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A verdade mais absoluta ou a beleza mais milagrosa: literatura e fotografia. Três encontros, por Natalia Brizuela

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Posfácio

Posfácio

A verdade mais absoluta ou a beleza mais milagrosa: literatura e fotografia. Três encontros

Natalia brizuela

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All that we see or seem is but a dream within a dream

Edgar Allan Poe

If I could do it, I’d do no writing at all. It would be all photographs

James Agee

Fotografia. Literatura

Fotografia ou, em seus múltiplos começos, daguerreótipo, heliografia, desenho fotogênico... E também, sim, fotografia. Poderíamos dizer que, no final das contas, não importa se a palavra que permaneceu para denominar a invenção que alterou radicalmente a estrutura da arte no século XIX foi “heliografia”, “calótipo”, “daguerreótipo” ou “fotografia”, e que, pelo contrário, o que importa é que essa mídia, quando se tornou conhecida no segundo quarto do século, independentemente de seu nome, foi modificando certos pilares constitutivos da noção da arte. Mas, sim, importa qual palavra ficou, na medida em que cada uma dessas palavras inevitavelmente remete a – e também invariavelmente conjuga – diferentes elementos, atividades, saberes e práticas. E, então, apesar de terem sido utilizadas para designar mais ou menos a mesma atividade e/ ou objeto, cada uma delas delimita um universo diferencial. Nesse sentido, é mais do que mero resultado de, digamos, questões comerciais ou de uma batalha gramatical, ou uma simples casualidade que tenha sido a palavra “fotografia”, e não uma das outras, a ter atravessado os últimos quase dois séculos como nomenclatura da nova arte de representação. A que se referem esses nomes? A palavra “daguerreótipo” remetia a um corpo empírico e único, ao universo individual de um sujeito e, nesse sentido, à propriedade, enquanto o termo “desenho fotogênico” se referia a um meio de representação já existente, anterior à invenção, o desenho, que enfatizava a imagem e o universo visual, situando a nova mídia dentro de uma tradição pictórica. Universo visual que se acreditava que chegava à sua morte com o advento da nova mídia. O substantivo “fotografia” indicava também como “desenho fotogênico” um meio de representação já existente, mas, ao contrário do anterior, neste caso essa mídia não destacava a primazia do visual – o desenho –, mas sim a do textual – a grafia, a escrita – na nova arte da representação. O que poderia estar indicando, a quais configurações poderia estar respondendo, então, a escolha do nome que havia prendido o novo meio dentro do campo da escrita, dado que, como temos sugerido, o nome, sim, importa?

São “palavras de luz” (“words of light”), escreveria William Henry Fox Talbot para Sir John Herschel, nos primeiros dias de março de 1839, ao referir-se aos experimentos que estes dois homens vinham compartilhando e que o próprio Herschel chamaria de fotografia poucos dias depois, ao apresentar suas descobertas perante a Royal Society, em Londres. “Nota sobre a arte da fotografia, ou a aplicação dos raios químicos de luz para o propósito da representação pictórica”, esse foi o título da apresentação feita por Herschel. As palavras de luz de Talbot foram assim transformadas por seu amigo Herschel em uma fórmula perfeita: fotografia – palavras de luz, traços de luz. Ou, mais literalmente, escrita de luz, já que a palavra era formada pela conjunção de outras duas, provenientes do grego: “photo” – luz – e “graphein” – escrita. Palavras de luz ou escrita de luz: os termos são quase idênticos, embora uma palavra não seja, necessariamente, um sinônimo do traço da escrita, e algo acontece entre uma e outra, algo muda. A passagem de “palavra” para “escrita” tirava a invenção de Talbot de um universo mágico, sagrado e sublime e o inseria em um âmbito mais leigo, próximo do intelecto do homem, apesar de o termo composto por Herschel ainda guardar em seu seio algo do mistério e do segredo do universo natural sob a presença da luz. A fórmula “palavra de luz” retumbava, inevitavelmente, com o fiat lux bíblico, enquanto o nome “fotografia” se constituía em condição cultural.1

Hercules Florence, um típico aventureiro de sua época, inventou e usou o termo “fotografia” poucos anos antes que Herschel o utilizasse, em março de 1839. Viajante francês radicado no Império do Brasil desde o final da segunda década do século XIX, Florence vinha fazendo experiências com modos de impressão desde que havia terminado sua participação como desenhista em uma das muitas expedições naturalistas que percorreram os territórios tropicais durante a primeira metade do século. De profissão incerta, logo após os anos em que exercitou o desenho naturalista, Florence iria de invenção em invenção até sua morte. E, apesar de aquelas invenções poderem parecer não ter conexão entre si, a maioria delas compartilhava uma preocupação e uma fascinação com a reprodução e a impressão. Por quê? Porque o Brasil tinha um excesso de natureza, Florence não se cansaria de escrever em suas memórias, que compensava, acreditava ele, a falta de cultura naquela pátria tórrida que ele havia decidido adotar. Essa contraposição era a tradução conceitual de algo muito pontual: a intensidade e a quantidade de luz que havia no Brasil (comentadas por quase todos os viajantes que atravessaram o país no século XIX) e a quase absoluta ausência de tipografias no jovem império. Por meio dos experimentos que realizou no início de 1830 juntamente com o químico do povoado no qual se estabeleceu, no interior de São Paulo, e com a firme meta de superar esse desequilíbrio entre natureza e cultura, Florence encontrou um modo de impressão que utilizaria aquele excesso a favor da falta, ou seja, uma forma de imprimir usando a luz solar. Em 1833, ele chamou essa descoberta de “fotografia”. Essa “descoberta isolada da fotografia”, de forma semelhante ao projeto de Talbot, embora por motivos radicalmente diferentes daqueles do inglês, ancorava a nova arte de reprodução dentro de um mundo muito mais próximo da escrita do que da imagem.2 Ou seja, apesar de o termo ter surgido inicialmente para designar um meio de representação ligado ao universo da impressão, pouco a pouco foi se instalando como registro visual, como tecnologia da imagem, e não como mecanismo de escrita ou modo de representação ligado à reprodução de textos, como pensaram inicialmente Talbot, Florence e, na mesma época, Nicéphore Niépce. Essa perda de um universo e a absorção da tecnologia por outro universo deixou uma marca: a relação com o universo da letra ficou definitivamente selada com o nome que a invenção adquiriu.

A conjunção e a tensão entre natureza e cultura presentes na palavra “fotografia” da forma como Hercules Florence e John Herschel tão eloquentemente expuseram foram amplamente comentadas pela historiografia e pela crítica, e muito se falou sobre o elemento natural presente, mas talvez tenha sido menos explorada a especificidade do elemento cultural que dá nome a esse “milagre” da ciência: a escrita, a grafia, os traços, os sinais gráficos.3 Até março de 1839, já haviam sido feitas várias outras apresentações de experimentos análogos: Daguerre havia apresentado seu daguerreótipo em 7 de janeiro, e o próprio Talbot havia apresentado seus desenhos fotogênicos em 31 de janeiro. Ou seja, já existiam outros nomes; porém, aquele que se estabeleceria na linguagem coletiva seria o de fotografia.

É curioso lembrar que a concepção da fotografia coincide com um momento crucial, para não dizer crítico, no campo da literatura. Por um lado, seria justamente nessa primeira metade do século XIX que o termo “literatura” começaria a designar a expressão criativa de

1 Um dos relatos franceses que noticiavam o daguerreótipo usou a frase bíblica para se referir à invenção. Ver a nota de Jules Janin em L’Artiste, 27 jan. 1839. 2 A frase pertence ao trabalho pioneiro de Boris Kossoy sobre Hercules Florence. Ver KOSSOY, Boris. Hercules Florence. 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1980. Essa primeira aparição da fotografia não teve repercussão nem uma vida muito além do uso do método para reproduzir etiquetas de farmácia ou certificados de maçonaria. 3 O livro que melhor resume a história de tais leituras é de Geoffrey Batchen. Burning with desire. The conception of photography. Cambridge: MIT Press, 1997.

uma subjetividade, a noção das “belas letras”, a ciência da gramática, eloquência e poesia, a produção literária de uma nação ou país. Ou seja, uma definição de literatura próxima daquilo que significa na contemporaneidade. Até aquele momento, a palavra “literatura” designava uma série muito diversa de práticas tanto de escrita quanto de impressão de letras. Lemos na primeira edição do Dicionário da Academia Francesa, de 1692, que a literatura designava erudição e doutrina. Os escritos científicos, por exemplo, eram mencionados como empreendimentos literários. Mas o século XIX, e mais especificamente o romantismo, delimitaria o significado do termo “literatura” para que, com essa palavra, fosse denominada a busca pessoal e nacional por uma ambição estética, como indicaria, entre outros, Madame de Staël em De la Littérature dans Ses Rapports avec les Institutions Sociales, em 1800. E seria na sexta edição do Dicionário da Academia Francesa, publicada entre 1832 e 1835, que a literatura significaria uma ciência e sociologia das belas letras. Ou seja, uma série de regras gramaticais e de materiais e montagens literário-nacionais. Sim, a literatura começaria nessa época o lento processo de configuração de uma autonomia, apesar de, durante grande parte do século XIX, estar a serviço do novo Estado-nação, muito especial e notoriamente, embora não exclusivamente, na América Latina, onde o modelo a ser seguido seria principalmente o francês. Pensemos em Lastarria, em Sarmiento, em Alencar, Matto de Turner, Martí... Ou seja, a literatura ainda lutaria ao longo do século XIX por uma autonomia absoluta em relação à política e à sociedade, que não se constituiria até o final do século, e de forma contundente até as vanguardas do começo do século XX. Porém, nesse começo de século XIX, a palavra “literatura” deixou de ser o termo usado para referir-se à escrita de forma genérica. A fotografia aparece de forma contemporânea a essa mutação na literatura.

Primeiro encontro

Hoje, conhecemos Edgar Allan Poe como o escritor que acaba de dar forma, por volta de 1841, a um dos gêneros – ou talvez fosse melhor chamálo subgênero ou modalidade – não somente mais característicos como também mais populares da modernidade industrial: o conto policial. São bastante conhecidos estes três relatos que transformariam para sempre o campo literário – Murders in the Rue Morgue (1841), The Mystery of Marie Roget (1842) e The Purloined Letter (1844) –, e mais conhecido ainda é este primeiro detetive que ensinou as gerações posteriores a pesquisar de forma moderna, Auguste C. Dupin.

