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A nuvem humana
from Revista APAT 140
by Apat
No meu último artigo defendi a superioridade das culturas organizacionais pluralistas, inclusivas e tolerantes como indispensáveis à promoção da diversidade cognitiva entre a força de trabalho, por oposição às culturas mais focalizadas e distintivas que correm o risco de se tornar preconceituosas, exclusivas e imobilistas perante as mudanças no ambiente de negócio.
Esta necessidade de pluralismo prende-se com as transformações a que assistimos nos mercados de trabalho e com os seus efeitos na composição das forças de trabalho das organizações. Hoje, o modelo único de um trabalhador vinculado por um contrato de trabalho dependente deu lugar a uma profusão de formatos que incluem a prestação de serviços em regime independente, o trabalho temporário e eventual, os trabalhadores em outsourcing, e muitas outras possibilidades. Este ecossistema de trabalhadores definidos em sentido lado – aqueles que contribuem para a criação de valor na organização – apresenta caraterísticas inéditas que complicam significativamente a sua gestão: é cada vez mais heterogéneo, cada vez mais disperso fisicamente (e.g. teletrabalho), cada vez mais assíncrono (i.e. com regimes e horários de trabalho diversificados) e cada vez mais volátil. (Acentuo a expressão “cada vez mais”, propositadamente repetida.)
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Hoje, a prestação de trabalho já não está amarrada a um lugar físico e a um período limitado. Uma parte significativa da força de trabalho real “anda por aí”: está a tornar-se uma realidade difusa, etérea, de fronteiras indefinidas, que alguns autores – incluindo este – designaram por “hCloud”, a “Nuvem Humana”. Tudo isto está em sintonia com uma das macrotendências que julgo descortinar neste mundo sempre em mudança: a substituição da “posse” pelo “acesso”. Hoje, as empresas já não precisam de ser proprietárias dos servidores para instalar os seus sistemas; a posse física foi substituída pelo acesso à “cloud” (a original). Deixámos de comprar discos, cassettes ou CDs; começámos por desmateriali- zá-los em ficheiros digitais e atualmente já só pagamos para aceder-lhes em streaming, através de plataformas como o Spotify. Com os filmes, passa-se exatamente o mesmo. E com os automóveis, em que muitos passámos a preferir o aluguer de longa duração à compra, e em que é sintomático que, segundo vários estudos, as gerações mais novas manifestem um desinteresse cada vez maior por tirar a carta de condução – um tão cobiçado símbolo de emancipação para os seus antecessores. Para quê aprender a guiar e ter um carro, maçar-se com garagens, estacionamentos, furos… se há sempre um Uber à distância de um clique? E até mesmo, sem darmos por isso, com o próprio dinheiro, que há muito preferimos “alugar” (crédito) do que “possuir” (poupança)!
Hoje, a prestação de trabalho já não está amarrada a um lugar físico e a um período limitado. Uma parte significativa da força de trabalho real “anda por aí”: está a tornar-se uma realidade difusa, etérea, de fronteiras indefinidas, que alguns autores – incluindo este –designaram por “hCloud”, a “Nuvem Humana”.
Não há nada de mal nisto. A preferência pelo “acesso” em vez da “posse” é genericamente benéfica, pois permite antecipar o usufruto de bens e serviços, realocar mais rapidamente recursos produtivos e acelerar a produção de riqueza. Nas organizações, estende-se ao capital humano, onde oferece consideráveis vantagens: flexibilidade, versatilidade, diversidade cognitiva. Em teoria, uma força de trabalho mais heterogénea e mais aberta ao exterior tem um maior potencial inovador. Do lado dos inconvenientes, muitos apontarão para o risco social da precariedade: é um risco real, mas não podemos esquecer que o freelancing é um fenómeno em crescimento, e que são sobretudo os indivíduos mais talentosos, os que pensam que têm “mais mercado”, quem mais o procura. A precariedade tem de ser enquadrada – em foro de segurança social, por exemplo –e combatida quando vitima os mais frágeis, mas não seria realista nem saudável eliminá-la radicalmente.
A “nuvem humana” levanta, porém, inúmeros problemas em matéria de liderança e de gestão de pessoas, e mais especificamente no que respeita à gestão do desempenho e das carreiras e ao desenvolvimento dos trabalhadores. Aqui, as práticas convencionais baseadas na coerção e na observação direta da atividade deixam de servir. Uma liderança autocrática não funciona com indivíduos que não estão sujeitos ao nosso poder disciplinar. A observação da atividade é impossível quando o trabalhador não está fisicamente presente (recordo o desnorte de tantos “líderes” quando o confinamento os impediu de o fazer). Em vez delas, temos de recorrer a incentivos positivos, à “cenoura” em vez do “chicote”. A remuneração é necessária, mas não é suficiente. É óbvio que um trabalhador mal pago não pode sentir-se motivado; contudo, a partir do momento em que deixa de sentir-se materialmente injustiçado (com toda a subjetividade dessa perceção) mais salário deixa de trazer mais produtividade. O comprometimento tem uma relação mais direta com a produtividade, e sabemos quais são os seus “motores”: atenção individualizada, clareza de objetivos, reconhecimento do contributo, investimento no desenvolvimento do trabalhador.
Reconhecer o contributo implica olhar para os resultados que o trabalhador consegue, em vez de para as atividades que executa, com que esforço e em que horário; e antes disso, transmitir-lhe objetivos claros, concretizáveis e observáveis. Investir no seu desenvolvimento significa conhecê-lo como pessoa, descobrir as suas aspirações, dar-lhe desafios que o façam crescer; ou seja, conversar com ele assiduamente em vez de uma vez por ano para “avaliar” o seu desempenho.
Mas para quê fazer isto com indivíduos que não nos estão vinculados, que não são “nossos”? Em primeiro lugar, pela simples razão que, para todos os efeitos, trabalham “para nós”, contribuem para criar valor, e precisamos que sejam tão produtivos quanto possível; por analogia, porventura não quererei que um equipamento em leasing beneficie da mesma manutenção que outro que comprei? E depois, porque está provado que investir no desenvolvimento do trabalhador é o mais potente instrumento de retenção de que dispomos.
Mas a dispersão, a distância, não são um obstáculo intransponível? O ambiente tradicional, de presença física e sincronizada, é extremamente conveniente: temos os trabalhadores ali à mão, podemos interrompê-los (mal) para falar com eles porque somos “chefes”; isto explica em parte a fixação de tantas organizações em “trazer as pessoas de volta ao escritório”. Mas nada impede que as ocasiões de contacto sejam programadas (arrisco-me a dizer que já deviam sê-lo no ambiente tradicional). Os regimes ditos híbridos, com alguns dias passados no “escritório”, permitem fazê-lo, e a tecnologia oferece-nos inúmeras possibilidades de “ritualizar” sessões de partilha, de celebração, de troca de ideias, em contexto remoto, à distância.
A “nuvem humana” veio para ficar, e temos de aprender a orquestrá-la. A distância é um problema? Então, como escreveu Fernando Pessoa, “outra vez conquistemos a Distância – do mar ou outra, mas que seja nossa”.