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Crónicas de um comboio escalfado XVI
from Revista APAT 140
by Apat
A idade não perdoa! Que o diga Casimiro Toc-toc. Agora que o calendário já lhe apontava em todo o corpo noventa e cinco anos. Maquinista até à reforma, ainda não aprendera a lidar com o vazio que mais tarde ou mais cedo haveria de chegar. Nunca foi a viagem que o atraiu, mas sim o facto de ser o condutor de qualquer partida e de qualquer chegada. Circunspecto nas muitas horas em que ia à estação rever o passado, pensava que as pessoas nunca o entenderiam, porque possuir o controlo de qualquer viagem era como ser o condutor do próprio destino. Liberdade maior não seria possível sonhar ou ambicionar. Um homem ser dono de si próprio seria a maior de todas as revoluções. Que deixassem as ideologias e as greves, logo de manhã, repousadas na mesinha de cabeceira ao lado do copo de água, do crucifixo e de nossa senhora, que isto de ser maquinista não é apenas levar e trazer passageiros. Agora cá! O tempo a correr e a vida das pessoas colada ao passar dos minutos e das horas programadas para trabalhar, para encontrar, para tratar, para sonhar, para conhecer… E ele sempre conduzindo o quotidiano onde cada um carrega a esperança do futuro final. O problema foi parar porque o corpo assim o exigiu. Perde-se a visão e outras acutilâncias necessárias. Agora até o facto da dentição o ter abandonado se tornava um problema maior, quando, para matar a saudade, adquiria um bilhete de comboio de Beja até Cuba. A viagem são apenas doze ou treze minutos, nada que o apoquentasse. Mas não ser já possuído de caninos, incisivos e molares que lhe permitissem segurar condignamente os queixos, levava a que as gengivas, desamparadas, com a trepidação da carruagem começassem a bater uma na outra provocando um som que mais fazia lembrar o regresso do código morse. Casimiro sentia-o, pois era uma situação deveras constrangedora. O revisor a querer falar com ele e o homem apenas de sua boca emitia ditongos muito semelhantes à sonoridade dos telegramas. As palavras saíam-lhe de tal forma marteladas que o abençoaram e batizaram com a alcunha de Casimiro Toc-toc. Pior mesmo era quando nos almoços convívio dos antigos ferroviários alguém se lembrava de somente servir entrecosto grelhado com batata frita e salada. Raspar carne junto ao osso exige destreza bocal. Não era o caso. Na carência de comida sólida, afundava-se nos hidratos alagados em óleo de fritar e no vinho tinto de qua- lidade duvidosa. Resultado, era tamanha a embriaguez, que todos os colegas acreditavam que o homem, trinta e tal anos depois de se reformar, ainda não aceitava tal facto.
Um dia, para lhe alegrarem a alma, à socapa, obviamente sem conhecimento das chefias intermédias, máximas e outras bastante mínimas, um colega maquinista prometeu levá-lo na cabine de condução e deixá-lo conduzir um bocadinho pequenino. Casimiro Toc-toc desde então encontrou em si um sorriso há muito também aposentado de ser expressão no seu rosto. Não pregava olho dia e noite. A agitação era de tal forma tremenda, que de singelo toc-toc, as gengivas passarem a tocar tambores na sua boca. O homem já não falava, rufava a sua alma. No seu cansado coração aconteciam compassos binários, quaternários e outros tantos sintomas de felicidade suprema. Foi no comboio das oito e vinte e dois que regressou ao seu passado eternamente presente. A pele estava tão arrepiada que quase que se poderia mondá-la. O comboio partiu, passados dez minutos, o colega diz-lhe: - O comando é seu.
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Não se sabe quanto tempo foi. Mas foi o suficiente para Casimiro Toc-toc voltar a sentir uma viagem nas suas mãos. Quando se sentou, o outro ainda lhe perguntou: Então que tal?
O velho maquinista fechou os olhos, a cabeça tombou ligeiramente… Agora sim, finalmente chegara ao seu destino.