Antes que Dupin aparecesse, em 1841, Poe era mais conhecido como crítico e editor do que como escritor de “literatura”, um jovem que ganhava a vida trabalhando com escrita em diversos jornais, publicando principalmente artigos de crítica e, de vez em quando, um ou outro poema

ou conto. Foi nesse período pré-Dupin que, quase exatamente um ano depois que o daguerreótipo, o calótipo, o desenho fotogênico e a fotografia haviam feito suas respectivas aparições e provocado muito barulho na imprensa na Europa e nas Américas, Poe publicou três artigos sobre a nova mídia. Na primeira dessas três notas, datada de 15 de janeiro de 1840, Poe apresenta aos leitores da Alexander’s Weekly Messenger as especificidades técnicas do daguerreótipo. “Por um lado, a máquina em si” – proclamou veementemente Poe nessa resenha intitulada “The daguerrotype” – “é, sem dúvida, o triunfo mais importante e talvez o mais extraordinário que a ciência moderna já ofereceu ao homem até este momento”. A impressão – ou seja, o que hoje chamaríamos de imagem – efetuada por tal máquina é, por outro lado, “a mais milagrosa beleza” que já se viu no campo da representação, afirmou Poe. Entre a ciência e a estética, as placas fotográficas, “milagrosamente belas”, são infinitamente mais precisas em sua representação do que qualquer pintura. Tanto é assim que, “se examinarmos uma obra de arte comum com a ajuda de um poderoso microscópio, qualquer traço de semelhança com a natureza desaparecerá, mas um escrutínio mais cuidadoso do desenho fotogênico revela uma verdade mais absoluta, uma identidade de aspecto mais perfeito em relação à coisa representada.4

A verdade, a beleza e o milagre ficam assim conjugados na observação de Poe. A presença da palavra “verdade” não chamaria necessariamente a atenção se não fosse porque aparece repetidas vezes no breve artigo: qualquer linguagem seria insuficiente ao tentar transmitir “alguma ideia justa da verdade” dessa “beleza milagrosa”, pode-se ler em outro momento do texto; ou, em outro trecho, lemos que as variações da sombra e as graduações da perspectiva são aquelas “da própria verdade na supremacia de sua perfeição”.

Poderia ser uma simples casualidade ou coincidência que essa palavra “verdade” tenha aparecido tão insistentemente com relação ao que a nova ciência fotográfica oferecia e que, além disso, tenha aparecido apenas um ano depois, pela caneta do próprio Poe, para descrever o que o detetive Auguste Dupin procurava – “My ultimate object is only the truth”, diria Dupin ao seu amigo, o narrador. Talvez a palavra “verdade” aparecesse em ambos os textos, no tocante à fotografia e à literatura, como parte de uma crescente obsessão pelo científico e pela objetividade que acabaria culminando na segunda metade do século XIX com o lento, porém seguro, “desencantamento do mundo” que foi ganhando terreno por meio da extrema racionalização.5 Palavra cuja repetição seria então entendida como ingrediente daquela utopia cientificista e técnica do que, tanto no campo pictórico quanto no literário, poderíamos denominar com a frase que um século depois, em meados do século XX, André Bazin utilizaria para se referir ao cinema: “o mito do realismo total”.6 Essas descrições à la Balzac no campo literário e essa exatidão pictórica nas fotografias eram entendidas como o mais perfeito realismo e objetividade, como “uma perfeita identidade de aspecto” (como disse Poe sobre o daguerreótipo) e, nesse sentido, como uma verdade. A presença da “verdade” como essência da fotografia e da literatura naquela segunda metade do século XIX seria, então, sinal de uma nova epistemologia, baseada na noção de que havia uma realidade ali fora, empírica, apresentada por esses meios de representação, longe de qualquer mentira.

Mas o fato de Poe voltar à noção da verdade na literatura e na fotografia, além de ser em parte o sinal de uma época, poderia indicar pela primeira vez um tipo de relação entre esses dois meios de representação. Talvez a pista esteja na “milagrosa” beleza que Poe elogia ao descrever o inovador processo fotográfico. Milagrosa, lembremos, porque a placa fotográfica inicialmente não parece ter nada, mas, após um curto processo, algo – a imagem – aparece, como por mágica. Por isso – do fato de que a imagem fotográfica é inconfundivelmente um traço daquilo que está sendo representado, mas que não existe uma ação visível que a faça aparecer; de que esteja sempre, mas sem parecer estar; de que seja visível e invisível ao mesmo tempo; de que pertença, ao mesmo tempo, ao campo da objetividade científica e ao campo do sagrado e do mágico (tornar presente o ausente) –, a fotografia é, para Poe, a verdade secreta, assombrosa, prodigiosa, maravilhosa: um verdadeiro objeto de assombro. Ou seja, a fotografia não seria uma verdade jurídica, mas sim uma verdade milagrosa. Haveria nela algo de fé. A fotografia

4 ALLAN POE, Edgar. The daguerreotype. In: Classic Essays on Photography, ed. Alan Trachtenberg. New Haven: Leete’s Island Books, 1980, p. 38. Nota da autora: todas as traduções são minhas. 5 A frase pertence a Max Weber. Ver WEBER. Max, Science as a vocation, trans. Hans H. Gerth e C. Wright Mills. In: Max Weber: sociological writings, ed. Wolf Heydebrand. Nova York: Continuum, 1994, p. 304. Por outro lado, a leitura dessa ideia de Weber por Anthony Cascardi é absolutamente iluminadora e necessária para entender até que ponto, para Weber, a modernidade – e, portanto, alguns dispositivos que surgem como parte fundamental dela, como a fotografia – faz parte do desencantamento do mundo. Ver CASCARDI, Anthony. The subject of modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, em particular o primeiro capítulo, “The ‘disenchantment’ of the world”. 6 BAZIN, André. El mito del cine total. In: ¿Qué es el cine? Madri: Rialp, 1990, p. 36.

surge, e Poe sabe disso e o evidencia em seus artigos sobre a nova ciência, de uma encruzilhada técnica, mas não é, em sua essência, essa técnica. Não pertence, em sua ontologia primeira, aos avanços tecnológicos, mas sim ao campo do fantasmal, desse universo gótico que já fascinava tanto Poe nessa época, da obscuridade, das trevas, da magia e dos milagres, de seu poder de revelação do oculto. Instrumento objetivo para desencantar o mundo e, ao mesmo tempo, um meio capaz de restaurar o encantamento do mundo.

A fotografia, esse meio de representação que – como assinalaria Walter Benjamin, em 1931, em sua breve história da fotografia7 –, apesar de ter aparecido naturalmente graças, em parte, aos avanços no campo da ciência, esteve desde o início mais próxima da cultura popular das feiras de atrações do que das possibilidades e das utopias da tecnologia ou dos espaços da cultura burguesa. Obviamente, certos experimentos científicos, particularmente dentro do campo da química, foram fundamentais para poder fixar a imagem que há muitos séculos já poderia ser obtida mediante o uso da câmera escura, mas que ainda no início do século XIX não se deixava capturar. Mas, ainda assim, não foram os desenvolvimentos no campo da tecnologia que deram sentido às formas dessas primeiras imagens, tampouco foi a ciência que pautou a nomenclatura que foi utilizada para o meio. Foi mais essa proximidade da magia do circo e dos jogos das feiras de atrações e também ao milagroso, ao lúdico, ao secreto e ao espectral que acabou dando a esse novo meio de reprodução tanto um espaço quanto seu nome, que, no final das contas, descrevia tão bem esse elemento invariavelmente sinistro no próprio seio do real e do natural.

A verdade na e da fotografia está, então, absolutamente ligada à verdade que o detetive Auguste Dupin procurava. Como Auguste Dupin resolve os crimes mais difíceis, que estão além da tecnologia policial? Ou, dito de outra forma, o que o taciturno Auguste Dupin tem que a polícia não tem? Diríamos que tem um saber e um proceder fotográfico, porque talvez o que Dupin tenha de mais importante seja uma técnica de observação. Tal técnica está composta de dois eixos centrais: o detetive deve se identificar com o espírito e o intelecto de seu adversário, já que isso lhe permitirá observar o mundo do ponto de vista daquele a quem procura, ou seja, do outro (o narrador explica ao leitor e, por sua vez, Dupin explica ao narrador que “the analyst throws himself into the spirit of his opponent, identifies himself therewith” e que “an identification of the reasoner’s intellect with that of his opponent”); além disso, essa técnica de observação procurará trabalhar sobre a superfície, e não sobre a profundidade (Dupin dirá que “as regards the more important knowledge, I do believe that she is invariably superficial” ou “by undue profundity we perplex and enfeeble thought”).

Claro que essa técnica de observação tem um método para ser realizada. Por um lado, Dupin quase não se move, ou seja, não faz grandes movimentos para chegar à verdade. Dupin e seu amigo narrador podem, eventualmente, ir ao lugar do crime ou do roubo, mas, em essência, a resolução por meio do método de raciocínio ocorre no pequeno “quarto escuro” de Dupin. É ali, na escuridão e no silêncio, que a verdade é revelada. Ou seja, há uma imobilidade, uma quietude e uma obscuridade quase necessárias, poderíamos dizer, para que a verdade possa ser vista. Verdade que, por outro lado, está desde sempre, ali, à vista, ao alcance da mão ou, literalmente, como acontece em “A carta roubada”, desde sempre sobre a mesa.8 É questão de um olhar mais preciso ou de, como dizíamos, uma técnica de observação. Por outro lado, enquanto a polícia usa a mais avançada tecnologia, Dupin, como assinala ao descrever seu método, simplesmente observa: “observation has become with me, of late, a species of necessity”.9 É por meio da observação que consegue acompanhar o percurso do pensamento, “traçar” as peripécias do inconsciente – para usar a palavra que o colega de Poe utiliza e para recuperar a mesma palavra que foi tão utilizada nas primeiras notícias que anunciavam a invenção do método fotográfico: “words of light”, “traços de luz”.

Quais seriam as características desses primeiros contos policiais se já não existisse a fotografia? Ou, dito de outra forma, teria sido possível o surgimento do conto policial quando e como foi feito se não existisse a fotografia? A partir de meados do século XIX, a literatura discutirá de forma explícita a fotografia, e disso há muitos exemplos. A fotografia também ilustrará a escrita em muitos outros casos – o fiasco comercial de Talbot em seu extraordinário The Pencil of Nature bem poderia ser o primeiro exemplo das limitações dessa relação. Mas, talvez, o mais interessante da relação entre a literatura e a fotografia seja pensar o modo como, desde seu surgimento, o novo meio foi se introduzindo na literatura, a forma como a literatura começou a usar a linguagem e a retórica da fotografia. Nesse sentido, a fotografia ofereceu à literatura, desde seu surgimento, um vocabulário para aquilo que um dos monstros da literatura chamou de “a ótica da mente”.10

7 Ver BENJAMIN, Walter. Gesammelte schriften II. Berlim: Surhkamp Verlag, p. 368-385. 8 Isso é o que Jacques Lacan lerá em sua leitura fundamental do conto de Poe. Ver Seminário sobre “A carta roubada”. In: Ecrits. Paris: Editions du Seuil, 1966. 9 ALLAN POE, Edgar. The murders in the rue Morgue. 10 Frase de Marcel Proust.

Segundo encontro

Seria precisamente Fox Talbot quem continuaria se aprofundando nessa relação entre a natureza – sob o signo da luz – e a cultura – sob o signo da escrita – que seu colega de percurso apresentou diante da sociedade real, em 1839, ao dar nome à sua invenção e que o franco-brasileiro Florence percebeu pela primeira vez, antes de qualquer outro, anos antes, em 1833, no Brasil. Entre 1844 e 1846, Talbot publicou o pioneiro The Pencil of Nature – primeiro livro ilustrado fotograficamente. Das palavras de luz à fotografia a lápis da natureza: assim entendia Talbot a invenção que havia em poucos anos revolucionado a já agitada sociedade industrial. Concebido como um empreendimento absolutamente comercial, Talbot e seu sócio inicialmente haviam pensado que The Pencil of Nature teria mais de 20 entregas e que esse livro em série, que oferecia exemplos dos muitos usos e apropriações que era possível fazer do meio, conjugando texto em um lado da página e imagem no outro lado, ajudaria a garantir um sucesso maciço para a fotografia. A esperança era, claro, que Talbot enriquecesse, já que, graças a Aragó, Daguerre tinha conseguido do governo francês uma pensão vitalícia por sua invenção. O problema foi que já na sexta entrega da série, que seria a última, as vendas haviam diminuído drasticamente e as perdas iam ganhando terreno sobre aquilo que de qualquer forma havia sido um ganho mínimo.

Apesar de o projeto editorial de Talbot acabar sendo um fracasso em termos econômicos, inaugurou um modo e um espaço para a relação mais notória, consistente e visível entre fotografia e literatura desde meados do século XIX até o presente – o livro fotográfico. Na segunda metade do século XIX, o uso de fotografias e ilustrações fotográficas se tornou um modus operandi nas publicações de campos muito diversos do saber, como a anatomia, a fisiologia, a psiquiatria, a antropologia, a criminologia e a geografia, embora, naquela época, ainda não a arte. Um exemplo facilmente reconhecível desse tipo de empreendimento editorial seria o famoso tratado de Charles Darwin A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, que incluiu sete páginas de retratos fotográficos de emoções, embora talvez o tipo de exemplo de livros fotográficos mais conhecido seja o dos livros de viagem compostos de fotografias e texto, que proliferaram naquela época – categoria na qual poderíamos citar, para escolher somente dois, Brasil Pitoresco, de 1861, com textos de Charles Ribeyrolles e fotografias de Victor Frond, e The Arctic Regions, de 1873, fruto da parceria entre William Bradford (texto) e John L. Dunmore e George Critcherson (fotografia). O interessante, não somente nos três exemplos prévios, mas na maioria dos livros fotográficos do século XIX, é que estes, diferentemente do projeto inaugural de Talbot, destacam o uso utilitário da fotografia, e não seu potencial estético, como teria feito Talbot de forma pioneira e isolada. Dito de outra forma, a técnica e o método do livro

de Talbot ofereceram a esses diversos ramos do saber um modo “aparentemente” objetivo de ilustrar seus livros, sem cair nas possíveis armadilhas da subjetividade da ilustração “manual”. Ou pelo menos era o que acreditavam e desejavam os cidadãos das sociedades em vias de modernização naquela época, em que a invariável subjetividade da fotografia ainda não havia chamado a atenção. É importante destacar que, apesar de The Pencil of Nature oferecer em suas páginas possíveis usos da fotografia, precisamente posicionando-a dentro da esfera do registro documental, da verdade e da utilidade – portanto, essa objetividade que lhe foi atribuída durante décadas –, o projeto de Talbot foi um projeto de vanguarda porque não só inaugurou o conceito do livro fotográfico, como também abriu o caminho para pensar tanto a imagem fotográfica quanto a escrita em termos de estética ao invés de somente de utilidade. Ou seja, em The Pencil of Nature a fotografia e a escrita aparecem como modalidades ou sistemas de representação em busca de certa autonomia com relação ao real e ao utilitarismo.

Curiosamente, há nesse projeto de Talbot um eco do uso detetivesco que Poe teria dado, poucos anos antes, ao novo meio de representação. O texto que acompanha a Placa III de The Pencil of Nature – intitulada “Articles of China” – diz que, “should a thief afterwards purloin the treasures” – referindo-se assim aos objetos de porcelana ali exibidos –, o “mute testimony of the picture” poderia ser apresentado diante da Justiça contra o ladrão, como evidência da pertença original dos objetos e, portanto, do roubo. A fotografia aqui serviria de cúmplice do trabalho jurídico em direção à verdade, diferenciando-se, assim, do uso que lhe daria Poe. Há outras referências ao novíssimo código da ficção policial, gênero literário inaugurado apenas alguns anos antes, com os contos de Poe: os segredos de um quarto poderiam ser “revealed by the testimony of the imprinted paper”, a fotografia como instrumento da especulação. Se a fotografia deu ao novo gênero literário parte de sua fórmula, essa mesma literatura daria à fotografia um caráter que a acompanharia durante mais de um século.

O que aconteceu com o livro fotográfico a partir daquele experimento de Talbot e suas posteriores aparições “científicas” e “utilitárias” durante o século XIX? Esse formato, o livro, continuou sendo o lugar de cruzamento por excelência entre a fotografia e a literatura a partir do século XX?

Em 1941, quase um século após a proposta de Talbot em The Pencil of Nature, dois jovens norte-americanos, James Agee e Walker Evans, publicaram Let Us Now Praise Famous Men. O livro era o resultado de uma aventura na qual tinham se metido juntos no verão de 1936, quando, por encomenda da revista Fortune, viajaram para o Alabama, um dos estados do “sul profundo” dos Estados Unidos, onde conviveram durante várias semanas com famílias rurais, arrendatárias, extremamente pobres, resultado da Grande Depressão – projeto em parte relacionado com a mobilização de fotógrafos por parte da Farm Security Administration (FSA) para documentar o estado dos projetos de reform, relief e recovery do New Deal entre 1933 e 1936. Walker Evans, Dorothea Lange, Russell Lee, Gordon Parks, para mencionar apenas alguns poucos, foram contratados pelo Estado para viajar pelos Estados Unidos e retratar a situação de pobreza durante a década de 1930. Foi a partir dessas imagens que a fotografia norte-americana conseguiu fazer uma nova mudança de renovação estética e sair da sombra desses grandes mestres do pictorialismo fotográfico simbolizado na obra de gigantes como Ansel Adams e Alfred Stieglitz. De volta a Nova York, após sua viagem fotográfica para a FSA, Walker Evans, trabalhando em uma revista, partiu com James Agee, em pleno verão de 1936, para produzir um “ensaio fotográfico”, uma das novas modalidades de interação da literatura e da fotografia no século XX, primo, poderíamos dizer, do livro fotográfico do século XIX.

A revista Fortune não quis publicar o ensaio fotográfico de Evans e Agee. Eles demoraram muitos anos para encontrar uma editora que o publicasse, a essa altura já completamente excedido o tamanho para revista e pronto como livro. No período em que o projeto comum mudou de uma forma para a outra, de ensaio para livro, uma seleção das fotografias que Evans havia tirado em seu trabalho como parte do FSA e para a revista Fortune fez parte de uma exposição no Moma, em Nova York, inaugurada em setembro de 1938. A exposição e o catálogo da American Photographs marcaram radicalmente a época. Mas, apesar

de na essência as imagens da American Photographs e as do Let Us Now Praise Famous Men, publicado apenas alguns anos depois, serem as mesmas, a interação das imagens com o texto de Agee as modifica radicalmente. As fotografias de Evans abrem Let Us Now Praise Famous Men – as imagens aparecem sozinhas, sem captações ou títulos que as identifiquem – e são chamadas, pelo próprio Agee, de o primeiro capítulo do livro, que é seguido por três partes escritas por Agee e que reúnem mais de 400 páginas. Um livro ilustrado fotograficamente teria disposto as imagens ao longo do livro para justamente visualizar o que o texto descrevia. As fotografias teriam funcionado como notas explicativas da literatura, que teria se encarregado do peso da significação. Mas o escritor Agee escreve no início do livro que, “if I could, I’d do no writing at all”. O desejo do escritor: um livro que “would be all photographs”. O livro de Agee e Evans é impossível de ser classificado: empresta técnicas e linguagens das estéticas da vanguarda histórica, do jornalismo, do ensaio, do discurso religioso. A mistura de discursos literários o transforma em uma raridade, mas a centralidade da fotografia no livro precede a impureza de gêneros ou, talvez, constitui esse aspecto inclassificável do livro. Poderíamos pensar que as fotografias de Evans abrem o livro, mas talvez fosse mais produtivo pensar que esse lugar indicava, de forma contundente, que a fotografia tinha sua própria linguagem, independente da linguagem escrita, textual, e que essa linguagem imagística já havia mudado para sempre a literatura. A sequência na qual estavam colocadas as 64 fotografias de Evans configurava um relato, uma narração autônoma tanto da literatura quanto da realidade. Ali, o gesto modernista de um livro que pretendia ser lido como documentário. De alguma forma, a fotografia de Evans nesse livro “é” o livro. E a escrita de Agee tenta aproximar-se da fotografia de Evans, nas enlouquecidas e excessivas descrições de tudo aquilo que em algum ponto já vimos e percebemos no relato fotográfico.

Será mera coincidência que a ficção detetivesca esteja presente também na obra de Agee e Evans, como estava no livro de Talbot? No início de Let Us Now Praise Famous Men há uma lista com os membros das três famílias com quem Agee e Evans ficaram naquele verão de 1936 no Alabama. Mas, além dos membros das famílias, nessa listagem de “Persons and places” aparecem “James Agee: um espião viajando como jornalista, e Walker Evans: agente de contraespionagem viajando como fotógrafo”. Se essa é uma coincidência, ainda há outra: o forte tom bíblico de ambos os títulos, que aproximaria ambos os projetos da esfera do sagrado. Claro que provavelmente nem uma nem outra sejam coincidências.

Terceiro encontro

As primeiras incursões de Duane Michals na fotografia, por volta do fim dos anos 1950, foram no retrato. E aconteceram por acaso, no sentido de que Michals nunca tinha identificado a si mesmo como fotógrafo. Havia estudado belas artes, mas o meio fotográfico não tinha sido seu meio de preferência durante seus anos de estudante, talvez porque no final dos anos 1950 a fotografia, em sua vasta maioria, ainda estava organizada em torno de seu poder documental, e Michals nunca se interessou pela arte como documento, mas sim como pensamento. Mas, nos anos 1960, a fotografia o havia agarrado, quase poderíamos dizer que apesar das próprias características do meio, já que toda a sua produção – inclusive seus primeiros retratos, aparentemente simples em sua transparência e fé – dos anos 1960 em diante foi uma busca de sair, como ele mesmo diria, da realidade à qual a fotografia parecia estar inevitavelmente atada. Ou seja, Michals pensou nos últimos 40 anos em como utilizar a fotografia contra ela mesma. Como fotografar sem que a fotografia seja a representação de algo preexistente? Fotografar a realidade, para Michals, é a mesma coisa que não fotografar nada. Por isso, em meados da década de 1970, sua obra fotográfica tinha começado a quebrar as regras da mídia. Regras impostas, em grande medida, pela condição material da fotografia, pela fenomenologia, poderíamos dizer, dessa arte tecnológica. Presa à sua referencialidade por meio de seu caráter indicial, a fotografia conviveu, desde seus primórdios, com sua aparentemente inevitável veracidade documental. Poe, Talbot, Evans e Agee, entre outros, haviam exposto dessa forma, cada um de seu jeito. Cansado do apego à realidade, Michals começaria a fotografar o que não se via, tentando deixar para trás a descrição, a imagem do real. Primeiro começou com

as sequências narrativas – grupos inicialmente pequenos, de seis ou sete imagens, que em sequência construíam um relato, algo que, de maneira mais austera e menos artificiosa, Evans e Robert Frank, entre outros, já tinham pesquisado como forma de ficcionalizar a fotografia. Ou seja, a saída da prisão fenomenológica da fotografia seria aproximar essas imagens indiciais do universo da literatura. De uma literatura, devemos acrescentar, já completamente autônoma de seu papel prévio como janela para o mundo. Isso permitiria a Michals explorar e expressar ideias, pensar com a fotografia e não ter de representar imagens. Ao uso de sequências narrativas como forma de interpelar a fotografia Michals acrescentaria, nos anos 1970, o uso de notas escritas a mão inseridas nas fotografias. Essas notas não funcionam como títulos, mas sim como textos literário-filosóficos – entre aforismos e poemas em prosa – que estão incluídos no enquadramento. Haveria, na realidade, um duplo enquadramento: o enquadramento maior, dentro do qual estaria a imagem; depois, em cima ou debaixo da imagem, o texto; e o enquadramento menor, contendo a imagem. O efeito é a convivência entre a imagem e a escrita, que encontraram outro espaço que não o livro, formato inscrito no imaginário coletivo como pertencente ao universo literário que o universo fotográfico somente poderia tentar replicar. A resposta de Michals ao dilema da relação entre fotografia e literatura apresentava, assim, outro paradigma.

Claro que essa crença e essa necessidade da “pura objetividade” da fotografia tinham sofrido rupturas drásticas ao longo dos anos, antes da época de Michals, em especial durante o período das vanguardas históricas, momento em que se pode falar de um movimento consistente rumo à abstração na fotografia – poderíamos pensar nos experimentos de luz de Man Ray e de Lászlo Moholy-Nagy; nos intensos zooms de Paul Strand; nos ângulos inusitados de Horacio Coppola, André Kertész e Umbo; e nas colagens de Grete Stern. Todos esses projetos fotográficos lutavam contra a simples referencialidade, contra a noção da fotografia como uma janela, transparente e inocentemente aberta para o mundo empírico. São, nesse sentido, tentativas de aproximar a fotografia do artifício, zona do imaginário reservada, nessa altura, quase exclusivamente para a literatura. Dito de outra forma, não seria até o período entre guerras que a fotografia problematizaria, de forma consciente e reflexiva, sua própria relação com a representação. A fotografia deixaria de assumir como certa uma realidade preestabelecida que ela representaria por meio de sua capacidade de cópia, de reflexo. Ao livrarse de uma realidade preestabelecida, a fotografia poderia perceber seu próprio potencial ficcional. Daí a ênfase nessa fotografia experimental, abstrata, de vanguarda na perspectiva e na parcialidade, porque estas, entre outras características, evidenciariam a individualidade e a autonomia da visão e da imagem, desapegada da prisão do registro. Essa capacidade ficcional da fotografia encontraria outro momentochave nos anos 1970, quando começaria a ser usada como instrumento para pensar e questionar as categorias do real, do original, do primeiro. A busca de Michals não era única nem estranha para sua época. A exacerbação de uma compreensão da fotografia como artifício e como falsificação a partir dessa década não poderia ser mais evidente do que no trabalho de Cindy Sherman em seus Untitled Film Stills, fotografias que não remetem, em essência, a nada mais do que uma representação. Esse pequeno experimento, que durou de 1977 a 1980, foi o resultado de um total de 69 imagens e um projeto, Untitled Film Stills, que radicalizou a fotografia norte-americana do momento, que ainda estava apegada a certo olhar documentarista e etnográfico – surgido, em grande medida, com o projeto da Farm Security Administration –, mas que, ao dialogar tanto com os trabalhos já efetuados no campo da arte visual e conceitual, que utilizavam a fotografia como dispositivo de outros trabalhos em torno da subjetividade, da referencialidade, da relação entre vida e arte – pensemos em alguns dos projetos de Adrian Piper, como Food for Thought, de 1971, ou The Mythic Being, de 1975 –, como também com as experimentações da época em torno da performance art – e essa genealogia poderia incluir performances de Marina Abramovic, como Mudança de Papel, de 1975, ou as máscaras com espelhos que Lygia Clark construiria no final dos anos 1960 –, evidenciava a centralidade do dispositivo fotográfico, em grande parte como veículo, e o questionamento dos limites do eu na articulação da arte contemporânea.

