8 minute read
Helga Stein
Col. da Galeria da Faculdade deArtes Visuais da
I
Advertisement
fotografia em backlight, 100 x 150 cm
I
2004-2006
I Sem título (série autorretratos)
Foto: Helga Stein
I
Universidade Federal de Goiás
helga Stein: vertigens documentais1
Eder Chiodetto curador
As tecnologias, ao mediar a experiência humana, contribuem para formar novas visões de mundo. No percurso da história da fotografia, elas renovam possibilidades de experimentos, propondo a revisão de técnicas e conceitos.
Helga Stein é expoente da geração que busca formas híbridas de expressão nos aparatos tecnológicos, na velocidade dos meios, na transformação vertiginosa do real em ficção e na ironia com que trata a crença nas imagens.
Os autorretratos que se tornam retratos de outros, ou a geração de criaturas que revelam e humanizam personas da criadora, trazem à luz seres que soam familiares, verossímeis. Esse processo de reconstrução, contudo, não nos reporta a uma ficção. Aqui nada é o que parece ser.
A “cirurgia” feita pela artista não deixa transparecer cicatrizes do passado. Ao cabo, esses seres ganham um grau de realismo que a própria matriz não possuía. Ao adotar um processo correlato à fabricação dos ícones da beleza idealizada produzidos pela publicidade e pela mídia de massa, essa ficção torna mais genuína nossa vacilante noção de realidade. Ficções pasteurizadas. Vertigens
1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de Helga Stein no Portfólio do ano de 2006 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2007 (exposição realizada de 6 de agosto a 17 de setembro de 2006 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 19 de maio a 1 de julho de 2007 em itinerância para o Centro Cultural Casa da Ribeira, em Natal/RN). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
documentais para o consumo imediato.
Imagens manipuladas perdem sua origem, a localização no tempo e no espaço. Uma fratura na gênese da fotografia. Se fotografias não servem para atestar momento e lugar, para que servem? Talvez para questionar nossa crença no realismo.
Se nossas certezas nas imagens tendem a esmorecer, é porque passamos tempo demais desprezando a imagem-imaginação. Helga e suas personas, de existência restrita à imagem, pulsam intensamente no mundo da expressão.
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 300 x 200 cm I Col. da Galeria da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. I Foto: Helga Stein
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 20 x 27 cm I Foto: Helga Stein
Inanimado1
Tiago Novaes
Nunca vou poder explicar aquilo que é mais importante, e que começou em uma noite absolutamente solitária, fractal, de agudo contraste em um quarto vazio e barato. Um quarto vazio e barato? Não, não foi bem assim. O quarto não estava vazio. Desde o começo, não sei como dizer, mas parece que o vazio que preenchia o quarto era o pressentimento da sua presença, da presença dela, que já ali expandia seu hálito, seu rígido calor, seu ânimo tentacular. Na primeira vez em que a vi, encontrava-me apagado, e foi quando ela, por um breve período, surgiu na tela, seus largos lábios abarcando um sorriso, acordei de fato, e pude enfim expulsar de meus olhos que já viram de tudo a areia que cerra as pálpebras e dilata as pupilas. Foram apenas alguns segundos, mas pude chamar aquilo de encontro. Pude encontrar-me com ela pela primeira vez na brecha de uma mensagem estranha, de um erro de sistema operacional. Errante, despertei para uma maratona sem chegada.
Eles me consideravam promíscuo. Eu me julgava fiel – o mais ardoroso seguidor de uma jihad particular. Era uma guerra, você vê, era uma guerra. Até então, tinha arrepios na presença de qualquer criatura feminina. Quando me dirigiam a palavra, as minhas fugiam acuadas e, quando não tinham para onde fugir, as palavras espremiam-se em um canto, suadas, truncadas e paralisadas de pânico. Isso até eu encontrá-la pela primeira vez – primeira? – em um quarto que não estava vazio.
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Helga Stein no Portfólio do ano de 2006 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2007 (exposição realizada de 6 de agosto a 17 de setembro de 2006 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 19 de maio a 1 de julho de 2007 em itinerância para o Centro Cultural Casa da Ribeira, em Natal/RN). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Seu nome era Alma. Todas as mulheres eram nada se comparadas a Alma. Alma estava em todas, e todas estavam em Alma.
Perdi-a e a reencontrei inúmeras vezes. Da primeira vez em que a conheci, tinha pernas longas. Da segunda, um olhar raivoso e uma boca amarga de tanto cuspir misérias. Da terceira, era tão veloz que não pude saber se dançava, se me olhava ou se era doce. E assim nos desconhecíamos, uma vez no bar, outra no súbito metrô subterrâneo. Outra vez em um engano ao telefone, numa festa triste, num lançamento de livros, ela era sempre aquela que sumia entre os convivas sem olhar para trás. No banheiro do shopping, numa rua deserta, num cibercafé liquefeito, era sempre novo o sabor de seu silêncio, era sempre o nunca de seu arpejo, sempre uma saudade e um esquecimento. Corri o mundo procurando Alma e, quando a encontrei, continuei procurando: bilhetes entre páginas de livros emprestados, notícias curiosas na televisão, cartas estúpidas e panfletos de comida japonesa. Certa vez, acreditei vê-la de relance na sala escura de um cinema do Centro, numa noite no Cairo. Outra vez lá estava, uma vírgula mais acentuada em um conto de Borges. Era ela se movendo como uma Marilyn Monroe de gestos mecânicos. Era ela ali, o rosto masculino, a me ver de dentro de seus olhos fundos e marcados pelo torpor de substâncias que ainda não tinham classificação. Mas eles – eles – me diziam “Por quê?”, e eu não respondia. Mas eles afirmavam “Você não vê?” – e eu perguntava “O quê?”. Respondiam então: “Não vê que essa mulher que você considera ser uma só não são menos que muitas? Não vê que um dia acalanta, no outro espanta, não vê que ela te encanta? Não vê que a cada dia é inédita a mulher que encontra?”. E eu não via. Mas carregava até ela o peso dessas dúvidas, e ela então dizia que seu ânimo era sempre o mesmo. Por que não poderia mudar então de fisionomia? E eu voltei a barrá-la com outros porquês, e ela se esquivou sem expressão. Esquivou-se com as mãos como ventosas, arrastando-se pelas paredes. E eu, como de praxe, a persegui. E nessa fuga acabei por embocá-la em um quarto escuro, onde nada se via. Um quarto vazio e barato – vazio e barato? –, chamando por ela.
Ao riscar um fósforo, capturei um movimento. Seu rosto na penumbra, anfíbio, me desconhecia. A pele fria, o olhar lateral dos camaleões, o rosto verde nas sombras. E, na radiação da efêmera chama em seu corpo esguio, vi que em seus olhos brilhava uma luz muito mais intensa e ofuscante. E havia fúria. E havia metal e escamas, e havia pulsões elétricas. E havia a minha face ali aprisionada, completamente dominada pelo medo e pelo destino inanimado que me aguardava.
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 133 x 100 cm I Foto: Helga Stein
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 80 x 60 cm I Foto: Helga Stein
Sobre Tiago Novaes1
Nelson de Oliveira curador
As narrativas de Tiago Novaes, ficcionista que também é psicanalista – ou, se preferirem, psicanalista que também é ficcionista –, sempre misturam os elementos mais misteriosos dessas duas práticas. As imagens sombrias da poética da melancolia (penso em Kafka, Campos de Carvalho e Lobo Antunes) e os desejos reais e imaginários do consultório do analista são a matéria-prima de seus contos. Neles tudo está sob suspeita, tanto a doença quanto a saúde mental. Quando vi os autorretratos de Helga Stein, imagens sustentadas pela luz metálica própria dos planetas mais fosforescentes, pensei na hora: “Tiago vai deitar e rolar com essa androide ciberpunk de alma líquida, com essa assassina cibernética projetada em Tóquio ou Singapura”. Não me perguntem de onde tirei essas expressões excêntricas. Devo estar lendo romances de ficção científica demais.
1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de Helga Stein no Portfólio do ano de 2006 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2007 (exposição realizada de 6 de agosto a 17 de setembro de 2006 no Itaú Cultural e de 19 de maio a 1 de julho de 2007 na itinerância para o Centro Cultural Casa da Ribeira, em Natal/RN). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Mas Tiago não partiu para a solução futurista. Nem eu esperava que fizesse isso, pois sei que ele não costuma ser tão previsível assim. Estimulado pelos retratos da elegante androide terrorista, Tiago partiu foi para o suspense e o horror. Seu conto, em vez de explicar e esclarecer o mistério de Helga (ou de Alma), oculta-se nas sombras e amplia esse mistério. Helga, Alma. Alma, Helga. Quem é essa mulher de sangue sintético? Perguntas são perigosas. Saber é desaparecer.
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia integrante de álbum flickr mostrada em computador I Foto: Helga Stein
Sem título (série autorretratos) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 80 x 60 cm I Foto: Helga Stein
Sem título (série autorretratos – mosaico “eus”) I 2004-2006 I fotografia adesivada em pvc, 80 x 180 cm I Col. da Galeria da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás I Foto: Helga Stein