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5.1.7 Vídeo

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Conclusão

Conclusão

Fig. 161 Figura 159 a 161 -Andre Araujo, Livro artista Fluxo-floema, 2018.

5.1.7 - VÍDEO

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Agoraapresento o trabalho que considero a síntese intermidiática de toda a série NADANADA. O vídeo NADANADA é uma colagem de tudo o que foi apreendido acerca da construção da imagem do corpo nas obras de Hilst e de Camargo, e incorpora também os trabalhos em diversas linguagens que produzi.

O vídeo baseia-se na ideia de fragmento, que permeia toda esta tese. Como já apresentei antes, o fragmento traz uma nova possibilidade, um devir, por assim dizer. O fragmento está sempre na horizontalidade de uma nova conexão. O fragmento é rico, múltiplo, pleno, e é a base deste vídeo.

Foi exatamente a questão da fragmentação que me inspirou a produzir o vídeo NADANADA, fazendo uma aproximação dos trabalhos de Hilst e Camargo com os procedimentos metodológicos que Jean-Luc Godard utilizou na série Histoire(s) du

Cinema (1988). Além da fragmentação estilística, a apropriação e a indefinição de gêneros também aproximaram o vídeo de Godard das obras da escritora e do pintor. Inspirados nos projetos da criação coletivaa fragmentação e a colagem, além do automatismo, apresentam-se como procedimentos principais das práticas surrealistas e outras vanguardas. "Na medida em que tornava plural a atividade criadora a colaboração representava, por si só, uma combinatória análoga à colagem." (MORAES, 2002, p. 47) A palavra surrealismo, segundo Breton:

Defino-a, a seguir, de uma vez por todas: SURREALISMO: s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral. (BRETON, 2001, p. 5758)

Identifiquei alguns desses procedimentos presentes no livro de Hilst e nas pinturas de Camargo, como o fluxo de consciência em Fluxo-floema e as pinturas automáticas de Iberê Camargo. Entretanto, vale ressaltar que o acaso tão presente no fluxo de consciência e no automatismo psíquico não é um acaso qualquer. O acaso muitas vezes passa despercebido, é coisa que não podemos prever e que não faz parte das coisas que nos interessam. O acaso nas artes, por mais aleatório ou induzido, sempre faz parte do que na verdade procuramos. Nós criadores temos uma biblioteca cerebral dos nossos principais interesses. É o que os surrealistas chamavam de "acaso objetivo".

O acaso objetivo é o tipo de acaso que ocorre quando temos um olhar treinado para encontrar imagens do nosso interesse. É como na frase de Didi-Huberman, acerca desse olhar:

é como andar em uma ruína. Quase tudo está destruído, mas resta algo. O importante é como esse nosso olhar põe esse algo em movimento. Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender. (DIDI-HUBERMAN apud ALMEIDA, 2015, p.155)

Este pensamento passa pela a ideia de colecionismo. Ao colecionar imagens e objetos, o artista coletorretira o objeto ou a imagem de suas funções utilitárias e lhe atribui um outro caráter que é estabelecido com os demais componentes da coleção.

Em Histoire(s), Godard lança mão de um grandearquivo de imagens, sons e textos que são ressignificados ao serem postos lado a lado com outros fragmentos, criando assim um diálogo, que é o que interessa observar.

Como Aby Warburg (1866-1929), que já apresentei, que em seu Atlas de imagens mnemosyne (1924-1929) propõe, ao confrontar diversas imagens, uma nova forma de contar a história da arte, que até então era abordada de forma linear, cronológica e tinha como modelo apenas o canônico. Warburg acreditava que as imagens das "belas artes" dialogavam e se relacionavam com todos os elementos de uma época, gerando assim uma intrincada rede, na qual obras e artistas exercem influência uns sobre os outros. Warburg buscou produzir conhecimento não através de deduções lineares, mas de acordo com as afinidades energéticas e espirituais que ele descobria neste diálogo. Um método que mostra um pensamento denso, em espiral, e que sugere processos de montagem e espacialização, que foi e é muito citado e apropriado por artistas, curadores e pensadores contemporâneos, e que se funda no intervalo e na diferença e não na identidade e no novo.

Godard, em Histoire(s), parece apropriar-se desta metodologia ao reunir em seu vídeo fragmentos do escrito, do falado, do sonoro através de um cruzamento incessante desses diferentes materiais com elementos imagéticos das mais variadas ordens.

O processo de produção do vídeo NADANADA também perpassa a questão da apropriação de materiais de diferentes códigos e origens. Este procedimento remete à antropofagia cultural presente no Manifesto Atropofágico (1928) de Oswald de Andrade. Wagner Moreira nos explica que essa antropofagia:

se refere a um procedimento de apropriação geral que deve ser refinado de acordo com a perspectiva ideológica daquele que devora o outro. Portanto, há o reconhecimento de que todo discurso é uma expressão de poder, além de haver a legitimação do ato de se apropriar do que lhe interessa para um uso próprio que, não necessariamente, deva obedecer o discurso original. A antropofagia cultural é uma espécie de contrabando de conceitos, imagens e procedimentos artístico-

culturais que resultam em um entendimento da estética enquanto exercício político. (MOREIRA, 2018, p.216)

Outro fator importante a ressaltar no procedimento criativo do vídeo NADANADA é sem dúvida a questão da montagem. As imagens de diferentes fontes e originárias de procedimentos variados, que jamais intentaram existir juntas, quando postas lado a lado, em um mesmo plano, criam um diálogo que é o que interessa na montagem. "Montagem. Esse aspecto precisa ficar oculto, pois é algo muito importante: consiste em relacionar as coisas entre si e fazer com que as pessoas vejam as coisas..." (GODARD, 1989 p.12) Para Moreira (2018) na montagem, "chama-se a atenção para seu procedimento de justaposição descontínua que, por vezes, gera um grau de tensão acentuado na imagem produzida." (MOREIRA, 2018, p. 227)

O projeto do vídeo NADANADA consiste em aplicar o conceito de tradução intersemiótica, baseado nas identificações da construção da imagem do corpo, extraídas do livro Fluxo-floema de Hilda Hilst e também das pinturas de Iberê Camargo . Este trabalho foi desenvolvido a partir das ideias de montagem, colagem, espacialização e intervalo, e utilizando imagens coletadas das mais diversas fontes, como imagens do site Youtube, imagens de acervo de emissoras de televisão, as quais tive acesso, imagens cedidas por outros artistas e imagens que eu produzi, numa tentativa permanente de re-orientação, de apropriação destas imagens enquanto sistemas fragmentários e incompletos. O artista contemporâneo, que trabalha com montagem de imagens e sua apropriação, ressignificando suas verdadeiras raízes, trabalha como um coletor de imagens, como Levi Strauss (19082009) conceituou: um bricoleur de imagens.

Segundo Moreira (2018), essas imagens, criadas a partir de uma qualidade metafórica, apresentam um traço fundamental: chamam o expectador para uma nova leitura pois, como a imagem do artista bricoleur tem interpretações livres, o expectador faz sua própria montagem. Neste caso, é possível poetizar visto a liberdade e as possibilidades da proposta. O expectador é convidado a fazer diversas reflexões acerca do belo, do feio, do grotesco, do abjeto, da morte e de Deus.

Também questões políticas, de crítica e ironia sobre percepções e sensações do corpo.Nesse momento tudo pode se tornar material para a obra de arte, e a própria arte é questionada sobre sua funcionalidade, comunicação, interpretação e autoria. Trata-se de um híbrido, um monstro, uma criação feita de fragmentos distintos para formar um outro.

Essa imagem de alto grau ficcional [...] nesse sentido da metáfora deve-se destacar o movimento que ela provoca na percepção de um objeto, o que instaura um processo de condensação e de um deslocamento do mesmo em relação ao seu modo original de ser percebido. (MOREIRA, 2018, p. 227)

No vídeo, imagens de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, apropriadas de entrevistas e de documentários, também aparecem descontextualizadas. Também foram incorporados outros elementos do audiovisual como músicas compostas originalmente para o projeto, músicas apropriadas de Hermam Nitsch, Villa Lobos, da banda de punk rock Olho Seco, canção de ninar finlandesa, ruídos de teclado de digitação, ruídos de animais e filmes pornográficos.

Imagens de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, apropriadas de entrevistas e de documentários,também aparecem descontextualizadas.

A imagem da palavra também é presente no vídeo,como trechos do livro de Hilst, títulos dos quadros de Iberê e um poema de Wagner Moreira, extraído do livro Solos (2015). Este livro de Moreira foi escolhido como parte do escopo verbal do vídeo NADANADA pela relação estético-criativa com o livro de Hilda Hilst, pelo seu procedimento em fluxo de consciência e pelos versos que dialogam com os contos de Fluxo-floema. O poema de Wagner Moreira aparece tanto em sua voz declamando como também escrito. A seguir, proponho uma leitura do poema:

aqui nesse tecido desejado espaço fera que se faz humores deliciosos na boca feminil que urge fricção por si adentro bela imagem a que se apresenta a minha frente balançando as pernas em ritmo sincopado esguias em seu se dar aos olhos como um anúncio de um encontro desejado no universo sem palavras escorregadias pernas belas doces em seu suor imaginável o sabor que se abre ao meiosubindo corpo adentro que chove chove o vinho licoroso raro singular a se dar inteira em cada parte fremente volúpia no espaço sedutor de uma boca posta em lábios firmes frágeis suculentos líquidos a se multiplicar boca desdobrada em beijo lento forte rijo informe dedos deslizantes pelo suor que só

chove um porque um corpo todo sem órgãos sensação palavra imagem cicatriz de imagem nó rítmico potência criadora de todas as imagens mundo todas as imagens metamorfose da mais terrena linguagem multiplicidade monstruosidade palavra imagem fragmento a alastrar o fogo o sangue ágil furor ressoando descontínuo multiplicidade ressonância heterogênea seiva contagiante alucinante ação corpórea terror poder terror irredutível sangue corpo água mundo ar sopro voz fluxo só para bailar terrível e dizer o por derreter junto pele osso carne o corpo exposto no não lugar qualquer coisa que mexe dentro louca coisa mexe sem ser coisa nenhuma porque corpo na sua mínima sutileza de estar por um triz de outras dimensões linha de força em fuga reverberante por aí corpo em seus estados corpo solto o mar nessa quimera revirar o corpo na sua mínima sutileza de estar por um triz simplesmente corpo não coisa exposto fluxo fiama floema fiama fio fama toda a fala que é fragmentária linguagem estranha o seu gosto pela experiência horror no sulco votado à devastação para traçar as mutações a deformação condição do que se quer arte a floresta de uma lógica cheia de raízes secundárias que nunca esteve na vertical a não ser por um fortuito acaso momentâneo em um lance fortuito como os dados o corpo por si mesmo um jogo erótico entre os fluídos que transladam por todos os orifícios possíveis e imagináveis fluxos a jorrarem por aí como um gato de uma perna só a arrastar em escapada de um cão feroz espumante que nunca o alcança sem perdê-lo de vista vizinha que me repele e atrai em um jogo erótico que vá a porra então tamanho poetastro e só a porra porque no cu já leva com gosto regalado se achando sade esparramando merda em um mundo a fragrância dasrosas todas e mal pode conter o cheiro adubado que lhe escorre perna abaixo ou boca afora ou mãos ao vento ou putrefato rebento no invertido costume do botar fora o que não presta pelo que digere como festa nem a besta fera se faz tão pouca coisa sombra de ruína descartada da tripa que se quer tem forca para emergir do esgoto em sua curta duração histórica mostrada pela condição democrática de que todo mundo pode ser poeta ao narrar sua micro vivência grotesca beleza mínima por um trizno fio da navalha de uma nudez que pode vir a ser a vagar em fluxo incerto toda excitação disforme que esquece que o belo horror torpor dor mônada atravessada explodida projetada desmembrada incendiada engolida vomitada escarrada fodida despedaçada gozada cheia de som nas vísceras em movimento cinematográfico corpo perdido (MOREIRA, 2015, p. 7-20)

No poema de Wagner Moreira encontramos elementos que são recorrentes no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo, no que diz respeito à construção da imagem do corpo. Pode-se notar a presença do grotesco, do abjeto, da fragmentação, das palavras de baixo calão, vísceras, uma referência direta ao fluxo e ao título do livro Fluxo-floema. É importante ressaltar que o poema de Moreira não aparece inteiro ou direto como em seu livro. Editei o poema como me interessava ressignificando diversos fragmentos deste.

Assim, nessa trama audiovisual, cuja ligação são as pesquisas de Warburg e de Godard, relaciono: imagem, texto, sons e montagens. Concebendo a montagem como instrumento de apropriação de imagens para recontar uma história através de

metáforas, que trazem a ideia do discurso da imagem, bem como suas livres leituras. Por fim, pretendo estabelecer nesta colagem, uma ligação do cinema com a arte contemporânea e a literatura, no que diz respeito à intermidialidade, promovendo assim novas leituras, novos olhares e novas significações das imagens, importantes para o artista e para o expectador que por elas é atravessado.

Pela sua proposta de montagem e edição, o vídeo NADANADA preza pela nãolinearidade e pela aleatoriedade, sugerindo ao expectador desenvolver infinitas interpretações ao acumular fragmentos, sequenciais ou não, e ressignificar as imagens, possibilitando que estas tenham sentidos variados, livre de definições e livre para interpretações.

Figura 162

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Figura 164

Figura 165

Figura 166

Figura 167

Figura 168 Figuras 162 a 168 -Andre Araujo, Frames do vídeo NADANADA, 2018

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