18 minute read

Posfácio

Possibilidades da fotografia contemporânea: Mezanino e Portfólio

Daniela Maura Ribeiro

Advertisement

Em 17 de fevereiro de 2009, comecei a fazer o levantamento de fôlderes e catálogos do Projeto Mezanino de Fotografia e do Portfólio no Centro de Documentação e Referência (CDR), do Itaú Cultural. Começava o processo de organização do livro sobre os dois projetos, a convite dos núcleos Diálogos e Artes Visuais, do Itaú Cultural. Um mês depois, tive uma reunião conjunta com os núcleos. Quais os resultados que eu tinha obtido e como seria o livro foram as perguntas que nortearam a reunião. Debatemos sobre o conteúdo dos catálogos das exposições do Mezanino e do Portfólio – textos e imagens – e as possibilidades de utilização desse material no livro. O que poderia complementar esse material? Começamos a pensar em introduzir entrevistas com os idealizadores do Mezanino e do Portfólio e também com curadores de fotografia e literatura para trazer mais dados sobre a constituição e o desenvolvimento do Mezanino e do Portfólio aos leitores.

Em 8 de maio de 2009 foram aprovadas as questões que eu havia proposto para entrevistar os curadores e os idealizadores. Daí para a frente, a organização do material para o livro entrou em curso de fato: envio das questões das entrevistas por e-mail, agendamento das entrevistas com aqueles que preferiram concedê-la a mim pessoalmente, levantamento de imagens de obras e espaço expositivo, definição do número de imagens, solicitação de texto sobre a relação entre fotografia e literatura à pesquisadora Natalia Brizuela, organização dos textos dos curadores e escritores... À medida que esse material estava sendo reunido, o livro ia tomando corpo.

Saí da reunião de 10 de novembro de 2009 com um desafio: trabalhar o livro para formato eletrônico. Teríamos um e-book. Em 18 de maio de 2010, tive nova reunião com os núcleos Diálogos e Artes Visuais para verificação do status do material organizado e já partir para os preparativos para lançar o e-book em outubro: envio dos textos para revisão e tradução e, depois, do conteúdo pronto (textos e imagens) para diagramação. Em 27 de maio de 2010, definimos o título do e–book. Diálogos? Possibilidades? Experiências? O que o Mezanino e o Portfólio apresentaram? Possibilidades, concluímos. Assim,

chegamos a Possibilidades da Fotografia Contemporânea: Mezanino e Portfólio. Os meses de agosto e setembro de 2010 foram dedicados ao projeto gráfico e à diagramação do e-book.

Participei de todas as etapas de constituição deste e-book. Foi um prazer, um aprendizado, uma oportunidade de refletir sobre o Mezanino e o Portfólio e sobre a fotografia contemporânea. Vamos às reflexões.

O que é contemporâneo? Essa é a pergunta de Giorgio Agamben no ensaio O que É Contemporâneo?. 1 Entendo que, no conceito desse autor, a contemporaneidade se conecta diretamente com o século em que estamos inseridos e nosso tempo de vida.

Essa questão sobre o que considerar contemporâneo pode ser um ponto-chave para reflexão. Eduardo Brandão bem observou, ao responder à questão 10 de sua entrevista para o Portfólio, que são contemporâneas tanto a fotografia dos anos 1970, 1980, 1990 quanto a atual.

Assim, a fotografia e a literatura contemporâneas que o Mezanino e o Portfólio apresentam são aquelas realizadas por artistas, fotógrafos e escritores atuantes no século XXI. Estará em pauta, portanto, todo o debate que elas suscitam por estarem inscritas nessa época.

A fotografia contemporânea, neste terceiro milênio, vive um momento de destaque. O debate em torno dela se acentua com o lançamento de novas publicações, como A Fotografia como Arte Contemporânea, 2 da autora Charlotte Cotton, em 2010, e A Fotografia: entre Documento e Arte Contemporânea, 3 de André Rouillé, livro traduzido para o português em 2009.

