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Cap. 5. O corpo intersemiótico

CAPÍTULO 5 - O CORPO INTERSEMIÓTICO

Neste capítulo, apresento os resultados dos trabalhos práticos que venho realizando desde o início da pesquisa. A partir dos conceitos de tradução intersemiótica e de intermidialidade, pelo viés de um projeto artístico pessoal, em que são propostas experiências estéticas relacionadas às correspondências entre o livro Fluxo-floema de Hilda Hilst e as pinturas deIberê Camargo.

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Este capítulo se articula com os conceitos da arte contemporânea, procedimentos artísticos, linguagem e mídias, bem como seus desdobramentos com as tecnologias digitais.

As análises se voltam, primeiramente, ao ato de traduzir criativamente,com base na construção de um Atlas imagético que permite captar, apropriar e ordenar como memória visual, numerosas "imagens-documentos". Em seguida,o objeto de análise, texto ou pintura, é dirigido para experimentações suscetíveis de provocar transmutaçõesformais e semânticas nas imagens.

Segundo Julio Plaza (2003) tradução intersemiótica, ou transmutação, é aquela caracterizada por um tipo de tradução que consiste na interpretação dos signos verbais, por meio de sistemas de signos não verbais ou a transmutação de um sistema de signo para outro, como por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura, ou vice-versa. Aqui, o que ocorre é uma tradução criativa dos diálogos estéticos de Iberê Camargo e Hilda Hilst para o meu trabalho pessoal.

O processo tradutor intersemiótico sofre as influências não somente dos procedimentos da linguagem, como também dos suportes e dos meios empregados, pois cada expressão artística se transforma radicalmente pela influência dos meios de produção.E toda produção é uma sensação pessoal, já que a arte é a conversão de uma sensação em um objeto. Assim, pode-se concluir que toda arte é uma conversão de uma sensação em outra sensação. (PLAZA, 2003, p. 11)

Como premissa de um processo tradutório, após as análises das obras propostas nestatese, desenvolvi um Atlas em um arquivo digital. São imagens que evidenciam

as relações entre o livro e o universo de Hilda Hilst, e de Iberê Camargo e suas maneiras de olhar o mundo, e se revelamatravésde pequenas narrativas visuais.

Em 1924 Aby Warburg deu início a seu Atlas Mnemosyne, um trabalho ímpar no que diz respeito ao método e ao uso de imagens nas artes visuais . Até aquele momento quase ninguém tinha realizado trabalhos com fotografia. Warburg afixou mil reproduções fotográficas com grampos sobre painéis forrados de tecido preto. A última versão do Atlas Mnemosyne continha63 painéis de 170 por 140 centímetros repletos de fotografias.Depois de Warburg tornou-se urgente repensar o papel das imagens e da arte em uma necessária reformulação do ofício antropológico. Aby Warburg (1866-1929) é hoje conhecido como o pai da iconologia moderna. Foi também historiador das artes e antropólogo. O seu Atlas de Imagens Mnemosyne é, segundo seu próprio desejo, “uma história da arte sem palavras”33

A constituição de arquivos é muito praticada hoje na arte contemporânea. O pintor alemão Gerhard Richter acumulou, durante anos, imagens que funcionam como fontes potenciais para suas pinturas34 .

Figura 10935 -Abby Warburg Figura 11036 - Gerhard Richter, Atlas, 1962 a 2013 Atlas Mnemosine, painel 47, 1944 (in progress) a 1929.

33 SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. Revista Poiésis, nº 17, p. 29-51, Jul. de 2011. 34 <https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas/atlas-17677/?&p=1&sp=32>

35 Fig. 110: Disponível em: <https://warburg.library.cornell.edu/panel/47>

36 Fig. 111: <https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas/atlas-17677/?&p=1&sp=32>

Comecei a compor meu Atlas durante as primeiras leituras do livro Fluxo-floema. As pinturas de Iberê também me suscitaram outras imagens. O Atlas tem um sentido enciclopédico, alimentado por impulsos pessoais, temporários, pela pesquisa contínua da imagética do corpo, e por analogias e metáforas com as obras de Camargo e de Hilst. Além de imagens fotográficas, também reuni algumas dezenas de fragmentos de filmes e vídeos para possíveis trabalhos em movimento, como referências para animações e vídeo instalações.

