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Fernanda Preto
Série: Corpo Água Voz (díptico) I 2003 I fotografia cor cromo (ampliação digital), 100 x 80 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto
Sou o que Me Sua: a produção de Fernanda Preto1
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tadeu chiarelli curador
Na arte brasileira, apesar de encontrarmos obras nas quais o corpo masculino erotizado é o tema,2 o que prevaleceu até o momento foi o olhar do homem sobre o corpo da mulher.3 Já o olhar da artista mulher, quando se erotizou, voltou-se quase sempre para si mesma ou para sua igual.4 São raros os trabalhos de arte produzidos por mulheres no Brasil em que o foco da atenção seja o corpo masculino. Talvez os desenhos de Anita Malfatti sejam os únicos exemplares contundentes no país desse olhar erotizado da mulher sobre o homem, um olhar, nesse caso, não despido de certa dose de espanto e estranhamento, mas, sem dúvida, deflagrador de um novo momento da arte brasileira.5
As fotografias que Fernanda Preto agora apresenta, também traduzindo para a linguagem visual a atração da mulher pelo homem, ampliam um pouco mais esse circuito restrito de imagens. Partindo do pressuposto de que no processo de montagem inerente à produção de um díptico (ou políptico) está presente o jogo, Fernanda, percebendo que talvez as fotos do modelo não transmitissem suficientemente o que gostaria de expressar – de novo o caráter lacunar da fotografia! –, resolveu acoplar-lhes outras imagens, para auxiliá-la a fazer com que as cenas do homem nadando transcendessem seu caráter prosaico para atingir dimensões simbólicas que a artista, no início, talvez apenas intuísse. Fernanda, assim, iniciou seu jogo.
Em dois dípticos coloridos, ela escolheu fotos do rapaz nadando em comunhão com o elemento água, como se ali não houvesse oposição entre natureza e cultura.6 Para reforçar tais sentimentos, acoplou à esquerda das fotos do rapaz imagens de copas de árvores, com forte conotação transcendente.
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 27 de julho de 2010 a partir do original publicado no catálogo da exposição conjunta de todos os artistas selecionados para o Projeto Mezanino de Fotografia do ano de 2004 (Alline Nakamura, Celina Yamauchi e Edu Marin Kessedjian, artistas selecionados em São Paulo/SP; Albert Nane, Fernanda Preto e Michelle Serena, artistas selecionados em Curitiba/PR), realizada de 12 de novembro a 21 de dezembro de 2004, na Casa Andrade Muricy, em Curitiba/PR. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 2 Aqui poderiam ser citados Alair Gomes, Ivens Machado e Edgar de Souza, entre outros. 3 Se a lista começar por um famoso nu feminino, pintado por Rodolpho Amoedo, ainda no contexto do final do século XIX, e depois passar pelas ninfetas de Eliseu Visconti, as mulheres negras de Di Cavalcanti, e outros, até certas produções de Tunga e Franklin Cassaro, será visto que o corpo da mulher, ou seus fragmentos, tem sido motivo para obras que permeiam toda a arte brasileira após a chegada da Missão Artística Francesa, em 1816. 4 Aqui poderiam ser lembradas as obras de Maria Martins, Tereza d’Amico e, mais recentemente, Vera Martins, Courtney Smith e Chris Bierrenbach, entre outras. 5 Ivo Mesquita, no texto introdutório do catálogo da mostra O Desejo na Academia, assim se refere à importância dos desenhos de nus masculinos realizados por Anita Malfatti: “[...] com Malfatti, a pulsão dominada e introjetada de forma produtiva a determinar a criação do trabalho de arte. Ela é o final cronológico do século XIX e a instauração da modernidade. Com ela o erotismo é uma energia a serviço da construção da forma, um procedimento interiorizado que engendra uma realidade própria: a arte”. Introdução. In: O Desejo na Academia (1847-1916). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1991. 6 No díptico em que o corpo do rapaz aparece de bruços, essa oposição entre água e corpo como dois elementos distintos só é reforçada pela marca da sunga no corpo do rapaz, que ali funciona como um índice de cultura em oposição ao conceito de comunhão com a natureza que o conjunto das duas fotos quer enfatizar.
Acostumados com a leitura da esquerda para a direita, percebemos primeiro as árvores e, na sequência – como num filme –, aquelas do rapaz integrado à água. A foto à esquerda como que coloca o observador no lugar de onde a fotógrafa espreita primeiro o alto das árvores e depois o nadador. Como ela, imersos na floresta, tornamo-nos, então, voyeurs, testemunhas furtivas de um banho que se transforma em ação ritual, repleta de elementos simbólicos.
Em outro díptico, a floresta é substituída pela imagem de um fragmento do corpo do modelo; em outro, é a imagem do rapaz nadando em congraçamento com a natureza que é trocada por uma imagem de um pedaço de seu corpo.
Na foto à esquerda do primeiro, o close na marca vertical e saliente da espinha dorsal sob a pele do rapaz possui conotações fortes, sobretudo quando percebida em relação à foto ao lado, em que ele de novo aparece nadando.
No outro díptico, onde estava a floresta, surge agora outra paisagem enfatizando o céu de forte azul. Ao lado, um close do peito do modelo com os braços cruzados. A imagem do céu azul está ligada ao conceito de espiritualidade, e ambos, ao conceito de masculinidade. Este último, por sua vez, é referendado pelo tórax ao lado, símbolo da coragem viril e, ao mesmo tempo, da proteção. Aqui, o corpo do homem não se funde com a natureza, ele “é” a própria natureza, numa total erotização da realidade.
Nesse processo de edição, Fernanda, jogando com as imagens do modelo e da natureza, construiu um discurso que, ao mesmo tempo em que celebra a fusão do ser humano com o universo, ressalta a figura masculina como detentora do poder de potencializar suas forças ao confundir-se com ela.
Anita Malfatti, como foi dito, ao desenhar o corpo nu masculino, via-o não sem uma dose de espanto e estranhamento. Essa distância entre ela e seus modelos não é da mesma natureza daquela que se percebe nos dípticos de Fernanda Preto. Nesses, tal distância, quando se dá, está ligada à adoração pelo objeto observado, e não por estranhá-lo e, portanto, de certa forma, temê-lo. Essa relação menos submissa com o corpo do homem, não se esquivando do desejo que ele é capaz de provocar, parece tendente a uma relação mais franca e igualitária entre a artista e o objeto de sua atração.
Tal situação fica patente na outra série de dípticos apresentada por Fernanda, na qual o assunto é praticamente o mesmo: o banho, ação cotidiana transformada em ritual.
Se nas fotos do lago era o congraçamento do corpo do homem com a natureza que dominava o interesse, nessas é a conexão entre o céu e a terra estabelecida pelo vapor d’água unindo esses dois extremos. Porém, a figura masculina não é o objeto único a ser observado no processo ritualístico captado nesses últimos trabalhos. Acoplado à imagem do corpo difuso do homem pelo vapor, surge o corpo da própria artista, também transfigurado. A fumaça une o céu e a terra e une também o corpo do homem ao corpo da mulher.
Ambos, cercados pela água em suspensão, parecem traduzir ou dar o sentido mais profundo do políptico que, simbolicamente, termina e sintetiza a mostra: Sou o que Me Sua.

Série: Corpo Água Voz (díptico) I 2003 I fotografia cor cromo (ampliação digital), 80 x 100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto

Série: Corpo Água Voz (díptico) I 2003 I fotografia cor cromo (ampliação digital), 80 x 100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto

Série: Corpo Água Voz (díptico) I 2003 I fotografia cor cromo (ampliação digital), 80 x 100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto

Série: Corpo Água Voz (díptico) I 2003 I fotografia cor cromo (ampliação digital), 80 x 100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto
I Foto: Fernanda Preto I Col. da artista fotografia preto e branco (ampliação digital), 80x100 cm I I 2004 Série: Por tanto tempo quanto silêncio



Série: Por tanto tempo quanto silêncio I 2004 I fotografia preto e branco (ampliação digital), 80x100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto
Série: Por tanto tempo quanto silêncio I 2004 I fotografia preto e branco (ampliação digital), 80x100 cm I Col. da artista I Foto: Fernanda Preto

I Foto: Fernanda Preto I Col. da artista fotografia preto e branco (ampliação digital), 80x100 cm I I 2004 Série: Por tanto tempo quanto silêncio