O debate que a fotografia traz consigo desde os primórdios de ser ou não arte fica para trás, e ganham força, ou voltam à tona, ideias que dão conta de pensar a fotografia dentro da arte contemporânea, como, por exemplo, a aliança arte-fotografia que nos propõe André Rouillé. Nesse cenário dialogam o conceito de “fotografia contaminada”, proposto por Tadeu Chiarelli, segundo o qual artistas “manipulam o processo e o registro fotográfico, contaminando-os com sentidos e práticas oriundas de suas vivências e do uso de outros meios expressivos”;4 o de “mestiçagem”, concebido por Icléia Borsa Cattani, de acordo com o qual linguagens artísticas se cruzam e permanecem “em tensão na obra a partir de um princípio de agregação” e não se fundem em uma “totalidade única”, mas são mantidas “em constante pulsação”;5 a ideia de “fotografia-expressão”, de André Rouillé (2009), ao observar a crise do documento fotográfico “que resultou no progresso da ‘fotografia-expressão’, a fotografia em seu aspecto expressivo”; e a noção de fotografia expandida, proposta por Rubens Fernandes Júnior, ou a “fotografia experimental, construída, contaminada, manipulada, criativa, híbrida, precária, entre tantas outras denominações”.6

Observo que a fotografia construída ou encenada, a criação de performances e eventos para a câmera, é um dos pilares da fotografia artística contemporânea. Sai a noção de testemunho de um fato (como preza o fotojornalismo do instante) e entra a noção de criação de realidades, de “ficção”.7

Primeiro foi criado o Projeto Mezanino de Fotografia: o projeto piloto foi realizado em 2003 (de 6 de setembro a 12 de outubro), com uma exposição de Evgen Bavcar (Contornos Sagrados). Em 2004 começava a programação do projeto propriamente dito. Depois, em 2006, a sequência do Mezanino, o Portfólio.

O Projeto Mezanino de Fotografia nasce como um projeto de exposições de arte contemporânea, em um espaço no Itaú Cultural que não era ocupado por exposições, o piso mezanino, um lugar que tinha livre uma parede em um corredor. Marcelo Monzani, idealizador do Mezanino, então gerente do Núcleo de Artes Visuais, pontua, em seu depoimento, acerca da ideia de utilizar esse espaço e da fotografia como parte do projeto:

1 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009 (1. reimpressão), p. 55-73. 2 COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. Trad. Maria Silvia Mourão Netto. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. Coleção Arte&Fotografia. 3 ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Trad. Constancia Egrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. 4 CHIARELLI, Tadeu. A fotografia contaminada. In: Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999, p. 105-120. 5 Todas as aspas referentes ao conceito de mestiçagem correspondem a CATTANI, Icléia Borsa (Org.). Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. 6 Ver JÚNIOR, Rubens Fernandes. Processos de criação na fotografia: apontamentos para o entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfica. In: BOLETIM número 2, ano 2/2007, do Grupo de Estudos do Centro de Pesquisa de Arte & Fotografia do Departamento de Artes Plásticas da ECA/USP. São Paulo: ECA/USP, 2007, p. 47-48. 7 Ver KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, 3. ed.

[...] E eu comecei justamente a pensar, a partir disso, antes de propor o que eu poderia fazer, em expor ali [no piso mezanino]. Aí, pensando em arte contemporânea etc., e pensando no suporte e tudo, eu vi na fotografia uma grande possibilidade. Porque essa fotografia poderia ser exposta tanto de uma maneira tradicional, ocupando essa parede, como de outros modos.

O projeto pretendia “mostrar um trabalho de um artista emergente, um fotógrafo que não era conhecido, ou resgatar alguém” e possibilitar o diálogo com outras linguagens ou áreas (como a literatura).

O Projeto Mezanino de Fotografia tem início com o nome “projeto” no título porque era um “projeto em prol de si mesmo”, como esclarece Monzani, ainda em seu depoimento, de forma que sua estrutura pudesse ser modificada ano a ano.

