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Experiência que vira arte
30 A presença física do homem num determinado local, mapeado ou não, e várias das percepções que ele tem ao atravessá-lo é uma forma de transformação da paisagem, que não deixa sinais tangíveis, mas modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si, tirando-o de uma zona de distanciamento e transformando-o em lugar, uma zona próxima, na qual o sujeito afetou e foi afetado. “O caminhar produz lugares” (CARERI, 2010, p.51). Segundo Careri, é uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território (CARERI, 2010, p.51). O que se pretende é indicar o caminhar como um instrumento estético com potencialidade de descrever e transformar os espaços que muitas vezes apresentam uma natureza que ainda deve ser compreendida e preenchida de significados. O caminhar promove a aproximação de quem caminha com o espaço a ponto de o mesmo se metamorfosear em lugar, pois há um contato com quem ali vive, trabalha e transita, além das edificações e da arquitetura circundante existirem sujeitos produtores de estórias e dispositivos de afeições. A experiência da deriva captura o visível e o invisível da paisagem, forjando uma arte do cotidiano.
A natureza da experiência
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Para o pesquisador Tuan, o modo que o homem possui para vivenciar e explorar um espaço desconhecido é a experiência. Uma palavra que sugere inúmeras maneiras concretas e abstratas de se relacionar e apreender estímulos para a construção de seus próprios conceitos e ideias sobre o real. As sensações adquiridas na exploração são rapidamente qualificadas pelo pensamento, calor, frio, prazer, dor, entre outros.
4 Termo usado pelo autor. Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira Indireta de simbolização. (TUAN, 1983, p.9).
A experiência está voltada para o mundo exterior. Vivenciar experiências provoca o sentir. Segundo Paul Ricoeur, o sentimento é sem dúvida intencional, é um sentimento por alguma coisa. Por um lado, indica qualidades sentidas quanto às coisas, pessoas, ao mundo, e por outro evidencia a forma pela qual o eu é afetado, intimamente. “No sentimento, uma intenção e uma afeição coincidem em uma mesma experiência”. (Ricoeur, 1967, p.127).
Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento. (TUAN, 1983, p.10).
Ao se dizer que um homem ou uma mulher são experientes, culturalmente se compreende por indivíduos que viveram muitos acontecimentos que os tornaram maduros, ensinando-os a extrair vantagens perante suas próprias vivências. Logo, a experiência é formada por sentimento e pensamento. A oposição entre razão e emoção é uma tendência e como relata Yu - Fu, “de fato, estão próximos às duas extremidades de um continuum4 experiencial, e ambos são maneiras de conhecer. “ (TUAN, 1983, p.11).
Experienciar é vencer os perigos. A palavra experiência provém da mesma raiz latina (per) de “experimento”, “experto” e “perigoso”. Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o
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ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O indivíduo é compelido a isso. Está apaixonado, e a paixão é um símbolo de força mental. (TUAN, 1983, p.11).
Para que a experiência aconteça é preciso se deslocar do conhecido e adentrar novos territórios, adestrar, minimamente, o medo, a falta de referências dos locais explorados, a ausência de relações afetivas e estar apto a promover expansões na dicotomia espaço / externo, lugar / interno.
Espaço que vira Lugar. Movimento que vira Pausa. Experiência que vira Arte
Tuan pontua que Espaço e Lugar se relacionam a ponto de um tornar-se o outro, pois na experiência o significado de espaço frequentemente se funde com o de lugar. O que começa como espaço indiferenciado, afetuosamente passivo e desconhecido transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor, que construímos laços afetivos, que o dotamos de valor. As ideias de espaço e lugar não podem ser definidas uma sem a outra.
A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço e vice-versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que permite movimento, então o lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se transforme em lugar. (TUAN, 1983, p.6).
O espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. (TUAN, 1983, p.61). Permanece aberto, sugere futuro e convida para ação. Entretanto ser aberto e livre implica em
estar exposto e vulnerável. O espaço aberto não tem caminhos trilhados, nem apresenta uma sinalização antecipando o que está por vir. Não tem padrões estabelecidos que revelem algo, é como estar diante de uma tela em branco na qual se pode compor qualquer significado. Já o espaço fechado e humanizado é lugar, podendo-se claramente fazer alusão ao lar, referência de segurança e abrigo, versus uma rua ou local desconhecido. “Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade “ (TUAN, 1983, p.61). O pesquisador questiona o leitor sobre quais seriam os órgãos sensoriais e experiências que permitem aos seres humanos ter sentimentos intensos pelo espaço e pelas qualidades espaciais.
Resposta: cinestesia, visão e tato. Movimentos tão simples como esticar os braços e as pernas são básicos para que tomemos consciência do espaço. O espaço é experienciado quando há lugar para se mover. Ainda mais, mudando de um lugar para outro, a pessoa adquire um sentido de direção. Para frente, para trás e para os lados diferenciados pela experiência, isto é, conhecidos subconscientemente no ato de movimentar-se. O espaço assume uma organização coordenada e rudimentar centrada no eu, que se move e se direciona. (TUAN, 1983, p.13).
O movimento, olfato, tato, visão e paladar formam um conjunto de modos que possibilitam o sujeito a interagir, conhecer e criar relações com o espaço a fim de transpô-lo para lugar. Entretanto não basta apenas tocar no asfalto ou nas edificações, estar exposto ao ambiente sonoro do local, caminhar nas extensões da calçada: é preciso estabelecer conexões, que são constituídas ocasionalmente por meio de um cruzamento da bagagem cultural e subjetiva de cada indivíduo com algum estímulo ou acontecimento do local, pois
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5 Quatro anos após o lançamento de seu Manifesto do
Surrealismo, que marca o surgimento desse movimento, André Breton publicou, em 1928, Nadja. Uma das obras mais representativas do Surrealismo. a partir do momento em que o sujeito é afetado pelo espaço ele se reorganiza dentro de si como lugar.
Muitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da mente. Uma das funções da arte é dar visibilidade a experiências íntimas, inclusive às de lugar. (TUAN, 1983, p.180).
Breton, em sua obra literária Nadja5, vai trançando suas memórias afetivas e passionais com as ruas, praças e comércios de Paris expondo os seus lugares na cidade e o modo como suas vivências estavam impressas na arquitetura e na paisagem. A narrativa descreve Paris na ótica da experiência subjetiva do escritor.
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