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Alexandre Sequeira
Lucas I 2005 I registro fotográfico da casa de Lucas/serigrafia sobre objeto pessoal [lençol] (integrante da exposição no Itaú Cultural), 150 x 90 cm I Col. Alexandre Sequeira I Foto: Alexandre Sequeira
Alexandre Sequeira: a dissolução do eu no outro1 Eder Chiodetto curador
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As coisas do mundo só existem por meio de linguagens e narrativas, portanto, toda a comunicação que produzimos é uma interpretação do mundo, não o mundo em si, posto que este é impalpável. Logo, tudo o que é dito, escrito, pintado ou fotografado simboliza não só a presunção da existência das coisas, mas também a imanência do artista em seus temas.
Daí que representar o outro implica inevitavelmente representar a si também. Estudos ligados à antropologia visual e às artes em geral se debatem sobre como traduzir o outro de forma mais enfática sem que o gosto pessoal e os maneirismos estilísticos do artista sobressaiam e resultem no inócuo exercício de ver o outro como mero espelho.
Se representar sem que a personalidade do artista fique atrelada à obra final é uma impossibilidade, o caminho mais profícuo reside na poética da obra de arte que resulta de uma relação, registro repleto de porosidades que denota a dissolução de um ser no outro. É quando o retrato, tema dos mais recorrentes na história da arte, se potencializa como um acesso à transcendência.
1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de Alexandre Sequeira no Portfólio do ano de 2007, realizada de 21 de outubro a 25 de novembro de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A exposição de Alexandre Sequeira é fruto de leitura de portfólio realizada em Belém/PA, em decorrência da itinerância da exposição de Rodrigo Braga, em 2007, para essa cidade. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Ao acompanhar o cotidiano do vilarejo de Nazaré do Mocajuba, localizado no município de Curuçá, a 150 quilômetros de Belém, no Pará, por dez anos, Alexandre Sequeira conseguiu, graças a essa imersão e à sensibilidade que lhe é própria, construir esta série de retratos impressos em toalhas de mesa, lençóis, cortinas, redes e mosquiteiros.
Mais que atestar a presença das pessoas em determinado lugar, as peças reapresentam, entre estampas, manchas acumuladas e a serigrafia sobreposta, delicadas tramas que falam de identidade e memória, esta última indelevelmente associada ao tempo. Como relata o próprio artista: “As casas simples tinham seus ambientes separados por desgastados tecidos que acolhiam intimidades. Do outro lado, vultos, reflexos, imagens imprecisas. Desses elementos emanava uma carga de história. Era como se sussurrassem em meus ouvidos confidências de seus moradores. Percebi ali elementos que traziam em sua materialidade o dado que faltava para falar de uma relação: o tempo”.
As coisas do mundo, enfim, só existem quando distraidamente as percebemos.
Seu Suzano I 2005 I registro fotográfico da exposição na Vila Nazaré de Mocajuba /serigrafia sobre objeto pessoal [cortina] (integrante da exposição no Itaú Cultural), 100 x 220 cm I Col. Alexandre Sequeira I Foto: Alexandre Sequeira
registro fotográfico da exposição na Vila Nazaré de Mocajuba/serigrafia sobre objeto pessoal [lençol com mosquiteiro] (integrante da exposição no Itaú Cultural), 265 x 185 cm
I
2005
I Adriane
Foto: Alexandre Sequeira
I
Col. Alexandre Sequeira
I
registro fotográfico da casa de Seu Carmelino/serigrafia sobre objeto pessoal [rede] (integrante da exposição no Itaú Cultural), I 2005 I
Seu Carmelino
I Col. Alexandre Sequeira I Foto: Alexandre Sequeira 250 x 135 cm
I
registro fotográfico da casa de Seu Puã/serigrafia sobre objeto pessoal [rede] (integrante da exposição no Itaú Cultural), 250 x 135 cm
I
I 2005
Seu Puã
I Foto: Alexandre Sequeira Col. Alexandre Sequeira
As irmãs passionistas1
bruna beber
A morte de Adriane, um véu. Demorou a nos chegar o anúncio – domingo de tarde, todos no quintal –, mas já esperávamos. Um véu no dia e temos a tarde, outro véu na tarde para ser noite. É assim que se explica o tempo por aqui, o escuro e o claro, assim começamos a conhecer as cores. O que fazíamos há 20 anos no mesmo quintal era esperar o terceiro véu, aquele que cairia na noite e deixaria tudo preto para sempre: a morte. Esperávamos, mas não queríamos estar vivas para ver sua chegada – e era por isso que sempre sentávamos juntas todas as tardes, de costas para a casa e de frente para o jardim, olhos fechados simulando descanso, a arquibancada do silêncio.
Tínhamos somente uns aos outros, todo esse tempo, mesmo quintal. Não nos ouvíamos porque raramente falávamos. Apenas bom-dia, tarde e noite, desculpa, licença, por favor, obrigada. Nos foi ensinado guardar a voz, não dividi-la. Bocas caladas, ouvidos mudos. E, fecha-
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Alexandre Sequeira no Portfólio do ano de 2007, realizada de 21 de outubro a 25 de novembro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
dos dois dos três portões principais, apenas víamos. Já nos parecia muito espectar a vida. Mudava em dezembro: – Feliz Natal. E quatro metros para assegurar a distância do que dá pro que recebe o “Feliz Natal”. As distâncias se encurtam quando nos distraímos, aprendi com a única longa rodovia por onde passei. Olhar pra frente, pro seu suposto e iminente fim, somente para ver o que está acontecendo, e não o que pode ou vai ou deveria acontecer.
“Onde vai, Branca? Rezar. Pra quem? Pros pássaros que tão indo lá trazer a chuva. Faz calor demais aqui e uma única vez a ouvi falar de Deus, mas nunca a vi praticar a bondade.” Eu julgava Branca em silêncio, e sem olhá-la tentava responder às perguntas que a imaginava fazendo a si mesma. Minha cabeça atarraxada ao pescoço, meus olhos estáticos fingiam não ver nada, eu estava imóvel, e imóveis todas as minhas emoções. Cheguei a achar que estava pensando sobre mim mesma, mas não, era sobre Branca, que atravessava a sala nua com a Bíblia na mão sem se dar conta de que estava nua, conversando com seus segredos, contando seus dias, mastigando os próprios dentes. O som que vinha era o som que vem quando mastigamos grãos crus de arroz. Seus lábios também tremiam, ela sussurrava seus medos, e observando-a eu conseguia calar os meus.
Perdi as contas de quantos anos temos. Sei que se passaram mais de 20 porque Lucas, filho do seu Suzano, a única criança da vizinhança há 20 anos, já arranjou barba, trabalho e filho. Então posso dizer com segurança que há 20 anos vivemos nesta casa sem relógio e sem álbum de retratos. A fotografia de nossos pais, bem sérios (ele brabo, ela com olhar de carinho), pendurada na parede da sala, caiu com o vento forte da última chuva há mais de 20 anos e no chão ficou. Ninguém se encorajou a juntar o vidro estilhaçado, ele está lá até hoje, mas Adriane mais moça forrava um lençol branco em cima dos cacos e deitava em cima. Ela dizia que queria sentir com mamãe as dores do parto e com papai as dores da partida. Nunca a repreendemos.
Era dezembro: – Feliz Natal, Adriane está morta. Oito, 12, 16 metros. A distância se multiplicava nos poros do véu, entardecia, anoitecia. A palavra longe em cada átomo do corpo de Adriane, sua matéria calada, carne frita lentamente, ao longo dos anos, pelo sol da manhã. Não ouvimos nem vimos sua morte, estávamos de costas para a casa e de frente para o jardim, enfileiradas e mortas.
registro fotográfico da casa de Branca/serigrafia sobre objeto pessoal [toalha de mesa] (integrante da exposição no Itaú Cultural),
I
2005
I Branca
Foto: Alexandre Sequeira
I
Col. Alexandre Sequeira
I
220 x 180 cm
Sobre bruna beber1
Nelson de Oliveira curador
Nas metáforas visuais de Alexandre Sequeira, marcas fantasmas registram a passagem do tempo e o abandono. Provocada por esses registros, a escritora carioca Bruna Beber convocou dezenas de metáforas verbais e construiu com elas a história de Adriane e Branca. Duas irmãs.
Seria a narradora a terceira irmã? Talvez. “Prefiro não revelar se ela também é irmã ou apenas alguém que convive com elas”, diz a autora. Irmã ou não, a essa figura inominada foi concedido o privilégio de ordenar e revelar os fatos. Mas o privilégio do nome, esse não lhe foi concedido.
As irmãs passionistas quase não falam. “Nos foi ensinado a guardar a voz, não dividi-la.” Elas simplesmente arquivam as lembranças e os sentimentos na memória das paredes, dos quartos, dos lençóis. Nas reentrâncias dessa casa sem relógio e sem álbum de retratos. Melancolia.
Os retratos de Alexandre comovem pela ausência dos retratados, cuja
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Alexandre Sequeira no Portfólio do ano de 2007 (exposição realizada de 21de outubro a 25 de novembro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
imagem virou estampa: outra forma de ressurreição. Ausência ora sinistra, ora sublime. O relato de Bruna Beber também comove pela ausência. Ausência de Adriane, ausência de comunicação, ausência até mesmo de sentido. Essa família pertence a outro mundo.
As irmãs passionistas interiormente não mudam. “Perdi as contas de quantos anos temos.” Ano após ano, são sempre as mesmas, assim como é sempre a mesma a distância que as separa. O tempo passa, o progresso avança e elas não estão nem aí. Elas vivem na indolência do eterno, atentas à Paixão de Cristo. Elas vivem pregadas simbolicamente na cruz e descoladas do cronômetro produtivo.
As irmãs passionistas só se movem em pensamento. Apenas em pensamento. Que é tão perene quanto o sentimento do sagrado e a poesia rústica desse breve conto de Bruna Beber.
registro fotográfico da exposição na Vila Nazaré de Mocajuba/serigrafía sobre objeto pessoal [cortina] (integrante da exposição no Itaú Cultural), 185 x 80 cm
I
2005
I Dona Benedita
I Foto: Alexandre Sequeira I Col. Alexandre Sequeira
registro fotográfico da casa de Dona Francisca/serigrafia sobre objeto pessoal [toalha de mesa] (integrante da exposição no
I
2005
I Dona Francisca
Foto: Alexandre Sequeira
I
Col. Alexandre Sequeira
I
Itaú Cultural), 200 x 180 cm