Monzani refere-se à curadoria de Tadeu Chiarelli, no Projeto Mezanino de Fotografia 2004, e de Helouise Costa, no Mezanino 2005, e às diferenças entre cada edição: na de Chiarelli houve itinerância das exposições dos artistas que mostraram suas obras no Itaú Cultural (Edu Marin Kessedjian, Alline Nakamura e Celina Yamauchi) para Curitiba/ PR, onde o curador selecionou mais três artistas (Albert Nane, Fernanda Preto e Michelle Serena). Nessa cidade, na Casa Andrade Muricy, ocorreu a mostra coletiva com a participação de todos os artistas selecionados por Chiarelli para o Projeto Mezanino de Fotografia 2004. Na edição de que Helouise Costa foi curadora, não houve itinerância das exposições, mas se introduziu o diálogo com a literatura. Nessa edição, também, o Mezanino perdeu a palavra “projeto” do nome e passou a ser denominado Mezanino de Fotografia.

Os curadores tiveram liberdade para selecionar os artistas. Chiarelli não estabeleceu um eixo curatorial para a seleção dos artistas, pautou sua escolha na análise de portfólios (no caso dos artistas de Curitiba) e no acompanhamento da obra dos artistas Edu Marin Kessedjian, Alline Nakamura e Celina Yamauchi (artistas de São Paulo). Já Helouise Costa apontou que considerava importante estabelecer um eixo conceitual que amarrasse as três exposições dos artistas que selecionou, Fátima Roque, Patrícia Yamamoto e Guilherme Maranhão.8

Em 2005, Marcelo Monzani saiu do Itaú Cultural e “[...] o projeto continuou, e continuou em outras mãos e foi agregando outras questões, outras propostas”. Nasce o Portfólio.

Yara Kerstin Richter, à frente do Portfólio desde o início, em 2006, conta em seu depoimento que

[...] o projeto Portfólio foi concebido com base no Projeto Mezanino de Fotografia [...] Então, em 2006 houve a possibilidade de transferir esse projeto para o PP [piso Paulista, no térreo], onde teria uma visibilidade maior e também um espaço maior [...] Esse projeto é voltado mais para jovens artistas, mas jovens no sentido da produção – uma produção recente, não conhecida –, nem sempre de um artista jovem.

Dessa forma, o Portfólio parte dos pressupostos do Mezanino, mas busca potencializá-lo, trazendo a ele maior visibilidade. Muda de nome porque, “quando o projeto foi transferido para o térreo, não fazia sentido chamar Mezanino” e “o novo nome acabou ficando ligado à essência do projeto, que é a leitura de portfólio”, como apontou Yara, ainda em seu depoimento.

O Portfólio adota para todas as exposições a continuidade da relação entre fotografia e literatura. Manteve o curador do Mezanino, Nelson de Oliveira, para as edições de 2006 e 2007 e trouxe os curadores Raimundo Carrero e Rose Silveira para a edição de 2008.

A linha curatorial de Nelson de Oliveira tanto para o Mezanino como para o Portfólio privilegiou “a prosa mais inquietante, que provoca e incomoda”; Raimundo Carrero pautou sua escolha procurando refletir “sobre nomes que conhecia” e de forma a observar na produção do escritor a ser escolhido não somente qualidade, mas um “desejo de permanência, para que se projete no futuro”; e a escolha de Ailson Braga por Rose Silveira “se deu, sobretudo, pela consistência de sua curta, mas bem trabalhada, obra literária. É um autor sagaz, que não tem medo da experimentação nem dos desafios que isso requer”.9

A respeito dos curadores de fotografia, Yara Richter comenta, em seu depoimento, que foram escolhidos “aqueles que tinham um envolvimento com arte contemporânea, não fossem somente pesquisadores de fotografia”. Assim, foram selecionados Eder Chiodetto e Eduardo Brandão. A curadoria de Chiodetto teve como eixo principal

8 Ver questão 2 das entrevistas com os curadores Tadeu Chiarelli e Helouise Costa, no quarto capítulo. 9 Ver entrevista com Nelson de Oliveira, Raimundo Carrero e Rose Silveira, no quarto capítulo.

o autorretrato, e a de Brandão, a questão da autoria.10

A itinerância é outra questão que o Portfólio traz do Mezanino. Só que de uma forma mais sistemática, por meio do programa Portfólio Itinerante.

