezes nas saídas para campo para fotografar com a pinhole foi o estranhamento e curiosidade dos citadinos perante aquele objeto que prometia fotografar de igual forma que um aparelho digital, embora com suas limitações processuais. Após muitos transeuntes me abordarem e se aproximarem movidos por curiosidade pelo objeto, logo compreendi que de algum modo a pinhole exercia uma função de dispositivo que desencadeava relações que extrapolavam o estranhamento e a distância dos sujeitos e promovia encontros e aproximações. Em um texto do teórico italiano Giorgio Agamben, intitulado O que é o contemporâneo e outros ensaios, o autor afirma que “o dispositivo é, antes de tudo uma máquina que produz subjetivações. [...]. Na raiz de todo dispositivo está um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo. (AGAMBEN, 2009, p.29). No momento em que Agamben pontua o dispositivo como uma máquina que produz subjetivações, torna-se claro a relação da pinhole com a definição de dispositivo, produtor de subjetivações, pois tanto a captura da paisagem passa pelo fluxo da subjetividade como a narrativa que o operador relata para o seu interlocutor pode até beirar o fantástico, já que se sabe que o outro está num estado de curiosidade e desconhecimento da técnica e pode ser facilmente conduzido por um discurso irreal, no alcance deste desejo demasiadamente humano de felicidade, no caso, de uma narração que o seduza.

This article is from: