Leticia Pestana_Narrativas de um cotidiano revisitado: O livro-objeto como metáfora da cidade

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Centro Universitário Senac Arquitetura e Urbanismo Aluna Leticia Pestana Orientadora Profª Dr. Myrna de Arruda Nascimento

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro Universitário Senac Santo Amaro, como exigência para obtenção do grau de bacharel em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2018



Ă cidade de sĂŁo paulo



À coordenação e aos professores que dividiram seu tempo e conhecimento conosco. Em especial os professores Nelson Urssi, Gabriel Pedrosa e João Yamamoto. À minha orientadora Myrna, que acolheu a ideia desse projeto desde o começo, sempre de ouvidos abertos, pelo tempo e empenho e por fazer das nossas conversas um lugar seguro. Ao professor Ricardo, orientador de iniciação científica, projeto que antecedeu e deu base para esse trabalho de conclusão de curso; pela presença, pela disponibilidade e pela mão erguida sempre. Ao grupo de orientação Fundamentos da Arquitetura pelo acompanhamento de perto nesse último ano de trabalho. Ao grupo de pesquisa Metamorfose Urbana: Cidade Mapeada, formado por Camila, Jéssica, Vanessa e Vitória; por representar a potência feminina, pelos olhares atento às cidades e pelo crescimento durante nosso ano de iniciação científica. Aos amigos que fiz durante esses anos, companheiros de angústias e sorrisos: Caroline, Cristiane, Fernanda, Gabriela, Mariana, Murilo, Roberto, Vander e Vanessa. Aos amigos da vida, que estiveram ao meu lado da maneira que encontraram, relevando toda a ausência. Aos meus pais, Marisa e Carlos, pelo apoio e investimento durante os cinco anos de estudo e por me deixaram livre para conhecer e experimentar minha cidade. À minha sobrinha, Maria Clara, que é motivo de resistência. E à toda minha família. Destaco aqui aqueles que reservaram um tempinho para compartilhar suas memórias citadinas contribuindo para o corpo dessa pesquisa: Alessandro Pedrazolli, Alexandre Monteiro, Bárbara Bravo, Camila Campos, Carlos Barbosa, Caroline Yukie, Fernanda Aguiar, Fernanda Mira, Gabriela Lira, Giovanna Farias, Joice Cavalcante, Juliana Ferreira, Luana Pedrosa, Michelle Magalhães, Murilo Urbaneto, Natália Duran, Patrícia Rosa, Ricardo Luis Silva, Roberto Lopes, Samuel Cardoso, Sophia reis e Thais MB.

obrigada!



1. asfalto



Este trabalho propõe uma leitura no centro da cidade de São Paulo através dos eventos urbanos que irrompem e constroem o cotidiano da metrópole contemporânea. Partindo da afirmação de Michel de Certeau (1994, p.69), de que a forma mais elementar de compreensão urbana se dá ao caminhar, fragmento o centro de São Paulo em doze configurações urbanas que me permitem abordar diferentes experiências da cidade reconhecidas no caminhar a pé: avenida, vale, largo, viaduto, praça, ladeira, rua, beco, calçada, escadaria, passarela e esquina. Esses elementos do repertório arquitetônico urbano serão explorados pelo olhar do andarilho e representarão o que é cidade e o que ela revela para quem a experimenta. Como resultado a pesquisa apresenta a produção de um livro-objeto capaz de acolher narrativas cotidianas das diversas cidades que podem ser construídas a partir de uma única cidade, explorando assim, as apropriações pessoais dos indivíduos que inventam e exploram possibilidades através das quais escolhem perceber o espaço urbano. Palavras-chave: cidade; eventos urbanos; livro-objeto; representação gráfica; experimentação

This work proposes a reading in the center of the city of São Paulo through the urban events that break out and construct the daily life of the contemporary metropolis. Starting from the affirmation of Michel de Certeau (1994, p.69), that the most elementary form of urban understanding occurs when walking, I fragment the center of São Paulo in twelve urban configurations that allow me to approach different experiences of the city recognized in walking on foot: avenue, valley, wide, viaduct, square, slope, street, alley, sidewalk, staircase, footbridge and corner. These elements of the urban architectural repertoire will be explored by the look of the wanderer and will represent what is the city and what it reveals to those who experience it. As a result the research presents the production of an object book capable of receiving daily narratives of the various cities that can be constructed from a single city, thus exploring the personal appropriations of individuals who invent and explore possibilities through which they choose to perceive the urban space. Keywords: city; urban events; book-object; graphic representation; experimentation


apresentação considerações ao leitor introdução

14 15 16

prelúdio

andamento

interlúdio um

interlúdio dois

polifonia cotidiano flanuer narrativa

20 21 23 25

cidade como palco iconicidade doze configurações

29 31 43

compasso interlúdio três

visita cores doze eventos cenas cotidianas

46 48 64 66


poslúdio interlúdio quatro

livro-objeto referências estudo de caso

89 90 94

este livro-objeto partido suporte carimbos modelo produção

106 108 110 112 120

considerações finais lista de figuras bibliografia

130 131 133


Antes de revelar a intenção desta pesquisa, gostaria de alertá-los para uma questão visceral da sua concepção: ela é construída a partir de uma linguagem narrativa e assume caráter empírico, sendo o último trabalho da minha graduação em Arquitetura e Urbanismo. Quando penso sobre cidades, a primeira que me vem à cabeça é São Paulo, cidade onde nasci e fui criada. Moro na zona oeste, em um bairro com condições precárias de lazer, cultura, espaços livres e tantos outros serviços públicos importantes para o bem-estar do cidadão. Por conta dessa carência e outros gostos pessoais, me aproximei muito nova do centro da metrópole; aos quatorze anos já arriscava meus primeiros passeios pelas ruelas centrais, sempre com um destino, mas perder-se e deixar-se levar pelos caminhos desconhecidos faziam parte do roteiro. Assim, fui criando uma relação íntima e sensível com vários fragmentos da cidade: as escadas tumultuadas à noite na praça Roosevelt; a galeria do rock na avenida São João; os bares da rua Augusta. Durante os últimos quatro anos da faculdade me dediquei às disciplinas¹ que convidavam os alunos a perceber a cidade a partir de olhares específicos, focando em questionamentos pouco habituais sobre a arquitetura, a paisagem urbana e as consequências do espaço construído na vida cotidiana. O que também me levou a desenvolver um projeto de iniciação científica², que tinha por objetivo estudar as relações estabelecidas entre o corpo-individual feminino e o espaço-tempo na cidade contemporânea tendo como meio de aproximação o bordado, a memória e a cartografia.

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¹Projeto interativo 3 e 4 - metrópole; Comunicação, Imagem e Paisagem; Projeto, Espaço e Objeto. ²Representações gestuais: cartografias femininas bordadas como prática espacial na cidade contemporânea.


Neste ano, para definição do tema do meu trabalho final de graduação, tinha em mente algumas abordagens arquitetônicas que sabia já fazerem parte dessa pesquisa: cidade, cotidiano e experiência corpórea. Interesso-me pelas tantas formas como a metrópole se apresenta: um campo aberto a ocorrências do acaso; um espaço de interação entre os indivíduos que aqui habitam; um ambiente marcado por memórias, rastros e mensagens imateriais. Decido, então, que quero ler a cidade de São Paulo através dos eventos urbanos que ativam e desencadeiam ações no espaço público, escolhendo assim, algumas experiências citadinas como objeto de estudo dessa pesquisa.

Considerações ao leitor A montagem deste caderno surgiu através da exploração do número doze. DODECAFONIA: doze notas. doze sons. doze eventos urbanos. doze configurações urbanas. Trata-se de uma composição que representa a cidade de São Paulo. Os capítulos foram nomeados por expressões musicais que dialogam com o caráter e conteúdo da pesquisa. PRELÚDIO: introdução. 1. POLIFONIA: diversas vozes e sons que reverberam nessa pesquisa; fundamentação teórica. 2. ANDAMENTO: primeiros passos; movimento na cidade. 3. COMPASSO: marcação; ritmo da cidade. 4. POSLÚDIO: trecho final da composição; produto. INTERLÚDIO: pausas.

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Quando nos questionamos sobre o que é cidade, dificilmente obtemos como resposta uma definição de prontidão, isso por que a palavra cidade pode ter muitos significados. Ao pesquisar no dicionário vemos a polis descrita como grande aglomeração de pessoas em uma área geográfica circunscrita, com inúmeras edificações, que desenvolve atividades sociais, econômicas, industriais, comerciais, culturais, administrativas etc¹. A cidade também pode ser caracterizada como o espaço urbano que se contrapõe ao campo. Todo cidadão está, constantemente, falando sobre cidades: seu bairro, sua casa, o congestionamento das avenidas, o transporte público precário, a insegurança das ruas, o local de trabalho, os espaços de lazer, as viagens das férias, etc. Todos esses itens descrevem a cidade pelo seu caráter prático, porém, essa pesquisa compromete-se a interpretar as mensagens deixadas na paisagem urbana, compreendendo a cidade como um espaço de interação entre os indivíduos que aqui habitam. Olharemos, então, para os elementos que desencadeiam esse tipo de interação. O desenvolvimento da pesquisa acontece através da apropriação teórica de autores como Charles Baudelaire, Guy Debord, Michel de Certeau, Paola Berenstein Jacques e Walter Benjamin e da experiência da cidade através de perambulações em busca de simbolismos urbanos e narrativas. Partindo da afirmação de Certeau, de que a forma mais elementar de apreensão urbana se dá ao caminhar, fragmento o centro de São Paulo em doze configurações urbanas que me permitem o esgotamento das possibilidades do percurso a pé: avenida, vale, largo, viaduto, praça, ladeira, rua, beco, calçada(ões), escadaria, passarela e esquina.

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Esses elementos serão explorados pelo olhar do caminhante e nos possibilitarão a construção da ideia do que é cidade e o que ela revela para quem a experimenta. A escolha em abordar esses eventos que modificam a rotina da cidade², vem do interesse de estudar a metrópole através das práticas cotidianas e perceber como elas constroem um cenário despretensioso na paisagem pública. Para uma primeira aproximação das configurações urbanas e seus eventos, documento esses espaços através de um exercício de percepção que denomino palavrório. Esse exercício representa os fragmentos de cidade através de palavras desconxenas que veêm à minha mente e mamória durante as visitas. Inicio também uma narrativa imagética, com linguagem fotográfica, intitulada cenafragmento. Essas cenas são manipuladas graficamente a fim de exaltar elementos urbanos e a interação do cidadão com o lugar. Tenho como objetivo construir um livro-objeto capaz de acolher as narrativas cotidianas das cidades que encontramos dentro de uma mesma cidade. Pretendo explorar assim as diversas cidades que existem a partir dos indivíduos que as experimentam, utilizam e inventam. O livro-objeto chega aqui com a necessidade de se pensar um produto enquanto território híbrido capaz de servir de suporte para toda narrativa construída.

¹ Definição tirada do dicionário Michaelis. ² E, por consequência, também criam uma rotina, já que acontecem com regularidade no mesmo local.

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palavrório

interlúdio um: abafado cruzado edificação gambiarra lateral hábitat garimpo justaposição meio-fio lombada descida ebulição ângulo andança britadeira caótico descarte eixo semáforo obstrução nível rapidez unilateral penduricalho nômade cenário canaleta dureza alçar adentrar buraqueira casual degrau frequência haste limite mirante gradeado organismo nascente permear volume ruído perspectiva passatempo ocioso preenchimento quadra rabisco sinuoso tipografia passageiro amontoado bruto corpulento debandar decompor alameda ambulante ágil beltrano tranquilo vagar risco percurso ondulação obstáculo ninho palco reunião pavimentação aglomerado acréscimo curva ecoar calcanhar adereço alto agitado bicicleta deriva efêmero | 08.04_domingo, 15:32

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Esse capítulo é sobre as tantas vozes que reverberam neste trabalho. O desenvolvimento da pesquisa acontece através da apropriação teórica de autores como Charles Baudelaire, Guy Debord, Michel de Certeau, Paola Berenstein Jacques e Walter Benjamin e da experimentação da cidade através de perambulações em busca de simbolismos urbanos e narrativas. Aqui destaco três conceitos que norteiam e estruturam o pensamento deste estudo: cotidiano, flâneur e narrativa.

charles baudelaire flâneur

michel de certeau cotidiano 2. autores

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walter benjamin narrativa


Cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. (CERTEAU, p. 31, 1998)

É no cotidiano que encontramos os elementos capazes para a aproximação e a leitura de cidade proposta nesta pesquisa. Diante da impossibilidade de definir esse conceito tão amplo, múltiplo e íntimo, destaco um trecho do texto A Rua, de Georges Perec (1999) e proponho um exercício de percepção do meio urbano a fim de destacar aquilo que já não salta aos olhos do cidadão desatento e habituado ao convívio diário com o lugar; destacar o ordinário com a repetição cotidiana. Esse olhar disponível nos aproxima das peculiaridades de um lugar e nos alerta sobre a importância do caminhar, do percurso e, quando nos apropriamos desse nosso cotidiano, também estamos nos apropriando das cidades. Se encontramos nas ruas o espaço de ocorrências das interações sociais, de certa forma, podemos dizer que além do cinema, do museu, das galerias de arte, a cultura também está inserida nas feiras, nas praças, nas avenidas ou calçadas. É preciso entender o urbano como espaço de conhecimento, observação e vivência.

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Observar a rua, de tempos em tempos, talvez com uma preocupação um pouco sistemática. Aplicar-se. Não ter pressa. Anotar o lugar: o terraço de um café perto do cruzamento Bac-Saint-Germain. O horário: sete horas da noite. A data: 15 de maio de 1973. O tempo: bom e estável. Anotar aquilo que se vê. O que acontece de notável. Será que sabemos ver o que é notável? Tem alguma coisa que nos impressiona? Nada nos impressiona. Não sabemos ver. É preciso ir mais devagar, de maneira quase tola. Forçar-se a escrever aquilo que não tem interesse, o mais óbvio, o mais comum, o mais sem graça. A rua: tentar descrever a rua, do que ela é feita, para que serve. As pessoas nas ruas. Os carros. Que tipo de carros? Os prédios: observar que eles são bastante confortáveis, bastante luxuosos; distinguir os prédios residenciais e os prédios oficiais. As lojas. O que se vende nas lojas? Não tem nenhum comércio de alimentação. Ah sim, tem uma padaria. Perguntar-se onde as pessoas daquele bairro fazem compras. Os cafés. Tem quantos? Um, dois, três, quatro. Por que escolher este aqui? Porque já é conhecido, porque bate sol, porque é uma tabacaria. As outras lojas: antiquários, roupas, aparelhos de som etc. Não dizer nem escrever “etc.”. Forçar-se a esgotar o tópico, mesmo que pareça grotesco, ou fútil, ou estúpido. Ainda não olhamos para nada, só o que fizemos foi localizar aquilo que já havíamos localizado há muito tempo. Obrigar-se a ver de maneira mais rasa. Desvendar um ritmo: a passagem dos carros: os carros chegam em blocos porque, mais acima ou mais abaixo naquela rua, eles foram parados por sinais vermelhos. Contar os carros. Olhar as placas dos carros. Identificar os carros licenciados em Paris e os outros. Notar a ausência de táxis precisamente quando parece que há várias pessoas esperando por eles. Ler o que está escrito na rua: totens publicitários, bancas de jornal, cartazes, placas de trânsito, grafites, folhetos jogados no chão, letreiros das lojas. [...] Continuar Até que o lugar se torne improvável até sentir, por um brevíssimo instante, a impressão de estar em uma cidade estrangeira, ou, melhor ainda, até não entender mais o que está acontecendo ou o que não está acontecendo, até que o lugar inteiro se torne estrangeiro, que não se saiba sequer que aquilo é chamado de cidade, rua, prédios, calçadas... (PEREC, p.84. 1999)

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O flâneur é um personagem concebido e reconhecido por alguns pensadores modernos como Charles Baudelaire (1821-1867) e Walter Benjamin (1892-1940). Benjamin, interpretando o conto “O homem da multidão” de Edgar Allan Poe, define o flâneur como um sujeito que encontra na multidão um refúgio, onde mesmo cercado de pessoas, ainda está só. O flâneur é um observador da vida urbana. Podemos compará-lo com um andarilho contemplativo que olha a cidade de forma atenta e sensível, que dedica seu tempo a caminhar tranquilamente pelas ruas, sem pressa, observando e usufruindo dos apelos da urbanos. Ele seria, portanto, a contraposição do indivíduo absorvido pela necessidade de velocidade, que anda pela cidade sem deixar que ela o arrebate. Caminhar, observar e imaginar: esses três verbos são as palavras que melhor definem esse personagem urbano. Abaixo destaco um trecho de O homem da multidão, onde o autor senta-se em um café em Londres e narra com atenção os detalhes ordinários observados do lado de fora. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior. De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e

comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica. Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho.¹

¹Trecho de “O homem da multidão” de Edgar Allan Poe 25


3. Flâneur. HUART, Louis. Physiologie du Flanêur. Caricatura de Honoré Daumier.

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O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história. (BENJAMIN, 1994, p. 201)

Encontramos nos textos de Walter Benjamin dois tipos de experiências distintas: Erlebnis e Erfahrung. Erlebnis, a vivência, o acontecimento, uma experiência sensível, momentânea, efêmera, um tipo de experiência vivida, isolada, individual; a e Erfahrung, a experiência maturada, sedimentada, assimilada, que seria um tipo de experiência transmitida, partilhada, coletiva. (JACQUES, 2012, p.18-19)

Benjamin não defendia o desaparecimento da Erlebnis, a experiência vivida, a vivência, mas, destacava a incapacidade de convertê-la em experiência ampliada, coletiva. Portanto, a Erfahrung, seria o estágio em que a primeira , assimilada e assumida, poderia ser compartilhada com o Outro. Para Benjamin, “mais do que a experiência propriamente dita (em termos de vivência), era a arte de narrar que estaria em vias de extinção” (JACQUES, 2012, p.19). Jeanne Marie Gagnebin¹, explica em entrevista algumas possíveis causas para o nosso atual desinteresse em narrar nossas experiências pessoais e assim transformá-las em experiências coletivas. [...] a faculdade de contar e de ouvir histórias é intimamente ligada a uma temporalidade pré-capitalista, para dizê-lo de maneira sucinta. [...] Com o advento da industrialização e do capitalismo, o tempo da produção se torna um fator essencial da obtenção da mais-valia e, portanto, do lucro. Essa aceleração se torna universal, também em relação aos processos de narração, 27


de escrita (Twitter!), de transmissão e de experiência: a vivência (um termo introduzido no fim do século XIX) designa uma experiência individual, não mais ancorada numa experiência coletiva, geralmente ligada a um presente fugidio, não mais ancorado numa tradição comum. (GAGNEBIN, 2014, p.14)

O Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, do qual Paola Berenstein Jacques² é coordenadora, desenvolve uma pesquisa intitulada “Experiências metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea”. O estudo desenvolvido associa as narrativas urbanas diretamente à questão da memória. A narrativa também é diretamente relacionada com “as experiências de trabalho de campo, etnográfico, de escuta do outro, da escolha de interlocutores, das diferentes formas de relatos de encontros” (JACQUES, 2013, p. 13). Entende-se que o próprio exercício de narração se associa ao movimento, a prática espacial, à viagem ou ao simples andar pela cidade. A narração, em qualquer forma de narrativa (textual, fotográfica, audiovisual, etc.), não somente exprime uma prática, uma ação, nem se contenta em dizer o movimento, ela já o faz ao narrar. Uma narrativa seria assim uma prática do espaço, um tipo de ação, que poderia ser cartografada, mapeada. Essas cartografias partem de experiências físicas, corporais. O próprio corpo pode ser compreendido como um tipo de cartografia da experiência urbana (JACQUES, 2013, p. 14)

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¹Professora de filosofia e de teoria literária considerada uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Walter Benjamin no Brasil. ²Arquiteta, urbanista, professora e pesquisadora de novas teorias e práticas do corpo no contexto urbano.


andamento


palavrório

interlúdio dois: debaixo criança corpo bola barulhento andante alongar acentuado breve buraco agrupar vertical relevo robusto parede paisagem ônibus ortogonal permanecer pedestre pedinte elevação iluminação locomoção ilustrado embolado espiral flexível ginástica imagem massa movimento muro emenda frontal flagra face grade margem abrigo anguloso bloqueio aço amplo correria corte cruzamento marca galeria espesso farol alternativa adormecido fuligem inserto morada urbano sotaque transição ocasional pegada emaranhado inclinação equilíbrio entrelinha agulheiro abordagem aclive calçada cerca cheio habitação indireto localidade mulher perímetro pressa saída observável outrém | 16.05_quarta-feira, 10:27

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Esse trabalho tem como objeto de leitura as práticas cotidianas que acontecem no centro da cidade de São Paulo, que, em sua imensidão, seria impossível de serem lidas em apenas um ano de pesquisa. Com o objetivo de esgotar essa parcela delimitada, fragmento o centro da metrópole paulista em doze configurações urbanas: avenida, vale, largo, viaduto, praça, ladeira, rua, beco, calçada, escadaria, passarela e esquina. Esses elementos do repertório arquitetônico foram escolhidos através de perguntas como: o que é cidade? como podemos definir uma cidade? Obtendo respostas primárias que envolviam aspectos físicos, percebemos que, no imaginário do cidadão urbano, a cidade está muito mais ligada ao seu caráter utilitário - aglomerações de pessoas, edificações altas, conjunto de bairros, trânsito, deslocamentos em consequência das tarefas rotineiras. Poucos entrevistados identificavam a polis como um espaço de interação com o Outro, como um território que é espaço de aprendizado e comunicação. Partimos desses elementos corriqueiros de escala urbana, que participam da vida cotidiana de todos aqueles que aqui habitam, para explorar as tantas mensagens que podem ser lidas na paisagem e que são ignoradas pelo cidadão submisso à velocidade, que anda pela cidade sem deixar que ela o arrebate.

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4. Rastros. Malha com trajetos a pĂŠ feitos no territĂłrio urbano.

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AVENIDA 1. via comprida de grande importância em uma cidade 2. mais carro do que gente

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VALE 1. terreno baixo Ă margem de um rio 2. fundo; campo aberto

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LARGO 1. onde as ruas centrais de uma cidade convergem 2. amplo; esfĂŠrico;

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VIADUTO 1. passagem elevada para atravessar a cidade de automรณvel; 2. rasgo; cicatriz;

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PRAÇA 1. espaço público de convivência e lazer 2. pausa na cidade construída

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LADEIRA 1. caminho íngreme 2. morro de subir ou descer

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RUA 1. caminho público rodeado por casas e edifícios 2. passeio do automóvel

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BECO 1. rua estreita e curta 2. passagem reservada para o andarilho

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ESQUINA 1. encontro de uma rua com outra 2. dobra; canto

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ESCADARIA 1. via de acesso em diferentes nĂ­veis 2. degraus separados por descansos na subida ou na descida

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PASSARELA 1. passagem elevada para chegar de um ponto a outro Ă pĂŠ 2. vista superior da cidade

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CALร ADA 1. caminho calรงado de pedra 2. passeio do andarilho

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São Paulo é uma cidade com centenas de praças, avenidas e ruas (...), com as doze configurações urbanas definidas e sabendo que o objeto de leitura da pesquisa são as práticas cotidianas que acontecem nesses lugares, foi preciso selecionar quais os eventos urbanos seriam destacados neste trabalho. Uma vez que a pesquisa lida com questões de cotidiano, memória e experimentação, destaco que as escolhas foram feitas por aproximação e afinidade, revelando preferências da autora.

avenida paulista paulista aberta

praça benedito calixto feira de antiguidades

esquina augusta x paulista encontros

vale do anhangabaú passagens

ladeira pôrto geral camelôs

escadaria do bixiga festa de rua

largo santa cecília feira livre

rua treze de maio festa da achiropita

viaduto minhocão aberto

beco do batman turistas

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compasso


palavrório

interlúdio três: agora achatado acrobacia biônico caminhante caos correria democrático elemento dentro elevado esquerda extensão fumaça fragmento luminoso linear livre metropolitano memória mistura sombra reverberar perceptível passagem partilha objeto nativo assento amarelado acelerar ação inquietação ganha-pão jaleco ligação largo mancha longitudinal entardecer acampamento animalesco declive dentre blindado agregado ameaçador nublado pisada assimétrico sino selvagem sobra necrópole hachura fluxo manobrista maioral camelô centro afluência alargar abertura curvatura ajardinado eloquente interurbano lento fusão flerte encaixe escurecer acompanhar acaso cotidiano afável | 19.05_sábado, 16:12

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Para identificar as distintas configurações e as atividades ou usos que elas abrigam, foi preciso pensar um modo de organização para que elas fossem facilmente reconhecidas. Inicialmente os dados estavam dispostos em uma tabela que listava de forma objetiva os locais e as práticas, porém, essa apresentação era insuficiente para indicar o dinamismo dos eventos. Para assumir um formato que pudesse ser transportado conforme o leitor circulasse pela cidade, foi criado uma espécie de cartão de visita, compacto o suficiente para acompanhar o visitante nos lugares selecionados e denominado de forma ambígua para também indicar a passagem destes leitores nas configurações propostas. As informações nos cartões são dispostas verticalmente em um retângulo de medida 9x5¹. Começamos por um cabeçalho que identifica a configuração urbana e, abaixo, mostramos onde essa configuração está inserida na cidade; ambas as informações são grafadas em caixa alta, para facilitar a leitura e o convite de aproximação. A linha abaixo informa qual é o evento que está sendo destacado, grafado em caixa baixa, pois representa um foco mais específico e particular do lugar.

lugar

¹Medida padrão dos cartões de visita no Brasil 48

lugar


Entendendo que esses eventos têm a possibilidade de acontecer durante as 52 semanas do ano, foi criada uma malha que identifica essas semanas e serve de marca d’água para o cartão. Sua estrutura é a mesma de um calendário semanal - começa no domingo e termina no sábado. Essa malha reticulada foi preenchida com a frequência e o dia em que esses eventos ocorrem, escolhendo tons claros e escuros de uma mesma cor para diferenciar as unidades de semana. No rodapé do cartão encontram-se as informações de horário: os pequenos retângulos indicam em que parte do dia podemos encontrar esses eventos na cidade; a coloração de cada retângulo corresponde ao período em que eles se realizam, sendo o cinza claro manhã, o cinza médio tarde e o cinza escuro noite. Quando essa barra não estiver totalmente preenchida, o branco significa a ausência de ocorrência.

lugar

lugar

lugar

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Uma escala cromática foi pensada para identificar e representar as distintas configurações e seus eventos. A escolha se deu através de um exercício comparativo entre doze imagens capturadas na própria paisagem dos lugares. Com a intenção de flagrar uma cor predominante, foram recortados objetos ou elementos urbanos expressivos que podem ser reconhecidos facilmente pelos visitantes e frequentadores do espaço. Sabendo da efemeridade de alguns desses elementos, identifico-os com o dia e horário em que foram recolhidos pela cidade.

50

avenida

vale

largo

paulista

anhangabau

santa cecilia

viaduto

praca

ladeira

elevado pres. joao goulart

benedito calixto

porto geral

rua

beco

calcada

treze de maio

BATMAN

araca

escadaria

passarela

esquina

bixiga

santa ifigenia

augusta x paulista


5. entrada-saída

viaduto: parque minhoção entrada-saída cor laranja domingo | 04.03, 16:15 51


6. sentรกvel

52


escadaria: festa de rua sentรกvel cor cinza sรกbado | 07.04, 12:57

53


7. prateleira

praรงa: feira de antiguidades prateleira cor vermelho sรกbado | 12.05, 10:18 54


8. corpo

beco: turismo corpo cor roxo terรงa-feira | 10.04, 15:18

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9. moldura

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passarela: ambulantes moldura cor ocre sexta-feira | 25.05, 13:08

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10. pontas

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vale: passagens pontas cor amarelo sexta-feira | 25.05, 13:08


11. marcação

avenida: paulista aberta marcação cor preto sábado | 05.05, 10:18

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12. encosto

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esquina: encontros encosto cor marrom sexta-feira | 01.06, 14:35

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13. final

rua: festa da achiropita final cor verde sexta-feira | 01.06, 12:29

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14. sombreiro

calรงada: mercado de flores sombreiro cor azul segunda-feira | 19.03, 14:28

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15. emaranhado

ladeira: camelĂ´s emaranhado cor rosa quinta-feira | 31.05, 09:23

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16. bacia

largo: feira livre bacia cor azul terรงa-feira | 29.05, 08:02

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17. Diagrama. Cartões de visita.

Ao fim, esses cartões colocados um ao lado do outro, formam um diagrama que permite identificar imediatamente como esses eventos ocorrem com frequências distintas ao longo do ano e também o ritmo que essa ocorrência cria no espaço urbano.

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18. cenafragmento um

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terรงa-feira, 15:45 bar do coco nas redondezas do beco do batman; cadeiras vazias ditam o ritmo do comeรงo da semana

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19. cenafragmento dois

70


quinta-feira, 09:48 barraca de frutas na feira livre da praça benedito calixto; caixas de deposito; intereção entre feirante e frequentador

71


20. cenafragmento trĂŞs

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domingo, 10:06 caixas pretas que servem de despensa para alimentos ou produtos pessoais dos feirantes da feira do largo da santa cecĂ­lia

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21. cenafragmento quatro

74

domingo, 11:15 passagem aberta para o caminhante na rua treze de maio


22. cenafragmento cinco

sexta, 15:45 barraca de artesanato na esquina da avenida paulista com a rua augusta

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23. cenafragmento seis

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sábado, 16:32 adição; parque minhocao; a indicação do caminho é sempre linear

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24. cenafragmento sete

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domingo, 14:14 elementos urbanos viram suporte para prรกticas esportivas na avenida paulista aberta

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25. cenafragmento oito

80

sĂĄbado, 10:24 ambulantes e passantes na passarela santa ifigĂŞnia


81


26. cenafragmento nove

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segunda-feira 14:54 passagens no vale do anhangabaĂş


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27. cenafragmento dez

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terça-feira, 11:34 ladeira pôrto geral sempre ocupada pelo sobe e desce dos pedestres


28. cenafragmento onze

quinta-feira, 14:28 mercado de flores aberto 24h na avenida doutor arnaldo

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29. cenafragmento doze

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domingo, 14:29 escadaria do bixiga ao som de jazz; ocupação dos degraus.

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30. placa são joão

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poslúdio


palavrório

interlúdio quatro: abarrotado amanhecer aceno caminho cobogó cachorro cena costura euforia elíptico figura festivo faniquito família gesticular grafite heterogêneo inconstante música matéria palpável transitavel ocupação outrém acervo acontecimento adjacente adiante botequim boemia calorento canto cantor caminhada casa defronte dia errante retilíneo rotina acidentado acinzentar afunilado rachadura rasgo palmilhar pernas rotineiro reentrância sinfônica zumbido turista vaivém varanda sensorial piquenique pé plano paralelo afobado adorno andarilho aguardente museu metrô moradia memorial fractal formato para-choque patrulha pausa panorama noturno | 02.06_sábado, 19:56

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Quando falamos em livro-objeto, encontramos denominações diversas como livro-arte, livro-ilustrado, livro-poema, livro-obra. Ao que parece, muitos preferem a denominação de livro de artista, já que esta definição carrega um sentido maior de significados plásticos ou gráficos. De origem moderna, o livro-objeto é desenvolvido nas vanguardas da primeira metade do século XX, considerado assim, fruto da arte contemporânea. No Brasil, essa experiência nasce do encontro entre poetas e artistas visuais nos períodos concreto e neoconcreto, nos anos 60. Surge, assim, junto com o desejo da época de ampliar os caminhos da arte, questionando o suporte ou o espaço expositivo tradicional e propondo novas experiências sinestésicas aos espectadores/leitores. Edith Derdyk¹ (2013, p. 20) define: Especificamente para a arte, o livro-objeto é uma solução inteiramente plástica ou uma solução gráfica funcionalizada plasticamente. Ou ainda, o travestir de um livro em uma unidade com valores escultóricos. Nele, o apelo da forma, da textura e da cor é eloquente e o principal determinante do processo criativo.

Desta forma, o livro-objeto rompe com o formato esperado de um livro e busca uma identidade capaz de suportar, de forma essencial, a narrativa construída a partir das experiências urbanas, apelando para mecanismo da percepção e interpretação humana e propondo um novo modo de leitura do fenômeno urbano. Esta operação se fará por meio de um discurso minimalista/abstrato, disponível à experiência comunicacional participativa e construtiva. A preocupação com a matéria ou propriedade dos materiais é facilmente encontrada em diversos exemplares de livros de artistas, afinal, o suporte representa os conceitos e a proposta projetual do trabalho.

¹Edith Derdyk (1955) é artista plástica, ilustradora, educadora, escritora e organizadora do livro “Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas”, que foi visitado múltiplas vezes para a construção de repertório deste capítulo.

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31. Time of book

Time of Book Paulo Bruscky, 1994 O livro, aparentemente envelhecido, carrega marcas temporais reproduzidas através de camadas grossas de tinta, recortes, dobras e perfurações, afirmando sua condição de objeto-arte. Paulo Bruscky (1949) trabalha com desenho, pintura, gravura e também em performances e na produção de livros de artista, desenvolve trabalhos com mídias, intervenções e propostas no campo da arte conceitual.

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32. Xeroperformance

Xeroperformance Paulo Bruscky, 1981 O autor utiliza a fotocópia como instrumento de criação, visando o baixo custo e reprodução do livro. Bruscky reúne textos, imagens, fotografias de suas performances e usa diversas linguagens e técnicas para a sua concepção: carimbos, furos, colagens, riscos, cortes, dobras.

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estudo de caso

Poemobiles, 96

1974

Augusto de Campos e Julio Plaza 12 folhas avulsas + folha de rosto, 19 x 21,9 cm


33. Poemóbiles

O livro-poema é formado por um conjunto de doze peças tridimensionais: Open, Cable, Change, Entre, Impossivel, Luzcor, Luxo, Reflete, Rever, Vivavaia e Voo. De tamanho e proporção regulares, quando abertos, esses objetos se tornam páginas com vocábulos grafados sobre estruturas de formas geométricas. Eem 1982 Plaza definiu sua obra conjunta com Augusto de Campos como livro-objeto, por ser, ele mesmo, seu suporte no qual o texto assume perfil ideográfico¹ no corpo do papel e ativa seu caráter escultórico.

Os Poemóbiles nascem de um projeto da poesia concreta que buscava uma “arte geral da palavra”, integrando assim, o som, a visualidade e sentido de cada frase rompendo o formato convencional de um livro. Esta proposta faz com que o leitor saia de sua costumeira passividade diante da palavra escrita e se torne parte do conjunto, interagindo e criando novas visões sobre o que é poema e o que é arte. A cada página virada, uma nova figura geométrica se forma. E o leitor participa do criar de cada poema, ao montar o suporte de papel.

¹Representação direta das ideias por sinais gráficos que são a imagem figurada do objeto.

Augusto de Campos (1931)

Poeta, ensaísta, crítico brasileiro e um dos criadores do movimento literário denominado Poesia Concreta, onde a poesia ganhava nova forma poética baseada na desintegração total do verso tradicional. Julio Plaza (1938-2003) Artista espanhol intermídia, pesquisador, escritor, curador, professor e pioneiro no desenvolvimento tecnológico das artes, trabalhando com novos suportes e mídias. 97


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34. Impossível, Refletir; Open; caixa original da primeira edição de 1974; páginas-móbiles dobradas;

Vivavaia; Impossível, Refletir; Open; caixa original da primeira edição de 1974; páginas-móbiles dobradas; formas geométricas cortadas ao meio propõe ao leitor diferentes ângulos de visão criando assim múltiplas palavras e interpretações, articulando vocábulo e objeto.

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estudo de caso

Livro ilegĂ­vel, Bruno Munari 100

1949


35. Livro Ilegível

Munari pensa a primeira série de livros ilegíveis em 1949, em uma proposta que abandona por completo toda comunicação verbal, assumindo assim, a linguagem imagética, estética e sensorial. Questionando a função social de um livro, a preocupação do autor era trazer o prazer da experiência com os livros já nos primeiros estágios da infância, defendendo que este pode ser compreendido somente por sua visualidade. Para estimular a criatividade do pequeno leitor, proporcionando um contato lúdico, Munari recorre a diferentes texturas, espessuras e formatos das páginas,

afirmando que páginas iguais comunicam um efeito de monotonia e páginas de formatos diferentes são mais comunicativas. Os pré-livros de Munari são compactos para serem facilmente manipulados pelas mãos pequenas de uma criança, dos mais diferentes materiais e encadernações (papeis, tecidos, linhas), para conviverem com brinquedos e estar no ambiente que a criança associa ao divertimento. Desta forma os livros construíram associações prazerosas e cotidianas, favorecendo a aproximação do objeto no processo do desenvolvimento infantil.

Bruno Munari (1907-1998)

Foi um artista e designer italiano, que contribuiu com fundamentos em muitos campos das artes visuais e também com outros tipos de arte, com a investigação sobre o tema do jogo, a infância e a criatividade.

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36. Páginas do livro ilegível

Páginas do Livro Ilegível onde Munari defende a produção individual da narrativa através da visualidade. O papel que antes era usado para impressão de palavras ganha protagonismo comunicativo através das cores, formas e dobras com que representa o prório conteúdo do livro.

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37. Moldura

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Os primeiros passos desse livro-objeto surgiram já no andamento da pesquisa apresentada anteriormente. Quando concluí a síntese gráfica nomeada iconicidade (p. 31), sabia que ela iria nortear o formato desta publicação, que poderia ser qualquer um, desde que fosse livro-referente. O objeto foi pensado como um território a ser preenchido com memórias e experiências individuais daqueles que o adquirem. É composto por um conjunto de doze molduras, doze dobras, trinta e sete carimbos e duas almofadas com tinta. Cada configuração urbana junto ao seu evento cotidiano correspondem a uma moldura e uma dobra, que podem ser combinados livremente. Portanto, a estrutura física do livro é a união ou separação de dois elementos, misturando os territórios e seus eventos urbanos cotidianos, dando a liberdade para invenções de novas narrativas e estimulando a produção de uma linguagem experimental, trabalhando seus variados aspectos físicos e gráficos. Como citou Plaza (2010, s/p) “A criação do livro como forma de arte comporta um distanciamento crítico em relação ao livro tradicional; contestando-o recria-se a tradição em tradução criativa, fazendo surgir novas configurações e formas de leitura.”

38. Esquemas

Os desenhos ao lado apresentam os esboços iniciais pensados no contexto do projeto. A terceira opção destacada foi a ideia escolhida para o desenvolvimento do livro-objeto. 108


1. base; 2. doze molduras; 3. caixa para as doze dobras 4. tampa; 5. caixa solta para os carimbos; para junção das peças será preciso um elástico, que se encaixará nos dentes das peças

1. base e tampa unidas; 2. doze molduras fixadas nas contenções da base; 3. dobras centralizadas nas molduras; 4. caixa de carimbo fixada nas costas do livro

1. base e tampa unidas; 2. doze molduras fixadas nas contenções da base; 3. dobras centralizadas nas molduras; caixa de carimbo dentro do livro.

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O livro-objeto está contido em duas lâminas - base e tampa. De formato simples, o suporte foi construído em papelão cinza cru; funcionando como uma camada protetora que deixa escapar informações do seu miolo. O livro-objeto remete à experiência de chegar a um lugar desconhecido, perceber seus sinais e descobrir suas qualidades. As molduras foram feitas em papelão cinza cru, sem acabamento; com cor e leve textura de chão da cidade. As dobras exigiram um material flexível e resistente e foram feitas em papel kraft de cor neutra para receber a camada de cor dos carimbos futuros. As molduras estão inteiramente ligadas as configurações urbanas (avenida, vale, largo, viaduto, praça, ladeira, rua, beco, calçada, escadaria, passarela e esquina), portanto, servem de perímetro; de recorte e abrigam às representações de território - aspectos físicos, paisagem vista; e envolvem as dobras. As dobras dialogam diretamente com as práticas cotidianas ou eventos urbanos (paulista aberta, passagens, feira livre, parque minhocão, feira de antiguidades, camelôs , festa da achiropita, turismo, mercado de flores, festa de rua, ambulantes e encontros) que irrompem e constroem o cotidiano das configurações destacadas acima. Simulam como chegar até um lugar e ter que desbrava-lo - desdobrá-lo. Sendo assim, estão localizadas no centro das molduras. A manipulação do objeto se faz obrigatória: retirar as molduras, desdobrar as dobras, carimbá-las, encaixá-las com seu próprio território ou território do outro. Tem como objetivo tirar o leitor de sua costumeira passividade diante de um conteúdo pronto, e fazer com que ele crie, manualmente, o seu próprio objeto, afirmando assim que, o corpo que experimenta a cidade é o mesmo corpo que produz o livro.

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39. Esquemas

carimbos suporte

molduras doze peรงas

doze dobras

livro fechado

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40. aplicação dos carimbos

A linguagem gráfica deste livro-objeto foi desenvolvida através de carimbos, peças de geometria simples que podem ser combinadas para ilustrar as molduras e dobras. A técnica foi escolhida por sugerir repetição. Uma analogia às práticas cotidianas que se repetem. Os carimbos também servem de incentivo para que os leitores visitem os territórios durante a criação de suas narrativas e o revisitem outras tantas vezes, criando camadas de memórias e experiências com a sobreposição dos registros feitos para narrar os varios deslocamentos pela cidade.

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41. Modelo tridimensional

Foi construído um modelo de estudo tridimensional, julgado indispensável para o detalhamento de medidas, alturas e encaixes do livro-objeto. Para este modelo foi utilizado papelão cinza de 2mm de dimensões 20x30cm. Neste modelo nota-se a relação formal dos elementos; quadrados e retângulos sintetizam o formato do livro. Na foto ao lado vemos a base do livro com as contenções que seguram as molduras e reservam o lugar das dobras

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42. Modelo tridimensional

Base do livro-objeto jรก com as molduras e dobras no centro. As dobras foram testadas em papel kraft 240g Atrรกs, espaรงo reservado para a caixa de carimbos e tinta.

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43. Modelo tridimensional

Relação das molduras, dobras e caixa de carimbos.

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44. Modelo tridimensional

Tampa com travas que se encaixam no centro do livro.

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45. Modelo tridimensional

Modelo finalizado com a caixa de carimbos que tambÊm vira lombada para junção da tampa na base. 123


Após os testes de montagem, teve início a etapa final de produção do livro-objeto. Este subcapítulo mostra todas as especificações técnicas para que o objeto possa ser construído. Observo que as peças foram cortadas a laser para agilizar alguns processos da produção e os demais processos foram feitos manualmente.

material utilizado

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complementares

técnicas


Foram produzidos quatros unidades deste livro-objeto. A foto acima mostra todas as peças do suporte e molduras produzidas em papelão cinza e cortadas a laser, totalizando 8 bases, 8 tampas, 8 contenções, 8 travas e 48 molduras. 46. peças finais 125


As 48 dobras, 12 por livro, foram produzidas em papel kraft 240g e os ícones foram aplicados, manualmente, através de um stencil produzido previamente. Ao lado estão disponíveis as dobras planificadas para reproduções futuras. As medidas partem sempre de um quadrado 14,5x14,5cm, sendo as outras medidas 7,25x14,5 e 3,6x14,5. 47. peças finais 126


calรงada

rua

vale

viaduto

avenida

escadaria beco

ladeira

largo esquina

passarela

48. Dobras planificadas

praรงa

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A produção dos carimbos começa pelas formas desenvolvidas em software gráfico para serem cortados a laser em uma placa de 5mm de E.V.A preto e depois colados manualmente em pedaços de madeira com 6mm de espessura. 49. peças finais 128


A parte interna dos livros foi revestida com papel kraft e avança até a lombada para formar a caixa de carimbos e fazer a junção da base e tampa.

50. peças finais 129



57. chĂŁo


Inicio esse texto dizendo que, de longe, isto não é o fim. Assim como nos nossos cotidianos, que é sempre começo; das explorações, das experiências e das experimentações. Esses três termos sintetizam muito bem esse ano de pesquisa. Nos últimos doze meses decidi me aprofundar em questões que considero relevantes para o entendimento do espaço público: Como as práticas cotidianas constroem as cidades? Quais são as relações que o cidadão divide com sua cidade? Quais memórias e rastros são possíveis de se encontrar no espaço público? E quais memórias citadinas podem ser narradas por um caminhante que vivencia a cidade? Encaro este trabalho como um resgate das memórias que acumulamos quando nos deixamos transpassar pela cidade que nos comunica a todo instante. E para organizar essas memórias, produzi um livro-objeto, produto de linguagem gráfica e personalidade empírica. Tudo neste objeto é experimental: o formato, os materiais, a montagem e a proposta de construção do conteúdo em que o Outro é convidado a dividir suas memórias. Uma dinâmica que acredita que o corpo que caminha e experimenta a cidade é o mesmo corpo que projeta - um livro, um objeto, uma praça ou até mesmo grandes edifícios. Encerro o curso de Arquitetura e Urbanismo acreditando que a cidade é um palco de aprendizado e conhecimento e que narrar esses espaços a partir da escala íntima do pedestre, é compreender sua concepção e funcionamento. Assumindo, assim, que essa metodologia experimental que nos coloca diretamente em contato com o território urbano, pode ser um complemento aos métodos tradicionais que aprendemos nas universidades nas disciplinas de projeto de arquitetura e planejamento urbano.

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28. cenafragmento onze. acervo pessoal. p. 83 29. cenafragmento doze. acervo pessoal. p. 84 30. placa são joão. acervo pessoal. p. 86 31. time of book. disponível em: https://goo.gl/anaaym. acesso em: 12/05/2018. p. 90 32. xeroperformance. disponível em: https://goo.gl/anaaym. acesso em: 12/05/2018. p. 92 33. poemóbiles. disponível em: https://goo.gl/vpfxty. acesso em: 13/05/2018. p. 94 34. impossível, refletir, open; caixa original da primeira edição de 1974. disponível em: https://goo.gl/ vpfxty. acesso em: 13/05/2018. p. 96 35. livro ilegível. disponível em: https://goo.gl/1yhbwf. acesso em: 13/05/2018. p. 98 36. páginas do livro ilegível. disponível em: https://goo.gl/1yhbwf. acesso em: 13/05/2018. p. 100 37. moldura. acervo pessoal. p. 104 38. esquemas. acervo pessoal. p. 107 39. esquemas. acervo pessoal. p. 109 40. aplicação dos carimbos. acervo pessoal. p. 111 41. modelo tridimensional. acervo pessoal. p. 113 42. modelo tridimensional. acervo pessoal. p. 115 43. modelo tridimensional. acervo pessoal. p. 117 44. modelo tridimensional. acervo pessoal. p. 119 45. modelo tridimensional. acervo pessoal. p. 121 46. peças finais. acervo pessoal. p. 123 47. peças finais. acervo pessoal. p. 124 48. dobras planificadas. acervo pessoal. p. 125 49. peças finais. acervo pessoal. p. 126 50. peças finais. acervo pessoal. p. 127 51. peças finais. acervo pessoal. p. 128 52. peças finais. acervo pessoal. p. 129 53. peças finais. acervo pessoal. p. 130 54. peças finais. acervo pessoal. p. 131 55. peças finais. acervo pessoal. p. 132 56. peças finais. acervo pessoal. p. 134 57. chão. acervo pessoal. p. 135


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