8 minute read

Fátima Roque

Next Article
Quem é quem?

Quem é quem?

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

As inscrições de Fátima Roque ou Quando o olho é capaz de tatear1

Advertisement

helouise Costa curadora

Uma das operações recorrentes da fotografia contemporânea consiste em retomar procedimentos técnicos primitivos, ou mesmo anteriores à própria invenção da fotografia, como meio de evidenciar os limites da prática fotográfica. Esse é o caso da pinhole, recriação da câmera escura utilizada no Renascimento. Trata-se da adaptação de um recipiente, que provido de um orifício possibilita o registro de imagens sobre um suporte sensibilizado colocado em seu interior. É do uso dessa técnica rudimentar que nasceu a série Caixas de Quase Nada – Inscrições de D. Cândida.

Na pinhole, diante da impossibilidade de visualização prévia da tomada, o ato fotográfico transforma-se em uma experiência “mais sensitiva e tátil do que propriamente visual”, como avalia Philippe Dubois. O fotógrafo deixa de ser o grande olho que determina enquadramentos, organiza composições e aprisiona instantes decisivos para se tornar o agente de um ritual que se dá às cegas, dilata a temporalidade e flerta com o acaso. É do registro de uma experiência sensível que estamos falando aqui.

Para Fátima Roque, o ato de confecção das imagens, que chega a durar até 20 minutos, é o passaporte para seu trânsito na cidade do Rio de Janeiro. Acostumados às fotos espetaculares e assépticas da cena urbana carioca, veiculadas como atrativos turísticos pela mídia, causa-nos

1 Nota da organizadora: texto atualizado pela curadora em 22 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Fátima Roque no Mezanino de Fotografia do ano de 2005, realizada de 31 de maio a 10 de julho, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

estranhamento observar as imagens deformadas e nebulosas que nos são dadas a ver no fundo de pequenas caixas de madeira iluminadas. O achatamento da perspectiva promove a desierarquização e o embaralhamento do espaço, enquanto as marcas residuais do cotidiano, visíveis na superfície das imagens, reforçam sua dimensão tátil. Estátuas ganham ares humanos, homens transmutam-se em sombras fantasmáticas, chamas de velas confluem como rios de luz e uma bicicleta afoita desafia as leis da gravidade.

Ao abolir a ditadura da visão em favor da ideia de inscrição, Fátima nos lembra que a imagem não é mais que o resto, o quase nada de nossa experiência primeira no mundo. Porque, afinal, viver não é sinônimo de contemplar.

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Cavalo-do-cão1

Adrienne Myrtes

– Prefere a vara com carretilha ou molinete? – Você acha que faz diferença? Eu não consigo nem pegar o camarão vivo pra colocar no anzol. – Pode deixar que eu pego pra você. – Estou contando com isso. – Eu não entendo. – O quê? – O melhor da pescaria é a preparação pra ela, estudar os detalhes. O anzol mais adequado para o peixe que se quer pegar, o melhor tempo, horário, essas coisas todas. Não entendo que graça você vê em pescar dessa forma. Sem planejamento. – Gosto de testar minha sorte. – Você costuma ter sorte. – É. – Já eu gosto de pescar, de me preparar pra pescaria. Costumava vir só. Ficava pela praia o dia inteiro esperando os peixes. – ... – Sempre esperei que um dia você se tornasse minha companheira de pescaria. – Pai, você fala muito, vai espantar os peixes. – Quando tive aquele derrame no ano passado, achei que não sairia mais da cama, mas foi justo aquilo que me trouxe você de volta. – É melhor você se concentrar no lançamento. – Tá brincando! Eu faço isso até de olhos fechados. – Achava melhor o senhor manter a boca fechada. Já falei que vai espantar os peixes. – O que eu quero espantar são os pensamentos, por isso gosto de conversar. Ainda tenho tanta coisa pra descobrir a seu respeito. O que você gosta... – Eu gosto de pescar e de ficar quieta quando pesco. – É porque você não se assusta ao ouvir seus pensamentos, já eu... – O terral hoje vai ajudar a pescaria. – Eu sonhava com você e com o dia em que nos encontraríamos, mas quando você entrou por aquela porta me admirei. Eu estava esperan-

