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Guilherme Maranhão
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
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Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
Corpo estranho: os panoramas íntimos de Guilherme Maranhão1
helouise Costa curadora
Copiadas em papel fotográfico, as imagens de Guilherme Maranhão assemelham-se a fotos tomadas através de lentes deformadoras. Puro engano. Não estamos diante de fotografias no sentido estrito do termo. A série Meu Corpo reúne imagens provenientes dos limites incertos entre diferentes aparatos tecnológicos e propõe uma nova relação entre espaço, tempo, matéria e memória.
O mundo de Maranhão são as sobras, os desperdícios e as sucatas de nossa tecnologia, que quanto mais se diz avançar mais deixa atrás de si os rastros da obsolescência. Ele produz suas imagens por meio dos aparelhos híbridos que inventa. Após desmontar um escâner, extrai seu sensor interno, que ao ser acoplado a uma lente de máquina fotográfica e a um computador passa a funcionar como uma câmera digital. Tal equipamento permite uma espécie de escaneamento do mundo visível, que se realiza quando é movimentado, às cegas, por seu operador.
Neste ponto, cabe esclarecer o conceito de varredura. Como explica Maranhão, o escâner varre o que se coloca diante dele, linha por linha, e vai armazenando essas linhas, lado a lado, na
1 Nota da organizadora: texto atualizado pela curadora em 22 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Guilherme Maranhão no Mezanino de Fotografia do ano de 2005, realizada de 2 de outubro a 13 de novembro de 2005 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
memória do computador. Materializadas como fatias de tempo condensado, as linhas sucedem-se em continuidade, formando panoramas, cuja amplitude fica limitada à extensão do braço de Maranhão e ao ambiente restrito de seu quarto. O resultado são imagens deformadas em razão das dicotomias do procedimento. Ao encenar para si mesmo a própria intimidade, Maranhão submete a produção das imagens à ritmação de seu solitário gesto de autoerotismo.
Essas imagens não são representações do mundo, mas recriações, segundo uma lógica informática corrompida pelas interferências que Maranhão realiza no cerne dos equipamentos e de seus programas. Sua atitude deve ser interpretada com base no pensamento de Vilém Flusser, para quem a única possibilidade de criação por meio dos aparatos tecnológicos residiria justamente na subversão dos aparelhos, que descomprometidos de suas funções originais ficariam abertos ao exercício pleno da liberdade artística. As recriações de Guilherme Maranhão apontam para o rompimento dos limites do fotográfico e para a complexidade das imagens, que não mais são fruto do simples automatismo das máquinas.
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
Mãos1
Rogério Augusto
Enquanto minhas mãos deslizam por meu cabelo, outras mãos retiram vidas de ventres abertos. Choro, corpo lambuzado, sangue viscoso manchando a alva veste. Cortam cordões, entregam os frutos ao mundo.
Amparo meu rosto lúdico. Ao mesmo tempo, alguém se prepara para enfrentar o adversário. Calça as luvas, entra na arena. Diverte-se após a vitória, afirmando ser a nocauteada face do rival sua própria identidade.
Percorro meu peito com a ponta dos dedos. Agora, outra mão obedece ao cliente em algum inferno escarlate. Sonha com o novo anel de rubi em oferta. Conta os segundos enquanto a satisfação do parceiro não chega. Aperto meus braços, cotovelos quase unidos. É a vez de um pedinte estender a mão ferida dentro da noite fria. Repete sua súplica incansável, mesmo sem saber quem todos são, mesmo sem saber quem ele é.
Tento alcançar minhas costas. A moça enrubescida digita desesperos em frente à tela do computador. Mãos rápidas entre apelidos e ilusões, mentiras invisíveis. Procura príncipes em reinos desconhecidos, encontra sapos pelos caminhos.
Sinto minhas pernas. Momento em que um garoto simula vender flores no semáforo vermelho. Caminha até os automóveis impor-
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Guilherme Maranhão no Mezanino de Fotografia do ano de 2005, realizada de 2 de outubro a 13 de novembro de 2005, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
tados, passos desconexos. Por trás das rosas rubras, sua mão trêmula segura a arma, violenta fome.
Então chego aos meus pés. Um reverendo em algum canto do universo faz com a mão o sinal da cruz. Ao persignar-se, busca a remissão do planeta, enquanto Cristos ardem em fogueiras, labaredas indecifráveis.
Quando me preparo para a hora da partida, pulsos esperando pelos cortes, penso na mão de alguém, salvação. Quem? Um cubículo, janela aberta, raios de sol tentam iluminar minhas ideias alteradas, minha cor de carne. Solidão maior do que a vida.
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão
Sobre Rogério Augusto1
Nelson de Oliveira curador
A literatura de Rogério Augusto é a do aqui e agora, do relâmpago, do instantâneo. Suas narrativas, sempre mínimas, têm como tema os detalhes mais relevantes do cotidiano. As deformações sonoras, olfativas e visuais da realidade urbana são sua matéria-prima. Em nossas conversas, ele costuma sintetizar muito bem isso: “Meus contos são retratos da realidade na qual vivemos. Não consigo escrever sobre algo que não esteja ao meu redor. Estou sempre atento, observando a sociedade, fotografando seus atos e seus sentimentos”. Grande observador que é, Rogério sabe arrancar histórias até de objetos e detritos que (para a maioria das pessoas) não têm história. Não há gota de suor, fio de cabelo, impressão digital, lâmpada, parafuso ou outra ninharia qualquer que, provocados por esse contista, não revelem fatos obscuros e luminosos de sua existência. Aliás, de nossa existência.
O miniconto Mãos confirma o que ficou dito acima. O jogo entre a vi-
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Guilherme Maranhão no Mezanino de Fotografia 2005 (exposição realizada de 2 de outubro a 13 de novembro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
são e o tato, como se um cego visse o mundo por meio dos dedos, é aqui muito bem disputado. Partindo do trabalho de Guilherme Maranhão, o narrador desse conto faz o reconhecimento repetitivo e metonímico – tátil e visual – de si mesmo e de muitas outras mãos espalhadas pela cidade. Nesse reconhecimento, tudo é pleno de vida.
Exceto para certa voz subterrânea que insistirá até o fim na pergunta: “Tudo mesmo?”.
Sem título, série Meu corpo I 2004 I fotografia digital de fenda, 30 x 150 cm I Col. do artista I Foto: Guilherme Maranhão