Trata-se deseapropriar, filmar e fotografar o universo circunscrito da imagem do corpo nas obras-objeto desta pesquisa. Também reuni fotos de personalidades, filósofos e escritores que apareciam no decorrer das leituras. Além de imagens de obras de arte relacionadas ao universo hilstiano e iberiano. Umacoleção de imagens tomadas da internet, fotos de arquivos pessoais, fotos produzidas por mim e filmagens, que demandaramem seguidaum processo de arquivamento digital. Essa coleção se constitui um work-in-progress de fragmentos, um banco de imagens constantemente alimentado, que conta hoje com cerca de mil fotos digitais e 150 filmes e fragmentos de filmes, recolhidosem diferentes locais:na naturezaem zonas urbanas do Brasil, da Alemanha, Portugal e Estados Unidos. E em diferentes qualidades de arquivo, tanto profissionais como em baixa resolução, quando apropriadas da internet, celulares e câmeras portáteis. O ordenamento pela data, lugares e sujeitos, já confere sentido ao Atlas, sendo evidente que essa organização forma um tipo de diário de bordo das leituras, e supõem, de algum modo, uma ordem simbólica do real. Além disso organizei esses arquivos imagéticos em pastas: nomes dos contos; Hilda Hilst; Iberê Camargo e geral. Até o momento meu Atlas conta com trinta pranchas no formato 42 x 60 cm (A2).

Empreender um projeto artístico que implica num processo tradutório intersemiótico demanda um grande conhecimento do procedimento em si e dos procedimentos plásticos propostos na realização das obras. A pintura, o desenho, a gravura, a fotografia, a animação eo vídeo demandam muitos anos de experiência e prática constante. No meu caso, trabalho com esses suportes há mais de trinta anos ininterruptos. Quero enfatizar que o processo criativo de um projeto artístico depende muito do lastro imagético do artista que se propõe a realizá-lo. Levando

em consideração que, na tradução intersemiótica, tornam-se relevantes as relações entre as sensações, meios e códigos. Ou seja, as imagens suscitadas em um processo tradutor intersemiótico são imagens geradas a partir da criação livre do artista.

Figura 112-Atlas Andre Araujo.

Este trabalho discute o tema do corpo a partir de três abordagens, procurando em cada uma identificar aproximações dentro do universo das artes visuais. 1- as abordagens sobre o livro Fluxo-floema; 2-as pinturas de Iberê Camargo;3-o diálogo existente entre as duas obras que são complementares, articulam-se entre si e estabelecem dinâmicas para compreender a construção da imagem do corpo.

A primeira imagem que surge diante dessa questão é a de um corpo representado mimeticamente da natureza. Mas interessa-me as diferentes dimensões da representação dos corpos: seja ela o grotesco, o fragmento, o abjeto, o político e também as singulares linhas que demarcam um corpo, e até a própria ausência desse corpo.

Os conceitos gerais deste trabalho, incluiram a intermidialidade e a tradução intersemiótica. Para cada conceito foramnecessáriasdiferentes abordagens práticas, e para cada abordagem propus uma contextualização geral, a partir de um levantamento de trabalhos da história das artes visuais que se aproximam de diferentes tópicos relacionados ao corpo humano. Procurei destacar trabalhos de diferentes artistas que discutem o tema do corpo associado a cada um dos subtemas.

Um caderno de processo foi muito importante na criação e na construção de uma série que denominei de NADANADA, nome extraído do conto "Floema" do livro Fluxo-floema. A palavra "nada" tornou-se bastante significativa para este trabalho. No dicionário Aurélio: "nada: 1. nenhuma coisa, coisa alguma; 2. de modo nenhum, absolutamente não; 3. a não existência; 4. ninharia; 5. pessoa insignificante, seja pelo aspecto físico, seja pelo intelectual ou moral; 6. o que se opõe ao ser, em graus e sentidos diversos, não ser."

Pude observar, com base nas análises do livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo, bem como nos conceitos suscitados nesta pesquisa, a aproximação das definições da palavra "nada" com a imagética do corpo nas obras dos dois artistas, no que diz respeito à não existência, ou seja à morte. A pessoa insignificante pelo aspecto moral como forma de abjeção. Pelo aspecto físico como um corpo grotesco. Também o fragmento, se corresponde à definição de nada ao se opor ao ser, ao todo.

Com base nas imagens do Atlas que construí, criei diversos cadernos de esboços de processos. Esses cadernos foram muito importantes para nortear e projetar as criações a partir das obras pesquisadas. O caderno de processo funciona como um diáriodebordo e ele evita que ideias pertinentes,e também impertinentes,diluamse no turbilhão criativo. Pelo caderno de esboçospode-se voltar na pesquisa prática, saber onde a ideia mudou ou tomou outras características. De certa forma o caderno dá uma segurança ao artista, pois trabalhos anotados sem pretensão em um determinado momento, em outro, depois de agregadas novas ideias e conceitos, podem ser movidas com maior segurança estética.

Figura 112-Andre Araujo, Cadernos de processo, 2015 a 2019 (in progress)

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