1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Fátima Roque no Mezanino de Fotografia do ano de 2005 (exposição realizada de 31 de maio a 10 de julho). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

do a garota de 7 anos que fechou o portão quando saí de casa. – Gosto dessa formação de nuvens que o terral faz. – Mas a mulher que entrou pela porta há três meses guardava o rosto daquela garota. – ... – Filha, você sentiu minha falta? – Quer saber? Eu lembrava de um sentimento quando usava “meu pai” em alguma frase. No caminho pra cá eu remexia minha memória feito gaveta velha, procurando seu rosto, mas o que encontrava era a lembrança de uma foto 3x4 que eu guardava desde criança. – Minha filha, eu quero explicar... – Acho melhor você prestar atenção na pescaria. – Quando você puder, perdoe-me. – Não tenho o que perdoar. Não se pede perdão pelos sonhos. – Filha, não foi falta de amor. – Eu sei, foi excesso. Excesso de amor pela vida. Excesso de amor por sua vida. – Não sei o que lhe dizer. – Você lembra quando eu era criança que você pegava “cavalos-docão” e amarrava eles pelo rabo com uma linha e me dava os bichinhos amarrados pra eu brincar? – Lembro. – Você pensava que eu gostava daquilo, mas eu morria de pena de ver aquelas libélulas tentando voar, presas pelo fio. E aí eu soltava todas elas. Eu tinha que fazer aquilo com muito cuidado, não era fácil desamarrar as libélulas sem danificar suas asas. Às vezes, o nó estava tão apertado que eu cortava a linha e deixava que elas fossem embora com um pedaço de fio amarrado ao corpo. Mas eu sempre falava pra você que os cavalinhos-do-cão eram muito espertos e haviam fugido. – Por que você está me falando isso agora? – Perdi o medo de decepcioná-lo. – E pescar? Você veio pescar comigo pra me agradar? – Não. De peixe não tenho dó. Peixe não voa.

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Sobre Adrienne Myrtes1

Nelson de Oliveira curador

O diálogo entre a fotografia e a literatura não é algo novo. Também não é algo fácil. Para cada experiência bem-sucedida (estou pensando nos livros Nadja, com textos e fotos de André Breton, e Paranoia, com poemas de Roberto Piva e fotos de Wesley Duke Lee), dezenas malograram. Mas aqui o casamento tinha tudo para dar certo. E deu.

Diante das imagens sombrias e assombradas de Fátima Roque, logo me lembrei das narrativas rápidas, de enredo difuso, nebuloso, escritas por Adrienne Myrtes, autora que conheci em uma de minhas oficinas de criação literária. Nessas narrativas predomina a frase (elemento mínimo do discurso verbal), jamais o período longo. Daí a impressão, durante a leitura, de que os personagens e suas ações estão fora de foco, mergulhados numa atmosfera em preto e branco. Impressão que, na precisão do arremate, mostra-se falsa.

No plano literário, Adrienne tem feito uso de técnica semelhante à empregada por Fátima. O princípio da caixa escura, sem lentes, em

1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Fátima Roque no Mezanino de Fotografia 2005 (exposição realizada de 31 de maio a 10 de julho no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

sua ficção dá origem a narrativas de contorno indefinido, como este Cavalo-do-Cão. São relatos densos, feitos quase que só de diálogos e vazios, em que o traço dramático, o lírico e o jocoso se fundem e se confundem. Apesar disso, são contos que, como acontece com toda foto, por serem curtos, deixam-se ver sempre por inteiro.

Fátima e Adrienne também nos lembram que a caixa escura – o cérebro, essa caixa-preta que mais parece a de Pandora – é a origem e o fim de tudo o que somos e fazemos.

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

Sem título (da série pinhole) I 2003/2005 I papel e emulsão derretida/impressão digital I Col. da artista I Foto: Fátima Roque

This article is from: