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Abertura do Valo Grande

Igreja e área portuária, Iguape SP, anos 1930 Foto divulgação [Blog Fotos de Iguape / Domínio comum] Vapor Itaipava atracado no cais de Porto Grande, Iguape SP, 1939 Foto divulgação [Blog Fotos de Iguape / Domínio comum]

No início do século XIX, Iguape vivia seu melhor momento econômico com o Ciclo do Arroz e rivalizava com o Rio de Janeiro em importância portuária e na vida social e cultural, onde as famílias mais ricas tinham a oportunidade na cidade de prestigiar e receber espetáculos europeus de arte. A sua riqueza e ostentação eram oriundas das exportações de vários produtos agrícolas, destacadamente do famoso “arroz de Iguape”, o que ensejou a instalação no município de perto de uma centena de engenhos de beneficiamento desse produto agrícola. Todos os produtos agrícolas que chegavam ao Porto Grande (porto marítimo) eram carregados a partir do Porto do Ribeira (porto fluvial), e assim, seguiam carregadas em carroças e carroções por terra até o porto marítimo, em um percurso de cerca de 3 km, com o custo de dez réis por saca e que era considerado oneroso, ou as canoas seguiam adiante pelo Rio Ribeira entrando no oceano através de sua foz e depois seguindo o percurso pelo Mar Pequeno até o porto marítimo. Para facilitar e baratear o transporte do Porto do Ribeira ao Porto Grande, os vereadores da época com apoio dos agricultores, decidiram abrir um canal ligando o Rio Ribeira ao Mar Pequeno. Essa reivindicação, com a força da elite política e econômica de Iguape, foi levada a D. Pedro I. Segundo Fortes (2000), a ideia surgiu em 1779, quando vereadores de Iguape oficiaram ao ouvidor geral pedindo a abertura de um canal, de cerca de três quilômetros de extensão, solicitação negada pela Câmara, com a justificativa de que não “traria efeito ao bem comum”. Por duas vezes mais, várias décadas após, a Câmara de Iguape retomou o assunto, sem grande sucesso em sua viabilização, até que em 1825, um requerimento pedindo abertura do canal foi aprovado. À época cogitaram-se duas opções de localização para a obra: uma seguindo a oeste do núcleo urbano de Iguape, acompanhando o traçado do caminho que ligava o Porto da Ribeira até Iguape; a outra alternativa pensada, passava pelo lado leste do núcleo, margeando o Morro da Espia. Na ausência de consenso entre a localização da obra, o governo da província enviou o engenheiro tenente-coronel Eusébio Gomes

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Barreiros, que recomendou o traçado pelo setor leste, cujos terrenos eram considerados “mais sólidos” pela proximidade do Morro do Espia. A indicação do engenheiro não agradou os moradores, preocupados com possíveis consequências da abertura de um canal próximo aquela que era a fonte de abastecimento de água e local de retirada de terra para as construções – o Morro do Espia. As características dos solos da baixada – formados por sedimentos arenosos inconsolidados e, portanto, muito suscetíveis à erosão – já eram conhecidas pelos engenheiros que se manifestaram sobre a obra. Paulo Freire de Andrade, engenheiro chefe da comissão de reconhecimento de terrenos da Marinha, por exemplo, assim tratou do assunto, em 1826:

O engenheiro, reconhecendo a fragilidade dos solos da planície, que levaria inevitavelmente a ampliação da largura dos canais por erosão e solapamento das margens, já alertava para a necessidade de distanciamento da obra em relação ao núcleo urbano. Porém, se de um lado havia a compreensão de que o canal sofreria alargamento pela atuação de processos erosivos, por outro lado, certamente não se tinha, na época, a dimensão do que viria a se constituir esse processo. Isso fica claro, quando em 1840, a Câmara de Iguape recomendou deixar sem ocupação às margens do canal, em uma largura de duzen-

“A comissão especial encarregada de dar o seu parecer sobre o espaço que devem ter as fucturas ruas do Vallo indo alli e examinando maduramente assentarão que duzentos e vinte palmos de cada hum dos lados hera sufficiente espaço para a edificação das propriedades, tendo a Comissão em visitas que se poderá desbarrancar o terreno com as enchentes.” (Fortes, 2000, p.199) tos e vinte palmos, ou seja, cerca de cinquenta metros de cada lado, como se vê na seguinte passagem:

Em agosto de 1827, eram iniciadas as obras do Valo Grande, que por projeto teria pouco mais de 4 metros de largura e 2 km de extensão. As escavações foram feitas com mão de obra escrava e, no início, custeadas pela própria população. A partir de 1837 uma resolução do Governo da Província determinou que fosse arrecadado imposto sobre a comercialização do arroz, cujo destino seria o custeio das obras do canal.

“Se o terreno desde o Rio Ribeira até Icapara resistisse à impetuosidade da corrente, eu diria que o canal deveria passar pelo meio da vila, mas não resiste, nem pode resistir; logo deve passar ao norte ou ao sul dela.” (Fortes, 2000, p.196)

Canal do Valo Grande, Iguape SP Luciano Faustino [Wikimedia Commons]

O Valo Grande passou a ser utilizado a partir de 1852 dando passagem a pequenas canoas. Um ano após a finalização das obras com o solapamento das margens e a consequente obstrução do leito por sedimentos foram necessárias constantes limpezas para passagem de canoas. Nos anos que se seguiram, o canal ampliou-se significativamente, em 1908, quando a Comissão Geographica e Geológica – (CGG) esteve na região levantando o canal, este

já atingira largura de duzentos e noventa e seis metros, em seu maior trecho. A pequena vala de alguns metros transformou-se num imenso braço de rio de mais de 200 metros de largura. Suas margens começaram a desbarrancar de maneira vertiginosa; inúmeras casas e ruas inteiras foram tragadas pela erosão, assoreando o Porto Com o solapamento das margens, os sedimentos seguiam pelas correntes em direção ao Mar Pequeno, o que ocasionou a formação de bancos de areia em frente ao núcleo urbano de Iguape e na Ponta de Icapara, local de entrada das embarcações em direção ao Mar Pequeno, os quais, aos poucos, transformaram-se em ilhas, dificultando, assim, a passagem das embarcações. Além disso, o rio, ao direcionar a maior quantidade de sua vazão no Mar Pequeno, teve sua antiga foz, na Barra do Ribeira, assoreada. Este processo foi responsável, também, pela mudança abrupta de salinidade nas águas do Mar Pequeno, condição que afeta o ecossistema local resultando no desaparecimento de algumas espécies de peixes. Já no início do século XX, o Porto Grande não conseguia mais receber embarcações de maior calado, que eram obrigadas a fundear próximo ao Morro do Espia, há seiscentos metros do Porto. Segundo Fortes (2000), alguns historiadores têm interpretado o Valo Grande como uma obra pioneira na engenharia hidráulica brasileira, talvez pela sua característica específica de intervenção de grande magnitude em um curso fluvial. Esta se deu em um contexto histórico de formação de quadros técnicos de engenharia no Brasil, estimulado pela permanência da Corte Portuguesa nessas terras e, também, em um momento de implantação de obras que se tornaram referências na história da engenharia brasileira, como é o caso da primeira represa para aproveitamento hidrelétrico, construída, em 1811, junto à Fazenda Ipanema (Iperó) e o Dique Imperial na Guanabara, obra iniciada em 1824. Em 1978, atendendo apelos da população foi construída uma barragem e uma ponte para a travessia de Iguape-Rocio, no entanto, não se procedeu a desobstrução da Barra do Ribeira. O Rio Ribeira voltou a correr para a sua foz original, mas o intenso assoreamento em sua desembocadura, resultado de mais de um século de intervenção no seu curso, dificultava a passagem das águas. A partir dos anos 1980, uma sequência de grandes inundações causou prejuízos enormes às atividades agrícolas e assim a barragem foi retirada pelas sucessivas enchentes e também com o auxílio de ferramentas manuais utilizadas por moradores locais. Uma nova barragem foi projetada 1992, desta vez com vertedouro e comportas de controle de vazão e com eclusa para possibilitar a navegação. A proteção das margens e do fundo do canal contra a erosão constituía parte integrante desse mesmo projeto. Em 1993, as obras civis da nova barragem foram concluídas, porém sem as instalações do sistema eletromecânico de comportas devido a escassez de recursos. Em junho de 2021, o Governo do estado publicou edital de licitação para a retomada das obras da barragem do Valo Grande. Os serviços abrangem a modernização dos projetos civis, eletromecânicos e das instalações de estrutura. Pelo edital a barragem contará com 18 comportas e permitirá ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) fazer o controle de cheias do rio Ribeira, além de resgatar as condições ambientais do complexo lagunar do Mar Pequeno – canal entre o continente e a Ilha Comprida –, importante área de reprodução de espécies nobres de peixes e crustáceos.

Lagamar- Mirante do Cristo Foto: Leone de Souza Silva Junior

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