Esse programa parte das exposições do Portfólio para depois levá-las a outras cidades, de onde trazia artistas para expor no Itaú Cultural, em São Paulo. Aconteceu da seguinte maneira: as exposições de Helga Stein e Rodrigo Braga, do Portfólio 2006, com curadoria de Eder Chiodetto, itineraram em 2007. Primeiro a de Rodrigo Braga, para Belém/PA (mostrada no Museu da UFPA), depois a de Helga Stein, para Natal/RN (apresentada no Centro Cultural Casa da Ribeira). Em Belém, Chiodetto selecionou o trabalho de Alexandre Sequeira, e em Natal, o de José Frota, que tiveram suas exposições realizadas no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2007. Assim, esses artistas foram escolhidos como fruto da itinerância das exposições de Rodrigo Braga e Helga Stein. As exposições de Daniel Santiago e da Cia de Foto, do Portfólio 2007, com curadoria de Eduardo Brandão, itineraram em 2008 para Belém/PA (Museu da UFPA) e Recife/PE (Fundação Joaquim Nabuco), respectivamente. Nessas itinerâncias, Brandão selecionou e trouxe para expor no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2008, os artistas Patrick Pardini (selecionado em Belém) e Jonathas de Andrade (selecionado em Recife).

Sobre a questão dos trabalhos dos artistas tanto do Mezanino como do Portfólio e a relação com os eixos curatoriais em que eles se inserem, abro um parêntese para chamar a atenção sobre o fato de que, se vistas em conjunto, as produções dos artistas se inter-relacionam e, portanto, se dissociam de seus eixos curatoriais originais. Ainda, a mescla de artistas de diferentes edições do Mezanino e do Portfólio possibilita conferir mais de um sentido a determinada produção.

Por exemplo, a ideia do autorretrato (e também do retrato) está presente como proposta de curadoria no núcleo de artistas selecionados por Eder Chiodetto: Helga Stein, Rodrigo Braga, Alexandre Sequeira e José Frota. O autorretrato pode ser visto também em Michelle Serena (Projeto Mezanino de Fotografia 2004) e Guilherme Maranhão (Mezanino 2005); o retrato, em trabalhos como o de Jonathas de Andrade (Portfólio 2007) e em algumas imagens do portfólio eletrônico da Cia de Foto (Portfólio 2007) – coletivo atuante na área de publicidade que vem para o campo da arte. Por outro lado, o trabalho de Jonathas aponta para a ideia de autoria – proposta de curadoria de Eduardo Brandão, eixo original em que esse artista está inserido. O mesmo ocorre com a Cia de Foto, também do eixo curatorial de Brandão.

10 Ver questão 3 das entrevistas de Eder Chiodetto e Eduardo Brandão, no quarto capítulo.

Ainda nesse âmbito, faço uma observação especial sobre o potencial documental da fotografia feita por Alexandre Sequeira. Se os retratos dos moradores da Vila de Nazaré de Mocajuba impressos em objetos pessoais dos retratados constituem em si um documento da característica dos moradores dessa região, isso se potencializa nas fotografias de registro de tais peças nos ambientes dos retratados, presentes nesta publicação.

O depoimento de Yara pinça exemplos que revelam o diferencial da proposta de cada artista, tocando também na questão da montagem das exposições, como o já mencionado trabalho de Alexandre Sequeira, o portfólio eletrônico da Cia de Foto ou a instalação de Daniel Santiago.

Realmente, a montagem das exposições do Mezanino e do Portfólio foi um ponto marcante. O depoimento de Henrique Idoeta Soares traz esse panorama para o leitor. O que me chamou bastante a atenção nesse depoimento foi a nítida evolução de um projeto a outro: o Mezanino, com limitação de espaço, mas que, nem por isso, deixou de trazer propostas diversas de montagem, e o Portfólio, com um espaço maior (também com relação à visibilidade) e que conferiu mais liberdade às montagens. É interessante notar que esses diferenciais não estão presentes somente na passagem das exposições do Mezanino para o Portfólio. Dentro das próprias exposições do Mezanino já começamos a perceber tais diferenciais.11

Em seu depoimento, Henrique foi colocando ponto a ponto como se deu a montagem de cada exposição, tanto do Mezanino como do Portfólio, que resultou no processo de evolução e amadurecimento das montagens, e as questões relativas às adaptações necessárias nos espaços para onde as exposições itineraram. Nesse conteúdo, um exemplo que considero denotar claramente essa evolução é a comparação da solução dada para a vitrine da exposição de Helga Stein no Portfólio 2006 com relação à de Patrícia Yamamoto no Mezanino 2005:

[...] A vitrine, com os retratos, já inserida nesse espaço também, ficava tridimensional, podia ser vista de um lado e do outro, diferente da exposição da Patricia [Yamamoto] no Mezanino, de que falamos, em que a vitrine ficava encostada na parede. Mas o conceito já estava lá, no Mezanino. Concordo com Eduardo Brandão quando ele diz, em sua entrevista para o Portfólio, que “a gente, no mundo da arte, está acostumado com a leitura dos trabalhos, com reflexões filosóficas a respeito”. Apesar de a relação entre fotografia e literatura se inserir tanto no campo da literatura como no da fotografia, que, por sua vez, está dentro do campo das artes visuais, de fato, para um crítico ou curador de arte, os elementos e os mecanismos para a construção de um texto crítico são outros e, fundamentalmente, vão se pautar na análise da obra. Diferentemente dos textos literários dos jovens escritores, que abriram “outro campo criativo, um campo perceptivo interessante”, onde “nem a fotografia nem a literatura perdiam sua integridade”, como também observou Brandão na mesma entrevista.

Por outro lado, Nelson de Oliveira coloca em sua entrevista para o Mezanino e o Portfólio que criar “uma narrativa a partir de um estímulo visual pouco familiar é sempre um ótimo exercício de improviso”.

Dentro da perspectiva de minha área de atuação (artes visuais/fotografia), a bagagem que trago das relações entre fotografia e literatura é aquela que adquiri com o Mezanino e o Portfólio.12

O que ficou para mim dos projetos foi a ideia de narrativa e de ficção.

Parte disso se deve ao percurso que faz a pesquisadora Natalia Brizuela em seu texto concebido especialmente para esta publicação,13 no qual traz um conteúdo que se aplica ao que vimos no Mezanino e no Portfólio. Logo de início, a autora aponta questões sobre a palavra “fotografia” a partir das propostas de Willian Henry Fox Talbot e Sir John Herschel. Essa perspectiva demonstra que a palavra “fotografia” já conteria, em si, certo tom de literatura: ela escreve com luz.

Natalia, ao longo do texto, vai decupando as relações entre fotografia e literatura, de como a fotografia aparece na literatura – desde os contos detetivescos de Allan Poe, passando pelo livro fotográfico de Talbot The Pencil of Nature –, até então vista como verdade, até “perceber seu próprio potencial ficcional”, quando se livra de uma realidade preestabelecida (com projetos de fotógrafos que subvertem a noção de real na fotografia).

A autora considera que

11 Ver questão 3 da entrevista de Tadeu Chiarelli e questões 2/3 da entrevista de Helouise Costa, no quarto capítulo. 12 Para aprofundar o debate acerca das relações entre fotografia e literatura, ver MONTIER, Jean-Pierre; LOUVEL, Liliane; MÉAUX, Danièle; ORTEL, Philippe (Orgs). Littérature et photographie. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. 555 p. il. 13 Ver texto de Natalia Brizuela “A verdade mais absoluta ou a beleza mais milagrosa: literatura e fotografia. Três Encontros”, no quinto capítulo.

A fotografia, explorando as formas já consagradas da narração literária, tanto na prosa como na poesia, já se constitui ela mesma em literatura. Não precisa se apoiar na literatura para garantir sua autonomia, porque aprendeu a lição que ela mesma ensinou à literatura nos anos de sua concepção: não vemos nada naquilo que vemos, somente um segredo. E esse segredo é a desfamiliarização que tão sagazmente viu o primeiro detetive. Aparece a ficção fotográfica.

Esse contexto da ficção fotográfica se potencializa com a fotografia digital, conforme aponta Natalia:

“Agora, mais do que nunca, com a fotografia digital, ambos os meios perdem seus diferenciais: nem a literatura nem a fotografia devem nada ao mundo empírico, mas devem tudo à imaginação, à ficção”.

Reitero as citações que fiz da fala de Eduardo Brandão anteriormente, sobre o fato de os textos literários abrirem outro campo criativo, onde nem a fotografia nem a literatura perdem sua integridade, e, também, da perspectiva de Nelson de Oliveira de enxergar a fotografia como um estímulo para um exercício de improviso na literatura.

Cada uma tem sua potência, onde uma provoca a outra para um diálogo que possibilita renovar e arejar o modo de ver a fotografia e de ler a literatura neste terceiro milênio.

Vimos os irmãos ficcionais Daniel Míope e Santiago Chapéu, personagens visuais que são criações do artista Daniel Santiago; os inúmeros autorretratos ficcionais de Helga Stein, criados pela artista a partir de sua própria imagem; o trabalho de Jonathas de Andrade que dialoga diretamente com o livro Amor e Felicidade no Casamento, de Fritz Kahn; os autorretratos de Michelle Serena (do Projeto Mezanino de Fotografia 2004, edição em que não houve o diálogo com a literatura, mas essa questão se apresenta como possibilidade no trabalho da artista, na imagem onde palavras são sobrepostas ao rosto); as narrativas que surgiram da sequência de imagens mostradas como portfólio eletrônico pela Cia de Foto ou das imagens nebulosas da pinhole de Fátima Roque, para citar alguns exemplos; e como Brevidade (Edward Pimenta), Inanimado (Tiago Novaes), A Espera do Adeus (Thiago Corrêa), Desabitado (Olivia Maia), Cavalodo-Cão (Adrienne Myrtes), que dialogaram com o trabalho desses artistas – assim como os demais textos dos jovens escritores –, trouxeram outro conteúdo e universo à imagem fotográfica produzida pelos artistas do Mezanino (2005) e do Portfólio.

Ficções e narrativas fotográficas, ficções e narrativas literárias.

Considerando a concepção do Mezanino e do Portfólio, a atuação dos curadores tanto de fotografia como de literatura, o trabalho dos artistas, os textos ficcionais dos escritores, as montagens das exposições, as itinerâncias, o que espero ter demonstrado neste posfácio é a dinâmica de um projeto a outro. Como intencionava Marcelo Monzani (idealizador do Mezanino), agregaram-se elementos novos o tempo todo. E, como apontou Yara Kerstin Richter (coordenadora do Portfólio), o Mezanino e o Portfólio, desde o início, trouxeram à tona o novo. Foram projetos de artes visuais contemporânea feitos com fotografia.

No conjunto das obras de Edu Marin Kessedjian, Alline Nakamura, Celina Yamauchi, Albert Nane, Fernanda Preto, Michelle Serena, Fátima Roque, Patrícia Yamamoto, Guilherme Maranhão, Helga Stein, Rodrigo Braga, Cia de Foto, Daniel Santiago, Alexandre Sequeira, José Frota, Jonathas de Andrade e Patrick Pardini, vimos a mestiçagem de linguagens (a foto, o vídeo, o objeto), a fotografia contaminada feita por artistas, a fotografia expandida, construída, encenada, a ficção, a “fotografia-expressão”, as possibilidades da fotografia contemporânea, enfim.

Se apostar é arriscar? Todos os curadores de fotografia e de literatura apostaram, no sentido de que acreditaram nos trabalhos dos então jovens artistas e escritores que hoje, seis anos depois da primeira edição do Projeto Mezanino de Fotografia (fora o projeto piloto) e dois anos após o término do Portfólio, se consolidaram ou estão se consolidando. Não são mais emergentes.

O que foram o Mezanino e o Portfólio para a trajetória desses artistas e escritores? Foram tanta coisa, como cada um deles aponta, mas certamente, e sobretudo, uma oportunidade, um espaço, muitas vezes para começar, e também para crescer.

This article is from: