9 minute read
Patrícia Yamamoto
Coração XLV I 2005 I vandyke sobre papel artesanal, 33x33cm I Foto: Sérgio Guerini
Patrícia Yamamoto: dissecando a natureza da fotografia1
Advertisement
helouise Costa curadora
Patrícia Yamamoto, em sua série O Estado das Coisas, interfere exaustivamente na imagem de um coração. Ela parte de uma fotografia direta de sua autoria, na qual um coração de origem animal aparece como objeto isolado sobre um fundo neutro. Esse coração vai se metamorfoseando em função das inúmeras intervenções que sofre por meio do “marrom vandyke”, processo fotográfico alternativo inventado no século XIX. Transita do positivo ao negativo e da nitidez à opacidade, beirando os limites da desaparição.
Se retrocedermos aos primórdios da fotografia, veremos que ela não se resumia a uma única técnica, mas abrangia um conjunto de diferentes procedimentos artesanais baseados nas propriedades fotossensíveis de algumas substâncias para a impressão de imagens em suportes variados. As opções disponíveis para a criação eram inúmeras. Veio a industrialização e padronizou a técnica. Veio o modernismo e padronizou o olhar. Afirmavam-se, assim, a pureza e a especificidade da fotografia, condenando-se o experimentalismo e as possibilidades de diálogo da imagem fotográfica com as artes visuais.
A fotografia hoje não mais possui limites intransponíveis. É o que nos mostra o trabalho de Patrícia Yamamoto. Por meio do experimentalismo, característico do vandyke, suas imagens abrem-se às contingências da matéria e do tempo. O estreito diálogo com a gravura também é uma das fontes que alimentam sua criação
1 Nota da organizadora: texto atualizado pela curadora em 22 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Patrícia Yamamoto no Mezanino de Fotografia do ano de 2005, realizada de 27 de julho a 11 de setembro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
fotográfica. Patrícia age como quem realiza uma autópsia. A princípio disseca o caráter simbólico desse órgão que se convencionou como a morada dos nossos sentimentos. Ao induzir que nos identifiquemos com um coração não humano, ela nos faz ver o quanto nossa carnalidade está próxima da natureza animal. O alvo certeiro de sua operação, no entanto, é a própria natureza da fotografia.
O estado da fotografia hoje, diante de sua assimilação pela arte contemporânea e das profundas mudanças em curso introduzidas pela tecnologia digital, é de redefinição e abertura a formas híbridas de existência. Os corações de Patrícia constituem-se de camadas sobrepostas de prata e pigmento, a nos falar da materialidade das coisas vivas que pulsam.
Coração II I 2002 I vandyke sobre papel artesanal, 64x48cm I Foto: Sérgio Guerini Coração VII I 2003 I vandyke e técnica mista sobre papel, 37,5x35,5cm I Foto: Sérgio Guerini
Coração VI I 2003 I vandyke e técnica mista sobre papel, 43x31,5cm I Foto: Sérgio Guerini
O vermelho e o branco1
Estevão Azevedo
O palhaço quando deixa a festa esquece a graça, mesmo que na superfície do rosto ainda leve as tintas, de todas as cores. Sob a pele, uma única cor vermelha – tinta correndo em labirintos líquidos –, que se disfarça de arco-íris somente ao atravessar o prisma da carne. Já os sopros que o órgão pulsante expulsa, esses descolorem antes mesmo de atingir a pele. Mágico que tira o sorriso da cartola, o palhaço preferiria tirar de dentro de si um ser. Em uma festa de escola, há tempos, ele fora um policial que corria desajeitado e tinha a bunda insistentemente chutada pelo bandido. Outra vez, em um aniversário de menino, fizera estripulias, vestido de macaco, em cima do monociclo. As crianças morriam de rir, ele vivia de risos. Mas o que dele ele entregava? Quando chegava em casa, nem sempre o primeiro que fazia era lavar-se. Antes, verificava as cartas que haviam chegado, endereçadas a alguém cujo nome ele sabia ser o seu. Uma pequena refeição. A leitura do jornal. E então a água quente correndo, as fibras da esponja esfregando os poros, no ralo um rio multicor se esvaindo e só aí sua própria coloração, meio ocre, meio apagada, restituída.
O palhaço resolveu, após o dia repleto de comemorações alheias – era um sábado –, não dormir imediatamente. Sairia, iria se divertir em algum canto. Como a noite soprava gelada, pegou o casaco azul e saiu. Já na rua, percebeu um pequeno detalhe em vermelho no pulso. Diabo de tinta barata, custava a sair. Sentou-se no balcão de um bar e observou: três amigos contavam anedotas e escancaravam as gargantas. Uma moça sozinha pedira alguma bebida muito colorida e, dada a careta que irrompia a cada gole, também muito forte.
– Oi.
– ... – Tudo bem com você? – ele insistiu.
Os olhos da moça se encheram de um ódio doce como se a beberagem lhe inundasse as órbitas, antes ocas. Olharam através dele com um ódio indiferente e voltaram-se ao copo. Ele tornou a seu lugar no balcão. Pediu uma cerveja e resignou-se: não fora mesmo muito original. Os três homens que estavam no bar aproximaram-se, solidários. Disseram uma ou duas frases de incentivo, respondidas entusiasticamente. Melhor comungar na tolice, não crer no bom credo sozinho. Empolgados que estavam, os três amigos não mais o ouviram, tampouco a ele falaram. Ele era uma presença muda no palco. Pediu mais uma garrafa. A mistura das três vozes ia diminuindo aos poucos.
