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Rodrigo Braga

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Quem é quem?

Quem é quem?

Do prazer solene I I 2005 I fotografia, 80 x 120 cm I Col. Gilberto Chateubriand/MAM – RJ I Foto: Rodrigo Braga

Rodrigo braga: identidade e transfigurações1

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Eder Chiodetto curador

Numa espécie de revisão do mito de Narciso, em vez de admirar a própria beleza num espelho d’água, o artista mergulha a cabeça na terra, símbolo de vida e morte, até não poder mais se ver como um duplo de si, mas como um outro.

Esse gesto garante, ao mesmo tempo, que o artista não se perca na ilusão da autocontemplação e se transfigure, ao emergir, em seres híbridos, fabulosos, meio animais, meio humanos. A afirmação da identidade, da complexidade interior, dos desvãos entre o ser e o querer ser, raramente consegue desorganizar a superfície ilusória e estetizante dos retratos que colecionamos vida afora. Tanto que, como diz Peggy Phelan, “para nos reconhecermos num retrato – ou num espelho –, imitamos a imagem que imaginamos que os outros enxergam em nós”.

A obra de Rodrigo Braga, apesar de recente, faz emergir de forma contundente os dramas da autorrepresentação. Nela, o artista es-

1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de Rodrigo Braga no Portfólio do ano de 2006 e no Portfólio Itinerante do ano de 2007 (exposição realizada de 18 de novembro de 2006 a 21 de janeiro de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 28 de fevereiro a 15 de abril de 2007 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará, em Belém/PA). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

pecula sobre a possibilidade de se dissolver no outro, ironicamente animais com os quais o homem se alimenta, para que sua própria identidade ressurja em personagens mitológicos.

Filho de biólogos e ávido pela expressão artística desde criança, Braga utiliza a intimidade com a representação e com a natureza como via de acesso a dramas existenciais e pessoais. A busca do autoconhecimento implica necessariamente dor e furiosos embates internos. É preciso correr o “risco do desassossego” para um dia vislumbrar o “prazer solene”. Seu universo onírico, porém, ultrapassa essas questões e envereda pelas referências do garoto que desenhava nos bancos escolares: os seres resultantes de suas ações parecem pertencer a fábulas infantis ou aos contos fantásticos da literatura de cordel de Pernambuco, onde o artista vive.

O regional se universaliza nesse embate pela autorrepresentação, que, ao mesmo tempo em que atesta uma presença no mundo, cria um ponto de vista livre e poético sobre este e outros mundos imaginados.

Foto: Rodrigo Braga I Coleções MAM-SP e Maison Européene de La Photographie, Paris I fotografia, 50 x 75 cm I 2006 I Comunhão I

I Foto: Rodrigo Braga Col. Gilberto Chateubriand/MAM - RJ I fotografia, 120 x 80 cm I I 2005 Do prazer solene II

Foto: Rodrigo Braga I Col. Gilberto Chateubriand/MAM - RJ I fotografia, 120 x 80 cm I 2005 I Do prazer solene III

A tudo aquilo que já não me faz tão bem1

Gabriela Kimura

Um pequeno mortuário. Uma tinta. Um corpo salpicado de vermelho. Pequenos cortes nas pernas, na altura dos braços e do peito. Foi assim quando lhe vi pela primeira vez na soleira da porta. Um apego. Nada de soluços, nada de resposta. O aterro.

Aqueles olhos mortos, no tropeço da memória, vento que ignora a sabedoria dos maus tempos. Em preces, altares desconexos, noite que nunca acaba toda vez que você pisa nesse meu desassossego. Com unhas, cisco e moleira, que isso de tormenta todo dia, toda hora, dá canseira. Tudo sempre um combate, um abate, uma febre oscilando pela noite inteira. Agudos cortando a madrugada. Esse seu verbo desatina meu enredo, pega aos trancos, dá defeito. Tudo muito, nada basta, via sacra, aos remendos.

Uma vontade de dizer: “Vá procurar outra casa, cama quente, bom molejo. Uma que seja mais jovem com tudo ainda por inteiro. E mos-

1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Rodrigo Braga no Portfólio do ano de 2006 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2007 [exposição realizada de 18 de novembro de 2006 a 21 de janeiro de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 28 de fevereiro a 15 de abril de 2007 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém/PA]. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

tre como funciona, dia a dia, tábua, prego, pelo, fogo, osso ainda sem defeito”. Mas você não desiste, não desata, é doença travestida de fantasia, rins, rabos, peste inventada nesse meu corpo sem respeito. Sua boca anda vazia. Seu tempo me devorando aos terços.

Reza brava, vela acesa, cutuca a pele ainda fresca. Mete medo, desafia a estética como quem desconhece as regras e se caga por inteiro. Nem mesmo me reconheço. Assim, fuça esticada, poros na lente, um câncer, uma vaca, codinome desespero. Alegoria – que definha – para todas as mentiras, truques parcos de curandeiro. Deixe-me ir, me desamarre, já não tenho forças para manter um hospedeiro.

Vou tirar essa faca dos seus olhos desgovernados e lhe furar inteiro. E me embalar na linha imaginária, dos breves cortes, na troca de instrumentos. Golpe no seu eixo. As entranhas quentes, a viscosidade rente, o cheiro de maresia. O gosto salgado dessa sua alegoria.

Dividida entre o alívio e a culpa, vou enfiar a mão por essa linha cirúrgica para sair com um resto de vida. De 120 mortes. De pouca sorte. Dos seus descuidos. A casa guarda, no amputar de cada coisa, esse eterno recomeço. Seu tropeço pelo meu desleixo. Esse preço é veneno em terra de ninguém. É território na forma e jeito que lhe convém. Porque o desejo, o desejo é tudo aquilo que já não me faz tão bem.

Foto: Rodrigo Braga I Col. Galila Barzilai, Bruxelas I fotografia, 60 x 40 cm I 2005 I Da alegoria perecível I

Foto: Rodrigo Braga I Col. Galila Barzilai, Bruxelas I fotografia, 60 x 40 cm I 2005 I Da alegoria perecível VI

Sobre Gabriela Kimura1

Nelson de Oliveira curador

Há muitas maneiras de se deixar vagar o pensamento diante das imagens perturbadoras de Rodrigo Braga: pedindo socorro ao mito, à alegoria, à metáfora, à fantasia ou à desconstrução puramente racional.

A minha maneira predileta é a naturalista: gosto de acreditar na veracidade dessas anomalias anatômicas. Gosto de acreditar que são realidade pura: fotojornalismo, não fotomontagem. Assim o susto fica maior.

Falo do mesmo susto que as narrativas igualmente perturbadoras de Gabriela Kimura sempre me provocam. Seu blog e seu livro – batizados acertadamente de Dona Estultícia – estão cheios de espantos desfocados, amores transgênicos, crimes tântricos, crianças canhotas, nacos de gente ácida espalhados por toda parte. Aí está o idêntico

1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Rodrigo Braga no Portfólio do ano de 2006 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2007 [exposição realizada de 18 de novembro de 2006 a 21 de janeiro de 2007 no Itaú Cultural e de 28 de fevereiro a 15 de abril de 2007 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém/PA]. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

idioma-susto das imagens de Rodrigo.

A ficção de Gabriela é esférica: a superfície infinita e acolhedora gira longe do núcleo pesado e violento. O núcleo é feito de fatos repulsivos e hediondos, a superfície não. Esta é feita da matéria leve e sinuosa frequentemente chamada “literatura”. Ou “tragédia”. Ou “loucura”.

O ritmo e as imagens assimétricas de seu miniconto estão na superfície acolhedora. Pertencem à química da fotografia. No núcleo estão “a reza brava, a vela acesa, o cutucão na pele ainda fresca” e outros artefatos letais. Estes pertencem à literatura e são por ela abençoados.

Foto: Rodrigo Braga I Col. do artista I fotografia, 30 x 45 cm I 2004 I Risco de desassossego III

Para quem me faz bem I 2004 I fotografia, 80 x 120 cm I Col. do artista I Foto: Rodrigo Braga

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