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Portfólio 2006-2007, por Eder Chiodetto

Eder Chiodetto1

Artistas Helga Stein I Rodrigo Braga (Portfólio 2006) I José Frota I Alexandre Sequeira (Portfólio 2007)

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1 - Como define a importância, para o circuito de mostras fotográficas brasileiras, do Projeto Mezanino de Fotografia, posteriormente denominado Portfólio, do Itaú Cultural, direcionado à difusão da produção fotográfica contemporânea emergente (e, a partir de sua segunda edição, também à literária)? Tal iniciativa do Itaú Cultural foi de grande importância por propiciar que cada curador ampliasse seu leque de pesquisas atraindo um grande número de fotógrafos com produção emergente e a possibilidade de revelá-los para o circuito de artes. Uma pena ter havido a interrupção em 2009.

2 - Como define o papel da curadoria nesses projetos? Qual seu principal desafio? O principal desafio ao se deparar com novas produções é perceber se os artistas seguem atrelados em demasia às referências que pesquisaram na busca de formar um repertório ou se já começaram a se descolar em busca de uma expressão própria, subjetiva, com toques de originalidade. Boa parte desses jovens artistas passa muito tempo no casulo elaborando ensaios que constantemente são variações de formas e fórmulas consagradas. Até que essa forma ganhe um conceito e uma personalidade, leva um tempo para alguns, e muitos nem chegam a alcançar esse patamar. O maior problema talvez seja o fato de muitos desses se aterem apenas à técnica e não buscarem dentro deles próprios as questões que poderiam lapidar a linguagem. Mas, quando encontramos algo genuinamente criativo, movido pela pulsão criativa dos artistas, é algo que não deixa dúvidas. O que é realmente bom salta aos olhos.

3 - Como se deu a escolha dos fotógrafos/artistas e das obras para a(s) edição(ões) da(s) qual(ais) foi curador e quais foram as suas motivações? Como o projeto inicialmente demandava um tema de abordagem, sugeri o autorretrato. É um tema que perpassa a história da arte em geral e da fotografia em particular. Como a geração contemporânea que passou a lidar com a circulação das imagens de forma como nunca antes havia sido propiciada pelas novas tecnologias estaria lidando com sua autoimagem? Obviamente que os sites de relacionamentos, a autoexposição do ideário do mundo online e, sobretudo, a criação de um personagem de contornos ficcionais que cada vez mais criamos na internet e na vida real, impulsionados também pela publicidade e pelo desejo culturalmente incutido da conversão mágica das pessoas em celebridades, estavam na raiz dessa ideia. A fotografia, e nenhuma outra linguagem, é o principal veículo dessa forma de ser e estar no mundo contemporâneo. Partindo de tal premissa, selecionei primeiro o trabalho de Helga Stein. Na época mestranda em semiótica na PUC/ SP, sob orientação da professora doutora Giselle Beiguelman. Helga, que passou boa parte de sua vida atormentada pelas pessoas que diziam que ela TINHA de ser modelo, dadas sua beleza, sua altura e suas medidas dignas de uma top model, realizava então uma pesquisa muito interessante na qual, por meio de intervenções no Photoshop sobre seus autorretratos, ela se transformava em uma infinidade de personas, entre mulheres feias, deprimidas, exultantes, algumas delas mimetizando traços de celebridades, como Kate Moss e Madonna. O trabalho guardava em si um frescor e uma discussão muito interessante entre a realidade e a ficção que norteiam, por exemplo, o consumidor no ato de comprar uma revista feminina com as mulheres da capa transformadas em outros seres, todos enquadrados num padrão imposto de beleza artificialmente criada. Foi, sem dúvida, um ótimo ponto de partida para a discussão que eu havia pensado em trazer à tona. Na sequência tivemos o trabalho pungente de Rodrigo Braga, manauara de nascimento que mora em Recife. Os autorretratos encenados de Braga têm um grande lirismo e também uma originalidade marcante. O artista já havia participado da mostra coletiva Corpo, no Itaú Cultural, com a série Fantasia de Compensação. Essa série, trabalho pontual em sua trajetória, causou grande repercussão pela crueza e pelo grande impacto das imagens nas quais ele surge como um ser híbrido, meio homem,

1 Nota da organizadora: entrevista concedida a Daniela Maura Ribeiro, por e-mail, em 1 de junho de 2009. Última atualização feita pelo entrevistado em 16 de maio de 2010.

meio cachorro, ao colocar sobre seu rosto (por meio de fotomontagem que denota um realismo assustador) a máscara de um cachorro. Para o Portfólio, selecionamos outras séries de viés mais poético, nas quais ele surge novamente como híbrido ao se mesclar com partes de animais e vegetais, criando seres fabulares de extrema beleza, mas que colocam o público diante de enigmas e de um desconforto muito interessante. Artista que lida com seus desejos e traumas pessoais de forma corajosa e extremamente bem articulada, Braga é para mim um dos novos artistas nacionais mais inquietantes e criativos. Após essas duas exposições que realizei de São Paulo, foi a vez de viajar a Natal e Belém, levando as mostras de Helga Stein e Rodrigo Braga, e, ao mesmo tempo, ler portfólios de fotógrafos locais com o intuito de trazer um artista de cada cidade para expor na sede do Itaú Cultural, em São Paulo. Em Natal, a primeira grande descoberta: José Frota. Suas fotografias têm atmosferas que nos criam um paradoxo: a aparência sinistra do ensaio causa, a princípio, certo temor. No entanto, ao mesmo tempo os olhos se fixam sobre elas, não conseguem se desviar facilmente e acabam seduzidos pelos significados segredados entre sombras e luzes tênues que ele confere às oficinas, às igrejas abandonadas e a outros lugares que preservam marcas de tempos distintos e que ele recria com seu olhar arguto. Nesse ponto, a ideia de autorretrato já havia se expandido para a forma como o fotógrafo consegue transfigurar um ambiente a partir da projeção de sua subjetividade sobre seu entorno. Em Belém, cidade referência de excelentes fotógrafos, encontrei Alexandre Sequeira. Professor, artista, curador e, sobretudo, um estudioso que pensa a fotografia como forma de mediação e aproximação entre ele e o outro e entre as pessoas em geral. Seu trabalho realizado no distante vilarejo de Nazaré do Mocajuba, a 150 quilômetros de Belém do Pará, consegue aliar um viés antropológico com uma rara percepção da cultura e do modo de vida das pessoas da comunidade. Os retratos resultantes desse contato, impressos em tecidos que ele recolhe nas casas dos próprios moradores, são de uma beleza e de uma transcendência tocantes. O efeito dos tecidos com os retratos pendurados na sala expositiva do Itaú Cultural foi de rara beleza. As pessoas retratadas em escala natural pareciam vir ao encontro dos visitantes.

4 - O curador é também um mediador que fomenta o diálogo entre o escritor e o fotógrafo para a produção do texto literário? Não. Havia outro curador para o texto [Nelson de Oliveira]. Eu e o fotógrafo não tínhamos nenhum contato com o escritor.

5 - Continua acompanhando a produção desses fotógrafos/artistas? Seus trabalhos apontaram tendências? Sim. Estou sempre em contato com os quatro artistas. Promover uma individual deles nesta etapa é quase como um batismo. No meu caso, me sinto um pouco responsável e me coloco sempre à disposição, ajudo com textos, discussões de edição dos novos trabalhos, indicando concursos, residências e, principalmente, mostrando seus trabalhos a outros curadores no Brasil e no exterior. Por exemplo, indiquei o trabalho do Alexandre Sequeira a uma curadora da Bienal de Havana e ele foi selecionado e expôs na edição de 2009. Quanto aos outros, o trabalho de curadoria e a exposição renderam diferentes frutos: um colecionador paulista comprou obras do Rodrigo Braga, o José Frota foi vencedor do Prêmio Porto Seguro em 2007 e a Helga Stein teve ótimas resenhas em revistas, jornais nacionais e convite para outras mostras e palestras.

6 - Qual a importância da leitura de portfólio para a identificação de novos talentos, prática que deu nome à reedição do Projeto Mezanino de Fotografia, em 2006? Por meio de um portfólio podemos saber muito sobre um fotógrafo. É quase como um desnudamento da pessoa e do que ela pensa de si mesma e da linguagem que elegeu para se expressar. A forma física e oral de apresentar um portfólio é tão importante para o futuro de um fotógrafo quanto o ato fotográfico em si. E quando falo em apresentação física não estou dizendo encadernações luxuosas, pode ser um CD, uma simples pasta com imagens em sequência, mas há que ter edição, ritmo, histórias, bom gosto, alma, frescor e conceitos bem encadeados. Acho que a maior parte dos fotógrafos que conheci e com quem estabeleci relações de trabalho e amizade foi por intermédio de uma leitura de portfólio.

7 - Algumas edições tiveram itinerância. Qual a importância da itinerância das exposições para cidades fora do eixo Rio-São Paulo? Ou o inverso: trazer fotógrafos/artistas de fora desse eixo para expor em São Paulo? É fundamental para fomentar e trazer à tona produções fora do eixo Rio-São Paulo. Eu, como curador, tenho a preocupação constante de saber o que está sendo produzido fora desse eixo. Hoje em dia, com site e e-mails, a gente consegue diminuir bem esse problema, mas o contato pessoal que o projeto Portfólio possibilita, com o curador passando um tempo na cidade e podendo conversar com uma grande diversidade de artistas e pessoas de seu entorno, é muito mais enriquecedor e revelador das produções locais. A itinerância das mostras obviamente amplifica essa troca de informações não só entre artistas e curadores, mas para o público em geral. É fundamental para levantar questionamentos, discutir padrões de comportamento etc. 8 - A montagem das exposições privilegiou a possibilidade de experimentação dos fotógrafos/artistas no modo de mostrar as fotografias no espaço expositivo, inclusive em suportes diferentes do tradicional “vidro com moldura”. Vê esse fato como um componente da fotografia contemporânea? Sim, de fato as mostras se pautaram muito pela discussão do suporte da fotografia no contemporâneo. Isso espelha a forma como a fotografia tem se expandido em sua forma de representação e de apresentação também. Imagens exibidas em LCD, expostas em vitrines, ampliadas em tecido, grandes formatos justapostos com pequenos apareceram nas quatro mostras de que fui curador. Na verdade, em nenhuma das mostras de que fui curador optamos pela solução moldura e vidro. É muito interessante como essa nova geração tem pensado de forma bastante livre esses formatos e seus acabamentos.

9 - Como vê a relação entre fotografia e literatura no Projeto Mezanino de Fotografia e no Portfólio? Quais as suas impressões sobre os textos literários produzidos pelos jovens escritores que dialogaram com as mostras fotográficas desses projetos? Acho muito interessante a ideia. O resultado por vezes é desigual, e o escritor, até por não ter contato com o fotógrafo, pega um caminho impulsionado por algum símbolo na imagem que o leva a uma viagem única e bem distante do universo estético do fotógrafo. Mas até isso é interessante, perceber como uma imagem pode servir de trampolim para o imaginário no campo da literatura. É uma tradução, de certo modo, das diversas leituras que as imagens podem suscitar nos visitantes. O imponderável trabalha fortemente aqui, sem que o fotógrafo tenha nenhum domínio. Nas dobras desse intrincado jogo de significados, o limite é quando o ensaio fotográfico se transforma em outro campo possível de decifrações, revelando ao próprio fotógrafo e ao curador facetas até então ocultas.

10 - Como analisa a produção fotográfica contemporânea brasileira da jovem geração de fotógrafos e artistas? Quais as principais questões que a produção dessa geração traz para a compreensão da fotografia contemporânea brasileira? Acho que a produção brasileira vai bem, em paralelo ao que é produzido nos grandes centros. O que nos falta é ainda um pouco mais de incentivos, como este projeto, em que podemos expor, debater, levantar produções marginais etc. É dessa forma que podemos fortalecer a linguagem e estimular as novas gerações. A marca que fica desses artistas expostos no projeto Portfólio é um saudável inconformismo com fórmulas prontas, a obsessão pela busca original de um caminho de representação, a leitura perspicaz e profunda de questões pessoais que ressoam no universal.

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