O palhaço acorda atrasado, do outro lado do ponteiro do relógio há uma criança que espera essa sua personalidade disfarçada. As veias da cabeça latejam, bom sinal, ainda há por debaixo de tantas camadas es-
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Patrícia Yamamoto no ano de 2005 no Mezanino de Fotografia (exposição realizada de 27 de julho a 17 de setembro, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
pessas de tinta um órgão que pulsa. Engole um comprimido para a dor, coração demais afeta o desempenho dos palhaços. Uma faixa branca circunda-lhe os lábios. Riscos negros sobre as pálpebras. A bola vermelha quase o impede de respirar. E parte para sofrer pelos outros e despejar sorrisos o palhaço, poeta cômico do gesto. No salão repleto, quando ele surge, uma criança desata a chorar, e a mãe iniciante o acalma:
– Calma, amor, calma. É só uma fantasia, por baixo é um homem.
A vertigem de tal revelação lhe faz trançar os pés, calçados com enormes sapatos pontudos, e tal balé desengonçado, que a frase ressoando na sua cabeça o faz dançar, “por baixo é um homem”, tal balé que a frase embala, revitalizando sua carne, faz as crianças rirem. Por baixo era um homem. E agora até as mães, antes distraídas, conversando com as amigas sobre as qualidades dos filhos, até as mães começavam a sentir um frêmito, uma cócega na alma vendo o palhaço que parecia prestes a desabar num tombo de constrangedora verossimilhança. Caiu. Levantou-se enjoado, correu, pegou sua sacola e saiu pela porta. Durante alguns minutos, nada se fez na sala a não ser esperar a nova entrada triunfal do palhaço, que não aconteceria.
Um homem, ele era!, e, se antes não o fora, quando tal quimera, de cores delirantes como cinza primavera, quando nascera assim tão invisível e opressora?
O palhaço corria pela rua e as pessoas o olhavam. Porque se descobrira um homem, por debaixo de tantas fantasias, é que agora o notavam? Ele, que não se cansara nunca de viver infinitas versões de uma mesma imagem e disso extraíra aplausos, como poderia suportar a nauseante responsabilidade de perceber-se completo? E o susto da figura pintada, com suspensórios brilhantes sustentando a calça larguíssima, corria pelas calçadas despertando suspeitas. Chegou em casa e, dessa vez, foi direto ao banheiro. No espelho ele era o que sempre fora: um novo alguém a cada mirada. Encheu as mãos de sabão, ligou a torneira e esfregou. Esfregou com a urgência de um afogado que se debate. Deslizava sobre a pele as unhas como se tirasse da louça branca a gordura de uma refeição que o empanturrara até o limite do enjoo. A tinta vermelha pingava na pia. Para encontrar seu verdadeiro rosto, esfregava-se com fúria amorosa, de olhos cerrados, por baixo era um homem. Fios de tinta rubra já se contorciam na pia, avermelhavam o ralo e tingiam suas unhas quando finalmente deteve-se, abriu os olhos e encarou-se no espelho. Só o que viu foi um rosto de palhaço, a máscara intacta, a pele ainda perfeitamente branca, as pálpebras riscadas de negro, um sorriso atrofiado e fios tintos de sangue que corriam pelas bochechas e pingavam-lhe do queixo.
Foto: Sérgio Guerini I vandyke sobre papel artesanal, 48x33cm I 2005 I I Coração XXX
Coração V I 2003 I vandyke e técnica mista sobre papel, 33x28cm I Foto: Patrícia Yamamoto
Sobre Estevão Azevedo1
Nelson de Oliveira curador
Penso que Estevão Azevedo não escreve com a mente nem com o espírito. Ele escreve com a carne. Para esse contista, a finitude é a única certeza, pois para além da vida não há nada. Modo trágico de ver a existência? Pode apostar que sim. Então, que é que ele pretende com seus contos passionais? Segundo o próprio Estevão, “em última instância, provar que nada deve ser levado demasiado a sério – nem os grandes nem os pequenos momentos –, já que no fim vamos todos virar pó”. Aí está a única forma possível de carpe diem nos dias de hoje.
Tendo em vista essa melancólica concepção da vida, que somos nós? Simples ajuntamento de órgãos: estômago, pulmões, rins, coração? Simples apanhado de nervos, sonhos e sentidos? É o que parece, ao menos para o palhaço de O Vermelho e o Branco (título que parodia O Vermelho e o Negro, de Stendhal). Essa tristonha criatura votada ao riso vive no intervalo, no breve segundo intercalado entre dois instantes definitivos: a
1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de Patrícia Yamamoto no Mezanino de Fotografia 2005 (exposição realizada de 27 de julho a 11 de setembro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
eternidade anterior ao seu nascimento e a eternidade posterior à sua morte.
Esse palhaço jamais empalidece, a tinta vermelha e as múltiplas máscaras cobrem seu verdadeiro rosto, são seu verdadeiro rosto. Sua consciência pulsa mecanicamente na cadência do batimento cardíaco. Mas a descoberta da verdadeira identidade, revelada no conto, não é algo agradável, não para alguém que ganha a vida disfarçadamente, vestindo-se de alegria e gargalhada.
Foto: Sérgio Guerini I acrílica sobre papel, 21x15cm I 2003 I Série monotipia
Foto: Sérgio Guerini I acrílica sobre papel, 21x15cm I 2003 I Série monotipia