A fotografia, explorando as formas já consagradas da narração literária, tanto na prosa como na poesia, já se constitui ela mesma em literatura. Não precisa se apoiar na literatura para garantir sua autonomia, porque aprendeu a lição que ela mesma ensinou à literatura nos anos de sua concepção: não vemos nada naquilo que vemos, somente um segredo. E esse segredo é a desfamiliarização que tão sagazmente viu o primeiro detetive. Aparece a ficção fotográfica.

O que acontece agora, quando a fotografia digital assumiu um primeiríssimo plano? Altera em algo aquilo que a ficção fotográfica havia estabelecido em sua modalidade analógica? Sabemos que as discussões em torno dessa primazia, apesar de diversas, sempre apontam para a preocupação de que as imagens geradas ou manipuladas digitalmente destroem o estatuto documental e informativo e, portanto, essencialmente verídico da fotografia tal e qual foi durante o primeiro século de vida, afirmando, em muitos casos, que a fotografia “morreu”. Uma das grandes perguntas foi: “como confiar em uma fotografia digital se ‘digital imaging is an overtly fictional process. As a practice that is known to be capable of nothing but fabrica-

tion, digitization abandons even the rhetoric of truth?’ ”. O temor é claro: viveremos em um mundo no qual as diferenças entre uma imagem natural e uma artificial serão não somente imperceptíveis, como também mais perigosamente “anacrônicas”.11 A questão é que a verdade fotográfica, como vimos aqui, foi desde sempre uma verdade “milagrosa”, uma verdade que, apesar de ser em sua manifestação material analógica, indicial, foi sempre, mais ou menos, ficcional. Na materialidade digital, claro que não podemos falar mais dos traços de luz, da fotografia como marca do real, mas sim da fotografia como a composição de sinais, mais evidentemente independente do mundo empírico. Nisso, no que a fotografia digital coloca em evidência, podemos ver não a morte da fotografia e, consequentemente, o final de um tipo de relação entre fotografia e literatura, mas sim um novo momento na história da fotografia e no desenvolvimento da relação texto-imagem. Agora, mais do que nunca, com a fotografia digital, ambos os meios perdem seus diferenciais: nem a literatura nem a fotografia devem nada ao mundo empírico, mas devem tudo à imaginação, à ficção.

Coda

Em “O inferno tão temido”, o maravilhosamente sinistro conto do uruguaio Juan Carlos Onetti, Risso, um homem (escritor, jornalista) que foi abandonado por sua mulher, recebe fotografias pornográficas – provavelmente enviadas por sua ex-mulher – a modo de postais, nos quais, sem ter certeza, o leitor suspeita que apareça sua mulher. “A primeira carta, a primeira fotografia...”: assim começa o conto, com esse deslize entre letra e imagem.12 Essas fotografias que recebe são de fato escrita, são o que Benjamin denominou de “inconsciente ótico”. E se o inconsciente, como ensinou Lacan, está estruturado como linguagem...

Por ser real e por ser sinistra. É como se a fotografia oferecesse não o que mostra, não o que esse olho técnico vê, mas sim seu verso: aquilo que esconde. Tão exata, tão real, tão autêntica e perfeita era que, de alguma forma, havia de instaurar no próprio centro dessa imagem uma quebra, uma fissura, uma opacidade, uma linha de fuga de sua própria condição material. Ali, através da presença – simbólica, obviamente – da letra na imagem da luz, a ruptura do real e a possibilidade, então, de pensar essa imagem realista e indicial como um “inconsciente ótico”.

Toda letra – de luz ou não – abriga esse “inferno tão temido”.

11 Ver BATCHEN, Geoffrey, Ectoplasm: photography in the digital age. In: Over exposed. Essays on contemporary photography, ed. Carol Siquiers. Nova York: New Press, 1999. 12 Ver ONETTI, Juan Carlos. El infierno tan temido. In: El infierno tan temido. Montevidéu: Asir, 1962.

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