Revista tribos

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Março/2017 | 1ª edição

TRIBOS Belo monte Como a construção da hidrelétrica afetou as populações locais

retratos As várias representações dos indígenas ao longo da história

culinária Prato típico da etnia Terena, o hihi é feito a base de mandioca

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2 I

Foto desta página: Ana Carolina Moraes/Tribos I 3 Foto de capa: Daniela Arcanjo/Tribos


ANAUÊ!

SALVE! (TUPI ANTIGO)

Somos uma revista experimental criada por alunos de jornalismo da Unesp de Bauru, sob a orientação do Prof. Dr. Mauro de Souza Ventura e Prof. Ms. Pedro Santoro Zambon. A Tribos tem por objetivo tratar da sociedade brasileira, abordando as facetas de seus conjuntos, focando em um determinado grupo a cada uma de suas edições. Tudo isso, a partir de diversas perspectivas como política, cultural, linguística, esportiva, antropológica, literária e religiosa. Temos como foco grupos, não personalidades. Dessa maneira, a abordagem e a profundidade nas matérias é maior para não cair no senso comum e não reforçar estereótipos. Nessa primeira edição, a Tribos vai colocar a questão indígena em pauta. Escolhemos começar por esse tema por conta da visão estereotipada, generalista e simplista que se tem desses povos. Para tanto, antes de colher material, escrever e publicar sobre uma temática tão densa e profunda, a equipe Tribos precisou aprender bastante. Foram meses de pesquisa, conversas, entrevistas, visitas a instituições e a uma aldeia. Aprendemos coisas tão simples e óbvias, desde o uso da expressão “aldeia” ao invés de “tribo”, até assuntos extremamentes delicados, como a questão do encarceramento indígena. Foram várias respostas negativas, muitas portas fechadas e várias visões desencontradas, mas, acima de tudo, muito aprendizado. Além de ter a chance de produzir todo esse conteúdo para você, leitor, tivemos a chance de conhecer culturas de povos tão diversos que habitam o nosso país desde antes da colonização. Queremos passar a você o mesmo prazer que tivemos em tantas descobertas ao longo dessa trajetória. Que possam entrar em um novo universo, que tenta desconstruir e esclarecer uma temática tão negligenciada por veículos de comunicação e pelos livros de história. E que, assim como nós, também possam desconstruir ideias generalistas e tomar consciência da importância desse tema na conjuntura política nacional e o quão urgente é falar e pensar sobre povos indígenas, sua diversidade e sobre seus direitos, que vêm sendo desrespeitados e desmontados. Desejamos a você uma ótima leitura e que aprecie a nossa revista com a mesma intensidade e deleite que foi produzi-la. Que nosso conteúdo, em harmonia com o design editorial, possa proporcionar a vocês uma ótima experiência.

Seja bem-vindo e bem-vinda a nossa

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Uma parte essencial da produção foi o contato com o Povo Terena durante a visita a Aldeia Ekeruá, em Avaí. | Foto: Renato Rodrigues/Acervo pessoal

EXPEDIENTE SUPERVISÃO Prof. Dr. Mauro Ventura Jornalismo Impresso III

Prof. Ms. Pedro Zambon Planejamento Gráfico III

REPORTAGEM Ana Carolina Moraes Ana Carolina Ribeiro Daniela Arcanjo

Isaac Toledo Isadora Venturini Jéssica Dourado João Pedro Pavani Luana Brigo Sophia Andreazza DIAGRAMAÇÃO Ana Carolina Moraes Daniela Arcanjo Isaac Toledo João Pedro Pavani Luana Brigo

FOTOGRAFIAS Ana Carolina Moraes Daniela Arcanjo Luana Brigo ILUSTRAÇÕES Sophia Andreazza FAAC - Departamento de Comunicação Social TRIBOS EDIÇÃO Nº1 MARÇO | 2017

Endereço: Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem Limpa Bauru, SP

EXPEDIENTE I 5


SUMÁRIO 6 I

MEMORIA

Politica CULTURA

10EDUCAÇÃO

36LUTAS

Meio ambiente

86BANDEIRANTES

Ensaios

112 HIHI

56PROBLEMAS AMBIENTAIS

26PRODUÇÕES

60 QUADRINHOS

CULTURAIS

30 JOGOS MUNDIAS

94EXTINÇÃO DE

42LEGISLAÇÃO

48ENCARCERAMENTO INDÍGENA

64BELO MONTE

LÍNGUAS

104 RELIGIOSIDADE

119 OPINIÃO: ESTEREÓTIPOS

120 O QUE É SER INDÍGENA?

Foto de política: Mídia Ninja | Fotos das outras editorias: Ana I Carolina Moraes, Daniela Arcanjo e Luana Brigo/Tribos

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10EDUCAÇÃO Aprendizagem da cultura indígena: necessária para preservar

12RETRATOS 22INFLUÊNCIAS

Representações na literatura, mídia e novelas

INDÍGENAS Alguns hábitos dos brasileiros são de origem indígena

26PRODUÇÕES CULTURAIS

30JOGOS

Os povos indígenas produzem sua própria arte e identidade

MUNDIAIS Etnias participam das competições no Amapá

CULTURA 8 I

Foto: Ana Carolina Moraes/Tribos I 9


É necessário uma atenção especial a cultura e costumes indígenas , já que estes fazem parte da formação do Brasil I Foto: Pixabay

“A chave está nas crianças que estão iniciando o processo de aprendizagem”

educação: a chave para preservar O projeto Brasil indígena traz a temática para dentro de escolas de Bauru e difunde o conhecimento sobre os indígenas brasileiros

O conhecimento sobre as culturas indígenas e os povos indígenas brasileiros, bem como a história do Brasil antes da colonização, são desconhecidas por grande parte dos brasileiros. Isso leva a maioria das pessoas a acreditarem em um senso comum de que os povos indígenas ficaram no passado e que só é indígena aquele que vive isolado em florestas. Para desconstruir essa ideia, trazer um conhecimento tão necessário aos brasileiros e tentar mudar a ideia generalista e, muitas vezes, preconceituosa que se tem sobre os indígenas, surgiu o projeto Brasil Indígena, idealizado e posto em prática pelo historiador, antropólogo e indigenista Márcio Coelho. O projeto tem como finalidade levar às escolas de ensino fundamental uma disciplina extra, na qual se aprende sobre a história do Brasil antes da colonização, sobre os povos indígenas

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brasileiros e suas respectivas culturas. As aulas são teóricas e também práticas, o professor conta que tenta utilizar atividades que coloquem as crianças na experiência do conhecimento. O projeto já foi feito na escola estadual Prof. Silvério São João e está em prática na escola estadual Profa. Mercedes Paz Bueno, ambas da cidade de Bauru. Márcio aponta que viu necessidade em educar as crianças de maneira mais profunda do que o que se aprende nas aulas de história. Para o idealizador do projeto, quanto mais se aprende sobre a história indígena e sobre a diversidade cultural desses povos, mais informação se tem e isso leva a uma compreensão mais honesta e menos simplista de quem recebe esse conhecimento. A chave está nas crianças que estão iniciando o processo de aprendizagem, Márcio afirma sobre a importância em trazer

esse conhecimento para as escolas, já que é a partir dessa nova maneira de perceber a temática que será feita uma mudança de percepção sobre a questão indígena no Brasil. Ensinar sobre a história desses povos e como a construção do Brasil impactou suas vidas fará com que essas crianças repensem a maneira como a sociedade vê os indígenas. E, futuramente, possam mudar essa realidade. A educação é vista por Márcio como um mecanismo de extrema importância para a mudança de pensamento das próximas gerações. A intenção de Márcio Coelho era levar o projeto a mais escolas de Bauru, mas, segundo ele, nem todas conseguem encaixar as aulas na grade escolar. O projeto também já foi encaminhado à Diretoria de Ensino de Bauru para que fosse analisado e se fosse de interesse ser incluído nas escolas, mas Márcio sequer obteve

um retorno da Diretoria. Márcio também faz parte da ARACI (Associação Renascer Cultura Indígena) - associação com sede em Bauru que visa à difusão da cultura de povos indígenas no Brasil - e afirma que já pensou em levar o projeto às escolas públicas, em parceria com a ARACI, de maneira voluntária. O maior objetivo do historiador é justamente levar a cultura indígena e o conhecimento sobre a temática, uma vez que para ele o conhecimento e a transformação de pensamento das gerações futuras passa a ser a chave para que haja a preservação e um maior cuidado com os povos indígenas brasileiros. por Ana Carolina Ribeiro

EDUCAÇÃO I 11


RETRATOS

DOS POVOS

INDÍGENAS

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Ilustração: Sophia Andreazza/Tribos

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A figura indígena

Pintura de José Maria Medeiros, Iracema do ano de 1881 | Ilustração: Wikipedia

Ao longo da história os indígenas foram enaltecidos e inferiorizados por diferentes meios

“O Brasil estava na busca de sua própria identidade, sua própria cultura” 14 I retratos

“A pele deles é parda e um pouco avermelhada. Têm rostos e narizes bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem se preocupam em cobrir ou deixar de cobrir suas vergonhas mais do se que preocupariam em mostrar o rosto. E a esse respeito são bastante inocentes. Ambos traziam o lábio inferior furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, fino na ponta como um furador (...)”. Através da carta de Pero Vaz de Caminha tem início um dos primeiros retratos do índio. Sua figura aparece nos períodos mais importantes da literatura brasileira e assumiu grande papel na construção da identidade brasileira também. O índio possui diferentes diferentes significados e representações, sendo que ora ele é o heroi da nação, ora ele é visto com preconceito. Para a Doutora em Literatura, Luiza Oliva, é necessário considerar que os estudos que se tem hoje em torno da cultura indígena não existiam na época e quem figurava o índio o fazia apenas com um olhar de curiosidade em relação a descoberta. “As primeiras representações do índio foram escritas muito mais em diários de bordo, em cartas, como a de Pero Vaz Caminha, as de José de Anchieta. Nestas, a impressão primeira é a da barbárie no sentido de não civilização, quem chegava em terras brasileiras não conseguia conter o espanto de se deparar com homens e mulheres nus, alegres, dançantes e cantantes”. Para Oliva, a antropofagia, presente em algumas etnias, com um sentido estritamente ligado à cultura, foi compreendida, também, como barbárie. Logo, diante desse complexo cultural, houve um choque para quem olhasse aquilo a partir de uma cultura pautada na crença cristã. Além de documentos como cartas e

diários de bordo, a figura indígena foi retratada em diversas obras literárias brasileiras, dentre as mais conhecidas Iracema (1865) e O Guarani (1857), de José de Alencar, Macunaíma (1928) de Mário de Andrade e Caramuru (1781), poema épico do frei Santa Rita Durão. Esta última obra ainda se encontra um pouco mais à frente das primeiras impressões já que é “herdeira da concepção épica, do heroi perfeito e da morte como entrega total”, de acordo com Oliva. No entanto esta representação ainda sim carrega o estigma do povo bárbaro, daquele que é seduzido pelo colonizado. A obra possui o cunho literário pela repetição da forma poética, mas o retrato tem o mesmo cunho: o indígena continua sendo um inferior. “O poema é paródia temática com o índio de pano de fundo. Nada há de grandioso na representação do indígena brasileiro. Há o engrandecimento dos ‘desbravadores’ que mais os entendo como saqueadores das nossas riquezas e da cultura autóctone”, afirma Oliva. Quanto às obras de José de Alencar, como Iracema e O guarani, estas são mais densas e mais impressionantes aos olhos literários, já que inaugura uma tentativa de esboçar a figura do brasileiro. O momento de Alencar passa a ser de forte apelo pelo heroi nacional. “O Brasil estava na busca de sua própria identidade, sua própria cultura, assim não se pode deixar de falar do elemento genuíno da cultura brasileira que seria o índio”, conta o especialista em Literatura Brasileira, Júlio Ferreira. Para ele, no período do romantismo no Brasil, o índio surge como uma heroi e os romances Iracema e O Guarani pode ser considerados alegóricos, sendo que cada um de seus personagens vai retratar o contato do colonizador com o colono. Uma vez que o país não teve o cavaleiro medieval, restava ao índio representar esse papel na literatura brasileira. Dessa

forma Alencar arquiteta sua figura como o herói que faltava na história do país. Para Oliva, o mérito de Alencar é evidente, pois tem um lugar exponencial no complexo de bens culturais brasileiros, mas ainda assim carrega consigo um índio fruto das leituras de Montaigne, Chateaubriand e da teoria de Rousseau, que mergulham no imaginário fabuloso de uma cultura para ele totalmente desconhecida. Alencar foi criticado por essa aproximação com os franceses e, como resposta, configurou a obra Ubirajara, representando o índio primitivo, sem contato com o colonizador, uma metáfora da construção do país. Já na obra O Guarani, Oliva explica que ela estampa, assim como Iracema, o heroi que o Brasil precisava para se firmar em sua identidade de povo. “Ele é moldado ainda dentro dos moldes do medievalismo. Aquele que luta em defesa de seu rei, que recebe o batismo com o nome cristão, com a espada, símbolo da guerra europeia e corre todos os riscos para satisfazer sai amada Ceci, é envenenado e se retira em meio à floresta em perfeita comunhão

com a natureza”. Segundo Oliva, há um evidente afastamento da crença indígena de ritualizar com os espíritos para obter a cura. O Guarani reserva muitas vias de leitura. É uma obra que requer noção de história e do momento literário em construção. Não se pode criticar pela superficialidade da figuração nem tampouco colocá-la em mais alto grau, precisa-se de discernimento. Em meio a diferentes personagens indígenas fica a questão se há ou não uma forma mais correta e fiel de retratar o índio, entretanto a caracterização e exposição correta em literatura não é possível diante do estatuto que rege o texto literário. Ele trabalha com a imagem que não é a real, trata-se de uma verossimilhança interna da obra. “O que podemos assegurar é que algumas obras, respeitado o estatuto literário, desmontam ou desfiguram a ideia de índio perfeito e heroicizado do Romantismo brasileiro, do índio demonizada das primeiras manifestações, do índio transfigurado do épico”, explica Oliva. Dentre elas, destacam-se dois romances: Quarup (1967), de Antonio Callado, Maíra (1976), de Darcy Ribeiro e o conto “Meu

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Moema, personagem do poema épico Caramuru , representada por Victor Meirelles (1866) I Ilustração: Wikipedia

Guerreiro tupinambá representando a antropofagia I Ilustração: Wikipedia sua representação e devemos observar com cuidado para não cometermos interpretações incoerentes”, explica Oliva. Iracema, por exemplo, é regida por um forte desejo de nacionalidade, de construir uma identidade para o povo brasileiro, e Caramuru, com forte apelo histórico, é uma obra que bebeu de fontes dos cronistas das primeiras manifestações. Ainda sim, Oliva arrisca a dizer que Mário de Andrade chegou mais perto da cultura indígena. “Seja pelo viés da mistura, do híbrido, do índio ‘genérico’ como denomino em meu estudo, esse autor (Andrade) conecta a cultura as mata com a cidade e, no final, cimenta uma imagem dolorosa também de um possível retorno à origem, que não é possível”. Trata-se do índio que se destribaliza, que perde o fio embrionário de sua cultura ao estabelecer contato com o não índio. O que há são vertentes diferentes, mas cada uma delas traduz o desejo de se firmar como obra literária por meio de estilo próprio, de imagens fortes e relevantes que compõem hoje o sistema literário brasileiro. O ÍNDIO NA TELEVISÃO

tio iauaretê” (1969), de João Guimarães Rosa. Quarup apresenta uma extensão de temáticas importantes, dentre elas a indígena, ligada ao personagem Nando, um padre que vai ao Xingu com intuito de transformar os indígenas, de acordo com os princípios cristãos, em cidadãos de uma sociedade perfeita e harmonicamente justa. Já Maíra tem uma profundidade maior que Quarup, uma vez que foi escrito por um etnólogo que conviveu com indígenas, logo se tem nessa obra uma figuração mais transparente, mas não significa que é o real impresso na literatura. Na obra há um acento mais forte no aspecto social, como a formação cristã de Isaías, personagem principal, que vai a Roma para se tornar padre, a exploração dos recursos naturais nas aldeias e a presença da mulher não índia na aldeia, dentre outros aspectos. Enquanto isso, o conto de Guimarães Rosa, “Meu tio iauaretê”, percorre uma trilha diferente por tratar da desindianização provocada essencialmente pela presença da alteridade. Com uma criação inventiva, Rosa constrói uma curva narrativa que impele

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o índio a voltar a seu clã original. “Claro que a literatura lança mão de artifícios para a arquitetura desse ‘impossível retorno’, uma vez que contagiado pela cultura do não índio, o que figura com maior relevo é a morte agônica do filho de pai não índio e de mãe índia. O convívio com as onças na mata, seus parentes, a quem deveria matar, reacende os matizes culturais impressos em sua raiz indígena, o que o faz preservar as onças e matar os humanos lá residentes”, conta Oliva. O desvio de função, já que deveria matar as onças e não os humanos, faz com que o texto de Guimarães Rosa seja o que mais se aproxime das condições contextuais, históricas e sociais a que foram submetidos os indígenas. São diferentes olhares que capturam a temática indígena por ângulos variados, dessa forma a Oliva acredita não ser possível usar o rótulo de falsa e verdadeira representação, já que a linguagem literária lança mão de artifícios que a tornam verossímil. “Foram escritos em momentos históricos diferentes, sob influência de teorias oriundas da Europa, por possuir um caráter singular em

Tratar da representação indígena no meio televisivo é, inexoravelmente, perceber as semelhanças entre suas inserções nesse ambiente, especialmente nas telenovelas. Uma das principais matrizes da cultura brasileira, os folhetins televisivos podem tratar de qualquer assunto e, sobretudo, para um número enorme de espectadores. Desde janeiro de 2016, um ponto de média no Ibope corresponde 69417 televisores ligados na capital paulista, equivalente a pouco mais 168 mil telespectadores. A última novela de grande audiência a apresentar um personagem indígena foi “Araguaia”, de Whalter Negrão, exibida pela Rede Globo na faixa das 18h entre setembro de 2010 e abril de 2011. A atração rendeu, na média, 23 pontos de audiência. É preciso notar que as identidades das personagens indígenas presentes nas novelas não são fruto apenas da criatividade dos autores, e sim uma criação possível de ser produzida e exibida porque corroboram com as memórias historicamente construídas

Retrato de José de Alencar, autor brasileiro conhecido por sua obra Iracema | Foto: Wikipedia

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sobre os povos indígenas. “A Nudez é uma característica bastante constitutiva da identidade de um sujeito indígena e isto se reflete nas telenovelas”, escrevem a jornalista e mestre em comunicação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Vívian de Nazareth Santos Carvalho, e a doutora em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ivânia dos Santos Neves, em artigo intitulado “O corpo indígena nas telenovelas brasileiras: memória, nudez e embranquecimento”, publicado em 2015 na REDISCO – Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo. Novelas como “Uga-Uga” (TV Globo, 2000) e “Aritana” (Tupi, 1978) contaram com protagonistas indígenas que reforçaram a ideia da nudez. Outro ponto curioso apontado por Vívian e Ivânia é o fato de a maioria dos atores escalados para interpretarem personagens indígenas em novelas serem brancos. Em 1965, a TV Tupi exibiu a primeira novela com um personagem indígena. “O Mestiço”, escrita por Cláudio Petraglia, teve o ator (branco) Hélio Souto interpretando o protagonista indígena “Renato”, o qual, na trama, sofria preconceitos por por ser filho de uma índia com um branco. Em 1967, “A Rainha Louca”, escrita por Glória Magadan e baseada no romance “Memórias de um médico”, de Alexandre Dumas, foi ao ar pela TV Globo com um personagem indígena igualmente interpretado por um ator branco, Cláudio Marzo. Até Stênio Garcia chegou a interpretar um personagem indígena em 1968 em “A Muralha”, folhetim de Ivani Ribeiro exibido pela TV Globo. Com relação às personagens índias mulheres, nos raros casos em que têm destaque nas tramas são também interpretadas por atrizes brancas. “Alma gêmea”, de Walcyr Carrasco, trouxe Priscila Fantin (branca e de olhos verdes) para o papel da índia Serena. “Irmãos Coragem”, de Janete Clair, exibida entre 1970 e 1971 pela TV Globo escalou Lúcia Alves para o papel de Potira. Não só nas novelas mas também nas séries as atrizes e atores brancos foram relacionados com personagens indígenas. “A invenção do Brasil”, minissérie com roteiro de Jorge

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“Não somos um grupo só, ou um povo só. Temos nossas diferenças”

Furtado e Guel Arraes também exibida pela TV Globo, escalou Deborah Secco para a personagem Tupinambá. Na ocasião, a atriz teve sua pele maquiada para que ficasse mais morena. “Escalar atores brancos para representar personagens indígenas é uma prática que pertence à memória audiovisual do país”, escrevem Carvalho e Neves, rememorando o fato de que a primeira representação de um indígena no cinema nacional ter sido protagonizada por um ator branco. Para atuar como “Peri”, protagonista do filme “O Guarani”, de 1911, Miguel Russomano teve seu corpo maquiado, tal qual Secco 90 anos depois. Tais exemplos revelam um preocupante aspecto: o embranquecimento indígena. “As telenovelas brasileiras, produtos de maior rentabilidade da televisão no país, reiteram este discurso historicamente construído de que beleza é atributo de pessoas que tem a pele clara, o corpo magro e os traços finos”, alertam Carvalho e Neves. Para além da questão étnica, a representatividade indígena nas produções audiovisuais brasileiras continua pequena. Aguinaldo Silva, um dos mais relevantes telenovelistas brasileiros, escreveu, em 2014, sua opinião sobre o porquê da baixo número de inserções indígenas na Televisão. “Sabe por que não tem índio em novela? Porque não compram porcaria nenhuma. Já gay consome pra caramba, os patrocinadores adoram isso”, disse no Twitter o autor de obras como “Senhora do Destino” e “Fera Ferida”.

Priscila Fantin, Cláudio Heinrich, Cleo Pires e André Gonçalves já interpretaram índios em novelas | Foto: TV GLOBO/Divulgação

Cláudio Heinrich é o índio Tatuapu em “Uga Uga” (2000) I Foto: TV GLOBO/Divulgação

Em entrevista ao programa “Ver TV”, exibido pela TV Brasil em 2014, a pedagoga Dora Pankaru, índia de etnia homônima, revelou um pouco do sentimento que o índio tem da falta de representatividade do meio televisivo. “Nós nos sentimos representados quando temos um parente indígena (diretor, cineasta, novelista) falando de nós mesmos, e não quando o nãoindígena fala da gente”, diz. Dessa forma, ela afirma ser possível expor um conhecimento de “uma realidade e de um sofrimento” que é muito semelhante em quase todos os povos indígenas do Brasil. “Não somos um grupo só, ou um povo só. Temos nossas diferenças e nossos costumes. Não somos todos iguais, de modo que tenhamos que nos apresentar diante das câmeras de TV sempre com plumagens e pinturas pelo corpo, como uma forma de sensacionalismo”, enfatiza a indígena. Se nas novelas o índio pouco aparece, em outros gêneros de programas, tampouco. A série “Xingu”, exibida pela primeira vez em 1985 pela TV Manchete e reeditada décadas mais tarde pela TV Cultura, procurou mostrar a vida e a história das populações indígenas que habitam próximo ao Rio Xingu. A TV Cultura também tentou inserir a temática indígena na sua programação com a série “A’uwe”, apresentada por Marcos Palmeira. O programa estreou em 2008 e chegou a exibir documentários sobre povos nativos do mundo todo. A atração, contudo, saiu do ar em 2011. Desde então, para além dos folhetins, apenas alguns documentários exibidos pelas TV’s públicas, como TV Cultura e TV Brasil, abrem espaço para o índio na televisão. No entanto, tais documentários enfatizam mais os elementos pitorescos da vida indígena do que a luta por suas causas sociais.

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Maria Maya, como a índia Moatira em “A Muralha” (2000) I TV GLOBO/Divulgação

Carlos Alberto Ricelli interpretou o filho de uma índia com um branco. em “Aritana” (1978) I Foto: TV Tupi/Divulgação

Cléo Pires fez o papel da índia Estela em “Araguaia” (2010) I Foto: TV GLOBO/Divulgação VISÃO MIDIÁTICA Não apenas a literatura englobou a figura do índio e fez inúmeros retratos dele, mas a mídia também se apoderou dele e construiu imagens e significados. No que concerne a mídia hegemônica, comercial, pode -se afirmar que há diversos “índios”, ou seja, vários estereótipos. O jornalista e antropólogo Spency Pimentel realiza pesquisa e reportagens sobre os indígenas há 20 anos, principalmente do povo Guarani e os Guarani-Kaiowa do Mato Grosso do Sul. Em sua concepção ainda existem muitos pontos negativos da mídia e como ela representa os povos indígenas hoje. Há uma falta de conhecimento sobre eles, justamente pelo fato da mídia não achar interessante mostrar a realidade vivida dos povos indígenas. “Se pensarmos na mídia hegemônica, comercial poderíamos dizer que há vários estereótipos, sendo que a mídia geralmente prefere alimentá-los a desconstruí-los”, afirma o antropólogo. Para Pimental há o “índio autêntico, puro”, que se encontra na Amazônia mais recôndita. Ele está nu e afastado de tudo o que se refere à cidade. Por outro lado, quando ele aparece usando aparelhos

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eletrônicos, dirigindo automóveis ou usando roupas, ele então passa a ser o índio impuro, o “índio manipulado e corrompido”, que está invadindo terras de “fazendeiros honestos” por exemplo. Entretanto, nenhuma dessas imagens é real. A realidade é mais complexa que isso, tais estereótipos são, no fundo, uma chave para a negação de direitos, explica o jornalista. “Se ele “é puro”, não tem direito à cidade ou a seus benefícios. Se já está na cidade, não tem mais direito à terra etc. etc. Tudo falso, insustentável perante nossa Constituição, mas persiste na mídia hegemônica”. Na verdade é na mídia alternativa e na comunicação direta das redes sociais que esses estereótipos vêm sendo desconstruídos. O presidente da ARACI (Associação Renascer Cultura Indígena), Irineu N’jea, explica que não se sente representado pela mídia. Para ele a mídia não mostra a verdade sobre a história dos indígenas, já que ela tem outros interesse por trás. Por mais que a mistificação do índio pareça primeiramente benéfica a sua imagem, trata-se de algo negativo. No

sistema educacional, da escola básica à universidade, há a necessidade da luta para que as pessoas tenham contato direto com as comunidades indígenas e possam, elas mesmas, desfazer os estereótipos. As redes sociais diferentemente tem oferecido uma oportunidade de contato com uma realidade mais fiél. Hoje artistas e intelectuais indígenas já conseguiram espaço em alguns nichos (cinema, literatura infantil, universidade etc), porém isso pouco influenciou para mudar os estereótipos. De acordo com Pimentel há muito o que ser feito, ainda mais considerando o impacto da mídia na opinião pública em relação aos índios. “É para isso que políticos, igrejas e diversos setores econômicos gastam bilhões com a mídia. Os indígenas são pegos no meio de tudo isso. É um jogo de dinheiro graúdo”. Para o antropólogo o que está em jogo no país, é, acima de tudo, a manutenção da extrema desigualdade na posse da terra. por Isadora Venturini, Luana Brigo e João Pedro

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quais as influências indígenas na cultura brasileira?

O hábito de descansar em uma rede é um exemplo de herança dos povos indígenas I Foto: Pixabay

As influências indígenas foram importantes para formação cultural brasileira e estão presentes até hoje

A América do Sul pode ser considerada o berço da miscigenação. Quando europeus desembarcaram no que hoje chamamos de Brasil, encontraram um território habitado por diversos povos indígenas. A relação exploratória a que os colonizadores submeteram esses povos, não foi empecilho para que a cultura europeia fosse mesclada com as diversas culturas indígenas existentes. Países como, Bolívia, Colômbia e Venezuela, apesar de sua forte influência europeia na religião destas nações e, consequentemente em muitos valores que regem essas sociedades, as manifestações indígenas são muito valorizadas. No Brasil, cada região tem uma herança específica dos povos indígenas que ali habitavam. Em estados do Sudeste, como São Paulo, o extermínio de vários nativos se deu há mais tempo do que em outros estados, como Mato Grosso e Amazônia. Assim, cada lugar tem graus de influência distintos, não só pela diversidade de povos, mas também pelo

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tempo em que esse contato ocorreu. Considerando a grande gama de povos indígenas existentes no Brasil, e consequentemente de culturas, não é possível abordar todas as influências presentes na sociedade. Então, a Tribos selecionou alguns aspectos culturais que podem ilustrar a importância e profundidade dessas influências. HERANÇAS Pode-se dizer que a primeira contribuição indígena para a sociedade brasileira ocorreu logo no início da colonização. Foram os indígenas que ensinaram técnicas de sobrevivência, exploração das selvas e como organizar expedições aos portugueses que aqui estavam. Outro aspecto que também devem-se atribuir à influência indígena são as técnicas agrícolas e extrativistas que fo-

ram absorvidas pela população brasileira através do contato. Publicado pela Unesco, em 2006, o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no brasil hoje traz essas e outras informações. Hoje, a região Norte do Brasil é onde há um maior número de populações indígenas, e a região Nordeste é a que concentra mais indígenas na área urbana. No entanto, os reflexos de influências indígenas podem ser observados em todo o país. Em entrevista, Lígia Egídia Moscardini - doutoranda pela Unesp de Araraquara que estuda textos em língua portuguesa escritos por indígenas Jurunas, falou um pouco sobre as heranças que os povos nativos deixaram para a sociedade atual. O hábito de tomar banho diariamente, por exemplo, segundo a doutoranda é um hábito herdado da cultura indígena, já que eles costumam tomar mais de um banho por dia, coisa que é bastante incomum em outros países. A doutoranda aponta, ainda, o fato do catolicismo ter incorporado aspectos indígenas e que ritmos como Carimbó também vêm dos indígenas. A famosa rede, ítem presente na maioria das

casas dos brasileiros, também vieram das influências indígenas. As influências não param por aí. Segundo Lígia Moscardini “somos influenciados desde nomes próprios até a medicina”. Muitos nomes de pessoas, lugares, ruas, viadutos, construções são de origem indígena, como por exemplo Iguaçu, Itaquaquecetuba, Paranapanema, Manaus, Curitiba, Cuiabá, Ubiratan e Tupinanbá. Além é claro, da forte influência de línguas indígenas na construção do português falado no Brasil, outro aspecto que vale ressaltar é a oralidade da língua portuguesa falada no Brasil. As línguas indígenas eram muito orais, fato esse que influenciou na construção da identidade linguística nacional. ASPECTOS MEDICINAIS No âmbito medicinal, pode-se dizer que o hábito de tomar chás para curar doenças ou mesmo o uso de plantas são aspectos da cultura indígena incorporados pelos brasileiros. Segundo o livro publicado pela Unesco, alguns estudiosos estimam que os indígenas brasileiros já chegaram a dominar mais de 200.000 espécies de

plantas medicinais, e muitas delas estão se perdendo antes mesmo de serem descobertas e aproveitadas pela ciência moderna. O livro ainda informa que foram os índios do continente americano que dominaram ao longo de muito tempo conhecimentos sobre produtos naturais anestésicos, que hoje em dia são indispensáveis para procedimentos cirúrgicos realizados na medicina. Os povos Baniwa do Alto Rio Negro se utilizavam demasiadamente dessa técnica anestésica para fins de caça e guerra. Já os indígenas Ashaninka e outros povos nativos do Acre, segundo o mesmo livro, manipulavam e ainda manipulam com destreza plantas alucinógenas, como por exemplo a aywaska, que recentemente foi patenteada por empresas dos Estados Unidos pelo fato de muitos povos indígenas das Américas estarem brigando na justiça por direitos de propriedade cultural coletiva. HÁBITOS ALIMENTARES Quando o assunto é comida, as heranças indígenas são ainda mais presentes no

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“Precisamos aprender sobre etnocentrismo. Nenhuma cultura é melhor ou pior.”

dia a dia dos brasileiros. Pode-se atribuir, de acordo com Lígia Moscardini, o hábito de comer alimentos, como caju, goiaba, guaraná, palmito, mandioca, macaxeira, inhame e até pimenta às influências indígenas. Há ainda outros alimentos que muitas vezes não saem da mesa do brasileiro e que também foram absorvidos das culturas indígenas, como o milho, a tapioca e a famosa e indispensável farinha. O peixe assada é outro hábito alimentar que veio da culinária indígena. CONHECER PARA PRESERVAR Saber sobre as influências indígenas na cultura brasileira é um dos aspectos primordiais na preservação dos povos indígenas que ainda compõem nossa sociedade. No início da colonização muitos povos foram dizimados, assim como suas línguas, costumes e crenças. O que ocorre é que o tempo passou e os mesmos erros continuam acontecendo, mata-se e dizima-se essas culturas que são essenciais para identidade e cultura nacional. Nessa medida, pensar nas influências indígenas na sociedade faz parte de um processo que deve ser feito, que é conhecer, para que as pessoas possam saber a importância, e respeitar para então

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Conhecida também por aipim ou macaxeira, a mandioca faz parte da culinária brasileira e tem uma enorme importância para a alimentação dos indígenas I Foto: Pixabay

poderem preservar. As culturas indígenas que influenciaram e que compõem hoje o que é ser brasileiro devem ser lembradas como parte da cultura e pensadas como patrimônio da sociedade atual. Para que assim possam lutar pela preservação desses povos e, consequentemente, de suas culturas. É importante ter consciência de que essas influências são parte fundamental da identidade do brasileiro e da variedade cultural do país. A pesquisadora Moscardini ressalta que é preciso mais estudos sobre as heranças indígenas, estudos com mais consciência, pois “ainda temos uma visão muito simplista dos indígenas” lembra ela. Essa é a melhor maneira de respeitar as influências dos nativos presentes na cultura nacional. Nas escolas, quando o assunto são povos indígenas, o que se aprende é uma visão muito precária e generalizada sobre o tema. “Precisamos aprender sobre etnocentrismo, que nenhuma cultura é melhor ou pior do que a outra. Quanto mais cedo aprendermos isso, melhor”, concluiu Lígia Moscardini. por Ana Carolina Ribeiro, Isaac Toledo, Jéssica Dourado e Luana Brigo

Os chás medicicinais a base de ervas foram incorporados pelos brasileiros no tratamento de algumas doenças I Foto: Pixabay

influências I 25


“Eu fiz minha arte, MINHA IDENTIDADE” Os retratos de diferentes povos sobre suas vivências expressos na literatura, música, artes e cinema

“Resistir é cuidar para que a cultura do indígena não desapareça” 26 I PRODUÇÃO CULTURAL

O que pouco mudou depois de 517 anos da chegada dos portugueses às nossas terras foi o modo com que o indígena é representado. Principalmente quando a representação é feita por alguém nãoindígena. Mas as novas tecnologias, a internet e as políticas públicas de inclusão dos povos indígenas, como as ações afirmativas nas universidade, por exemplo, estão descentralizando estes retratos ao incentivar a apropriação dos aparatos digitais pelos indígenas. Uma vez que a representação dos povos indígenas não é representativa, surge a necessidade de contar a realidade as mudanças (tecnológicas, sociais e culturais), e aí que está a importância da produção cultural feita por indígenas: “quando produzimos, a gente leva esse olhar para o mundo,mostrando que vivemos sim, mas não nesse cenário. Estamos sempre acompanhando esse mundo moderno”. A produção cultural dos indígenas é pouco conhecida, mesmo sendo diversificada. As expressões artísticas estão no artesanato, na literatura, na música e até no cinema. O objetivo? Produzir a própria identidade! Segundo o antropólogo Terena Irineu N’eja, quando é o indígena que produz, ele faz o que pertence, o que é da cultura dele, sua identidade. E “a partir do momento em que o indígena começa a produzir,a arte vira resistência”, afirma. O antropólogo conta que “antes da chegada dos europeus aqui, as leis eram tácitas - não tinham expressão nem forma. Foram os portugueses que trouxeram as leis do jeito que conhecemos hoje para cá e passaram a moldá-la de acordo com seus interesses. O indígena nunca foi levado em consideração em nenhum período”. Sendo assim, as manifestações culturais indígenas são uma luta por espaços representativos em meio às mídias, para

combater os estereótipos e reivindicar seus direitos. “Resistir é cuidar para que a cultura do indígena não desapareça. É fazer valer os direitos que estão garantidos por lei a partir da Constituição de 1988”, conclui. As expressões artísticas resgatam o sentido político da arte, seja para a construção de um novo imaginário social sobre a figura indígena, para a educação ou mesmo para geração de trabalho renda. É surpreendente,no entanto, a ausência de pesquisas e dados sobre as manifestações. Durante a apuração desta reportagem, foram encontrados eventos e editais para a população; mas nada que abordasse o cenário cultural dos indígenas no Brasil. A falta de informações colabora para a manutenção dos estereótipos e invisibilização dos artistas indígenas. Como a arte indígena é carregada por reivindicações políticas, a falta de visibilidade para estes artistas é uma estratégia para enfraquecer a mobilização social e o conhecimento das demandas desta população. E o contrário - destacar alguma ação indígena para desfocar a política - também acontece com o mesmo intuito.

Artesanato é mais do que manifestação cultural. Acima, colares feitos por mulheres Terena. | Foto: Ana Carolina Moraes/ Tribos

ESPORTE X POLÍTICA Durante a entrevista, o Terena Irineu N’eja comentou sobre um episódio ocorrido nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em novembro de 2015, sediado em Palmas (TO): a aprovação da PEC 215 na Câmara. No mesmo período acontecia a votação da Proposta de Emenda à Constituicão (PEC) 215/2000, que retira a exclusividade do Poder Executivo para demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e áreas de conservação do Brasil, e dá a palavra final para o Congresso Nacional. A votação tramitava na Câmara. O relator do projeTo

era o deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-PR), atual Ministro da Justiça. Os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas reuniram 2.200 atletas indígenas de 24 etnias brasileiras e de mais 22 países do globo. A primeira edição do evento multiesportivo aconteceu entre 23 de outubro e 1º de novembro de 2015, em Palmas, capital do Tocantins. N’eja conta que a realização da votação junto com as atividades dos Jogos desfocou a luta pela demarcação de terras indígenas. “Vê como é a política? Eu escrevi para os parentes, falei para tomarem cuidado. Era o momento de jogar os holofotes sobre a questão indígenas. Mas tinha que ter cuidado porque a PEC estava tramitando. Foi dito e feito”, disse. A aprovação na Câmara aconteceu em 27 de outubro. Na noite do dia 28, cerca de 100 indígenas protestaram com cartazes e

discursos contra a validação da PEC 215 na Arena Verde, enquanto aconteciam as corridas de 100 metros. O antropólogo Terena entende o incidente como uma manipulação para favorecer os latifundiários e ruralistas: “a demarcação indígena deveria ter terminado em 1995; mas faz 28 anos que isso está tramitando. Não demarcam as terras indígenas porque tem interesses políticos”, reclama. “Uma coisa é o que você vive, outra coisa é o que você vê”, adverte o documentarista Alberto Alves. O silenciamento da arte indígena também emudece os debates políticos destes povos. Isso porque, como afirma Alves, “a cultura está ligada ao todo dentro das comunidades”. Produção cultural indígena é olhar de quem é, e consegue registrar a dinâmica das comunidades indígenas porque a vivenciam. Conheça um pouco de quem faz nas próximas páginas.

PRODUÇÃO CULTURAL I 27


Oficina de produção audiovisual na Aldeia Rio Pequeno, no Rio de Janeiro. Foto: Alberto Alvares

AUDIOVISUAL - ALBERTO ÁLVARES Antes de gravar, Alberto foi ator. Fez filmes nacionais, internacionais, comerciais publicitários. Mas, em todos os papeis em que atuou - tanto na TV como no cinema - a imagem do indígena era “congelada”. “Tem que colocar o índio de cocar, de tanguinha, o índio do passado. A gente tá no século 21, porque nossas história tem que ser contada assim?” Desde que começou, o Guarani-Kaiowá já fez nove produções audiovisuais. Lança o “A Origem da Alma” em março deste ano e pretende fazer mais dois longametragem em 2017. Ele gosta de trabalhar com o documentário porque, para ele, “quando você conta a realidade do seu povo, você começa a desconstruir essa realidade”. Para viabilizar suas produções, ele conta com parcerias e com a ajuda de outros cineastas.Mesmo que ele tenha notado um crescimento nesta área, ainda é pouco. O cenário do audiovisual indígena não é nada fácil. Ele não nega que já pensou em desistir. “Eu fui roubado em Belo Horizonte, levaram todos meus equipamentos, pensei em abandonar a carreira. Mas aí eu recebi bastante apoio e fui gravar no Rio Grande do Sul. Quando eu cheguei lá, um cacique disse que não era para eu pensar em desistir porque assim eu estaria desistindo da história

28 I PRODUÇÃO CULTURAL

do meu povo; porque um dia a história vai depender de mim. Isso me motivou muito”, conta. Alberto acredita que protagonismo é ser exemplo para as próximas gerações; não é só contar a sua própria história para outros: é dar continuidade para que isso aconteça. E ele não quer ser o único. “Eu não quero ser um Alberto sozinho. Tenho que ser multiplicado”. Ele diz que ministra oficinas e que nesses espaços dá o melhor de si para que os alunos possam ser independentes, consigam fazer tudo gravar, editar - sozinhos.

“Porque nossas histórias têm que ser contada assim?” O audiovisual fortalece a cultura indígena por preservar uma características histórica: a oralidade. Com a câmera é possível captar a imagem e o som durante o um ritual. “A escrita é um registro, mas não é tão legítimo porque você pode mudar, apagar. A imagem é só uma; se você errou, nunca mais vai conseguir fazer o mesmo”. Não são as palavras, são as cenas

de quem pertence àquela comunidade que falam. Alberto fala que o índio não é o dono na terra - é parte da terra onde vivem, do lugar onde estão. Entristece-se por não ser reconhecido pelo povo e com a apropriação cultural. “Muitas vezes, as pessoas dão mais valor ao índio pintadinho no centro da cidade para atrair turistas. E o indígena que está lá na aldeia, está sofrendo, lutando pelo dia-a-dia para manter as tradições de acordo com o seu modo de ser, ele não existe, é invisível”, comenta. Para ele, a única forma de construir um novo imaginário social sobre os povos indígenas é fazendo filmes: cada dia contar uma história para desconstruir a imagem do índio congelado e possibilitar que outras pessoas conheçam a realidade dos Guarani. ARTESANATO - IRINEU N’EJA Irineu N’eja é Terena e vive no contexto urbano de Bauru. Para resgatar sua ancestralidade ele tem que colocar a mão na massa. Disse que sabe fazer pulseiras e colares, mas que não faz mais, pois não pertencem à sua cultura. “Uma das culturas características do Terena é a cerâmica”, explicou. Quando começou a trabalhar com o artesanato, ele ainda não fazia os vasos de barro, só os decorava. Até que um dia

ele ouviu de uma cliente que a cultura do povo Terena era muito bonita. E se incomodou, porque o vaso não era Terena. Mas a cliente achou que fosse. Chateado com a situação, ele quis fazer diferente: “Eu fui na loja de cerâmica, pensando, pensando e decidi comprar argila. Porque uma das culturas do Terena é a cerâmica. Tem a agricultura, a tecelagem e a cerâmica. Eu fiquei matutando e comprei 2kg de argila. Depois fiquei pensando “como é que eu vou fazer?”. Procurei na internet. Me questionei se eu seria capaz. E por incrível que pareça, eu consegui. Eu não sabia que eu sabia fazer artesanato. Foi assim que eu fiz minha própria arte, minha própria identidade”. As peças do Irineu são vendidas na internet - uma complementar a renda e difundir a arte Terena pelo mundo. Ele conta que a argila e o artesanato se tornaram uma forma de resistência à cultura dominante, porque resgatam a ancestralidade Terena em Bauru e fortalece a identidade do povo; é um cuidado para que esta tradição alcance as gerações futuras e para que a cultura não se perca. Além de artesão, o Terena também é escritor. Diz que a escrita, técnica introduzida nas comunidades indígenas durante a colonização para “civilizar os povos nativos”, tem o potencial de imortalizar a tradição, a língua, os rituais. Por isso ele já publicou três livros. Um deles, inclusive, é infantil e fala sobre o Mito de Origem do Povo Terena. O curioso deste último livro não é somente o mito. É a forma com a qual ele é contado. Irineu fez um trabalho de pesquisa com os anciãos do seu povo e lançou a história em português, em Aruak (língua do Povo Terena) e como história em quadrinhos. Sua proposta era fazer como que a leitura sobre a origem de seu povo fosse acessível a todos os públicos, e que trouxesse um pouco do universo Terena para o mundo moderno. Irineu acredita que a importância da produção cultural indígena é a apropriação dos novos meios de digitais e tecnológicos para produzir sua própria cultura. “Isso é resistência! Porque quando me perguntam “de que povo você é?”, eu respondo “Terena”; e se perguntam se o que eu faço é o Terena que faz, eu posso dizer “É o Terena que faz!””.

MÚSICA A página não-oficial do grupo na rede social diz que que o Brô Mc’s faz “rap em forma de denúncia contra os problemas sociais dos Índios Brasileiros, cantado em Guarani-Kaiowá e Português”. O primeiro grupo de rap indígena do Brasil é formado por Guarani-Kaiowás, da Aldeia Jaguapirú Bororó em Dourados - MS, e começou em 2006 e gravou o primeiro CD em 2009. Na internet, o trabalho mais acessado é o clipe da canção “Eju Orendive” no Youtube, lançado em 2010 pela Central Audiovisual da CUFA MS, com mais 300 mil visualizações. “Koangagua” (traduzido como nos dias atuais) é o trabalho mais recente do Brô Mc’s, produzido pelo Canal Guateka em 2015. Em entrevista ao Jornal Nexo, o grupo contou que planeja gravar um novo CD e se apresentar em diferentes partes do país.

LITERATURA DANIEL MUNDURUKU leva as estórias da etnia Munduruku de Belém (PA) para o mundo. O escritor se destaca na literatura infantil e já foi reconhecido por isso: recebeu os prêmios da Academia Brasileira de Letras, Jabuti, Érico Vanucci Mendes - do CNPq - e Tolerância, pela Unesco. Seus principais trabalhos são O banquete dos deuses – conversa sobre a origem e a cultura brasileira e Contos indígenas brasileiros. Mas ele não se restringe ao papel. Para divulgá-los e propagar a cultura Munduruku, Daniel usa a internet: tem um blog e um canal no Youtube, no qual faz entrevistas com outros escritores indígenas, divulga editais e eventos, e a agenda cultural do Instituto UKA Casa dos Saberes Ancestrais, do qual é presidente.

ELIANE PORTIGUARA, é escritora, poeta, professora e ativista. É também mãe, avó e remanescente Portiguara. Ela criou o primeiro Jornal Indígena e desenvolveu boletins conscientizadores e cartilha de alfabetização indígena com o apoio da Unesco. A voz feminina da literatura indígena atua na defesa dos Direitos Humanos: já foi indicada para o projeto internacional “Mil Mulheres Para o Prêmio Nobel da Paz”, participou da elaboração da “Declaração dos Direitos Indígenas”, na ONU, e foi nomeada Embaixadora Universal da Paz. Seu trabalho mais recente é a obra Metade Cara, Metade Máscara, sobre a questão indígena no Brasil. por Ana Carolina Moraes

PRODUÇÃO CULTURAL I 29


Prova de canoagem. Modalidade entrou na categoria de integração por ser comum entre os povos participantes I Foto: Site oficial JMPI

Por dentro dos jogos mundiais indígenas Evento reuniu quase 2000 mil indígenas de todas as partes do mundo A primeira edição dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (JMPI) aconteceu entre os dias 23 de outubro e 1º de novembro de 2015. A organização do evento foi possível devido à parceria entre o Governo Federal Brasileiro e o Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena (ITC). A sede das competições foi a cidade de Palmas, no estado do Tocantins. Ao todo são 24 nações participantes dos jogos. O Brasil, como país anfitrião e organizador dessa primeira edição, selecionou 24 tribos para disputar a competição. Para realizar a seleção das etnias nacionais, o ITC elaborou critérios baseados na preservação dos costumes, como a conservação do idioma, pinturas corporais, músicas típicas e práticas esportivas tradicionais. Outro pré

30 I jogos mundiais

requisito para ingressar nos jogos foi ter pelo menos uma participação nos Jogos Nacionais dos Povos Indígenas, que acontecem desde o ano de 1996. Luiz Lobo foi o diretor executivo do JMPI. Ele destaca um critério muito importante foi usado para escolher as tribos nacionais que participariam do evento. Tal critério foi o bioma. “Fizemos uma seleção por bioma e não por estados, como se tinha pensado inicialmente. Então, os diversos biomas brasileiros foram representados pelas etnias que vieram de todo o país,” disse Lobo. As etnias brasileiras que participaram do JMPI foram Asurini, Bororo Boe, Rikbatsa, Javaé Itya Mahãdu, Guarani Kaiowá, Kayapó Mebengokre, Kaingang, Kamayurá, Karajá, Kyikatejê / Parakate-

jê, Canela Rãmkokamekra, Krahô, Kuikuro, Kura Bakairi, Mamaindê Nhambikwara, Manoki, Matis, Paresi, Pataxó, Tapirapé, Terena, Waiwai, Xavante e Xerente. Lobo conta que o ITC, por meio do Itamaraty, fez o convite para todos os países. Ele também ressalta que foi estipulado um número máximo de 50 indígenas por delegação. Vinte e três países aceitaram o convite para participar do torneio. Foram eles Nova Zelândia, Argentina, Bolívia, Rússia, Finlândia, Colômbia, Canadá, Chile, Gâmbia, Etiópia, Estados Unidos, Filipinas, Guatemala, Paquistão, Mongólia, Paraguai, Panamá, Uruguai, México, Costa Rica, Guiana Francesa, Peru e Nicarágua. Ao todo, a competição teve 17 modalidades disputadas. Elas foram divididas em três categorias: jogos de integração, jogos ocidentais e jogos demonstração. Nos jogos de integração, esportes tradicionais praticados pela maioria dos povos indígenas brasileiros, como arco e flecha, canoagem, cabo de força, corrida com tora e natação; nos jogos ocidentais, o futebol foi mostrou ser realmente universal e foi a modalidade escolhida. Houve competição masculina e feminina; na categoria jogos de demonstração, está presente o caráter de exibição. Algumas etnias nacionais mostraram ao público uma modalidade esportiva exclusiva desses povos. ALÉM DO ESPORTE Durante a semana em que foram realizados os jogos, paralelamente ao evento fóruns com o objetivo de debater questões ligadas aos povos indígenas, como demarcação de terras, sustentabilidade, acesso a água potável etc. Maria Beatriz é formada em educação física e ministra aulas Na Universidade de Campinas (Unicamp). Dentre suas principais áreas de pesquisa estão os jogos indígenas. Para ela, os debates diários eram importantes para buscar compreender e achar uma resolução para preservar a cultura dos povos indígenas. Cada dia é um tema diferente a fim de compreender as demandas e necessidades desses povos. O diretor executivo dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, Luiz Lobo ressalta que o intuito do evento transcende a prática esportiva. “Ele (JMPI) tem também é cultural, artístico. O evento tem apresen-

“Os jogos firmam a identidade dessas comunidades tidas como primitivas.”

tação de danças, músicas... tanto dos povos nacionais como dos internacionais,” afirmou. IDENTIDADE E LEGADO O antropólogo e professor da Universidade Estadual Paulista da cidade de Bauru, Claudio Bertoli destaca a importância dos Jogos mundiais na forma como a sociedade passou a compreender e enxergar os nativos e suas culturas. “Na nossa cultura, indígena é exclusivamente sinônimo dos índios brasileiros. Mas indígenas existem em todos os quadrantes do planeta, então são populações autóctones que se constituíram em sociedade naquele local. Os jogos mostraram para nós que nos denominamos ‘não-indígenas’ conheçamos a pluralidade e a complexidade da cultura e sociedade indígenas,” ressaltou. De acordo com o professor, desde o século XIX, os chamados indígenas ou primitivos foram colocados à margem da população, sendo estereotipados como incapazes de decidir algo por conta própria. Aliado a isso, o século XX levou à extinção da maioria desses grupos devido ao processo de expansão do capitalismo e dos Estados nacionais.

Por isso, Bertoli disse que os jogos mundiais contribuem para a afirmação de identidade dos indígenas. “No século XXI, esses grupos (povos indígenas) sendo minimamente respeitados e buscando em escala global serem conhecidos e muitos mais respeitados. Então, os jogos firmam a identidade dessas comunidades tidas como primitivas como núcleos culturais de importância,” finalizou. O diretor executivo do JMPI, Luiz Lobo fala que o evento “deixa um legado para a humanidade e o Brasil foi o primeiro anfitrião desse marco histórico que foi primeiro Jogos mundiais dos povos Indígenas. Todos os debates e discussões deixaram um documento, um legado, uma forma de pensar que vai incluir os indígenas do mundo inteiro,” encerrou. A próxima edição dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas será realizada no Canadá neste ano de 2017. A expectativa é que mais países participem do evento e que seja transmitido para mais países. Em 2015, 68 países transmitiram a cerimônia de abertura e até o momento não há informações sobre o evento. por Isaac Toledo

jogos mundiais I 31


ARCO E FECHA

ARREMESSO DE LANÇA

CABO DE FORÇA

CANOAGEM

As canoas utilizadas na competição são previamente sorteadas, uma vez que seus tamanhos e pesos são diferentes. Sua fabricação varia entre os povos. Um exemplo de material para fabricar uma canoa é a casca de jatobá.

O tamanho do arcos utilizados nessa modalidade pode ultrapassar a altuta do caçador. Cada fecha tem em média 50 cm e são feitas de uma esécie de bambu conhecida como taquaral.

O objetivo é conseguir arremessar a lança a maior distância possível e não atingir um alvo. As lanças são fabricadas de maneira tradicional usando madera rústica.

Para os indígenas a força física é muito importante, oferencendo destaque e reconhecimento. Muitas equipes treinam puxando grandes troncos de árvores

JOGOS DE INTEGRAÇÃO Durante a primeira edição dos jogos esta modalidade foi feita em uma piscina para testar a velocidade dos atletas indígenas. A relação do indígena na água começa desde cedo quando são crianças.

Cada povo tem seu modo de fazer uma tora, sendo assim seu peso, material e tamanho variam. Esta modalidade posssui diferentes aspectos em cada etnia, podendo ocorrer em rituais e festas.

NATAÇÃO

CORRIDA COM TORA Fotos e informações: Site Oficial JMPI (Jogos Mundiais dos Povos Indígenas) Infográfico: Luana Brigo

32 I jogos mundiais

jogos mundiais I 33


36 LUTAS A luta dos indígenas do Brasil para preservar seus direitos

42LEGISLAÇÃO Histórico de como leis brasileiras tratarame tratam os indígenas

46ARTICULAÇÃO REGIONAL Como se distribuem os grupos de apoio ao indígena em SP

38AGRONEGÓCIO O conflito entre grandes produtores e indígenas pela terra

44ARTICULAÇÃO NACIONAL Como os povos indígenas se organizam no Brasil

48 CÁRCERE

Poucas prisões tratam os indígenas da maneira prevista na lei

POLÍTICA 34 I

Foto: Wikipedia I 35


A batalha indigenista para garantir a posse da terra

Aauhuhd dasudhas dasd ad das a faoi afpash usadi ouiasd uoasd disdo asido ipahds pdioas uaudasdad dsadadha auh au hai dasi | Foto: Fulano/Tribos

Indígenas brasileiros lutam nos tribunais para que seus diretos sejam respeitados e cumpridos

Desde que portugueses e espanhóis pisaram em terras brasileiras, os povos indígenas só perdem cada vez mais direitos, voz e espaço. Mesmo representando apenas 0,43% da população, os povos indígenas estão presentes em 80% dos municípios brasileiros. São cerca de 305 grupos que se auto-identificam como povos indígenas, falando mais de 274 línguas que hoje sofrem com a degradação da sua terra, extinção da sua cultura e massacre dos seus povos. Dentre todas as reivindicações dos indígenas, a principal delas é a questão fundiária. O prazo de cinco anos estipulado pela Constituição de 1988 para a demarcação de todas as terras do país não foi cumprido e isso se deve ao fato de as terras brasileiras serem fontes de poder econômico, político e social. Para se defender e batalhar por seus direitos, os indígenas precisam de ajuda. É aí que se faz necessária a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal criado em 1967 para coordenar a política indigenista no Brasil. FUNAI

“Indígenas não são mais representados nem pela Funai” 36 I reivindicações INDÍGEnas

A Fundação cuida da delimitação e a identificação das terras indígenas, ou seja, grande parte do processo da principal reivindicação desses povos. No entanto, o órgão indigenista não trabalha com toda a sua capacidade por causa de restrições orçamentárias e de pessoal, além de pressões políticas e falta de recursos disponibilizados pelo governo. Segundo a Agência Pública, desde 2011 o orçamento vem sofrendo cortes, só em 2016 houve uma redução de 23% em relação ao orçamento total autorizado de R$ 653 milhões pelo Congresso Nacional em 2015. Além disso, alguns cargos da FUNAI aparentam ser um pouco destituídos

de poder, como o cargo da presidência. Segundo uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, Ailton Krenak, quase nenhum dos grandes problemas da atualidade indígena está no alcance e poder da FUNAI. Ailton Krenak, em uma entrevista para o Portal Amazônia, lembra que as questões de terras indígenas invadidas vão parar no Supremo Tribunal Federal, quem cuida de todas as atividades de saúde das comunidades é a Sesai do Ministério da Saúde, e quando grandes investimentos impactam áreas indígenas, quem intervém diretamente é o Ibama. SITUAÇÃO NA JUSTIÇA Uma das fundadoras do movimento das mulheres indígenas e uma das líderes do movimento indígena no Brasil, Jupira, da etnia Terena, falou um pouco sobre o assunto. Segundo ela, seu povo luta e busca apoio na justiça através do Ministério Público, onde se origina processos. “Alguns casos chegam ao tribunal, caso de assassinatos retomadas de terras, violência física, e claro, a posse de terras, que já é nosso direito garantido na Constituição Federal”. Tudo isso atravessa longos caminhos, e infelizmente vários casos de assassinato e emboscadas, por exemplo, continuam impunes. Diversas ONGs e instituições ajudam nas reivindicações indígenas através de assistência jurídica. “Também somos representados por juristas indígenas que se especializaram nesse contexto” destaca. Segundo a antropóloga Dominique Tilkin Gallois, do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), em entrevista a Tribos, os povos indígenas são apoiados por muitas instituições, em particular Universidades, ONGs e organizações sociais de vários tipos. No entanto, Dominique ressalta que os indígenas “não

Indígenas baianos realizando ritual em frente a um tribunal enquanto esperam decisão sobre posse de terras | Foto: Wkipedia

são representados pelas ONGs e nem mais pela FUNAI, que antes da Constituição de 1988 os representava enquanto tutora”. ALÉM DAS DEMARCAÇÕES A demarcação de terras indígenas é a maior luta desses povos, porém, vale lembrar que a saúde foi preocupante há pouco tempo. O governo chegou a quase extinguir a Secretaria da Saúde Indígena, mas o movimento indígena se levantou, fez uma intervenção e conseguiu a permanência da Secretaria. “Conseguimos também a contratação de mais profissionais nas aldeias, concursos estão sendo realizados, e isso contribui muito com a segurança das comunidades”, completa a líder indígena. A polêmica PEC 55, que pretende congelar os gastos públicos por 20 anos, afetou também os indígenas. A educação será o setor que mais irá sofrer com isso. Jupira ainda ressalta que a decisão do STF, de impor 19 condições para a demarcação de terras indígenas, “foi um ataque do governo”. No dia 20 de setembro de 2016, um relatório foi apresentado

ao Conselho de Direitos Humanos pela relatora especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz. A relatora afirmou que os povos indígenas brasileiros, atualmente, enfrentam riscos mais graves do que em qualquer outro momento desde a Constituição de 1988, e a violência foi citada como um dos maiores problemas. Segundo o relatório, muitos indígenas são assassinados em contexto de represálias e reocupação de terras, principalmente em áreas do Norte e Centro-Oeste do país. A antropóloga do Iepé lembra que as demandas indígenas sempre se voltam para o mesmo rol de problemas. “Desrespeito dos direitos por eles adquiridos, tanto na regularização de suas terras, como na assistência a saúde e educação”. Dominique destaca que atualmente a condição dos indígenas está bastante desfavorável, e que veio se agravando faz 10 anos. “Com este novo governo a situação está piorando cada vez mais rápido, pois há total desrespeito aos direitos dos povos indígenas”, completa. por Jéssica Dourado

reivindicações INDÍGENAS I 37


Aauhuhd dasudhas dasd ad das a faoi afpash usadi ouiasd uoasd disdo asido ipahds pdioas uaudasdad dsadadha auh au hai dasi | Foto: Fulano/Tribos

Protesto na praça dos Três Poderes contra a PEC que dá ao Congresso autonomia pra demarcar as teraas indígenas | Foto: Wikipedia

AGRICULTURA BRASILEIRA A história da agricultura brasileira inicia-se na região nordeste do Brasil, no século XVI, com a criação das chamadas “Capitanias Hereditárias” e o início do cultivo da cana. Baseada na monocultura, na mão de obra escrava e em grandes latifúndios, a agricultura permaneceria basicamente restrita à cana com alguns cultivos diferentes para subsistência da população da região. O cultivo do café, que durante todo o século XIX faria fortunas e influenciaria fortemente a política do país, e gera, após sua crise, uma diversificação da economia que, entre outras atividades além das estreantes indústrias, começava a valorizar outros tipos de culturas. Os benefícios da agricultura no Brasil vão muito além da produção de alimentos para exportação e consumo interno. Entre os principais favorecidos, afinal, também estão a indústria química, farmacêutica e de biocombustíveis, transpondo a realidade de “progresso nacional” da agricultura do século XVI para as produções do século atual. Segundo projeções do IBGE em Outubro de 2017 a área das regiões ocupadas para produção agrícola chegam a 43.266.737 hectares e em Novembro a 43.611.139 hectares, ou seja, em apenas um ano pode haver um crescimento de quase 1% destas áreas, o que representa mais de quatrocentos mil de campos de futebol. EXPANÇÃO AGRÍCOLA

o genocídio indígena como desculpa para o progresso A bancada ruralista continua o massacre dos povos indígenas e seus direitos

38 I Agronegócio e terras

Do centro-oeste ao norte do Brasil, a expansão das áreas de plantação prejudica o já frágil ecossistema amazônico. Segundo Célio Bermann, professor no Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo, quando a vegetação nativa é queimada para esse fim, o problema duplica: além da redução do número de árvores, responsáveis pela manutenção do oxigênio e proteção à terra contra erosão, a fumaça emite grandes quantidades de gases causadores do efeito estufa na atmosfera. Além dos reflexos ambientais da ampliação de terras agrárias, os povos

indígenas continuam sofrendo com o achatamento de seus espaços. Dos milhares de povos indígenas existentes no Brasil antes da colonização europeia, restam aproximadamente 305. Os territórios em que vivem são protegidos pelo Governo Federal por meio da Constituição, que define a “área indígena” como todas aquelas habitadas permanentemente por indígenas, utilizadas para atividades produtivas e preservação de sua cultura e tradições. Não é possível, por exemplo, visitar a uma dessas 565 localidades sem a autorização legal do órgão competente, a Fundação Nacional do Índio (Funai). O processo de homologação, demarcação e regularização de uma área indígena, no entanto, nem sempre é um processo linear. Muitas vezes, é preciso entrar em disputas judiciais com agricultores e proprietários de terras, que desejam continuar utilizando-as para seus fins. Deste modo, mesmo depois de delimitada, pode levar muito tempo para um povo indígena garantir a segurança de um determinado espaço. Isso quando posseiros e grileiros simplesmente não invadem e se apoderam ilegalmente do território reservado para os índios. Em entrevista, o presidente da Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena (ARACI), Irineu Nj’ea, explicou que a maior dificuldade dos povos indígenas é a legitimação da posse das terras mesmo com o apoio da Funai: “Muitos fazendeiros pegam café e jogam nos documentos para parecerem velhos. Mas o que prova que a terra é indígena? Primeiro é a ancestralidade dela. Os ossos dos seus ancestrais enterrados, uma pedra sagrada, um rio que eram feitos seus rituais, uma montanha, tudo isso dentro do laudo e contralaudo encarregados pelo antropólogo da Funai.” Há um decreto em vias de aprovação pelo Ministério da Justiça que pode alterar o sistema usado para a demarcação, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Se aprovado, as terras delimitadas e reconhecidas por governos anteriores poderão ser contestadas por “interessados”, isto é, posseiros,

Agronegócio e terras I 39


Fase do Processo

Quantidade

Superfície (ha*)

Delimitada

38

5.531.936,6821

Declarada

72

3.415.646,6662

Homologada

17

1.586.696,8980

Regularizada

435

105.648.344,8943

Fonte: Funai * ha = hectares

Reserva Indígena

Quantidade

Superfície (ha)

Regularizada

31

42.621,1321

Encaminhada RI

15

3.867,7493

TOTAL

46

46.488,8814

Fonte: Funai

agricultores e proprietários, grupos que já vêm se encarregando da “desocupação” indígena. “No mato grosso, as vezes, justificam como se tivessem “errado o alvo”. Passam com o avião, jogam o veneno na lavoura, mas também em cima das aldeias. Contaminam a água, adoecem as crianças. E o governo fecha os ouvidos para o clamor dos indígenas” afirma Irineu. O Secretário de Agricultura Chico Maia, questionado sobre os direitos indígenas assegurados na Constituição, alega que “a Constituição deixou claro que não estava criando um novo direito” e “Para completar esse quadro de reserva agrária em benefício dos índios, dispõe a Constituição vigente”. Se aprovado, o decreto implica que apenas indígenas que viviam na determinada terra ou estavam em disputa judicial por ela em outubro de 88, têm direito à sua posse. Assim, cerca de 80% dos territórios aprovados ou em processo de aprovação serão inviabilizados, pois mesmo áreas cujos ocupantes tenham sido retirados sob uso da força não poderão ser contestadas, caso tais índios não tenham conseguido recuperá-la até a data estipulada. Na prática, isso revoga o decreto 1.775

40 I Agronegócio e terras

do Governo FHC, que regula o tema há 20 anos. Na prática, ficam dúvidas quanto ao fim da colonização. PECUÁRIA ORGÂNICA A pecuária orgânica é uma técnica para criar o gado de modo menos danoso ao meio ambiente. Segundo a organização não-governamental World Wildlife Fund (WWF), os bovinos são rastreados e monitorados desde o nascimento até o abate. Toda a alimentação é isenta de organismos transgênicos, de procedência garantida ou produzida pelos próprios pecuaristas sob as normas de certificação. A vantagem para o consumidor é adquirir uma carne de maior qualidade, com garantia de estar sem agrotóxicos. Para o meio ambiente, é o fato de os produtores serem obrigados a seguir uma legislação que protege áreas naturais obrigatórias, como as matas próximas a um rio, por exemplo, proíbe o uso de fogo para manejo das pastagens, preserva nascentes e corpos d’água (qualquer acúmulo de água), e evita a contaminação do solo e dos recursos hídricos dentro da unidade produtiva, uma vez que o uso de produtos químicos não é permitido.

Há também cuidados com o bem-estar dos animais. A construção de currais em formato circular, por exemplo, evita ferimentos. O sombreamento das pastagens pode ser feito natural ou artificialmente: o primeiro consiste no plantio de pequenos bosques pelo curral, de forma que o gado possa se proteger do sol nos momentos mais quentes do dia (além de melhorar a qualidade do alimento próximo às sombras das árvores); o outro é realizado com telhamento ou colocação de tendas em pontos específicos, para o mesmo fim – geralmente é utilizado enquanto as árvores do método natural ainda estão em processo de desenvolvimento. Por fim, os criadores sempre estão atentos para a vacinação dos animais, inclusive contra febre aftosa. Em caso de enfermidades, o gado orgânico é tratado com produtos fitoterápicos, isto é, com plantas medicinais, e homeopáticos (embora a eficácia de tal tratamento não seja cientificamente comprovada até hoje). Hoje, apenas 26 fazendas nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul produzem carne orgânica certificada. por Isadora Venturini

Indígenas negociam na Advocacia Geral da União em 2012 Foto: Wikipedia

I 41


DEMOCRACIA

Os povos indígenas sob os olhos da lei Somente no século XX, os povos indígenas foram contemplados com direitos civis

Não é segredo para ninguém que, quando os portugueses aportaram onde hoje corresponde ao litoral do estado da Bahia de Todos os Santos, encontraram um povo habitando no local. Percebendo que teriam que lidar com uma população indígena para poder explorar a terra, em um primeiro momento, utilizaram o escambo (troca) para conseguir o pau-brasil. A partir do século XVII, são consolidados no Brasil os grandes latifúndios monocultores de cana-de-açúcar. Desde então “os povos indígenas são objeto de leis do Estado. A grande maioria visou à catequização, à aculturação, e à espoliação de suas terras tradicionais,” é o que afirma o professor da Universidade Federal do ABC Paulista, Luís Roberto de Paula. Essa situação de exploração dos povos indígenas perdurou até o início do século XX. “Somente em 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) pelo Marechal Rondon, é que o Estado brasileiro teve um órgão governamental afeito ao tema da defesa dos direitos indígenas,” declara Luís Roberto de Paula. De acordo com o site da Funai, as iniciativas do SPI “envolviam a intervenção na vida indígena através de um ensino informal, a partir das necessidades criadas, evitando-se influenciar a organização familiar. O objetivo era impedir conflitos entre

Para o professor da Universidade Federal do ABC Paulista, Luís Roberto de Paula, especialista em legislação indigenista, “somente com a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, é que os mais de 300 povos indígenas existentes no Brasil na atualidade, tiveram uma lei claramente voltada à proteção e garantia de seus direitos específicos e diferenciados. O professor fala que “a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, os sucessivos governos se viram na obrigação de cumprir a lei constitucional. Essa obrigação implica na formulação e implementação de políticas públicas em todos os campos possíveis voltadas aos povos indígenas,” afirmou.

anos a partir de 2018. Para Luís Roberto de Paula “O congelamento de gastos públicos afeta sempre os segmentos mais pobres e excluídos de um país. O orçamento indigenista, que já é diminuto para atender as necessidades de mais de 800.000 índios no Brasil, será mantido no mesmo patamar. Para piorar a situação, a população indígena tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas. Isso significa distribuir entre um número muito maior de índios o já diminuto orçamento indigenista,” declarou. Desde o primeiro senso demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1991, a população indígena passou de aproximadamente 300 mil indivíduos para cerca de 800 mil. “GOLPE”

PEC 55 No dia 13 de dezembro de 2016, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 55, conhecido também como PEC dos Gastos Públicos. Esse projeto congela os gastos públicos do governo pelos próximos 20

No dia 18 de janeiro de 2017, o governo de Michel Temer, por meio de seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, instituiu uma portaria que muda a demarcação das terras indígenas. A Funai é responsável por fazer a análise da terra e relatar no

processo os interesses indígenas e de terceiros. Encerrado os procedimentos, a entidade encaminha para assinatura do ministro da Justiça e depois ao presidente da República. Essa portaria, daria ao ministro da Justiça o poder de revisar todo o processo e mudar o parecer final da Funai. Isso seria um duro baque à luta dos povos indígenas, uma vez que o governo é alinhado à bancada ruralista, principal inimigo desses povos. Contudo, no dia seguinte, após elogiar a portaria, Michel Temer a derrubou devido à repercussão negativa dessa ação. O professor Luís Roberto de Paula diz que para preservar, a cultura, o território e os direitos dos indígenas, são necessários “a regularização fundiária de todas as terras reivindicadas pelos povos que ainda não as têm ou que as têm de maneira extremamente diminuta. Para os povos indígenas, sem a garantia da terra não há possibilidade de preservação cultural, saúde, alimentação saudável e educação tradicional,” finalizou. por Isaac Toledo

diferentes povos enquanto o SPI introduzia inovações culturais, prevendo possíveis mudanças nos locais de habitação dos índios. Foram estimuladas mudanças no trabalho indígena com a difusão de novas tecnologias agrícolas e o ensino da pecuária, além da arregimentação de índios para os trabalhos de conservação das linhas telegráficas”. Embora existisse uma boa vontade ao criar o Serviço de Proteção ao Índio, os recursos eram escassos e a maioria das pessoas envolvidas não tinha interesse pela proteção das culturas indígenas. Durante a década de 1960, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar acusações de ineficiência, genocídio e corrupção no órgão. Centenas de funcionários de diferentes cargos foram demitidos, até que em 1967, o SPI foi extinto. Em seu lugar foi criada a Fundação Nacional do Índio, a Funai. No ano de 1973, o então presidente da República, Emílio Medici, promulgou o Estatuto do Índio. Contudo, esse estatuto só reforçava o preconceito colonial de que os povos indígenas eram “incapazes” e por isso deveriam ter a tutela de um órgão estatal, Fundação Nacional do Índio (Funai) até estarem integrados à sociedade brasileira.

Indígenas protestando contra mortes encomendadas por ruralistas e PEC 215 relaxionada às demarcações de terras | Foto: Mídia Ninja

42 I legislação

Legislação I 43


Celebração do Dia Internacional dos Povos Indígenas na Câmara dos Deputados no ano passado Foto: Mídia Ninja

Articulação política indígena nacional Desde a década de 80, a articulação política indígena se fortaleceu Quando se fala em articulação política indígena no âmbito nacional, é natural pensar na Fundação Nacional do Índio (Funai). A linha de pensamento não está errada — afinal, a Funai é o órgão indigenista responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional, desde a década de 60. Contudo, é preciso estar atento aos termos utilizados, pois há uma diferença entre política indigenistas e políticas (ou iniciativas) indígenas propriamente ditas. Desde a Constituição de 1988, a representação política dos indígenas vem se fortalecendo consideravelmente. Ainda que a Funai tenha sido criada mais de 20 anos antes, em 1967, sua criação se deu na Ditadura Militar: no início, a Funai se parecia ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão nacional que a precedeu na proteção e difusão dos direitos indígenas. O SPI era uma instituição bastante controversa, pois foi formada em 1910 em torno de premissas coloniais, da continuidade de tradições

44 I ARTICULAÇÃO

missionárias com relação aos indígenas e de práticas sertanistas. Logo, mais consolidava a exploração do que a integração dos indígenas na sociedade brasileira. A Funai acabou por herdar muitas das práticas do SPI, mantendo-se vinculada ao Ministério do Interior até 1991, e persistindo com a tradição assimilacionista — tradição que consiste em agregar os indígenas em torno de pontos de atração, centralizando projetos de assistência (saúde, educação, alimentação, habitação), isolá-los de áreas de interesse nacional e, também, limitar o acesso de pesquisadores, organizações de apoio e, inclusive, missões religiosas a áreas indígenas. A partir de 1988, porém, tal tradição foi rompida, pois foi conferido aos povos indígenas, por meio da Constituição, o direito à diferença (Art. 231). As articulações políticas indígenas ganharam força e a possibilidade de se constituírem como pessoas jurídicas. Além disso, foram instituídos canais de comunicação entre índios,

Ministério Público e Congresso Nacional. “É muito importante que existam articulações políticas indígenas, e não apenas indigenistas”, afirma Fernanda Bortolotto, coordenadora do Núcleo de Pesquisas Indígenas no IPAN, “ou seja, que associações indígenas estejam à frente das reivindicações, que haja representatividade na formulação de novas políticas”. A pesquisadora ressalta a importância da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Apib, uma associação nacional de entidades indígenas que representam os povos indígenas do Brasil. Ela surgiu em 2005, durante o Acampamento Terra Livre desse ano, e seus principais objetivos são os de organizar os povos indígenas do Brasil, promover a união e a articulação entre diferentes regiões do país, unificar suas lutas e mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e as violações aos direitos dos índios. “Essa auto representação indígena na política é importante”, coloca Fernanda “mas também é importante que haja uma

colaboração entre articulações políticas indígenas e indigenistas, porque há uma dificuldade dos povos indígenas se enquadrarem nas organizações sociais, de se colocarem num lugar de ‘nãoindígenas’. Muitas organizações indígenas, mesmo tendo reivindicações muito válidas, têm dificuldade de se colocarem frente à política nacional, e por isso acabam perdendo espaço e também recursos financeiros destinados a povos indígenas”. A diferença entre políticas indigenistas e políticas indígenas, portanto, é que as primeiras são formuladas e executadas pelo Estado, e as segundas são protagonizadas pelos próprios índios. O cenário atual é bastante complexo, e não raro as políticas indigenistas oficiais são formuladas e implementadas por meio de parcerias. por Sophia Andreazza

ARTICULAÇÃO I 45


Infográfico: Ana Carolina Moraes

ACARIA Associação Comunitária dos Artesãos da Reserva Indígena de Araribá Povos: Terena, Guarani Ñandeva COAPYGUA Cooperativa Agrícola e de Alimentos Indígenas Povos: Guarani, Guarani Ñandeva Associação Comunitária Indígena de Icatu Povos: Terena, Kaingang

AVAÍ

Associação das Mulheres Indígenas do Centro-Oeste Paulista - AMICOP Povos: Terena, Kaingang, Guarani Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena - ARACI Povos: Terena, Kaingang, Guarani Ñandeva

Organizações indígenas EM são Paulo

46 I ARTICULAÇÃO

a instituição, o objetivo do conselho é “potencializar as ações para a melhoria da qualidade de vida dos povos indígenas e da garantia de seus direitos constitucionais e legais”. O CEPISP está localizado em São Paulo - capital - e reivindica pautas como demarcações territoriais, saúde, educação, transporte e comunicação por meio da “articulação de ações dos diversos órgãos e entidades da Administração Direta, Indireta e Fundacional do Estado”. Além do Conselho, outras articulações políticas existem para fiscalizar a validade de seus direitos e cobrar suas demandas no âmbito local. Quer saber quais são?

Comissão Guarani Yvyrupa Povos: Guarani, Guarani Mbya Associação Indígena Tembiguai - AIT Povos: Guarani Mbya

IDETI Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas Povos: Xavante, Guarani Mbya, Bororo

BAURU

Ação Cultural Indígena Pankararu Povos: Pankararu Associação Guarani Nhe’e Porã

Povos: Guarani Mbya

Articulações políticas indígena existem há 30 anos; mas, no âmbito estadual há apenas 13

Em pleno 2017, onde você pensa que a população indígena está? Engana-se quem pensa que a maior proporção está na zonas rurais ou áreas demarcadas. Segundo dados Instituto Braisleiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, 91% desta população vive nas cidades no Estado de São Paulo. O número aponta uma demanda urbana: a representação política indígena. Foi a partir de 1980 que a mobilização surgiu. Por conta da então nova Constituição Federal, de 1988, mais organizações e associações indígenas foram formadas, simbolizando a assimilação dos mecanismos institucionais pelos povos indígenas. No entanto, foi apenas em 2004 que a população indígena conquistou a representação estadual, com a criação do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, o Cepisp. De acordo com

CAPISP Comissão de Articulação dos Povos Indígenas de São Paulo Povos: Terena, Guarani, Guarani Mbya, Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva

Associação dos Índios Tupi Guarani Awá Nimbonjeredjú Povos: Guarani, Guarani Mbya

Organização Indígena da Aldeia Guarani Aguapeú Povos: Guarani Mbya

Associação Comunitária Indígena Guarani Tjero Mirim Ba’E Kuai Povos: Guarani Mbya, Guarani Ñandeva

UBATUBA

SÃO

SÃO PAULO

SEBASTIÃO

MONGUAGUÁ

ITANHAÉM

por Ana Carolina Moraes

ARTICULAÇÃO I 47


Indígenas em cárcere Várias falhas no sistema acompanham os povos indígenas em seus processos de prisão

“Muitas vezes o indígena tem medo de se dizer indígena” 48 I encarceramento

Ao abrir o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2014, notamos que, quando fala-se de indígenas, os dados são escassos. No Brasil, a porcentagem de indígenas presos é baixa: apenas 0,2%, segundo o instituto. De 1420 unidades prisionais no Brasil, 112 afirmaram que têm indígenas presos. Quando olhamos a porcentagem de indígenas encarcerados por estado, Roraima é o que tem uma taxa de encarceramento mais alta: 6,3%. Do restante, nenhum chega a 1,5%. Com números tão baixos de encarceramento, por que, então, falar dos indígenas em regimes de privação de liberdade? A porcentagem de indígenas presos é superior à porcentagem desse grupo na população brasileira, que é pouco mais de 0,004%. Como qualquer grupo minoritário, os indígenas enfrentam problemas específicos quando são presos. Apenas 9% das celas apresentam celas específicas para indígenas. E, apesar de haver dados sobre a quantidade de indígenas, apenas 46 estabelecimentos do país conseguiram informar a que etnia essa população pertencia. Falhas na autodeclaração, o preconceito dos agentes e da sociedade e a violação dos direitos quando eles são presos foram alguns dos problemas citados por dois especialistas entrevistados para essa matéria. Marginalizados desde o primeiro passo de construção do Brasil, os povos indígenas seguem sendo isolados da sociedade sem poder ter acessos aos seus direitos. Durante anos os indígenas foram considerados relativamente incapazes diante da justiça. Eles não respondiam por crimes pelo Código Civil de 1916. Este código foi o que influenciou a criação do Estatuto do Índio de 1976. O documento considerava indígenas isolados como inimputáveis e, os integrados à sociedade, um cidadão não indígena. Eram colocados

graus de identidade indígena, como se, em algum momento da “integração”, ele deixasse a sua identidade para trás. Foi a Constituição de 1988 que, através de manifestações da sociedade civil e dos povos indígenas, reconheceu o direito de manter a sua cultura e de ser diferente. A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas em Estados Independentes, vigora no Brasil desde 2003, quando foi ratificada pelo Estado. É o instrumento usado em todo o mundo para lidar com a justiça em relação a esses povos. Consta na convenção o reconhecimento dessa população de exercer o seu próprio sistema de justiça e punição, o direito à terra e aos recursos naturais, o direito de viverem de forma diferenciada sem discriminação, a terem seu modo de vida levado em conta em um julgamento e o direito a serem compreendidos nos processos legais. AUTODECLARAÇÃO Um dos nós que merecem atenção para o acesso dos indígenas aos seus direitos é a autoidentificação. Esse critério é a forma de identificar a qual grupo pertence uma pessoa. Para uma pessoa ser identificada como negra, por exemplo, é necessário que ela se declare negra e que o grupo étnico ao qual pertence também a reconheça. Essa definição está de acordo com a antropologia e os estudos sociais que estão em voga atualmente. O mesmo vale para os indígenas. Esse é o critério que mais entra em consonância com a Constituição Brasileira. Porém, de acordo com Guilherme Madi, vicepresidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), não é reconhecido pela comunidade jurídica tradicional. Na sua opinião, o judiciário não segue o desenvolvimento das ciências humanas

Ilustração: Andreazza/ encarcermento Sophia indígena ITribos 49


que estudam as questões indígenas. “Quem não trabalha com essa temática continua com aquele velho conceito ultrapassado de que índio é apenas o índio isolado. É um conceito baseado em uma doutrina assimilacionista. É a que permeou a ditadura militar, desde a edição do estatuto do índio. Teria o índio isolado, em vias de integração e integrado. Eles teriam direitos diferentes”, explica. Segundo o advogado, a partir do momento que a constituição reconheceu a cultura, a língua, os costumes dos indígenas, essa mentalidade deveria ter ficado para trás, mas não foi o que aconteceu. Nenhum dos agentes públicos envolvidos na prisão de um indígena são incentivados a pergunta-lo a que etnia ele pertence. Não existem informações a respeito do tema porque desde o início o processo tem falhas: “embora a lei determine esse critério, as pessoas não estão acostumadas. Falta educação em direito. Falta que os agentes que tratem dessa questão conheçam esse critério, apliquem esse critério e perguntem aos indígenas de forma a incentivá-los a falarem que são indígenas quando de fato forem. Muitas vezes o indígena tem medo de se dizer indígena achando que aquilo vai prejudicá-lo”. Especialmente nos grandes centros, Borges explica que os indígenas sofreram uma série de opressões que o inibem de falar a sua identidade. Apesar de haver críticas ao Estatuto do Índio, que foi feito antes da Constituição de 1988, durante a Ditadura Militar, ele continua bastante atual. Uma dessas críticas está justamente na diferenciação entre indígenas “integrados”, “isolados” e “em vias de integração”. A identificação de um indígena é independente do seu grau de isolamento do restante da cultura brasileira. O fato de ser indígena o garante uma série de direitos recorrentes do seu modo de vida e da sua trajetória no Brasil

50 I encarceramento

enquanto uma minoria. A não-identificação indígena no sistema carcerário leva ao problema relatado no início da reportagem. Não se tem informações sobre essa população e isso dificulta o pedido de políticas públicas e ações afirmativas para atenuar o impacto da prisão para esse grupo. Caroline Hilgert, que trabalha no Conselho Indigenista Missionário, afirma que as informações do Infopen não são suficientes nem seguros quando se trata desse grupo. “A gente que trabalha muito na base vê que esses dados são completamente falsos. Nós já conseguimos bater informações e ver que o Infopen informava uma quantidade de indígenas em determinado lugar e quando a gente vai perguntar para a Secretaria de Segurança Pública eles informam outra”, explica a advogada. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA Um dos motivos para os indígenas não se declararem como tal é a perseguição que sofreram ao longo da história. Aparentemente, não há benefícios em se denominar indígena. Grande parte das prisões de indígenas que acontecem no Brasil, por exemplo, tem uma motivação política. Caroline traz o relato de duas comunidades indígenas nas quais realizou trabalhos e nas quais pôde acompanhar a criminalização e os maus-tratos aos indígenas na abordagem policial. “Em 2014, em Candóia, foram cerca de 200 policiais, cavalaria, helicóptero, ministério público, para colher saliva forçada dos indígenas para fazer DNA e verificar com vestígios encontrados na morte de dois agricultores. Em Passo da Forquilha, em 2016, fizeram uma operação com 300 policiais. Deixaram todos em um salão virados de cabeça para baixo enquanto vasculhavam a comunidade, até idosos e crianças. Chegaram a denunciar até criança, adolescente, menor de idade.” Os conflitos agrários são um dos maiores motivadores dessas operações e processos políticos que ocorrem com a população indígena. A briga pela demarcação das terras gera violência no campo e as mortes das lideranças são uma forma de minar essas lutas e enfraquecer o movimento. Guilherme conta do caso do povo Xucuru. “Eu trabalhei no caso em que o vice-cacique respondeu a dois processos sob acusação de homicídio, e nós absolvemos nos dois casos. Muito claramente as acusações visavam enfraquece-lo como liderança para que outros interesses pudessem prevalecer naqueles locais”, afirma. Em 2016, Poró Borari foi preso pela Polícia Federal por estar liderando uma ocupação na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Santarém, oeste do Pará, para reivindicar melhorias no atendimento de indígenas de 13 etnias da região do Baixo Tapajós.

Foto: Pixabay

Ele foi acusado de, durante a ocupação, deixar em cárcere privado sete funcionários do órgão. O advogado de defesa alegou, na época, que a Polícia Federal chegou com o objetivo de cessar o movimento, uma vez que responsabilizou uma liderança por um ato coletivo. Ele disse ainda que em nenhum momento as portas do prédio foram fechadas, o que impossibilitaria o cárcere. VIOLAÇÕES As violações de direitos seguem durante todo o processo e julgamento dos indígenas. A não identificação impede, por exemplo, a presença de um tradutor durante o julgamento e a possibilidade do processo correr em sua língua materna. O fato de apenas 46 estabelecimentos em todo o país conseguirem informar a qual etnia aquela população pertencia mostra que apenas esse número de unidades prisionais poderia fornecer tradutores ao indígena na língua de seu povo.

Durante todo o processo, é possível também requerer a presença de um antropólogo. Caroline explica que isso é importante para que seja levada em conta a cultura e costumes do grupo étnico ao qual aquele indígena pertence. Essa é uma garantia constitucional e um pesquisador da área estaria ali para resguardar o multiculturalismo brasileiro. “Muitos juízes já tentaram usar esse recurso para testar o ‘grau de integração daquele índio’, mas não é para isso. Essa perícia antropológica é para testar as circunstâncias, como aquele fato é para a comunidade, aquele povo. Em todos a gente pede. Em geral os juízes aceitam, mas se não existe a identificação de indígena no processo

encarceramento I 51


“Eles não tem noção dos seus direitos, eles tem noção da repressão” penal, não é possível pedir”, conclui Caroline. Ela afirma que, quando um indígena é julgado pela justiça federal, é mais fácil assegurar esse direito. Essa situação deveria ser a regra segundo a sua interpretação da constituição. É que na Constituição Federal, consta que serão processados pela Justiça Federal disputas sobre direitos indígenas. Para ela, direitos indígenas são todos aqueles que estão assegurados pelas leis brasileiras, ou seja, direito à terra, moradia, preservação da própria cultura, à participação e à consulta, à livre determinação. A interpretação recorrente, porém, reduziu esses direitos às disputas de terras ou a crimes que afetam toda a comunidade. Uma orientação que deveria ser muito mais uniforme e federal, cai

Quando senador, Pedro Taques desnaturou o Novo Código Penal que tramita até hoje Foto: Wikipedia

52 I encarceramento

no âmbito Estadual. Os números refletem uma maior quantidade de julgamentos pela justiça federal. Nas penitenciárias federais, o número de indígenas presos cresce para 3%. Independentemente de onde é julgado e do seu crime, todos os indígenas tem direito à prisão em semiliberdade. Esse tipo de sentença é diferente do regime semiaberto. Neste, o condenado fica em uma cadeia usual e pode sair durante o dia. No caso do indígena, ele tem o direito de ficar na sua aldeia ou comunidade durante o dia e, durante a noite, ele dorme e fica sob vigilância do órgão da FUNAI mais próximo ao lugar onde vive. O advogado Guilherme discorda, de qualquer forma, de pena-prisão ao indígena. Porém, reconhece que esse é o método mais próximo

do ideal para lidar com o encarceramento indígena. “O ideal é que se pensasse em outras alternativas. Uma das coisas que eu acho mais importante de discutir é o direito à autotutela. Cada etnia pode resolver seus conflitos internos sem a utilização do Direito Penal. Em conflitos interindígenas ou quando se tem um conflito de natureza penal entre um indígena e um nãoindígena, é que se deveria fazer a aplicação do código penal. É importante ter esses mecanismos de diferenciação, para que ele não seja tratado como um não indígena e que sejam respeitados no processo penal aspectos próprios da sua natureza indígena”. A autotutela está entre os direitos dos povos indígenas no Manual dos Direitos Indígenas elaborado pela Due Process os Law Fundation (DPFL). O direito a seus próprios sistemas de justiça faz parte da garantia da manutenção de um sistema de valores e cultura de um povo. Porém, o direito à vida e a proibição de tortura se sobrepõe ao multiculturalismo. O limite é, portanto, os Direitos Humanos. Caroline concorda que o direito à exercer a própria justiça é, além de ser o mais correto, é também o mais eficiente. “O ideal para mim é eles serem punidos pela comunidade. Até porque a justiça aplicada pelos seus próximos é sempre mais eficaz do que se aplicada por um estranho.” Sempre que um indígena sofrer essa punição pela sua própria comunidade, ele não pode ser novamente julgado pelas leis do Direito Penal brasileiro. Há um caso de jurisprudência em Roraima nesse sentido. Um indígena que havia agredido outro

trabalhou durante 10 anos em um roçado da família do agredido. Ao ser processado novamente pela justiça comum, ele foi inocentado porque a comunidade já havia usado o seu próprio sistema de justiça interno para resolver aquele conflito. Todos esses direitos indígenas foram elaborados por conta da diferença cultural existente em um indígena e um não indígena. A pena de prisão já é árdua para o não-indígena pelas suas restrições e especialmente pelas condições insalubres e inadequadas das cadeias brasileiras. Para o indígena, essa pena tem um peso ainda maior. “Eu acho que a pena privativa de liberdade não só não socializa como brutaliza o homem. E isso em relação ao indígena, que tem pelas suas próprias características a questão de viver em um ambiente espacial muito maior, a privação de liberdade é algo caótico”, afirma o advogado Guilherme. O projeto de lei 236/12, conhecido como o Novo Código Penal, foi elaborado pela Comissão de Juristas e parecia um reforço no fortalecimento de todos esses direitos indígenas. Atualmente tramitando na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o projeto foi desnaturado pelo então senador Pedro Taques, que hoje é governador do estado do Mato Grosso. A sua proposta foi desconsiderar as punições próprias das aldeias e instituir como processo padrão o regime em semiliberdade. “Esse projeto é de 2012. Ele traz poucos avanços e muito retrocessos. Alguns retrocessos até meio escondidos, mas que são muito complicados”, opina Guilherme. Além disso, este projeto de lei

vai contra a convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. As ondas de retrocessos no Direito Penal deixaram aos indígenas lembranças de uma repressão institucionalizada. “Eles não tem noção dos seus direitos, eles tem noção da repressão que houve. Quando não tem ideia dessa repressão, seja porque o contato foi mais tarde, seja por outros motivos, não tem noção dos direitos que tem no processo penal”, explica Caroline. O trabalho de oficinas em regiões de conflito é feito pelas ONGs em que ela trabalha, pois muitos deles tem noção do direito à terra, mas não dos direitos em um processo penal, o que atrapalha muito a identificação. Um relatório realizado em 2008 pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), que estudou a situação dos indígenas detentos no estado do Mato Grosso do Sul com o apoio da União Europeia e a Moore Foundation, já apontava a “desetnização” do sistema penitenciário ao tratar dos indígenas. A insuficiência da defesa foi, ao final das contas, o fator de maior gravidade ao falar-se dessa população. É uma falha nos Direitos Humanos básicos e a eliminação de um pressuposto de qualquer procedimento judicial. Sem o direito de falar a sua própria língua, de ter uma perícia antropológica que possa colaborar para a compreensão dos costumes de sua comunidade e sem a própria identificação dos indígenas, o direito não é acessado por essa população. por Daniela Arcanjo

encarceramento I 53


56PROBLEMAS AMBIENTAIS O prejuízo da pecuária, monocultura e queimadas

64BELO MONTE

60 QUADRINHOS Os sinais da natureza são mais compreendidos por eles

Hidrelétrica é uma luta perdida de trinta anos

78ENTREVISTA

74DOCUMENTÁRIO O questionamento da geração de energia elétrica via água

Cineasta revela suas angústias quanto à vida urbana

MEIO AMBIENTE 54 I

Foto: Luana Brigo/Tribos I 55


Agricultura extensiva e pecuária são alguns dos maiores motivos para o desmatamento da Amazônia hoje Foto: Picography/Pixabay Pense nas coisas indispensáveis que garantem sua sobrevivência e como seria se elas começassem a se alterar a ponto de ameaçar a sua vida e das pessoas com quem se preocupa. Esse simples ato de reflexão talvez possa dar o tom da gravidade dos problemas ambientais que afetam de maneira profunda populações indígenas. Os problemas ambientais brasileiros causados pelo desmatamento, avanço da pecuária e da agricultura extensiva e pela construção de infraestruturas energéticas como hidrelétricas afetam de maneira direta e devastadora os povos indígenas brasileiros. As consequências para quem vive no setor urbano se estendem, no momento, ao calor excessivo, à falta de água e enchentes. Mas para quem depende da floresta, rios e natureza as consequências são severas e afetam diretamente a sobrevivência. PROBLEMAS AMBIENTAIS E O XINGU

A natureza e seus filhos pedem socorro O desmatamento é um dos problemas que mais afetam a sobrevivência e a vida de povos indígenas no Brasil

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Os alimentos já não são abundantes, os rios estão secando e o agrotóxico polui toda a terra, inclusive a que está ao redor. As queimadas são frequentes e se alastram com muita facilidade. O calor queima as frutas, antes mesmo que amadureçam, os animais que ali viviam já não aparecem e o canto das cigarras que anunciam as chuvas é ausente. Essa é a realidade de 16 povos indígenas que vivem no parque indígena do Xingu situado na parte sul da Amazônia brasileira. O parque do Xingu, atualmente, está cercado pelo desmatamento e plantação extensiva de soja, problemas esses que afetam diretamente o bioma do parque e a vida das pessoas que moram lá. Em entrevista para a Tribos, Paulo Junqueira Sócio do Instituto Socioambiental (ISA) e coordenador adjunto do projeto Xingu, falou um pouco sobre como os problemas ambientais Brasileiros se estendem aos povos indígenas. De acordo com Junqueira, o desmatamento que se iniciou com a pecuária e, a partir dos anos 2000, deu lugar à soja já chega a mais de 50% nos arredores do parque do Xingu. Desmatamento esse que gera problemas a todo o bioma ao redor, inclusive ao parque.

O sócio do ISA ainda destaca que a vida dos índios está caótica. O uso do fogo, por exemplo, que nunca foi um problema agora traz grandes incêndios. “A vida inteira os índios usaram o fogo, há várias utilidades desde limpeza de roça e caminho até a produção de cerâmica e eles nunca tiveram problema, a gente monitora desde 1994”, observa Paulo. O que ocorre agora é que com o desmatamento e ressecamento da floresta o fogo se alastra fácil e provoca incêndios devastadores. Em 2009 houve um grande incêndio no parque e no ano de 2016 ocorreu outro. Outro aspecto apontado é a falta de alguns animais que serviam como alimento, como o gafanhoto que desapareceu. O ciclo do rio está diferente, o que prejudica na pesca e nas atividades rotineiras que envolvem esse recurso. E esse fato está diretamente ligado ao desmatamento. Junqueira aponta que a nascente do rio Xingu fica fora do parque aonde há taxas cada vez mais altas da derrubada da floresta, inclusive nas beiras dos rios e nascentes. “O desmatamento fora tem um impacto enorme na vida deles”, lamenta Paulo. As pragas também são um problemas recorrente, além da roça que tem sido fortemente prejudicada pela falta da chuva. Todos esses fatores somados criam um cenário de desesperança que afeta a vida desses povos, mas que ainda é invisível para grande parte da sociedade. Para se ter uma maior compreensão sobre como esses problemas ambientais são decisivos no dia a dia de populações indígenas que vivem no parque do Xingu, o Instituto Socioambiental produziu um documentário: Para onde foram as andorinhas que evidencia esses problemas de maneira nítida. CONFLITOS Quando o assunto são as leis ambientais, no papel não há problemas. O código florestal garante a preservação do leito dos rios e da floresta, o problema está no cumprimento dessas leis. Paulo Junqueira aponta que “segundo o código florestal, não deveria ter sido derrubado um graveto das beiras dos rios” e de fato não é isso o que ocorre. A fiscalização não dá conta e o desmatamento, que traz após seu início os

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O código florestal brasileiro é favorável à preservação das matas. No entanto, o desmatamento hoje já mudou até o ciclo do Rio Xingu | Foto: Picography/Pixabay

“A sociedade precisa saber que sofremos um ataque do governo” 58 I Meio ambiente e sociedade

outros problemas, avança a cada ano em áreas que não são permitidas legalmente. “A própria construção de Belo Monte foi feita em cima de irregularidades ambientais”, aponta Junqueira. Há, ainda, outras construções de infraestrutura energéticas que são levadas adiante mesmo com todas as consequências negativas às populações indígenas expostas. O que se observa é que o interesse econômico se sobrepõe aos direitos indígenas e ambientais. Esses interesses que, geralmente, são opostos geram conflitos. O estado do Mato Grosso do Sul é onde esses conflitos entre índios e fazendeiros estão chegando ao limite. Os índios têm sido mortos de muitas maneiras: envenenados, atropelados, mortos por armas de fogo ou por grupos paramilitares. A própria ação do estado em Belo Monte não foi pacífica, “passaram os tratores no vilarejo de Belo Monte por cima das casas, tiraram as pessoas e levaram para outro lugar fora da beira do rio, uma apropriação da terra mesmo”, destaca Paulo.

FALTA DE FLORESTAS ALTERA HÁBITOS Localizada no centro-oeste Paulista, entre Avaí e Duartina, a aldeia Ekeruá, habitada por indígenas pertencentes ao povo Terena, se reconstitui da falta da floresta e teve antigos hábitos afetados pela falta da natureza. David é professor da aldeia e conta que quando se mudaram para lá, em 2002, toda a extensão era um pasto. Agora as árvores que eles plantaram estão ganhando força e crescendo. Os antigos hábitos de plantio, caça e pesca foram afetados pela falta da floresta, agora muitos produtos que serviam para alimentação precisam ser comprados. A plantação de arroz na própria aldeia já não é mais possível, ato que David participava quando criança. Segundo ele, o problema está na falta de instrumentos para processar o arroz. O pilão, por exemplo, que servia para tirar a casca do arroz não pode mais ser produzido porque não há árvores como matéria prima. A pesca ainda se mantém como um hábito, mesmo que em menor quantidade,

mas a caça não é mais possível. Agora se quiserem comer carne eles podem criar galinhas e porcos ou recorrer a compras desses produtos em mercados e açougues. “O próprio uso de energia elétrica está associado à falta da floresta”, apontou David. O uso de energia elétrica, a necessidade de veículos para locomoção - quando eles precisam comprar materiais que não podem ser produzidos na aldeia - entre outros hábitos, geram gastos. Essa nova gama de necessidades já não é suprida pelo trabalho e nem provida pela aldeia, o que leva os indígenas a trabalharem fora para que possam sobreviver e garantir suas necessidades. Ou seja, é a falta da floresta, causada pela devastação ambiental, a grande responsável pela mudança de hábitos de muitas aldeias indígenas que se veem obrigadas pela necessidade de sobrevivência a alterarem seus modos de vida. PERSPECTIVAS FUTURAS As perspectivas futuras não são as melhores, se os problemas ambientais que afetam as populações indígenas acontecem porque não há um cumprimento rígido das leis e a fiscalização é falha, eles poderão acontecer em conformidade com a lei. Paulo Junqueira aponta que a situação política brasileira é preocupante com relação aos direitos indígenas e ambientais brasileiros. Jupira Terena, fundadora do movimento das mulheres indígenas e umas das lideranças do movimento indígena do Brasil e do

estado de São Paulo, alerta para um grande retrocesso com a nova portaria que muda o processo de demarcação de terras indígenas. “A sociedade precisa saber com clareza que estamos sofrendo um ataque do governo sem dó. As demarcações de terras é o que mais nos atinge, fragiliza nossas esperanças, nossos direitos de uma educação e saúde com dignidade”, aponta a líder. Com essa mudança no processo será criado um Grupo Técnico especializado (GTE) para fornecer informações, assim como a Funai, ao ministro da justiça para ajudá-lo na decisão com as demarcações. O que pode ser preocupante nessa portaria é o peso que a avaliação da FUNAI passará a ter e quem poderá compor esse GTE. “Isso com certeza fortalecerá os anseios da bancada ruralista e o sindicato de produtores rurais. O que é muito preocupante para os povos indígenas. Um verdadeiro retrocesso, violência com os nossos direitos já garantidos pela Constituição Federal de 1988.” ressalta Jupira. Todo esse novo processo de demarcação esbarra na questão ambiental, já que as terras indígenas são as grandes responsáveis por grande parte do bioma brasileiro que ainda é preservado. Paulo Junqueira aponta a possibilidade de uma agenda de retrocessos avançar no congresso e que essa questão deve ser bastante pensada porque influi diretamente no futuro ambiental e indígena do país. por Ana Carolina Ribeiro

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QUa dri nhos Ilustração das próximas páginas refletem o sentimento indígena mostrado na reportagem anterior

A relação do homem com a natureza atravessa milênios e a medida que o tempo passa está cada vez mais afetada em populações urbanizadas. Deixou-se de viver de maneira harmônica e complementar à terra para explorá-la sem pensar na sua manutenção. Como tradição, as populações indígenas mantém sua relação de respeito com a natureza, a harmonia com o meio e a forma como eles utilizam dos recursos naturais ainda remete à relação inicial do homem com a terra. No Brasil, a maior parte de terras preservadas são exatamente aonde existem povos indígenas. Assim como a natureza precisa desses povos para continuar existindo e respirando, eles também precisam dela. Comer, vestir, morar e se relacionar para esses povos está diretamente ligado aos ciclos e processos da terra. Como sabem que vai chover, em qual época se deve plantar e colher e os ritos religiosos estão diretamente ligado ao cosmos de onde habitam. Quando destruímos florestas, desmatamos, ressecamos a terra e poluímos, não estamos apenas destruindo o lugar onde

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vivemos, estamos, primeiramente, acabando com a terra de povos indígenas e negando a eles toda a relação cultural que lhes é própria e, assim, também negando-lhes a vida. Pensar sobre isso não é apenas importante, mas vital para preservação da fauna, flora e do homem. Essa informação precisa chegar aonde o homem se esqueceu dessa sua relação com a natureza. Quando não se mora ao lado de uma selva e não se sabe a importância de uma árvore para comer, de uma floresta para chover e de chuva para plantar, a consciência da importância de se preservar se esvai. Para tanto, queremos relembrá-los da necessidade da preservação e como viver em harmonia com o meio ainda faz parte da sobrevivência de povos que garantem a vida do meio ambiente, na mesma medida que precisam dele para continuarem existindo. por Ana Carolina Ribeiro e Jéssica Dourado ilustração por Sophia Andreazza

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QUEM PAGA BELO

MONTE? Com início na Ditadura Brasileira, projeto da hidrelétrica conseguiu ser viabilizado pelo congresso sob protestos da sociedade civil. O aproveitamento da usina é de apenas 40% da sua capacidade

Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta 64Foto: I

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rios, de preservação da floresta”. Segundo ele, todos os recursos são usados para que não acabem. “Isso é muito diferente de uma empresa com plantação de soja, cana, monocultura. Para as empresas, quanto mais espaço, melhor. Enquanto tiver o que explorar, vão usando. O capitalista que acumula para poucas pessoas não pensa muito no futuro”, afirma. A principal motivação política que Tonico enxerga nessas mega obras é a geração de emprego. Para ele, no entanto, esses empregos não são definitivos. “Todo emprego que é gerado nessas obras vai gerar desempregados um tempo depois. Não é uma forma definitiva de acabar com a pobreza”. Altamira sofreu com esse Tentando ser construída pelas forças políticas desde o período ditatorial brasileiro (1964-1988), Belo Monte é um exemplo das tantas obras faraônicas brasileiras que desrespeitaram os Direitos Fundamentais das populações locais. Sem a consulta dos povos que seriam afetados, um projeto controverso conseguiu ganhar forma na época de um governo de centroesquerda, em 2009, quando a versão final foi apresentada pelo governo federal. A usina hidrelétrica fica na região de Altamira, no norte do Pará, por onde passa o Rio Xingu. Os vários povos indígenas e ribeirinhos que estão ali terão suas vidas impactadas pela hidrelétrica. Quando o projeto foi idealizado, em 1975, as suas pretensões eram muito maiores do que, mais de 30 anos depois, foi realizado. O nome do projeto era Kararaô e não poupava sequer o Parque Nacional do Xingu, maior parque indígena do Brasil e, na época de sua criação, em 1961, o maior do mundo. Idealizado por Darcy Ribeiro após a expedição Roncador dos irmãos Villas Bôas na década de 1940, o parque fica na cabeceira do Xingu e foi pensado a partir de um plano de interiorização do Brasil no governo Vargas. O rio é a maior fonte de água e alimentação dos indígenas daquela região. Atualmente tem cerca de 5500 indígenas de 14 etnias diferentes, além de abrigar povos que falam línguas dos quatro principais troncos linguísticos do Brasil. O engenheiro Francisco Del Moral afirma que foram feitas muitas mudanças para a implementação de Belo Monte. Ele é organizador do relatório “Painel de Especialistas”, uma análise crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, feito por mais de 30 profissionais de diversas áreas. Quatro hidrelétricas eram para ter sido construídas de acordo com o projeto original. As dimensões desse

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projeto criaram um movimento contrário à construção de uma hidrelétrica num dos principais afluentes do Rio Amazonas. Para se ter uma ideia, a intenção era construir um complexo cuja capacidade era maior que a Usina Hidrelétrica de Itaipu: 20.000 MW. O alagamento seria de 18.000 km², o que corresponde a uma área 12 vezes maior que a cidade de São Paulo. Esse projeto foi abandonado por conta da polêmica gerada, da luta dos povos da região e também pela profunda crise que se instalou no Brasil no pós-regime militar da década de 1980 e 1990. Em 2001, no entanto, as ondas do “apagão”

Havia quase dois mil pescadores ativos que seriam prejudicados que tomaram o Brasil passaram a ser uma boa justificativa para fazer renascer o projeto. Após intensas lutas judiciais, o reservatório passou para a área de 516 km², que foi o mais impactante para a geração de energia a que inicialmente a usina se propunha. A liberação do projeto pelo IBAMA para o leilão da usina foi diante de 40 condicionantes, que envolvem questões da fauna, das populações que seriam impactadas, do saneamento básico, dos impactos sociais e ambientais. Dentre essas condicionantes estão a monitoração da qualidade da água e o acompanhamento do modo de vida da população de Volta Grande, a construção de saneamento básico e tratamento de esgoto em Altamira e Vitória do Xingu e a garantia da possibilidade do rio continuar

sendo inteiramente navegável. Essas condicionantes tiveram diversos percalços para serem cumpridos. O Dossiê Belo Monte, do Instituto Socioambiental, denunciou alguns deles. Em julho de 2015, foi publicado no site da instituição uma notícia sobre a falta de avaliação dos impactos da pesca no licenciamento. Na região de Altamira e Vitória do Xingu, por exemplo, havia quase dois mil pescadores com carteiras e ativos que seriam prejudicados após o barramento do rio. Na época, a atividade pesqueira já havia sido reduzida. Ela é um traço cultural que vem de diversas gerações naquela região. O Estudo de Impacto Ambiental da obra avaliou apenas os danos da fauna e da flora decorrentes da barragem, mas não previu compensações a esses pescadores. A questão do saneamento básico, essencial para não prejudicar ainda mais a qualidade da água que ficou sem fluxo quando a barragem foi concluída, permaneceu durante um ano na cidade de Altamira. Após reuniões com a presidência da Norte Energia e com ministros da Secretaria Geral da Presidência, foi determinado que seria criada uma empresa para instalar as tubulações dentro das casas da população. Francisco afirmou em nossa entrevista que recebeu informações, a serem confirmadas, de que a cidade de Altamira havia alagado acima do tolerado. “Algumas regiões em que não estava previsto o alagamento estavam alagadas. Existe um indicativo de que a cota máxima do reservatório na cidade de Altamira tenha sido violado. Precisamos verificar isso, muito embora as fotos mostrem que as pontes estão submersas”, afirma ele. Tonico Kaiowa, antropólogo e liderança indígena do Mato Grosso do Sul, lembra que o indígena “usa o espaço de uma forma diferente, que o capitalismo não respeita, de integração com a natureza,

“Nenhum partido atendeu como deveria atender os oprimidos” | Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

“O capitalista que acumula para poucos não pensa muito no futuro”

fenômeno explicado pelo indígena. Mais de 20 mil trabalhadores foram demitidos no final de 2015. Dados da prefeitura da cidade informam que houve uma queda na economia de 52%. Em seis meses, a prefeitura havia recebido mais de mil currículos. Francisco afirma que na Amazonia a ideia de desenvolvimento, geração de empregos e progresso é recorrente historicamente. “Existiu o ciclo da borracha na Amazônia. Aquelas casas enormes, mansões, são símbolo da pujança econômica daquela época. Esse ciclo foi prometido como algo que traria riqueza para aquelas localidades, e isso não ocorreu. Houve também a Transamazônica, que prometeu progresso para as regiões de Tucuruí e Altamira, isso também não ocorreu”. Ele afirma que, atualmente, o ciclo é o das hidrelétricas, que também promete progresso. O fato de existir essa promessa, porém, é o atestado de fracasso dos ciclos anteriores naquela região. Apesar de Belo Monte ter envolvido 18 mil pessoas em várias construções, em Altamira há postos de saúde

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construídos que não estão operando, os valores dos imóveis da cidade cresceu, embora sem o aumento do poder de compra, os reassentamentos não foram cumpridos até o momento, o índice de criminalidade aumentou. “Belo Monte tem atraído pessoas que não encontram as oportunidades prometidas. Isso tem intercorrências sociais, aumento de criminalidade, prostituição”, afirma o engenheiro. Para Francisco, nesse “Ciclo das Hidrelétricas não seria possível nem suprir as pretensões do governo. “Há uma solução técnica que já foi cogitada: a de construir mais usinas hidrelétricas acima de Belo Monte para resolver o problema da ociosidade do fluxo do rio”. Para ele, essa ideia não foi abandonada, bem como não foram abandonadas a possibilidade de usinas hidrelétricas no Rio Tapajós, barradas no meio do ano passado por se sobreporem a áreas de preservação consolidadas. Na opinião do especialista, há algo de concreto nessa história que é deixado de lado: não há dinheiro para construir tantas usinas no país. “São cinco em Tapajós, outras quatro que foram previstas há mais de 30 anos no Rio Xingu, mais algumas na Amazônia Peruana. Existe um surto por essas obras, mas ele não é socialmente nem tecnicamente justificado ainda. Os dirigentes e os planejadores não vem ao público falar dessa necessidade”. Quanto às promessas e à expectativa de se ter um partido de esquerda no poder, o antropólogo Tonico diz que é difícil definir o que foi ou não decisão do Partido Trabalhadores (PT). “Existia um discurso de que quando a esquerda entrasse no poder resolveria muito o problema do pobre, do indígena, do excluído, do dominado - seja urbano ou do campo. Mas, ao meu ver, o PT nunca entrou sozinho, mas cheio de aliados que tem outras posições. Eu nunca entendi que quem estava no poder era só o PT. Estão lá outros poderes da direita”. O importante, na sua opinião, é a mobilização indígena. “Ela sempre irá existir, independentemente do partido que está no poder. Nenhum partido atendeu como deveria atender os oprimidos”. A construção de Belo Monte pode, ainda, ser um fator para o agravamento do desmatamento na Amazônia. A informação é do relatório “Painel de Especialistas”. Um desses profissionais é Edna Castro, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – UFPA. Ela foi responsável por um artigo dentro do relatório que associou a construção de Belo Monte ao desmatamento. Nesse artigo ela afirma que o EIA não contou com a população que é atraída pela possibilidade de empregos indiretos ou novas oportunidades de trabalho, além dos 35 mil trabalhadores contratados pelas construtoras que já vão para a cidade. Para a estudiosa, essas pessoas irão representar mais pressão na região e a necessidade de serviços em geral, como educação, saúde, transporte, habitação etc. Todos esses serviços que deverão ser prestados potencialmente aumentam o desmatamento. Em 2007 o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) estimou um desmatamento no estado do Pará de 22 milhões de hectares. Isso corresponde a 17,5% do total do estado. Ainda segundo a pesquisadora, 80% do efeito estufa é causado pela queima de combustíveis fósseis. O restante provém do desmatamento. Um dos principais impactos de Belo Monte está na região de

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“A principal responsabilidade de uma empresa são os Direitos Humanos”

Volta Grande, onde foi diminuída a vazão do rio, o que abaixa o nível de água no trecho. “A natureza e a biodiversidade naquela região evoluiu ao longo do tempo em função do regime natural do Xingu, que varia de acordo com o clima. Hoje os ribeirinhos chamam essa região de ‘Trecho de Sequeira”. Como a água foi desviada para produzir energia elétrica, as comunidades pesqueiras que estão há anos ali tiveram uma redução drástica da oferta de peixe. Além disso, o transporte, que normalmente é feito pelo rio, fica comprometido e até a oferta de água fica comprometida, porque o lençol freático diminuiu”, conta Francisco. Sobre o relatório dos possíveis resultados da construção de uma hidrelétrica para a população local, o EIA também apresentou falhas segundo o texto da antropóloga Diana Antonaz. Para ela, faltaram referências bibliográficas específicas sobre essa população. A análise social foi feita a partir dos agentes, e não dos povos nativos. Enquanto os diagnósticos apresentam ampla discussão, as soluções para redução do impacto estão em apenas um volume. Tratando-se de indígenas, há ainda mais omissão: suas especificidades são tratadas apenas no penúltimo volume, antes das referências. Além disso, o Plano de Sustentabilidade Econômica da População Indígena não foi feito para garantir a continuidade de suas práticas próprias. Segundo a antropóloga, visa-se “transformar os índios em agentes ambientais ou mão-de-obra capacitada para o eventual trabalho remunerado sob

Foto: PAC/Governo Federal

formas e sob controle de grupos nãoindígenas”. Para Caio Borges, advogado da ONG Conectas Direitos Humanos, o processo que justifica esse tipo de obra controversa segue um padrão. Usam-se medos recentes que estão no imaginário da população para criar-se uma necessidade daquela demanda. Segundo o advogado, Belo Monte não passa de mais um “elefante branco” no nosso país. A revista “The Economist”, em 2010, denominou o empreendimento brasileiro da mesma forma, dedicando uma reportagem inteira para mostrar todos os impasses e problemas que a obra vinha causando mesmo antes de seu término. A explicação de Borges vem de dados que mostram o aproveitamento da Usina Hidrelétrica. O alvo da polêmica, além de todos os conflitos indígenas e ambientais, é que 10% da capacidade energética do Brasil provém da Usina, porém apenas na época de cheia do rio. Na seca, 4500 MW são gerados, o que é menos da metade do aproveitamento da época da cheia. A resposta para esse fenômeno está na inconstância do Rio Xingu. “Belo Monte está em um rio cujas vazões naturais flutuam muito. Se analisarmos os registros históricos do Rio Xingu nos últimos 100 anos, vamos ver que houve vazões máximas de até 29 mil m³/s e mínimas de 700 m³/s”, explica o engenheiro Francisco. Essa diferença é regida pelas estações do ano, uma característica comum das florestas subtropicais, especialmente a Amazônia brasileira.

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“Os empregos gerados vão gerar desempregados depois”

Protesto no congresso contra Belo Monte, realizado por indígenas do Pará. Para Caio Borges, Belo Monte é um elefante Branco | Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil

Essa especificidade faz a Usina de Belo Monte aproveitar apenas 39% de sua capacidade máxima. Por não ter um grande reservatório, ela segue a variação do rio: o funcionamento e a geração de energia da hidrelétrica seguem o fluxo do Xingu, que é inconstante. O maquinário da usina não é aproveitado durante o ano inteiro, pois o rio não é capaz de ofertar um grande reservatório. “É como se eu tivesse um carro 2.0 na garagem e usasse só 39% do tempo que eu poderia andar. Ou seja, eu não tenho um carro 2.0 o ano inteiro, apenas 39% do tempo”, explica Francisco. Essa situação não acontece com todas as hidrelétricas. Para Francisco, antes de discutir a necessidade de Belo Monte para o Brasil, é preciso ser divulgada a quantidade de energia que o país precisa e questionar a presença da hidrelétrica nos episódios de superfaturamento de obras. “Algumas pessoas afirmam que Belo Monte tem mais a ver com os setores de construção e mineração do que com a própria geração de energia, justamente pela característica ociosa do rio. Cerca de 14 bilhões do total estimado de Belo Monte já foram direcionados para as empreiteiras. Tem que ser avaliado se ela diz respeito à energia ou às grandes empresas que estão nas bases dos tribunais respondendo sobre propinas e desvio de dinheiro público”. Um dos principais motivos para essa desconfiança é que, se fosse feito um reforço nas linhas

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de transmissão de energia elétrica brasileiras e o intercâmbio de energia entre as regiões fosse melhorado, menos dinheiro público seria gasto do que com a construção de uma hidrelétrica. “Essa questão é preliminar à Belo Monte”, explica Francisco. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA Tonico Kaiowa lembra do assédio que as empresas fazem ao chegar um grande empreendimento perto de uma aldeia. “Sempre há um impacto, direto ou indireto. Quando há resistência, uma posição contrária, normalmente a empresa oferece coisas materiais, no sentido de convencer a liberação. Isso é bem comum. É uma tática da empresa, oferecer desde coisas pequenas até automóveis. No caso de Belo Monte, há povos que resistem, mas o objetivo dessas empresas é explorar o meio ambiente, a mão-deobra, os indígenas”, explica. A aparente divergência que existe entre os temas

“desenvolvimento” e “Direitos Humanos” é escancarada ao pensarmos em uma empresa inserida no capitalismo financeiro que visa o lucro e o agendamento do congresso para os seus interesses. Porém, criado pelo Shift (organização não governamental liderada por antigos membros da equipe do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos), os princípios orientadores das Nações Unidas incluem a responsabilidade que empresas tem na promoção dos Direitos Humanos. Foi criado um padrão global para garantir o respeito aos direitos fundamentais nos processos empresariais. Tonico Kaiowa afirma que muitas vezes esses impactos são previstos pela população indígena. “O impacto negativo vem. Para os indígenas e as populações tradicionais não vai ser novidade quando acontecer algo como o que aconteceu com Mariana. Nada vai ser surpresa para o indígena. Às vezes parece que a ciência descobriu isso, mas os indígenas já sabiam o que ia acontecer”. Ele fala que a rede de poderes de recursos e bancos consegue

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encobrir os avisos dos indígenas. Caio Borges indica como um fenômeno da contemporaneidade “o poder que essas grandes empresas tem reunido nos últimos anos”, em detrimento do poder do Estado e de outros órgãos civis. Nesse sentido, é dever do Estado não permitir abusos por parte das empresas, é responsabilidade jurídica das empresas evitar a perda dos Direitos Fundamentais. Assim, é importante criar inclusive auditorias e abordar também impactos negativos dos empreendimentos nos quais essas empresas se envolvem, e, por fim, permitir o acesso a ações judiciais quando esses direitos são rompidos. No caso de Belo Monte, este último elemento do quadro “Proteger, Respeitar e Reparar” das Nações Unidas, é de ainda mais difícil cumprimento. Borges atenta para a dificuldade de se fazer vistorias e cobrar indenizações em locais de difícil acesso. “Casos muito complexos, envolvendo principalmente projetos de infraestrutura em locais muito remotos são difíceis. O custo para fazer a documentação é muito alto. Fazer provas e evidências que podem ser levados aos tribunais é complicado”, explica. No entanto, ele defende que a necessidade de cobrar grandes empresas é essencial para a construção de uma sociedade mais democrática. “A minha visão é que não há responsabilidade socialempresarial sem Direitos Humanos. Os direitos humanos estão na base do centro. A principal responsabilidade que uma empresa pode ter é respeitar os Direitos Fundamentais”, completa. MINERAÇÃO NO RIO XINGU Em fevereiro desse ano, a empresa canadense Belo Sun havia sido autorizada a realizar mineração no Rio Xingu por 12 anos. Diversas teses já afirmavam que a construção de hidrelétricas era o passo inicial para possibilitar a entrada de mineradoras no rio. A presença de ouro na região é o principal motivo para especialistas afirmarem a ligação entre a mineração e a construção de Belo Monte. “Essa história é muito antiga. Estudiosos que dedicaram mais de 30 anos em estudos e acompanhamentos de Belo Monte já diziam que a hidrelétrica era mais relacionada a interesses fundiários – como

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Foto: PAC/Governo Federal

valorização daquela terra – e mineração do que à própria geração de energia”. O engenheiro afirma que o mapeamento geológico da região indica a presença de minerais de muito valor, especialmente no “trecho de vazão reduzida” que foi feito no Xingu, no trecho de Volta Grande, uma das partes do rio que mais sofrem por conta da deformação de seu aspecto natural. Com um nível de água menor nesse trecho, fica muito mais fácil praticar a extração mineral. “Eu sempre verificava ali pessoas fazendo investigações minerais para ver a presença de ouro. Havia até pessoas estrangeiras, que inclusive nem falavam português”, conta Francisco. Segundo o MPF, a Licença de Instalação da mineradora para que ela pudesse atuar não deveria ter sido cedida por falta de um Plano de Vida para os moradores

É sabido há décadas o interesse na mineração do Rio Xingu que serão impactados pela empresa. Essa licença dá à mineradora o direito de construir alojamentos, barragem de rejeitos, estação de tratamento de água, duas lagoas de contenção de água, serviços de terraplanagem e vias internas de acesso. Para a Secretaria de Meio Ambiente, a construção seria positiva para a região, que sofre com o desemprego e a população em situação de vulnerabilidade social. A Belo Sun tinha a previsão de criar 2 mil empregos em sua fase inicial de implementação. Essa licença havia passado por cima também do parecer da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que exigia a revisão do documento no que diz respeito ao impacto da população indígena que vive ali. Porém, pouco durou a licença para a construção da mineradora. No final do mesmo mês, a Defensoria Pública do Estado do Pará suspendeu a licença. No documento, consta que aquele espaço

trata-se de terras públicas e de interesse de regularização fundiária. Elas foram discriminadas e arrecadadas pela União ainda na década de 1980. Francisco alerta para as consequências que podem acontecer caso a mineração aconteça na região. “Existem implicações muito sérias. Já é uma região que sofre do ponto de vista social e ambiental por conta da alteração da dinâmica do rio, e que é muito próxima de terras indígenas. O processo de licenciamento ambiental jamais poderia ser levado adiante por uma agência estadual, como foi o caso”. Na opinião dele, a FUNAI e o IBAMA tem que se envolver para fazer um contrapeso aos licenciamentos de Belo Monte e Belo Sun, que estão alinhados. Para o engenheiro, a especulação imobiliária e as valorizações das terras que estão ali são especialmente prejudiciais às populações indígenas. “Eu diria que estão se aproveitando do fato de Belo Monte já ter conseguido a licença de operação e da tragédia ambiental em Volta Grande, para sacramentar a mineração ali”, afirma Francisco. A população ocupa aquela região desde 1940, e a transnacional canadense tem um escritório no município de Ilha da Ressaca desde 2013. As principais atividades que sustentam as populações locais é o garimpo, a pesca e o extrativismo. Denúncias já haviam sido realizadas por essas pessoas contra a empresa: em 2015 e 2016 eles afirmaram que a Belo Sun estava criminalizando as suas atividades.Não era especificado no documento da licença onde seria construída a lagoa – uma vez que o Rio Xingu já tem uma barragem que impacta seus dependentes. A licença foi concedida pouco mais de um ano depois do desastre de Mariana - na cidade mineira, uma barragem da Samarco rompeu no final de 2015, levando um rio de lama para as cidades de Aimorés, Governador Valadares, Caratinga, entre outras. Este foi considerado o maior desastre socioambiental da história brasileira. O volume total de rejeitos que invadiu o Rio Doce inundou completamente a cidade de Bento Rodrigues e se alastrou por mais de 15 quilômetros até chegar ao mar. por Daniela Arcanjo

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Indígenas da etnia Munduruku podem estar ameaçados por uma nova Belo Monte, retratada no documentário O Jabuti e a Anta | Foto: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta

Que Belo Monte é um absurdo, elas sabiam. Mas queriam ir a fundo nesse tema

documentário: os povos indígenas e a Belo monte A imagem do progresso é a que fica sobre a construção de hidrelétricas. Os povos locais, últimos beneficiados, acumulam histórias não contadas. O Jabuti e a Anta as mostra para o espectador

“Mesmo se o governo fizer a barragem, a gente não vai sair daqui. Só se o governo matar a gente”.

Com essa frase, um indígena da etnia Munduruku resume a força da sua luta. Ele mora próximo ao Rio Tapajós, onde se planeja a construção de um complexo hidrelétrico pelo governo brasileiro. A construção de obras em terras indígenas diverge da constituição brasileira, que foi o motivo para barrar o empreendimento em agosto de 2016. A citação acima é do documentário “O Jabuti e a Anta”, lançado no final do ano passado com roteiro de Carol Quintanilha e direção de Eliza Capai. O longa é obrigatório para quem quer saber um pouco mais da lutas da população nativa da Amazônia e as violações de direitos que acontecem quando essas megaobras entram na cena de povos tradicionais. O projeto que termina como o documentário “O Jabuti e a

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Anta” surge como uma websérie chamada Linhas, que está disponível no YouTube. Marina Yamaoca, diretora executiva do Greenpeace, se juntou à Eliza Capai e Carol Quintanilha em 2014 para produzir esse material. O questionamento inicial de Marina surge quando ela vai cobrir a Conferência de Clima da ONU. Em entrevista para a equipe da 40ª Mostra de Cinema de São Paulo, ela conta que os participantes desse evento acreditavam que as hidrelétricas eram uma energia limpa, o que não batia com a realidade brasileira que ela estava vivenciando. Foi o pontapé inicial para, dois anos depois, Eliza Capai estrear o primeiro filme de mais fôlego da sua carreira sobre a questão indígena. E isso originado de um projeto inicialmente mais modesto, mas que teve grande impacto: Linhas teve mais de 500 mil visualizações no primeiro mês e foi ao ar em seis semanas. A viagem foi feita em locais de geração de hidrelétricas do

Brasil. As viagens mexem com a nossa noção de espaço e tempo: quatro hidrelétricas protagonizam o filme para mostrar o que significou para a população local a construção de uma hidrelétrica que foi desativada após o seu uso, como as construções de obras faraônicas impactam hoje os moradores locais e como esse resultado pode ser convertido. Com muita luta. PRESENTE - PASSADO - FUTURO O primeiro local foi São Paulo, no complexo de Ilha Solteira, um dos seis maiores do mundo, que está abandonado após gerar energia para a região. Belo Monte também é um ponto da viagem. A obra não só vai mudar os costumes das pessoas que estão à beira do Rio Xingu; como a cidade de Altamira, que se localiza perto da hidrelétrica, teve um aumento significativo de violência

e prostituição. O Rio Ene entra para mostrar a luta dos Ashaninkas peruanos, que conseguiram barrar um complexo binacional Brasil-Peru, que seria feito pela Odebrecht. Esta construção seria basicamente uma hidrelétrica feita na Amazônia Peruana para abastecer o Brasil. Toda a história é contada por uma personagem urbana, narrando – na voz de Letícia Sabatella - o documentário com questionamentos “primários, secundários, terciários”, como explica Carol Quintanilha. “Eu e a Eliza somos muito parecidas. Nós brincávamos que tem o questionamento 1, 2, 3, e por aí vai. Primeiro você questiona, depois questiona o próprio questionamento. Às vezes estávamos conversando e já tínhamos chegado no nível 4 ou 5 do debate”, explica ela, rindo. Que Belo Monte era um absurdo, ela conta que já não era mais falado. Elas queriam ir mais a fundo nesse tema.

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Essa personagem foi justamente o jeito que elas acharam de aproximar o telespectador desse debate. “Às vezes você chegar só com os dados técnicos não comove as pessoas, elas não percebem o que tem a ver com isso. Pegar uma pessoa que tem uma vida urbana, que está na correria do cotidiano e deslocar ela para lá, colocar os questionamentos dela, foi uma forma de trazer mais identificação”. Outras personagens, dessa vez reais, trazem uma outra narrativa ao telespectador urbano distante das lutas do campo e indígena. Carol conta que uma boa energia da equipe traz coisas boas – essa foi a chave para encontrar, por exemplo, uma senhora que há mais de 30 anos cultiva plantas em sua casa e que, no dia posterior à entrevista para o documentário, recebeu uma carta de remoção do governo para a construção de condomínios em decorrência da especulação imobiliária em Altamira. “Ela deu um depoimento de três horas para a gente. A história dela é a história do Brasil, da Amazônia. Na vida dela tem história de escravidão, da Transamazônica,

A seca em São Paulo foi o ponto de partida da caminhada do documentário Foto: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta

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de analfabetismo, de superação, da conexão com a natureza, de compreensão do capitalismo e do consumo, de crianças roubadas. Ela foi muito generosa”. Com todos trabalhando alinhados, “as coisas acontecem”. Essa é a explicação dada pela fotógrafa para o surgimento de tantas boas personagens para o filme. “Quando a equipe está na mesma sintonia e as pessoas entram na história, as coisas começam a fluir e a aparecer. A gente chegava nos lugares sem personagem, mas estávamos abertos, então eles surgiam. É como se fosse uma conexão com o trabalho que estamos fazendo”. O Greenpeace é um coprodutor. A ONG teve peso principalmente na primeira fase do documentário, de pesquisa, trazendo as principais informações sobre toda a questão social, ambiental e das leis e impactos que estavam por vir. Esses dados já estavam no repertório da Carol, ela já havia trabalhado com as questões socioambientais. “Eu acho importante a gente não se acostumar a lidar com essas questões. É sempre um baque, é muito difícil e transformador”.

Moradora de Altamira há 30 anos, Rosa teve que sair de sua casa para dar lugar a empreendimentos imobiliários decorrentes da especulação na cidade Foto: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta

O Rio Tapajós, onde seria realizada outra hidrelétrica, é mostrado como um alerta. A construção ali conseguiu ser barrada por um licenciamento do IBAMA que indicou a inconstitucionalidade da obra, uma vez que ela seria construída em áreas indígenas. Como as terras da região estão sendo autodemarcadas pelos próprios indígenas - elas não foram demarcadas oficialmente -, alega-se que a obra não é inconstitucional. Apesar da permanência desse povo, o governo nega-se a demarcar terras que estão sendo ocupadas pelos Mundurukus há décadas. Bem como Belo Monte, o projeto da hidrelétrica está se estendendo como uma ameaça há muito tempo. Foram dois meses de viagem para responder essas questões perguntando principalmente para quem pode falar sobre esse assunto com excelência: as pessoas que sofrem com as grandes construções e não são as principais

beneficiadas pela geração de energia. Quem normalmente tem que sair de seus lugares são pescadores, indígenas, ribeirinhos. Pessoas que tem um modo de vida mais próximo da natureza e, consequentemente, usa menos energia. “Nós fizemos esse filme pensando no Tapajós, pensando em impedir o complexo hidrelétrico do Tapajós. Nós sabemos que Belo Monte foi uma história meio perdida e muito triste. De alguma forma nós temos esperança de que o filme e o movimento consigam barrar. Existem alternativas”, afirma Carol. Pelas indicações em festivais, o impacto deu certo: a Mostra de Cinema de Tiradentes, o Cineamazônia, o Memória em Movimento, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Festival do Rio já receberam o documentário. por Daniela Arcanjo

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Eliza, o Jabuti e a Anta A cinegrafista tem um instrumento de luta: a sua câmera. Ela já filmou indígenas, mulheres, migrantes, ribeirinhos

Eliza Capai é formada em jornalismo pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e produz desde 2001 documentários com temática social. Diretora do longa “O Jabuti e a Anta”, Eliza leva as suas angústias para as suas produções. Com diversos filmes com a temática de gênero, em 2008 ela viajou por sete meses do Panamá aos Estados Unidos para produzir reportagens sobre a migração de mulheres para a Revista Fórum. Georgina Magic’s Wand foi produto dessa viagem e ganhou o Migr@tion/Canada. Pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo ela fez a websérie “É proibido falar em Angola”, que abordou o regime violento e totalitarista do país, do qual também foi vítima. A questão das populações indígenas e dos ribeirinhos não é novidade para ela. Foi a partir de uma viagem a Amazônia que ela resolveu mudar o seu estilo de vida., quando estava em uma comunidade no Acre pela qual ela diz ter apaixonado. Foi aí que ela se desfez do seu modo de vida mais urbano para mudar de cidade: hoje ela não mora mais em São Paulo. Foi para o litoral do estado, onde consegue ter uma vida mais sossegada após essa “epifania”, como ela chama, em 2004. Conheça o processo produtivo do Jabuti e a Anta e onde essa história cruza com a da documentarista.

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O INÍCIO “Era 2014, ano da Crise Hídrica de São Paulo em que vários reservatórios das Usinas Hidrelétricas estavam sem produzir energia e outras formas mais sujas de produzir energia cresciam. Vinha aquela mesma pergunta: ‘por que a gente continua investindo nesse mesmo modelo hidrelétrico?’ Dessa pergunta surgiu uma viagem, que foi feita por trechos. Foram quase dois meses de viagem no decorrer de três meses, no final de 2014”. “Era aquele momento em que não se declarava, a mídia tratava como se nada estivesse acontecendo, mas que quem morava em São Paulo às vezes ficava 5 dias sem água nas suas torneiras. A gente via muitas campanhas para reduzir o tempo no banho e esquecia que o maior consumo de água não está no nosso banho, mas nos produtos que a gente consome. Nesse mesmo momento várias hidrelétricas paulistas estavam com as suas comportas fechadas. Ou seja, usinas sem produzir energia”. “O que foram essas mega obras nas décadas de 60, 70, que a gente continua reproduzindo? Porque Belo Monte e Tapajós são projetos da Ditadura Militar. O que a gente quer daqui pra frente? A gente quer esse projeto ou a gente quer novas formas

Eliza Capai conta de suas angústias ao longo das entrevistas realizadas para o longa | Foto: André Mantelli/ I 79 Acervo pessoal


Ao lado, Eliza fala do documentário na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Abaixo, filma um pescador impactado pelo comlexo de Ilha Solteira | Foto: Divulgação | Abaixo: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta

de interação com a natureza? São Paulo entra como essa reflexão de que esse é um modelo de produção de energia que vem se arrastando nas últimas décadas.” “A viagem suscitou outras angústias. A gente conversou muito com pessoas afetadas por esses megaempreendimentos, deslocadas de suas casas, deslocadas de seus modos de vida. E nós entendemos, em um lugar muito profundo, que ter assinado a petição contra Belo Monte não fazia com que o nosso estilo de vida não fosse a favor daquilo que nós consideramos barbárie com a Floresta Amazônica e com seus povos amazônicos. É dessa angústia que surge o Jabuti e a Anta. Consegui dividir essas questões todas, o quanto a Amazônia está sendo afetada pelo nosso estilo de vida, de quem mora nas grandes cidades.” OUTRO MODO DE VIDA “É uma dificuldade muito grande de compreender estilos de vida que não sejam os nossos próprios. Se a gente pensar na história do Brasil, os povos indígenas, principalmente, são sempre colocados de fora, como primitivos. Há

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um esforço muito grande para a realização desse discurso de um suposto atraso dos povos indígenas. Desde expressões como “programa de índio”, até a negação das línguas indígenas. Algo que não acontece em alguns outros países latino americanos. Aqui há uma negação de que os indígenas são brasileiros. Essa construção histórica ao longo de cinco séculos é muito forte, seja em governos militares, de centro-direita, centro-esquerda. Nenhum deles teve uma preocupação profunda de incluir os indígenas em um discurso de respeito. Custa muito para as pessoas da cidade, grandes, pequenas, entendermos outros estilos de vida que não sejam pautados no consumo, que o sucesso não seja medido pelo que se tem, pelo que é comprável. A gente não entende a riqueza de outros povos. A Amazônia é habitada e alterada há dez mil anos. E só nas últimas década tem uma destruição nessa escala. Os índios introduziram outros plantios, outras culturas, animais, desmataram ali para fazer as suas hortas, mas eles conseguem viver em harmonia. Custa muito para a gente compreender o viver em harmonia. A angústia do filme vem daí. A gente

esquece que para nós consumirmos os nossos produtos, precisa de mineral, energia que vem de fontes energéticas, uma quantidade de água brutal. Então muitas vezes o que criticamos, na verdade estamos colaborando. Esse filme é uma tentativa de criar empatia com essas outras formas de viver para que a gente consiga se olhar de uma forma profunda e entender que, sim, a gente tem responsabilidade no que acontece na Amazônia”

A indígena Ashaninka Ruth foi uma das personagens mais marcantes para Eliza. Ela barrou um complexo hidrelétrico no Rio Ene, no Peru | Foto: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta | Ao lado: Divulgação

BELO MONTE E TAPAJÓS “No dia do meu aniversário eu estava gravando o documentário e amanheci às 5 da manhã. Eu tinha dormido em uma rede na frente do Rio Xingu. Amanheci com aquele nascer do sol roxo, passei a manhã em um lugar em que as tartarugas estavam desovando. Foi uma das experiências mais fortes da minha vida. Aquele seres antigos, na persistência da continuidade da vida num cenário lindo. Saí de lá e fui para uma entrevista com a Rosa Pessoa. Eu estou há dois anos com esse material e não tem uma vez que eu não veja a entrevista e não chore novamente. É uma mulher que, desde que

eu nasci, ela começava a plantar e cultivar o jardim da casa dela. Ela foi plantando todas as plantas frutíferas e medicinais. No dia que eu fui lá, ela sabia que, no dia seguinte, teria que sair dali porque aquele lugar viraria um condomínio de luxo. Então é essa sensação dupla, de deslumbramento e de injustiça. Eu aprendi muito sobre o quão grandes e o quão mesquinhos nós podemos ser. Essas pessoas tem uma relação muito diferente com a natureza. Eles negam o sistema capitalista e acho que isso é ainda mais intolerável para quem faz o remanejamento delas”. “Ao mesmo tempo a gente vive um momento em que tramitam vários licenciamentos de licenciamento ambiental que pretendem que não seja mais necessário a palavra do IBAMA para licenciamento para grandes obras. Ou seja, tudo pode

mudar na terra dos Mundurukus (etnia ameaçada por mais uma hidrelétrica na Amazônia que inundaria as suas terras). O que mais protegeria eles é demarcação do território. Há muito tempo a terra deles está em processo de demarcação. Há mapas do próprio governo que falam disso, mas o governo não demarca, porque senão impede totalmente Tapajós. Em 2014, eles faziam a autodemarcação de forma simbólica. O processo se arrasta há mais de uma década. Belo Monte demorou 20 anos para sair do papel, foi o mesmo

Entrevista I 81


Elisa nada no Rio Negro durante os meses em que estava gravando seu primeiro longa | Foto: Carol Quintanilha/O Jabuti e a Anta

processo. Em relação ao Mundurukus, então, a gente tem que estar muito atento para não fazer com que uma nova Belo Monte seja construída no Tapajós”. OUTRAS FORMAS DE EXISTÊNCIA “Essas empresas chegam e oferecem dinheiro, lancha para os indígenas. Oferecem 4X4, chegam e perguntam o que eles querem, coisas de consumo absolutamente sedutoras, e isso faz com que os grupos comecem a rachar, as lideranças comecem a rachar, ir contra a união do próprio grupo, e rola uma desmobilização social.” “Se eu não soubesse a história da Ruth Buendía (liderança indígena que ganhou o prêmio Goldman, considerado o Nobel do Meio Ambiente, por liderar o movimento contra a hidrelétrica no Rio Ene), ia me soar muito ingênua a fala dela, mas conhecendo a história, me chega com muita força. Ela fala: ‘a gente precisa de um povo leal aos seus governantes e de governantes leais aos seus povos. Com isso, a gente pode derrubar qualquer monstro,

82 I Entrevista

por pior que ela seja.’ O monstro em questão que Ruth fala é a Odebrecht, o governo brasileiro e o governo peruano. Essa lealdade é a chave que ela dá para as suas transformações. E se na época, em 2014, me angustiou essa questão da lealdade dos governantes com seus povos, depois do escancaramento da nossa classe política na votação do impeachment, essa angústia cresce ainda mais. Não é ao seu povo que os governantes que nós elegemos são leais. Então eu acho que é um convite muito forte à reflexão e à união. São movimentos muito fortes no Brasil que criticam e marginalizam qualquer forma de organização social. É o MST que é apresentado como vagabundo, os movimentos estudantis apresentados como vândalos. Qualquer tentativa de movimento que tenha realmente força para transformação é trazido pelo viés do preconceito, de palavras que o diminuem. Ruth traz isso: sem lealdade, sem união, isso não é possível. É esse o convite que os Ashaninkas nos fazem”.

“Eu aprendi muito sobre o quão grandes e o quão mesquinhos nós podemos ser”

por Daniela Arcanjo

Entrevista I 83


86BANDEIRANTES Uma dolorosa lembrança para a história indígena brasileira

94LÍNGUAS O que se perde quando um idioma deixa de existir?

104 ESPIRITUALIDADE Novas religiões dividem espaço com ritos tradicionais

90 GERAÇÕES Raízes mantidas junto ao uso de novas tecnologias

100 SINAIS Pesquisa analisa a lingugem para indígenas surdos

108 CULINÁRIA Mandioca é o principal suprimendo da tribo Terena

Memória 84 I

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Bandeira Vermelha Considerados heróis do povo paulista, os bandeirantes são uma dolorosa lembrança para a história indígena brasileira

“Os bandeirantes deixaram um rastro de destruição e despovoamento” 86 I BaNDEIRANTismo

No século XVII, o Brasil era uma imensa porção de terra inexplorada e hostil aos colonizadores portugueses, ávidos conquistadores em busca de novas rotas comerciais marítimas. O desbravamento da nova área descoberta abaixo da linha do equador era um novo desafio para a coroa portuguesa. A partir da chegada de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500 até meados de 1530, diversas naus exploravam a vasta costa brasileira, mapeando-a. Até então, a extração do pau-brasil era a principal atividade extrativistas na nova colônia. Expedições terrestres adentravam poucos quilômetros de distância da costa a fim de encontrar minas de metais preciosos. Porém, a colonização de fato só começou após o então rei de Portugal, D. João III, criar, em 1534, o sistema de Capitanias Hereditárias. O novo incentivo à posse da terra possibilitou o surgimento das primeiras vilas. Para dar prosseguimento à colonização e ao domínio do território, a coroa também incentivava interessados em adentrar no território. O movimento das “Bandeiras” estabeleceu um divisor de águas na história do Brasil colônia. “A figura do bandeirante surge na virada do século XVI para o XVII na então capitania de São Vicente, a partir dos interesses dos moradores das vilas desta capitania saírem em direção ao interior do território em busca de mão de obra indígena”, como explica a historiadora e doutora em História Social, Fernanda Sposito. A alcunha de “Bandeirantes” dada a estes primeiros desbravadores, porém, veio décadas mais tarde. “O chamado ‘bandeirantismo’ foi, na verdade, uma prática da excursão em grupo. Naquele período eles não se denominavam como ‘bandeirantes’”, explica Célio Losnak, historiador e professor da UNESP. Só a partir do século XIX surge

a denominação de “bandeirantes”, a qual, para alguns autores, se dá pelo fato de as elites paulistas estarem “em busca de ancestralidades, de uma origem comum para o povo paulista, e, portanto, contada por meio de uma história que haveria de ser gloriosa”, completa Losnak. Não tardou para que as expedições iniciadas em São Paulo a partir da segunda metade do século XVI avançassem para além dos limites do Tratado de Tordesilhas. “Os homens que empreenderam tais expedições não foram motivados por intenções coletivistas. Primordialmente, não pretendiam contribuir para a formação da nação e não eram representantes da cúpula política da metrópole”, como escreve o professor e doutor em educação Manuel Pacheco Neto, em seu livro intitulado “A escravização indígena e o bandeirante no Brasil colonial: conflitos, apresamentos e mitos”, publicado em 2015 pela editora UFGD. Os “Bandeirantes” avançaram pelo território, promovendo a morte de povos indígenas e também uma brusca imposição cultural no modo de vida dos nativos. “Quantos índios foram dizimados pelos bandeirantes é difícil saber. Os fatores causadores do genocídio indígena foram as guerras, as doenças, a miséria, os trabalhos forçados a que foram submetidos durante o regime colonial e até mesmo no Brasil independente”, comenta Sposito. ESCRAVOS Uma das características fundamentais dos primeiros povoados no início da colônia e cuja população daria início às expedições terrestres pelo território era a pobreza, especialmente nas capitanias mais ao sul e sudeste do território Brasileiro. “Elemento essencial, intrínseco às motivações que empurraram os paulistas para o sertão, a insuficiência

Escravidão indígena retratada por Jean-Baptiste Debret em 1834: nativos escravos também compunham bandeirantes. Ilustração: Wikipedia

material planáltica é corroborada por historiadores de tendências marcadamente distintas, que, de maneira convergente, qualificam as caminhadas sertanejas como a busca do remédio para a pobreza paulista”, escreve Pacheco Neto no mesmo livro. Distantes do centro político-econômico da coroa, os bandeirantes estavam fadados a construir sua riqueza do zero. Na época, a posse de terras era a forma mais efetiva de se obter algum poder. A mão-de-obra escrava negra tocava boa parte das lavouras do Brasil. No entanto, ao contrário de poderosos latifundiários em condições de comprar escravos africanos, o bandeirante era miserável. Um dos motivos para as primeiras expedições, portanto, foi a captura de nativos para o trabalho escravo. A escravidão indígena existiu até meados do século XVIII em algumas regiões do Brasil, mesmo tendo sida proibida várias vezes ao longo da história colonial. O índio não era escravizado apenas para o trabalho manual. “Cerca de dois terços dos membros das tropas bandeirantes

eram constituídos de índios escravos dos próprios bandeirantes, atuando nas expedições de guerra e captura de outros índios, em territórios distantes, os quais seriam enviados como escravos às vilas da capitania de São Vicente”, revela Sposito. A sabedoria dos povos indígenas a respeito das terras, fauna e flora seria de muita serventia aos bandeirantes, tornando-os importantes na procura de minas de metais preciosos, já que alguns nativos ostentavam ornamentos feitos com metais valiosos. “Sérgio Buarque de Holanda escreveu vários textos mostrando a importância dos conhecimentos indígenas a respeito das matas, rotas e formas de sobrevivência na selva para que as expedições das bandeiras obtivessem êxito”, completa a historiadora. Para além das atividades na lavoura e na mata, o índio escravo também teve sua força de trabalho utilizada nas áreas urbanas. “Quem hoje presencia o cosmopolitismo e a densa urbanização de São Paulo não imagina que, onde agora se assenta a megalópole, já labutaram, sofreram e morreram milhares de escravos índios”, documenta Pacheco Neto. O historiador

Bandeirantismo I 87


alerta para um ponto pouco lembrado na história de São Paulo. “A cidade é o que é, em certa medida, devido à mão de obra dos homens que foram escravizados pelos bandeirantes, depois de terem sido caçados como animais, nas matas do Brasil Colonial. A escravidão indígena que ocorreu em São Paulo é, de fato, praticamente desconhecida da maioria dos brasileiros”, relata. A exploração dos nativos é abafada da história brasileira. O Estado e a sociedade não se empenharam o suficiente para, com o tempo, tentar reverter esse débito com os nativos. “Os atos do Estado brasileiro, especialmente no estado de São Paulo, são geral e institucionalmente para enaltecer os bandeirantes como a ‘alma paulista’, não buscam reparar seus males em relação aos povos indígenas”, afirma Sposito. GENOCÍDIO Dentre os registros de extermínio de nativos por parte dos bandeirantes está a chamada “Guerra dos Bárbaros”. O conflito se deu, aproximadamente, da segunda metade do século XVII até meados de 1720, envolvendo os colonizadores e os povos nativos chamados Tapuia. Em termos atuais de território, o embate ocorreu numa área que inclui os sertões nordestinos, desde a Bahia até o Maranhão. “Se por um lado a guerra envolveu diversos povos indígenas, muitos deles inimigos tradicionais, por outro lado os colonizadores também entraram em conflito entre si pelas terras e mão de obra escrava nativa”, escreve a historiadora Maria Idalina Pires em artigo intitulado “Guerra dos Bárbaros – O terrível genocídio que a História oficial não conseguiu esconder”, publicado em agosto de 2015 no Blog da Editora Contexto. O texto de Pires destaca uma das

batalhas ocorridas durante a “Guerra dos Bárbaros”. No ano de 1699, 400 índios Paiacu foram mortos e outros 250 da mesma etnia foram presos pelo bandeirante paulista Manuel Álvares de Moraes Navarro. Com o intuito de “combater povos indígenas, inimigos dos colonizadores, entre eles os Carateú, os Icó e os Carati, chegou ao rancho dos Paiacu acompanhado de 130 homens armados”. Depois, convidou os índios Paiacu, os quais já eram batizados e sem histórico de conflito, “a participar de um combate, com os Janduí, já previamente aliados ao regimento”. Inflamou discórdias entre as tribos Paiacu e Janduí, inimigas tradicionais, de propósito, e entregou armas e munições a estas últimas para atacar as primeiras. A intenção era poder tomar as terras dos nativos e escravizálos, com a justificativa de que estavam em guerra. “Sem nada saber, como se acolhe um aliado, os Paiacu receberam-no e sua comitiva com festa. Quando começaram as danças e folgares, como se isso significasse um código, soldados da tropa e índios Janduí iniciaram a matança cujo desforço foi o cruento massacre dos indígenas”, escreve Pires. Semanas depois do massacre, Navarro relatou, em carta enviada ao Governador Geral, sobre os “bons serviços” que havia feito, afirmando ter realizado apenas mais uma “guerra justa” contra índios já rebelados há décadas. A relação da figura do bandeirante com a de genocidas é

aceita por historiadores. Fernanda Sposito acredita ser “difícil trabalhar com números”, já que não há uma maneira de calcular com exatidão o tamanho da população indígena antes e mesmo depois da chegada dos colonizadores. De acordo com dados do mais recente censo populacional realizado pelo IBGE em 2010, o Brasil possui pouco menos de 900 mil indígenas. Cálculos demográficos e arqueológicos afirmam que a população indígena poderia ser estimada em 5 milhões de pessoas no ano de 1500. “Quantos índios foram dizimados pelos bandeirantes é difícil saber. Os fatores causadores do genocídio indígena foram as guerras, as doenças, a miséria, os trabalhos forçados a que foram submetidos durante o regime colonial e até mesmo no Brasil independente”, complementa Sposito. Célio Losnak avalia os bandeirantes de forma semelhante e alerta para o fato de a sociedade brasileira reconhecer muito pouco seu débito para com os povos indígenas. Ele ainda rememora os ataques sofridos pelas tribos que habitavam as regiões afetadas pela construção da malha ferroviária da estrada de ferro Noroeste do Brasil. Os conflitos entre os construtores e as tribos foram inevitáveis. Chama a atenção, porém, os métodos utilizados para afastar os índios. “Memorialistas registram expedições de ataques aos índios de madrugada com envenenamento de córregos com veneno estricnina; roupas com doenças infectocontagiosas às quais os índios não tinham

Monumento às Bandeiras em São Paulo: para alguns historiadores, uma homenagem, em última instância, a assassinos | Foto: Isaac Toledo/Tribos

88 I BaNDEIRANTismo

resistência eram deixadas nos arredores das tribos; entre outras”, afirma. Indagados se monumentos em memória dos bandeirantes homenageiam, em última instância, assassinos, os historiadores crêem que sim. “Esses homens foram escravizadores de índios, sertanistas especializados nas guerras de guerrilha, nas andanças pelo interior do território. Mas isso está longe de dizer que foram povoadores, que seria graças a eles que nosso território tem a feição que têm hoje. Afirmar isso é desconhecer a história, pois, onde os bandeirantes passaram durante o período colonial, deixaram um rastro de destruição e despovoamento”, conclui Fernanda Sposito. Célio Losnak vê tais monumentos como a história contada pelos vencedores. “Os bandeirantes dominaram parte das sociedades indígenas do sul do Brasil e construíram uma memória na qual essa dominação aparece como uma virtude, sobrepondose à perspectiva indígena, de modo a não reconhecer esse período como um problema sério de desrespeito à cultura alheia”, finaliza. Em seu livro, Pacheco Neto afirma que o “heroísmo dos caçadores de índios é disseminado em todo o Brasil, sendo figuras como Raposo Tavares, Borba Gato, Fernão Dias, Bartolomeu Bueno (Anhanguera), dentre outros, eternizadas em monumentos a céu aberto e cultuados em quadros antigos, nos salões assépticos dos museus”. A “heroicização textual e iconográfica dos bandeirantes” apaga, segundo ele, a figura do índio na historiografia, o que “produz um espantoso paralelo com o que ocorreu em grande escala na colônia, onde sertanistas de carne e osso apagavam índios de carne e osso, na concretude nua e crua de um cotidiano compungente, emprestando muita propriedade à afirmação de Darcy Ribeiro: ‘A história das nossas relações com os índios é, em grande parte uma crônica de chacinas…’”, escreve. por João Pedro Pavanin e Isaac Toledo

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Produção do Hihi, prato típico da cultura Terena, é uma atividade que envolve os membros da aldeia em datas festivas| Foto: Ana Carolina Moraes/Tribos

mudanças e permanências de um povo

comum seja descaracterizado e que as mudanças passem a serem vistas como um processo comum a todos que vivem sobre o efeito do tempo. MUDANÇAS

O povo Terena mantém suas raízes e faz o uso de novas tecnologias para otimizar suas atividades

O tempo passa para todos e com ele vêm as transformações. Novos hábitos são inseridos no cotidiano de todos, ano após ano. As tecnologias trazem novidades e facilitam muitas atividades que já faziam parte da rotina, bem como ajudam na circulação de informação e comunicação. Essa realidade não é nada inédita para nossa sociedade e é vista de maneira muito natural por todos. Mas como esse mesmo tempo interfere nos hábitos de povos indígenas? SENSO COMUM É muito comum escutar que os indígenas já não são “indígenas”. Que não vivem mais em florestas, que andam com roupa, que utilizam tecnologia, têm geladeiras, carros e televisão. Esse tipo de afirmação é generalista e ignora muitos aspectos importantes

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como a passagem do tempo e a diversidade de povos indígenas que existe no país. Se para todos os “não indígenas” as mudanças de hábitos e uso de itens tecnológicos são vistos com naturalidade, por que o espanto quando a mudança é vista em aldeias indígenas? Lígia Moscardini, pesquisadora da Unesp de Araraquara que trabalha com textos em língua portuguesa escritos por indígenas Juranas, destaca que é fundamental esquecermos a visão estereotipada de qualquer cultura diferente da nossa. “Ainda temos aquela visão superficial dos livros de História ruins, aquela visão do índio de 1500, de bom selvagem, de salvador da floresta. Qualquer coisa diferente desse estereótipo e o índio não é mais índio, perdeu sua cultura, perdeu sua identidade. Essa visão exótica de redoma de vidro é complicada, ainda mais se pensarmos que temos cerca de 300 etnias. O Brasil não é só do ‘branco’”, afirma Moscardini. Então, é importante que esse senso

Como destacou a pesquisadora existe uma diversidade de povos indígenas em nosso país e essas mudanças são muito particulares a determinados povos e aldeias, por isso não é possível tratar essa mudanças de maneira geral. Para tratar desse tema vamos falar de um povo e aldeia específicos, o povo Terena e a aldeia Ekeruá. Algumas mudanças são promovidas por condições históricas e ambientais, e outras são advindas do uso de tecnologia. David

“Ainda temos aquela visão superficial dos livros de História ruins”

Terena, professor da aldeia Ekeruá, aponta que algumas mudanças que ocorreram em sua aldeia são consequências da falta de floresta. Como, por exemplo, a necessidade de veículos para locomoção já que é preciso comprar alimentos e utensílio porque a aldeia não provê tudo o que é necessário pela falta de certas matérias primas. O uso de energia elétrica, segundo o professor também vem da falta de floresta. Isso tudo gera um gasto, o que também leva os índios a trabalharem fora da aldeia. Todo esse processo histórico e ambiental provocado por intervenções da sociedade não indígena trouxeram essas mudanças que agora fazem parte do dia-a-dia dessas aldeias. A educação indígena formal também pode ser uma considerada uma mudança. Muitos indígenas da aldeia Ekeruá são formados em universidades e continuam se graduando. As escolas das aldeias preparam as crianças e adolescentes para os estudos formais e permitem que eles prossigam com a educação se quiserem. Essa mudança é muito positiva já que

“Há níveis de conhecimento que são passados a partir de certas idades” dá oportunidade de espaço ao indígena em locais que ainda requerem certa formalidade como a academia e permite que eles sejam a voz de seu povo e o represente. A educação formal (escolar) que passou a fazer parte da educação indígena no povo Terena tem um aspecto muito importante que é a transmissão da cultura e valores desse povo e o ensino da língua Terena. Mais do que mudança, esse novo aspecto que foi absorvido pelo povo Terena foi “ressignificado” por eles e funcionam como mecanismos de fortalecimento e preservação cultural. O uso de tecnologia também interfere em alguns hábitos, mas são usados de maneira positiva. Márcio Coelho – historiador, antropólogo e indigenista de

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Bauru, afirma que o uso de celulares, computadores e demais tecnologias ajudam na rotina do povo Terena. Ela serve para que tenham maior acesso às informações, aos seus direitos, bem como denunciem os problemas que envolvem e afetam seu povo e tudo isso de maneira mais rápida e prática. Até em atividades corriqueiras como fazer a roça a comunicação via Facebook ou Whats App é efetiva e acontece. As crianças também já têm essas ferramentas na mão, David ressalta que está sempre de olho para que eles usem com moderação e que tenta ensiná-las a usar com sabedoria. PERMANÊNCIAS A maneira como a cultura é transmitida e a própria essência cultural do povo Terena não se perdeu com o tempo. As relações sociais e lideranças políticas ainda seguem a mesma lógica das outras gerações. Márcio Coelho aponta que as lideranças do povo Terena seguem uma ordem hereditária e que esse aspecto ainda se mantém e não sofreu interferências. A hierarquia é muito respeitada, os mais velhos têm muito valor para esse povo. As fases de conhecimento e os ritos de passagem ainda se mantêm. “Há níveis de conhecimento que são passados a partir de certas idades, ritos de passagem entre as fases: criança -

adolescente - adulto e quem mantém um conhecimento maior de tudo são os mais velhos”, aponta Márcio. Ele conclui dizendo que eles mantêm uma tradição muito forte. A língua Terena também é um aspecto que ainda está entre eles. De acordo com David, como um aspecto muito forte da cultura, a língua é resgatada por eles e ensinada para as crianças nas escolas que aprendem o português e também a língua Terena. Os mitos ainda são passados, tanto no ambiente familiar quanto ressaltado pelos professores nas escolas. O modo de ser, as relações de troca, os casamentos também são mantidos. As festas, os jogos e quando a comunidade se junta tornaram-se momentos onde as raízes são lembradas e celebradas e tudo isso serve para que as tradições continuem vivas entre eles e possam ser passadas para as gerações futuras. O modo de ser Terena continua vivo na aldeia. Os ambientes podem ser um pouco diferentes, alguns hábitos podem ter se alterado, mas nenhum desses aspectos mudou os valores e as tradições desse povo. A essência do povo está viva e continua circulando pelas gerações através das tradições e também pelos novos mecanismos que o tempo traz para todos. por Ana Carolina Ribeiro

Além das aulas “formais”, David (esq.) ensina às crianças danças típicas da cultura Terena | Foto: Tribos

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Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações, que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. (Diretório dos Índios de Marquês de Pombal, 1775)

AKANGATU (s); memória

tupi antigo

Línguas perdidas De 1500 idiomas para 181: o que se perde quando um deles deixa de existir?

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Quando os portugueses iniciaram o seu processo de colonização no território brasileiro há 500 anos, havia cerca de 1500 línguas indígenas ativas no Brasil. Hoje esse número sofreu uma queda de quase 90% do seu valor inicial, segundo o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade de Campinas (Unicamp). 181 línguas ainda resistem ao processo de homogeneização do idioma português de acordo com pesquisas desse instituto. Para o IBGE, porém, são 274 línguas que ainda são faladas no território brasileiro atualmente. A diferença é decorrente de diferentes visões sobre variações e troncos linguísticos. São línguas ameaçadas aquelas que sofrem de alguma forma com o perigo de serem extintas, o que ocorre quando não há mais nenhum falante vivo daquele idioma. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), uma língua pode estar “vulnerável”, quando crianças falam aquele idioma apenas em locais restritos, como dentro de casa e em encontros familiares; até “em perigo crítico” – quando apenas idosos daquela etnia falam a língua. A extinção das línguas é um fenômeno social comum e próprio do decorrer da história do ser humano. Pode acontecer por questões econômicas, miscigenação, ou casamento entre povos. A grande diferença entre esse processo espontâneo de extinção de línguas e a diminuição de falantes de línguas no Brasil hoje é o preconceito contra a cultura desse povos e o genocídio que os indígenas sofreram e sofrem até hoje ao exercerem os diversos aspectos de sua cultura. Com uma população próxima a 5 milhões

em 1500, hoje os 220 povos indígenas que compõem o Brasil não chegam a 1 milhão de pessoas. Esses índios que resistiram à violência de povos externos ainda tem muita dificuldade para conseguir exercer os seus costumes e valores. Das 181 línguas indígenas que são faladas hoje no Brasil, 115 são faladas por menos de 1000 pessoas. Dessas, 15 tem apenas 5 falantes. Apenas 25 povos tem mais de cinco mil falantes de sua língua indígena. De acordo com o Atlas Mundial das Línguas da Unesco, todas as línguas indígenas brasileiras já estão ameaçadas de extinção em algum grau. Em 2008, quando esse estudo foi concluído, 12 das línguas estudadas já estavam extintas. Esse número coloca o Brasil no terceiro lugar no ranking de países com o maior número de línguas ameaçadas. HISTÓRIA DAS LÍNGUAS Quatro grandes troncos linguísticos originaram a maior parte das línguas indígenas que eram faladas no território brasileiro: Macro-Jê, Aruaques, MacroTupi e Caribe. Desses, todos têm ao menos 20 línguas ameaçadas de extinção. O Macro-Tupi é o tronco do qual foi derivada a maioria dos idiomas indígenas hoje falados no Brasil e o que tem mais línguas em perigo: 51. A linguista Priscilla Soares desenvolve um doutorado na Unesp de Araraquara sobre sinais de uma língua Terena. Desde a graduação ela estuda as idiomas indígenas brasileiros. Ela afirma que, ao longo da história brasileira as línguas indígenas foram criminalizadas e alvo de preconceito. Porém, foi na colonização que esse processo se deu de forma mais incisiva das línguas indígenas, o que aconteceu posteriormente também com as línguas africanas. “É sabido que os portugueses, quando quiseram dominar os diversos povos indígenas para conhecer as terras – se tinha ouro, onde existiam pedras preciosas, enfim, onde estavam as riquezas que eles buscavam – perceberam que ou eles dominavam a língua dos indígenas, ou eles deveriam impor a sua própria língua. E é claro que eles não quiseram aprender, eles já vinham com uma visão de superioridadeda sua cultura”, afirma Priscilla. A língua mais incorporada pelos primeiros colonos foi a Tupinambá, por

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“A noção que os livros ditáticos passam é a de que os índios e suas línguas morreram”

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estar mais próxima da Costa Atlântica. No início, como os portugueses eram uma pequena minoria dentro do Brasil, essa língua passou a ser aprendida para eles se comunicarem. A mistura do português com o Tupinambá deu origem à língua brasílica. Esta tornou-se tão forte no território brasileiro que foi usada inclusive nas missões jesuítas. “A Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil”, de 1595, é uma gramática publicada pelo padre José de Anchieta. Em 1621, um manuscrito continha o Vocabulário na Língua Brasílica. No século XVII, já bastante modificada, a língua brasílica passou a ser chamada de Língua Geral Amazônica, ou Nheengatu. Até o século XIX ela tinha grande influência política e era a forma de catequisar e manter ações sociais no interior do Brasil. Essa língua ainda é falada hoje, especialmente dentro das casas. Ela mantém a comunicação entre diferentes tribos que perderam as suas línguas e também entre os seus falantes e os falantes da língua portuguesa. A Língua Geral Paulista deu origem ao nome de grande parte das cidades que conhecemos e influenciou o português brasileiro. Ela recebeu interferência do Tupi de São Vicente e do alto Rio Tietê e foi falada especialmente pelos bandeirantes. O diretório do Marquês de Pombal, citado no início desta reportagem, é de 1755 e foi um marco para a proibição das línguas indígenas e línguas gerais. Caracterizando estas de “invenção verdadeiramente bárbara e diabólica”, o marquês deixa claro no documento que o uso de línguas que não eram o português era um impedimento para a “civilização” do indígena e um entrave para a efetiva conquista dos povos que estavam em território brasileiro. A pesquisadora Priscilla afirma que essa proibição acelerou o processo de expansão da

língua portuguesa no Brasil. “Fazia parte de um plano para permitir a hegemonia portuguesa em uma colônia americana. Queriam transformar o Brasil em um outro Portugal.” As escolas, citadas por Marquês de Pombal em seu documento como um instrumento para ensinar o português aos índios, tiveram um papel hegemônico na sociedade brasileira. Nanblá Gakran, sociólogo e doutor em linguística pela Universidade de Brasília, afirma que a educação, desde o início da colonização brasileira, teve como função integrar os índios à sociedade que estava dominando. “O que a escola fez foi uma tentativa de aculturar os índios, integrar à sociedade dominante, deixar as suas línguas maternas e falar a nacional. Isso desde sempre, ao longo de toda a história dos povos indígenas”, explica. Durante a Ditadura Militar desencadeada pelo golpe de 1964, a cultura integralista ganhou força. A ideia era retirar elementos da cultura indígena desses povos e desconsiderá-los pertencentes à determinada etnia. Segundo Nanblá, os anos de 1980 contaram com mobilizações em todo o Brasil pelas causas indígenas e, após a Constituição de 1988, as escolas indígenas que antes eram usadas apenas para ensinar o português e reafirmar a cultura hegemônica, começaram a ser usadas para ensinar a língua materna nas escolas indígenas.

Diretório do Marquês de Pombal: um marco para a proibição de línguas indígenas no período colonial | Foto: Reprodução

PRECONCEITO Apesar de toda a influência das línguas indígenas, do passado recente de proibição das línguas gerais e da quantidade de idiomas no Brasil, é comum a população indígena ficar em um local estereotipado e sem reconhecimento de sua cultura. Para Priscilla, muito desse preconceito é decorrente da educação

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que recebemos do ensino regular. “Isso vem mudando lentamente, mas até pouco tempo atrás, se você pegasse qualquer livro de história, em qualquer escola do Brasil, você teria a impressão de que não existem mais índios no Brasil e nem línguas indígenas. A impressão que os livros didáticos passam é de que todos os índios e línguas morreram, o português ficou, e acabou. Isso não é verdade. Esse tipo de informação contribui ainda mais para a hegemonia portuguesa”. Para que esse tipo de pensamento seja mudado, a pesquisadora vê como algo essencial a produção científica na área e a divulgação desse conhecimento. Nanblá, por exemplo, escolheu a antropologia e, mais tarde, a linguística, especialmente para contribuir com a sua comunidade. “Eu nunca pensei em ser linguista. Na verdade eu sempre fui apaixonado por uma outra área. Mas ao longo do tempo, vendo a situação do meu povo e da minha língua, que estava praticamente sua extinta, assim como todos os seus costumes, eu pensei em buscar um conhecimento para poder ajudar o povo a registrar a língua”. Ele é o primeiro de sua etnia que analisou toda a sua língua materna. O hoje doutor em linguística lembra que as línguas indígenas brasileiras eram ágrafas, ou seja, não tinham registro. Para o pesquisador, é essencial fazer o registro desses idiomas para que elas não se percam. “Para a maioria dos povos indígenas hoje, a política que interessa é a de se manter viva a língua, manter essa tradição oral, manter a história nas escolas indígenas”. Nanblá afirma usar os instrumentos que eram usados para dominação para, agora, preservar a sua cultura: “temos que usar esses mecanismos coma a escola, que fez com que deixássemos de falar a nossa língua, para poder registrar e utilizar isso em sala de aula”. Com apenas 462.800 km², Papa Nova Guiné é o país com maior número de línguas do mundo: são três línguas oficiais

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“Para a maioria dos povos indígenas, a política que interessa é a de se manter viva a língua”

incluindo o inglês e 836 línguas indígenas, apesar da maioria ter menos de 1000 falantes. O Brasil, com uma extensão de 207,8 milhões km², tem 182 línguas. Com dimensões continentais e apenas uma língua oficial, o Brasil é um caso raro no mundo. Muitas violências viabilizaram esse status ao nosso país. Nanblá conta que o seu processo de aprendizagem da língua portuguesa foi bem difícil. “Eu fui para a escola com 7 anos de idade monolingua e xokleng (sua língua materna). Até os 15 anos eu fui sempre forçado. Eu teria que aprender o português. Então eu aprendi basicamente na marra para poder passar de ano. Era o que acontecia naqueles anos. Pessoas da minha geração são analfabetas, não conseguiram aprender a ler e escrever”. POR QUE PRESERVAR?

Grakan: a escola tentou aculturar os índios e inserí-los na “cultura dominante” | Foto: Acervo Pessoal

A diferença entre as línguas mostra como uma das formas mais primordiais de expressão do ser humano pode ser diferente e representar recortes da realidade diversos. Priscilla explica que os numerais na língua juruna, por exemplo, vão de 0 a 3, apenas. E que grande parte dos numerais nos povos indígenas vão até, no máximo, 20. Isso acontece porque eles utilizavam muito os dedos das mãos ou das mãos e dos pés para contar. “Se você parar para pensar, eles conseguiram caçar, pescar, cortar a quantidade certa de madeira, fazer embarcações, instrumentos. Eles conseguiram se desenvolver até hoje sem precisar de muitos numerais”, afirma ela. Por isso, ela defende a importância de haver esforços significativos para que essas línguas se mantenham. “Quando uma língua se extingue, muito conhecimento vai embora com ela”. Alguns esforços vem sendo feitos para que parte dessas línguas se mantenham. Em 2015, o Brasil pediu à Unesco apoio para evitar a extinção de línguas indígenas. Na época, o presidente do Museu do Índio José Carlos Levinho afirmou que se nada fosse

feito o número de línguas ameaçadas poderia chegar a 30 ou 40%. Para chegar a esses resultados, contou-se com 200 pesquisadores e a produção de mais de 40 livros, cartilhas das línguas e contos nas línguas indígenas. Para os próprios indígenas, esse tipo de ação tem um poder simbólico ainda maior. Priscilla relaciona as altas taxas de suicídio à perda de identidade que esses povos vem sofrendo ao longo da história. A taxa de suicídio entre os indígenas no Brasil é 6 vezes maior do que a média nacional, segundo o Mapa da Violência de 2012 . “Se eu ridicularizo uma variante linguística ou uma língua, eu tiro o direito de uma pessoa se expressar da forma que ela se expressou a vida inteira. Eu tiro o que é mais humano dela. O que nos separa dos animais irracionais é a língua. Os altos índices de suicídio dos indígenas estão ligados à repressão linguística que eles sofrem. Perde-se a identidade, esses indígenas não sabem quem eles são no Brasil e no mundo”, afirma a pesquisadora. Apesar disso tudo, Nanblá ainda vê muita defasagem na forma como projetos que atuam nessa área são financiados pelo governo. Ele explica que os fóruns indígenas estão tentando fortalecer as línguas e registrá-las, mas não existe apoio em material didático pelo MEC, pelo Governo Federal ou pelas Secretarias do Estado onde há terras e comunidades indígenas. Ele critica: “as políticas da linguagem para essas línguas das minorias não tem prestígio. Temos uma língua universal que é o inglês. A língua falada no Brasil é o português. São as línguas consideradas prioritárias. E as línguas indígenas são consideradas inferiores. Por isso que ela é vista como a de um povo que não tem cultura. Essa é a realidade.” por Daniela Arcanjo

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Foto: Tribos

Sinais ocultos de um povo Tese de doutorado estuda o sistema de comunicação de surdos em três aldeias do povo Terena

Educar e trabalhar com pessoas surdas já é um desafio hoje. Educar indígenas nessa condição torna todo o processo mais delicado. Além de lidar com a discriminação cotidiana de serem indígenas, os deficientes auditivos das aldeias enfrentam mais dificuldade por não conseguirem estudar nem na comunidade e nem na cidade. Para resolver o problema da comunicação alguns grupos indígenas desenvolvem sinais. A Revista Tribos conversou com Priscilla Alyne Sumaio Soares, linguista da UNESP/FCLAr (Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara), que está fazendo sua tese de doutorado com indígenas surdos do povo Terena em três aldeias. A pesquisadora analisa os sinais Terena e tem como objetivo estudar os sinais e, se for cientificamente comprovado, oficializá-los, através de critérios científicos, como língua. Ela fez questão de esclarecer, no começo da entrevista, que é certo usar apenas o termo “surdo” e não “surdo mudo”, pois eles não são mudos, “Eles possuem o aparelho fonatório igualzinho ao de qualquer ouvinte”. Confira mais sobre seu trabalho na entrevista realizada pela Tribos.

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Por que não podemos chamar os sinais Terena de língua? Priscilla: Por enquanto eu não chamo os sinais Terena de língua porque, para se dizer que um sistema de comunicação é uma língua é preciso avaliar com critérios científicos. Leva tempo e é difícil determinar o que é língua e o que não é. Eu também não posso sair dizendo que os sinais Terena são uma língua sem saber, por exemplo, se é uma variedade de Libras, se podem ou não ser considerados sinais caseiros. Até eu terminar meu doutorado não tenho condições científicas de classificar esses sinais como língua, então para agir sem preconceito e sem pressa, eu os chamo apenas de sinais Terena. Você participou do desenvolvimento desses sinais? Não. Os sinais Terena são usados pelo surdos Terena, eu não fui para lá ensinar nada para eles, não fui desenvolver uma língua, eu fui lá para aprender com eles. O meu objetivo é saber o que são esses sinais, há quanto tempo eles existem, como se desenvolveram e quem usa esses sinais. Essa é minha pesquisa.

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“Meu estudo é diferente e inovador, ninguém nunca fez isso aqui no Brasil” Há semelhanças entre os sinais Terena e as Libras? Semelhança com as libras e com qualquer outra linguagem de sinais vai ter, até porque todas as línguas de sinais possuem determinadas características, assim como as línguas orais, todas terão características que coincidem. Toda linguagem de sinais têm produtividade e expressividade, como qualquer outra língua natural. Ou seja, você pode produzir novas palavras e expressar qualquer coisa. Então sim, há algumas semelhanças com as Libras, inclusive, na minha pesquisa até citei dois sinais nos quais percebi que sofreram influências das Libras em sua criação. Pode-se dizer que os sinais Terena surgiram depois das Libras? Isso não é verdade. Esses dois sinais que percebi a influência das Libras foram criados por surdos que estudam na cidade, que são jovens e aprenderam Libras agora. Eu estudo os surdos Terena que nunca estudaram na cidade e nem na aldeia, portanto, nunca tiveram acesso à Libras. Então, para muitos desses surdos indígenas, a criação dos seus sinais é anterior ao uso das Libras. Como surgiram os sinais Terena? Exatamente como qualquer outra língua ou sistema linguístico, surgiram na necessidade dos surdos de se comunicarem entre eles e com os ouvintes que estavam sempre juntos, como os pais, os irmãos e os amigos. No entanto, não posso afirmar com certeza que todos sentiram essa necessidade, mas a maioria dos surdos e ouvintes, sim.

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O que diferencia e destaca seu estudo sobre esse sistema linguístico? O meu estudo é diferente e inovador, ninguém nunca fez isso aqui no Brasil, ninguém nunca antes analisou linguisticamente sinais indígenas nacionalmente com o objetivo de descobrir se eles constituem uma língua ou não. Há sim outros sinais indígenas no nosso país e outras pessoas já os estudaram, mas em sua maioria foram mapeamentos e como eles podem ajudar na educação. Então, linguista mesmo, fazendo doutorado sobre uma possível língua de sinais indígenas no Brasil, só tem eu, só há o meu trabalho atualmente.

passar as aulas nos sinais deles? Os que aprenderam Libras aprenderam em escolas fora da aldeia, e não foi porque quiseram e sim pela necessidade. Foi a maneira que as mães desses surdos encontraram para lidar com a situação, pois nas aldeias ainda não há alguém preparado para isso. Não é falta de vontade do povo, eles querem, mas o governo ainda não se preparou para recebê-los. Mesmo se esses sinais não forem considerados uma língua, é importante ter alguém capacitado nas aldeias para auxiliar aos surdos? Sim, o certo seria ter pelo menos intérprete de Libras e professores preparados para trabalhar com surdos nas aldeias, porque eles podem aprender Libras também. Quero ressaltar que não estou apoiando que eles aprendam apenas Libras e esquecer seus sinais. Mas digamos que eles queiram aprender Libras, que será mais fácil adquirir conhecimento através dessa língua, então, que existam professores e intérpretes nas aldeias para que não haja a necessidade de ir exclusivamente até a cidade para aprender. E o melhor seria que essas pessoas capacitadas fossem da comunidade, do povo Terena, que entenda a cultura da aldeia.

E como seus estudos podem impactar? Você acha que eles podem trazer mudanças? Com certeza! A partir do momento que linguistas comprovam que uma determinada língua é de fato língua, como aconteceu com as Libras e tantas outras línguas de sinais, por exemplo, o governo do local tem que se voltar para essa língua e esse povo, tem que se preocupar em criar políticas linguísticas, se preocupar com a educação dessas pessoas, se elas possuem intérpretes, professores e livros didáticos. A partir do momento que uma linguagem é considerado língua várias coisas precisam ser providenciadas. Os indígenas que você acompanha possuem acesso à escola? Eu trabalho em três aldeias do povo Terena, há escolas nas aldeias, os mais novos poderiam ir para a escola se quisessem, mas como eles vão para a escola se não há alguém preparado para

A linguista Priscilla Alyne Sumaio Soares está fazendo sua tese de doutorado com os surdos do povo Terena | Foto: Edgar Leoncio Francisco

Além do preconceito que esses indígenas sofrem na cidade, eles sofrem dentro de suas aldeias também? Eles sofrem muito, é bem triste. É como eu disse, eles não podem nem estudar na aldeia, isso já traz um sofrimento, e não é nem porque os professores das aldeias desprezam os surdos, mas porque não há uma capacitação, uma preparação. A situação deles é bastante complicada, mas eles são bem fortes, resistentes e sábios. por Daniela Arcanjo e Jéssica Dourado

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Foto: Daniela Arcanjo/Tribos

O lado espiritual do povo Terena Algumas aldeias desse povo ainda mantém seus ritos espirituais e muitas já abriram suas portas para diversas religiões O Brasil possui uma grande variedade de povos indígenas, os quais possuem suas próprias línguas, costumes, tradições, é claro, seus próprios ritos espirituais. A Revista Tribos visitou a aldeia Ekeruá habitada por parte do povo Terena, que fica na cidade de Avaí no interior de São Paulo, e conversou com indígenas da aldeia Kopenoti para explorar mais sobre sua religiosidade. É importante destacar que o termo “religião” pode não ser o mais adequado para caracterizar a relação dos indígenas com sua espiritualidade. Segundo Irineu N’eja, diretor da ARACI (Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena), da aldeia Kopenoti, também localizada no interior de São Paulo, quando se fala em espiritualidade indígena não está se falando sobre candomblé, nem sobre umbanda e nem sobre nenhuma outra religião.

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O povo Terena possui um líder espiritual que se chama Koxomonety, que equivale ao Pajé do povo Guarani, Koxomonety significa basicamente: o homem sábio, o homem que quer saber, o homem da sabedoria, o homem que conhece. E quem ocupa o posto não precisa ser necessariamente um homem, na aldeia Ekeruá, por exemplo, a Koxomonety é uma mulher. KOXOMONETY Equivale ao Pajé dos Guaranis, sua função em seus povos é a espiritualidade. Irineu contou que sua avó era a Koxomonety de sua aldeia, “Às vezes ela colocava o ouvido no chão e sabia o que estava acontecendo em Mato Grosso, que é de onde o povo Terena vem”.

Além disso, o Koxomonety carrega também uma função medicinal em sua aldeia. Antigamente, os indígenas não possuíam muito contato com a cidade e nem tinha acesso a veículos para se locomover até hospitais. Então, para curar enfermidades e tratar de doenças, os Terenas dependiam exclusivamente do conhecimento do Koxomonety com ervas e rituais para a cura de males. Na aldeia Ekeruá, David Terena, professor na comunidade, destacou a ajuda que as gestantes recebem da Koxomonety. Ela faz chá para ajudar a acelerar o parto, reza para preparar a hora da chegada quando a criança está na posição errada e ajuda as parteiras no pré-natal. “O parto em si não se faz mais na aldeia, porque hoje há doenças que fugiram do nosso conhecimento”, completou David.

Irineu contou que quando alguém tinha uma enfermidade sua avó pegava uma purunga e um penacho, o primeiro ela chacoalhava para chamar as entidades e os ancestrais para ajudála, e o penacho para abanar, pois acreditavam que quando alguém estava doente essa pessoa estava suja. “Ao mesmo tempo em que a limpeza é feita ela vai para o ar, onde a própria natureza se encarrega de fazer a cíclica, uma purificação para transformar a sujeira em coisa boa”. PRÓXIMO LÍDER Para ocupar esse posto, o indígena não é votado e nem escolhido por outros indígenas na aldeia, para ser Koxomonety é preciso ter um dom. Quem o possui tem um dom de premonição, de ver

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O “Penacho” em detalhes: adorno é usado em alguns rituais de cura do Koxomonety Foto: Daniela ArcanjoTribos

coisas além, de conversar com os espíritos. “Não é espiritismo, não é candomblé e nem umbanda, que nome se dá eu não sei, é um Koxomonety”, afirmou Irineu. David contou que esse dom começa a se manifestar no escolhido na fase jovem da vida. “A pessoa começa a ter algumas visões, para quem não conhece acha que a pessoa está ficando doente”. Além disso, o indígena com o dom começa a ter sonhos e aprender de maneira mais rápida a confeccionar e manejar remédios com as ervas. Quem aponta o próximo Koxomonety é o atual. Por ter um guia espiritual da natureza que o ajuda, o Koxomonety já sabe quem são as pessoas na aldeia que possuem o dom para ocupar seu lugar na sua morte, na Ekeruá, por exemplo, o professor informou que há três. “Nossa Koxomonety já sabe, ela já falou ‘no dia em que eu for, no dia em que eu sentir que chegou a minha hora, eu vou revelar quem tem o dom e quem está preparado para continuar o que eu faço’, porque esses três sempre estão com ela”. Já na aldeia Kopenoti essa figura se perdeu, o Cacique Chicão quer resgatar esse costume, mas isso é difícil, pois um Koxomonety não pode ser escolhido de forma aleatória, é preciso ter o dom e que outro Koxomonety o reconheça. RITUAIS É importante destacar que, diferentemente das religiões que as pessoas estão mais habituadas, nas quais as pessoas se reúnem uma vez na semana para rezar, possuem comemorações especiais para santos, entidades, entre

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outros, na aldeia Ekeruá eles realizam um ritual por ano, em abril. O professor David explicou que nesse ritual apenas a Koxomonety faz a reza, os demais apenas acompanham. Geralmente é realizado na casa dela e funciona basicamente como uma orientação para a comunidade, “Todos ficam em volta, ela vai passando de um em um deixando um recado, só que é preciso pegar o recado naquela hora em que foi falado, não pode perder, não poder ser depois”. O guia espiritual vem e deixa um recado para a aldeia através da Koxomonety. David contou de uma vez em que tinha uma estrela muito perto da lua: “Para a cultura não-indígena mostraram na mídia que significava guerra, já para a Koxomonety e para nós significava que um casal ia se separar por causa da morte”. Segundo ele, isso não aconteceria necessariamente na Ekeruá, poderia ser em outra aldeia do povo Terena, mas que se viesse a acontecer eles já saberiam. “Quem mandou esse sinal foi o Itukoviti, que para nós é como se fosse Deus”. OUTRAS RELIGÕES Assim como a tecnologia, os automóveis e diversas coisas da cidade entraram nas aldeias, as religiões também. E não foi diferente na Kopenoti e na Ekeruá, religiões como a Católica, Assembléia, Madureira, entre outras, hoje fazem parte do cotidiano dessas comunidades. No entanto, o assunto é delicado. Religiões que deram certo em uma aldeia podem não ter agregado coisas boas em outra. Na Kopenoti, Irineu relatou que a chegada dessas outras igrejas mudou

“Não é espiritismo, não é candomblé e nem umbanda. É um Koxomonety”

totalmente a visão religiosa de muitos indígenas. A figura do Koxomonety já não existe mais e é preciso tomar cuidado para falar sobre religião dentro da aldeia. “Somos cautelosos com o que se fala, porque pode surgir uma briga, e isso se deve ao fato de que muitos na aldeia já se adequaram em outras religiões”. Segundo Irineu, há alguns líderes religiosos na aldeia que pregam que os rituais do Koxomonety são coisas do diabo. “Cada religião tem sua verdade revelada, então quem é que pode afirmar que os ritos Terena são coisas do diabo?”. Já na Ekeruá, David falou que as religiões foram aceitas na aldeia desde que não trouxessem nenhum tipo de problema, sem impor alguma coisa e sem qualquer tipo de conflito. Segundo ele, se alguma religião quer entrar na comunidade é realizada uma reunião com os representantes e quem está levando a religião é questionado sobre suas reais intenções. “Por toda a história dos indígenas com a igreja, toda a liderança antiga acompanha de perto as religiões que querem se aproximar das aldeias”. O professor chegou à conclusão de que o problema não se encontra na religião em si, e sim nas pessoas que as levam para dentro das aldeias, “Já visitei outras aldeias em que as mesmas religiões presentes aqui deram problemas lá”. David também ressalta que “Conseguimos conciliar a prática de outras religiões, mas mantemos nossos rituais Terena, não temos nenhum problema com outras religiões na comunidade, desde que ela não venha para trazer conflitos com o povo”. por Jéssica Dourado

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A plantação da lavoura é feita de maneira rotativa para que não haja desgaste da terra | Foto: Tribos

SABORES DA TERRA A mandioca é um dos alimentos mais utilizados na culinária Terena

Os hábitos alimentares fazem parte da cultura. O que comemos, como comemos, os alimentos que compõem a nossa mesa e os pratos típicos são parte fundamental do que somos. Saber sobre a culinária de um povo é saber um pouco mais sobre ele, é conhecer um aspecto do dia a dia que é muito simples, mas parte essencial da tradição cultural que o envolve. Por isso, a Tribos não deixou a culinária indígena de lado e trouxe os hábitos alimentares que fazem parte da gastronomia de um povo indígena. Assim como há muitas culturas indígenas no Brasil, já que o país abriga uma diversidade de povos indígenas espalhados pelo território nacional. Há também uma variedade gastronômica indígena, os povos são muitos e diversos, assim como suas respectivas culturas e culinárias. Como não será possível falar de todos os povos e todas as culinárias indígenas brasileiras, escolhemos um povo específico, o povo Terena.

108 I Culinária

David Terena, professor da aldeia indígena Ekeruá, conta que na culinária Terena a parte de preparação da comida é feita pelas mulheres, enquanto os homens são responsáveis pela caça, pesca ou preparo de carnes e trazer os alimento para casa. Ele, ainda, ressalta que as raízes são alimentos muito utilizados, assim como o milho. A mandioca, por exemplo, pode ser feita de muitas maneiras, frita, cozida e é o ingrediente principal do prato típico terena, o Hihi. O peixe assado, segundo David, é outro ponto forte da culinária Terena. O mesmo pode se dizer da farofa, outro prato feito a partir da mandioca. Arroz, feijão, legumes e saladas também são utilizados na gastronomia desse povo e, claro, a habitual carne (frango, porco ou carne vermelha), o que pode-se considerar muito comum aos alimentos que estão na mesa dos brasileiros. Boa parte desses alimentos são cultivados na aldeia, apenas

alguns não podem mais serem feitos por lá, pela falta de materiais necessários. A caça, por exemplo, não pode mais ser feita, um dos motivos é a falta de recursos. O arroz segue a mesma lógica, pela falta de madeira que é necessário para fazer o pilão - objeto que auxilia na retirada da casca do arroz - não se planta mais arroz na aldeia, então eles recorrem à compra desse ingrediente. A pesca continua como um hábito, a plantação de feijão, mandioca, beterraba, batata, cenoura, entre outros vegetais, também se mantêm aldeia. As frutas consumidas por eles, de acordo com o David, estão sempre ligadas às estações do ano em que elas dão. Goiaba, manga, banana, mamão, limão são consumidos nas suas estações próprias. Os legumes e verduras também são consumidos de acordo com a estação. A plantação desses alimentos é feita de maneira rotativa, para que a terra não se desgaste e tenha um bom aproveitamento. PRATOS TÍPICOS Um dos pratos típicos Terena é o Hihi, bolinho feito a partir da mandioca e enrolado na folha de bananeira. Em visita à aldeia Ekeruá a Tribos acompanhou a produção do Hihi e, claro, degustou o tradicional bolinho. O Hihi após pronto lembra a

famosa pamonha e pode ser comido acompanhado de algum doce ou salgado. Mas, tradicionalmente, na culinária Terena é comido sem nenhum tempero ou acompanhamento. Com a água que sai da mandioca no processo de preparo do Hihi, David conta que eles ainda fazem outro prato chamado Poreu. Pega-se a água da mandioca, coloca em uma panela com polvilho e cozinha, essa mistura formará gominhos. Esses gominhos devem ser reservados e só se deve comê-los no dia seguinte. David ressalta que se comê-los no mesmo dia eles estragam e não prestam mais para consumo. Um ensaio fotográfico com o passo a passo da confecção do Hihi pode ser encontrado na editoria Ensaios, na página 112. por Ana Carolina Ribeiro

Culinária I 109


112 RALÁ, TORCÊ, COZÊ A mandioca é um ingrediente tradicional na culinária Terena

119 O QUE TE FAZ BRASILEIRO? Uma reflexão sobre os estereótipos indígenas

124 SONHANDO COM A TERRA

118 GUARACI E JACI Crônica baseada em pesquisas sobre sexualidade e gênero

120 SER INDÍGENA HOJE É... Conciliar tradição e modernidade para preservação da cultura

A relação entre sonho e migração para os Guarani

ensaios 110 I

Foto: Daniela Arcanjo/Tribos I 111


RALÁ TORCÊ

COZÊ 112 I

A

culinária é parte essencial da cultura e identidade de um povo. Os ingredientes usados, a maneira como são cultivados e os processos pelos quais passam para formar os pratos típicos, dizem muito sobre a terra em que se está e os hábitos que se tem. Na mesa do povo Terena a mandioca nunca sai de cima e é um dos ingredientes mais utilizado e cultivado. Ela pode ser feita cozida, frita, é utilizada para fazer a famosa farofa e também é o ingrediente primordial e único para produção de um prato típico desse povo, o hihi. O hihi é um bolinho feito a partir da mandioca e embrulhado na folha de bananeira sapecada. Na produção desse prato típico Terena, a mandioca é ralada e torcida até que saia grande parte de sua água. Não vai mais nenhum ingrediente além da mandioca. Tradicionalmente, o bolinho é comido sem o acréscimo de temperos ou acompanhamentos. Os processos pelos quais passam a mandioca e a folha de bananeira, bem como o passo a passo desse prato típico você confere agora nesse ensaio fotográfico, com fotos de Ana Carolina Moraes e Daniela Arcanjo.

I 113


1° passo: Primeiro você deve colher as mandiocas e lavá-las em água corrente para tirar a terra. 2° passo: Após lavar as mandiocas, pegue uma bacia e uma faca afiada sem serra, corte as pontas e raspe a casca da mandioca. Você deve raspar a casca e não descascá-la.

4° passo: Pegue um ralador e na menor parte rale a mandioca

3°passo: Após tirar toda a casca da mandioca, corte-a em pedaços.

5° passo: Coloque a mandioca ralada em um pano de prato e torça, até que saia toda a água da mandioca e ela parecer uma massinha.

114 I CULINÁRIA

CULINÁRIA I 115


9° passo: coloque os bolinhos envoltos na folha de bananeira em uma panela com água fervente e deixe cozinhar de 20 a 30 minutos. 10° passo: Após o cozimento, retire o Hihi da panela, abra a folha de bananeira e coma-o como preferir. 6° passo: Com essa massinha faça bolinhos do tamanho que preferir e coloque-os dentro da folha de bananeira cortada em retângulo. Feche a folha e amarre com tiras finas da parte seca da folha de bananeira.

7° passo: Pegue uma folha de bananeira, faça uma pequena fogueira no chão e sapeque (passar rapidamente a folha pelo fogo, como se você fosse flanbar) a folha. 8° passo: Após sapecar a folha, você perceberá que ela ficará mole. Corte-a em retângulos médios.

116 I CULINÁRIA

CULINÁRIA I 117


O que te torna

Guaraci e Jaci

brasileiro? por Daniela Arcanjo

por Luana Brigo e Isadora Venturini

Nascente do rio

Choro

Ritual realizado

Luas Sois

118 I crônica

A

C

orríamos pela mata todos os dias, ele sempre a minha frente. Eu observava sua pele morena e cabelos negros, especialmente quando não tínhamos ninguém por perto. Sentíamos o frescor da brisa, a umidade da terra e o barulho das folhas se mexendo. Estávamos próximos a igapira. Ao chegar lá não perdemos tempo. Retirei minha tanga masakana feita por mim. Ele deixa a lança dele de lado. Pulamos no rio e nele por um tempo conseguimos nos esquecer de nossas responsabilidades na aldeia. Eu deixo que ele me toque entre as coxas sem nenhuma reprimenda. Eu também o toco e fico surpresa quando vejo como ele cresce diante dos meus olhos. Precisamos ser rápidos, logo as mães carregando seus filhos pequenos nas costas virão para se banhar. Já está na hora dele sair para caçar com os outros jovens da tribo e as frutas silvestres esperam minhas mãos ansiosas para serem colhidas agora que estão maduras. Pacientemente colho, junto as outras mulheres, as frutas, sempre sob o olhar vigilante de minha mãe. Ela me assiste em minhas tarefas desde menina, me mostra os melhores frutos, quando colhe-los, como fazer os mais resistentes trançados e assim as mais fortes cestas. O trabalho realizado por meus dedos fez com que eu me distraísse, minha atenção estava voltada apenas para as cores e cheiros ao meu redor, mas assim que as cestas se tornaram mais pesadas e o sol mais baixo, eu percebi que aquele anoitecer poderia carregar meus sonhos e vontades para longe de mim. Meus olhos começaram a vazar e me envergonhei por mostrar meu chiú na frente das outras mulheres. Entrando na aldeia vi os corpos limpos e morenos dos jovens receberem o vermelho e preto da tinta. Eu olhei ao redor e meus olhos conseguiram se cruzar com os dele. Nunca o tinha visto daquele jeito, tão bonito e ainda sim tão cheio de kuerai. Eu pude sentir tudo aquilo, pois nossa ligação era mais forte. Ela cresceu a cada lua que nascia e cada sol que se punha. Nós sabíamos exatamente como era o calor da pele do outro, mas nada poderia proteger nossas lembranças de wysoccan. Não demoraria muito e logo o levariam com os outros jovens para ser isolado. Ele receberia aquele bebida estranha e jamais voltaria a ser o meu Teça. Por cinco guaracis e jacis eu não vi o meu rudá. No amanhecer do sexto dia, homens e não mais meninos, sem quaisquer vestígios de suas infantilidades, retomavam o contato com a aldeia, inclusive Teça. Os olhos eram ainda do mesmo una só que meu reflexo neles havia mudado. Ele já não enxergava a mesma Kauane de antes do wysoccan. Meus pés me levaram para longe dele, para dentro da mata. Não demorou para que eles estivessem molhados do igapira. Longe de todos deixei que meus olhos vazassem e eu mesma passei a alimentar o rio. As águas a minha volta percebendo minha tristeza me acolheram, descansei no silêncio delas me despedindo do meu amado irmão Teça.

Medo

Amor

Preta

mentalidade integralista não parece ter ficado no passado. Determinar que um indígena, em pouco tempo, deixará de ter essa identidade porque mudou alguns de seus costumes é, até hoje, uma forma de dominar esse grupo social. É muito comum deslegitimar ou descaracterizar um indígena por ele usar elementos da cultura urbana. “Índio com caminhonete” ou de “calça jeans” são expressões utilizadas para se referir àqueles que não se adequam ao que não-indígenas aprenderam ao longo da vida sobre o que é ser índio. Essa falácia é, além de uma estratégia de dominação, um reducionismo do seu modo de vida ao que normalmente aprende-se no ensino formal – que não se aprofunda nas questões indígenas. É uma estratégia de dominação porque os exclui de ter acesso aos bens materiais produzidos pela nação que habitam, forçando-os a permanecer em um modo de vida que não necessariamente é o que desejam. É preciso questionar de que modo a cultura indígena é inserida aos estudantes. Afirmar que alguém não é mais indígena apenas porque uma parte tão pequena da sua cultura – como a presença de um celular – foi alterada, é ignorar a riqueza de sua história e reduzir a identidade indígena à sua ligação com a natureza. Pensei nisso ao ver a ocupação dos indígenas no plenário Ulisses Guimarães, em 2013, contra a mudança da demarcação de terras. Ela ia do poder executivo para o congresso (que conta com uma bancada ruralista). A reação dos parlamentares que deveriam os representar é assustadora. Aparentemente o medo toma conta deles, que se espremem em um espaço minúsculo tentando fugir dos indígenas. A fala de Henrique Eduardo Alves, presidente da câmara na época, é quase irônica. Ele pediu respeito mútuo a um povo que sequer ocupa formalmente aquele espaço – condição que os obriga a ocupar informalmente. Refleti. Afinal, o que me torna brasileira? É o modo como me visto? A língua que falo? Também. Porém, os diversos traços do meu povo, categorizados em inúmeros livros, é o que faz eu me sentir em uma nação. O modo de pensar, o papel da mulher na sociedade, as violências simbólicas cotidianas. Tudo isso faz parte de uma construção história e imagética do que é ser brasileiro e do que nos une para concordar que, sim, esse espaço geográfico comporta os brasileiros. Usar uma camiseta desenhada em Nova York, produzida em Taiwan e com dizeres em inglês não me torna menos brasileira. Porque sei da complexidade da minha cultura. Mas nos recusamos a ver o mesmo em povos que sofrem opressão. Recusamo-nos, inclusive, a perceber as influências indígenas no nosso cotidiano. Talvez porque saibamos, também, que temos liberdade para ressignificar a nossa ideia de nacionalidade. Liberdade que nos recusamos a reconhecer como dos povos indígenas. Mas a nossa formação de nação sempre contou com o indígena. Muito do nosso cotidiano é derivado dessa cultura. A rede, a culinária, o banho diário, nomes de cidades e palavras da nossa língua. Não queremos abrir mão de nada disso. Por que, então, cobramos os indígenas de purismo cultural se nós não nos comprometemos a isso? Considerar esses povos parte da nossa nação não é nenhuma abstração. São medidas concretas que devem ser tomadas no cotidiano. Para começar, aceitar quando um desses cidadãos brasileiros acessam a universidade, sem descaracterizar a sua identidade. Porque hoje nós sabemos o que acontece quando eles tentam usufruir do congresso, da universidade, da conquistas tecnológicas – que são também deles por direito.

opinião I 119


SER

INDÍGENA

HOJE É...

120 I

I 121


P

ara os Terenas, o índio nu ou de tanguinha nunca foi representativo. A cultura deste povo inclui a tecelagem. Além disso, viver em ocas e com hábitos do passado não faz parte da realidade indígena. Em visita a Reserva Indígena Araribá, em Avaí, nossa equipe esteve com os Terenas da Aldeia Kopenoti para registrar o modo de vida dos indígenas de hoje. As fotos de Ana Carolina Moraes, Daniela Arcanjo e Luana Brigo mostram que qualquer semelhança não é mera do coincidência: conciliar tradições e com as mudanças modernas é um desafio, mas isso não significa ter os povos não possam ou não acompanhem as tendências do mundo contemporâneo.

122 I Identidade

identidade I 123


SONHANDO COM A TERRA:

CAMINHOS QUE FAZEM LUGARES por Lígia Rodrigues de Almeida Cantosrezas

D

urante minha primeira visita à aldeia Ywy Pyhaú, em 2008, recordo que uma das primeiras perguntas que fiz à anciã da aldeia foi a respeito da importância do território que ocupam. Isso porque, nessa ocasião, participava como estagiária do Grupo Técnico da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, responsável pela elaboração do primeiro relatório de identificação e delimitação das Terras Indígenas Tupi Guarani de Barão de Antonina e Itaporanga, ambas no estado de São Paulo¹. Nesse momento, e para minha surpresa, recebi como resposta que os Tupi Guarani não ocupam simplesmente um território, eles vivem a terra². Explicou-me então, que foi Nhanderu quem os plantou nesta Terra, dela nasceram e dela necessitam para viver, pois eles são como sementes que precisam de uma terra boa, em boas condições, para continuar existindo e dando frutos. Nhanderu os colocou nesta Terra com o intuito de cuidarem para que nada de mal lhe acontecesse, seriam eles os responsáveis por zelar pela mata, pelo solo e pelos animais que criou. Em contrapartida, Nhanderu enviaria a eles sabedoria, para que se fortalecessem. O que revela a existência de uma relação íntima das famílias Tupi Guarani com os lugares em que vivem, uma dependência mútua, onde o território não se constitui apenas enquanto um meio subsistência em nossos termos econômicos, posto que para essas famílias terra é vida. Para que não pereçam, segundo a anciã ensina, é preciso ouvir o que Nhanderu lhes conta, se fortalecer na terra, crescer com ela, cuidar para que não adoeçam e para que ela também não fique doente. Conforme as famílias Tupi Guarani explicam, andar, cantar sobre ela e permanecer junto aos parentes, são formas de alegrá-la e se alegrar. Mas hoje é preciso também que seja demarcada, pois afirmam que sem a demarcação de seu território não restarão lugares por onde poderão caminhar. E aqui me refiro ao território tradicional Tupi Guarani que foi retomado no ano de 2005 por famílias oriundas, sobretudo, da TI Araribá (Município de Avaí – SP). Local para onde seus parentes antigos, que viviam na região dos atuais municípios de Barão de Antonina e Itaporanga, foram transferidos, em 1912, por Curt Nimuendaju, então funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Dessa forma, compreende-se que a escolha das áreas que habitam não se dá de maneira aleatória, visto que não é qualquer terra que lhes interessa. Assim, os lugares que ocupam sempre têm como referências àqueles que ali viveram ou vivem e, por isso, quando optam por se deslocar e fundar novas aldeias, procuram por locais onde viveram seus antepassados ou por eles indicados, o que ocorre através dos sonhos. Para além de se constituírem enquanto um meio de receber saberes e poderes de Nhanderu, as famílias Tupi Guarani explicam que os sonhos tem um papel fundamental na busca e na ocupação de lugares, os quais são primeiramente visitados em sonhos, para posteriormente serem buscados e feitos aqui nesta Terra. São os parentes antigos que os levam, durante o sono, para conhecer esses lugares, sendo comum ouvir entre os moradores da aldeia, narrativas de pessoas que sonharam com locais que mais tarde vieram a ocupar. Caso, por exemplo, do local onde hoje vivem, o qual muitas pessoas antes de se deslocarem, já haviam conhecido em sonhos. Contam, inclusive, que se lembram do cheiro de eucalipto que sentiam durante o sono, e que é a marca daquele lugar. Os sonhos, que na língua Tupi Guarani designam xeke rupi, conforme explicam, são

124 I sonhando com a terra

Habitantes do patamar celeste, divindades

como viagens da alma enquanto o corpo dorme, e nessas viagens é possível, além de encontrar-se com diversos tipos de gente - espíritos dos mortos, espíritos ruins, guardiões do mato, etc. -, visitar lugares, apreender mborei e remédios do mato. É também através dos sonhos que essas famílias tomam conhecimento de uma gravidez ou doenças em curso, recebem mensagens de pessoas distantes que estão passando por alguma necessidade, ou de quem sentem saudades. Além disso, explicam que tudo que se faz ou vê no sonho é preciso encontrar e dar continuidade nesta Terra para que não fiquem fracos e adoeçam. Ou seja, se aprendem em sonho um remédio do mato, é necessário fazê-lo aqui, compartilhando-o com quem necessita; ou então, se aprendem um canto-reza, é preciso cantá-lo aos que vivem juntos para fortalecê-los. O que mostra uma continuidade entre o que denomino de o “mundo dos sonhos” e o “mundo da vigília”, e reforça as afirmações de meus interlocutores, no que diz respeito aos territórios por eles ocupados: não basta apenas sonhar com lugares, mas é preciso buscá-los, mais do que isso, fazê-los aqui nesta Terra. E isso ocorre através da constituição de novas aldeias, decorrentes de seus frequentes deslocamentos, os quais definem o que consideram como seu território tradicional: os lugares onde viveram seus parentes antigos, onde podem viver atualmente e, principalmente, por onde é possível circular, visitando parentes ou tecendo novas relações de parentesco, em busca da alegria, daquilo que denominam de viver bem. É no movimento que reside o sentido da vida Tupi Guarani, e é o movimento que caracteriza suas práticas de territorialidade. E, nesse sentido, a demarcação de seu território não se constitui simplesmente como um processo de fixação em um lugar determinado, mas antes, é uma maneira de garantir que continuarão a se deslocar, circulando entre aldeias e entre Terras Indígenas demarcadas, se fortalecendo na escuta de Nhanderu.

Territórioa Indígena

¹ Meu primeiro encontro com as famílias tupi guarani se deu ainda no ano de 2007, quando cursava Ciências Sociais na UNESP de Araraquara (SP), momento em que, como estudante e membro do Centro de Estudos Miguel Angel Menendéz (CEIMAM), pude participar, na condição de estagiária, dos trabalhos do GT da FUNAI. Foi na aldeia Ywy Pyhaú e junto das famílias tupi guarani que a compõe, que realizei também minhas pesquisas de mestrado e doutorado em Antropologia Social. A primeira no programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e a segunda no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Na pesquisa de mestrado me dediquei a refletir sobre a territorialidade tupi guarani e os processos de regularização fundiária de uma Terra Indígena, enquanto que no doutorado me dediquei a pesquisar a respeito dos sonhos. Nesse texto o que apresento é uma reflexão, um tanto breve, onde as duas temáticas se encontram. No caminho do sono

² Os termos e frases utilizadas por meus interlocutores Tupi Guarani serão grafados em itálico nesse texto, sem o uso de aspas, a fim de diferenciá-los de minhas próprias reflexões.

sonhando com a terra I 125


Foto: 126Tribos I

I 127


128 I


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