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José Frota
Sem título I 2006 I processo cromógeno, 150 x 225 cm I Foto: José Frota
José Frota: as sombras são1
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Eder Chiodetto curador
Fotografar para transfigurar o visível. Trair o aparente. Macular o documento. Conspurcar o referente. Corromper a luz divina. Enaltecer a sombra. Zombar da pose. Exaltar bolores. Convocar demônios. Sacralizar desejos. Detectar ausências.
Enxergar o tempo transcorrido, o instinto ofegante, o suor dos aflitos, o orgasmo contido, a praga rogada, o credo dos necessitados e os ciclos ininterruptos da vida nas fissuras, no carcomido, nas feridas, no lixo, nas teias, naquilo que impregna, escorre e estanca, permanece e mancha, apodrece, se adultera, perde a forma, se dilui, quase desaparece, vira vestígio, rastro, signo, silêncio.
Território de sombras e de assombros não visível aos incautos. Dimensão onírica e bruxuleante, ocultada pela luminescência, flagrada por um olho
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de José Frota no Portfólio do ano de 2007, realizada de 2 de dezembro de 2007 a 20 de janeiro de 2008 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A exposição de José Frota é fruto de leitura de portfólio realizada em Natal/RN, em decorrência da itinerância da exposição de Helga Stein, em 2007, para essa cidade. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
sorrateiro, ladrão de luz, transformador, instante antes da opção derradeira, entre o último pedido e o tiro fatal, libertador, do condenado à pena capital.
Purgatório das sensações, das aspirações, do apetite, dos gozos, das crenças, da memória. Exercícios de transversalidade, encruzilhada da percepção, experimentos sensoriais.
Mortificar a existência. Sobreviver na luz cadente. Renascer na inquietação. Viver de obsessões. Impregnar a alma com incertezas. Vasculhar paisagens interiores. Fotografar passagens, hiatos, vazios. Copular com o olho excitado. Reciclar vidas mundanas. Renovar aflições. Viver. Reviver. Transcender, enfim.
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 80 x 120 cm I Foto: José Frota
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 80 x 120 cm I Foto: José Frota
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 80 x 120 cm I Foto: José Frota
Sem título I 2006 I processo cromógeno, 80 x 120 cm I Foto: José Frota
Menino que faz os sonhos1
Ivan hegenberg
– Ai, que mininu bunitu, coisa fofa da titia!
Rafaelzinho mal sabia que se chamava Rafael. Ainda estava aprendendo a pronunciar os primeiros sons e, como quase sempre o chamavam de “Mininu”, ainda estava longe o dia em que diria: “Meu nome é Rafael dos Anjos”.
– Bilubilubilubilubilu! Lindinho!
Na verdade, é Rafael das Dores, mas, com um rostinho tão angelical, os cabelos loiros charmosamente encaracolados e a pele tão branca, preferiria um nome que melhor o aparentasse, e não o dos parentes. – Vem agora com a mamãe, meu anjo, vem.
Rafaelzinho ainda não sabia que a mãe era operária de uma fábrica de cotonetes. Não tinha a menor ideia do que era isso. Não tinha a menor ideia de quanto suor valia cada papinha que devorava. Aliás, não sabia que a mãe soluçava de aflição, nem que seu nome é Maria, nem que ela estava devendo três meses de aluguel.
– Mininu gotôso! Ói que perninha gotósa de apertar!
Tão bonito esse Rafaelzinho que o sucesso com as meninas será fácil. Mesmo as riquinhas mais embonecadas vão cair na sua lábia
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de José Frota no Portfólio do ano de 2007, realizada de 2 de dezembro de 2007 a 20 de janeiro de 2008 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
nos bailes da cidade. E ele vai ser um rapaz meigo. Não muito romântico nem monogâmico, mas conhecedor das delicadezas de que as meninas gostam.
– Uma graça, não é? Lindão!
O Mininu tinha um passatempo favorito, que era brincar de carrinho. Acelerava pelos ladrilhos frios da sala, buzinava para os três vira-latas magros e de quando em quando derrapava em alguma almofada velha, poeirenta, esquecida no chão.
– Cumprimenta com a mão assim. Estica mais, assim. Isso aí, filhão!
O pai procurando emprego há anos, tentando o melhor que pode sem encontrar nada. Rafael vai demorar para aprender a ler, então não sabe o que é “jornal” e muito menos o que são os “classificados”. Dizem que seu pai é um desclassificado, mas isso ninguém da família entende muito bem o que significa.
– Você é um príncipe, filhinho. Um principezinho encantado.
E, quando levasse para casa as filhas bonitas da gente rica, veria no braço delas os pelos arrepiados. Não por tesão, mesmo que ele caprichasse nas carícias. Seriam as paredes descascadas, as cortinas desbotadas, o sofá gasto e remendado. Nenhuma delas se sentiria à vontade ali, por mais que confessassem a quase magia em seu beijo. Ele fingiria não ver problema algum. Elas diriam que ele se parece com um galã de novela e estaria tudo bem.
– Tutitutituti. Tutitutitutitutitu! Rafaelzinho ainda não sabia quanto o trabalho esgotava sua mãe. Ela chegava morta de cansaço, quase desfalecendo, era enorme seu esforço para disfarçar. O bebê era a esperança da casa, e todos combinaram que ele seria o primeiro da família a entender perfeitamente o que é essa tal de dignidade.
– Aê, garotão! Mininu esperto, assim que eu gosto!
O pai jamais contaria quanta humilhação já passou com os antigos patrões. Até cuspe na cara ele tomou quando reclamou de seus direitos. “O que foi, seu Zé Ruela? É baixar a cabeça e fazer o que eu mando. Tá me olhando torto por quê? Tu é feio demais, porra. Mete o rabo entre as pernas e pega tuas coisas. Tá despedido.”
O sol está forte. O vento que sopra ao meio-dia é muito bem-vindo, refrescante. Uma sopa de ervilhas está para sair do fogo e o aroma desperta a fome nos moradores.
– Amo demais esse gurizinho. Ele é a nossa maior bênção, né? Nós somos felizes, não somos?
– Somos, sim.
E Rafaelzinho corre pela sala, descalço, descobrindo brinquedos e inventando pequenos truques. Atrás de uma cortina ou do lado de lá da parede cabe um universo inteiro. Absolutamente tudo o que a brincadeira pode conceber é possível e real. Tesouros indescritíveis, imensos, doidos. Seres fantásticos maiores que uma casa, maiores que o quarteirão. Mesmo assim cabem em sua minúscula mão de mágico, na mão dele, menino que faz os sonhos.
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 50 x 75 cm I Foto: José Frota
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 50 x 75 cm I Foto: José Frota
Sobre Ivan hegenberg1
Nelson de Oliveira curador
Figuras anônimas em ambientes pobres. Às vezes só os ambientes, sem as figuras: uma parede manchada cheia de cartazes e santinhos, um altar. Outras vezes o homem pela metade, ou até menos: um torso, um braço, uma cabecinha na janela. Gente fazendo pose, gente passando apressada. Que gente é essa? É difícil dizer. A fotografia tem o poder de subtrair das pessoas o passado e o futuro. Nela, congeladas e enquadradas, ficam apenas a luz, as sombras e as cores do presente eterno (o momento do clique). Na prosa de ficção isso é impossível. Num conto ou num romance, a linha do tempo faz muita pressão, procurando dominar toda a narrativa. A partir da beleza estranha das fotos de José Frota, a partir dessa luz, dessas sombras e dessas cores intensas e tristes, Ivan Hegenberg constrói o passado e o futuro do presente de certas figuras que, mesmo recebendo nome e sobrenome, continuam anônimas. Para compensar a plasticidade visual das fotos, impossível de ser representada pelas palavras, o autor lança mão do humor. Ivan faz isso também para escapar da cilada mais comum na qual costumam cair muitos escritores: o sentimentalismo exacerbado. A denúncia social e o sentimentalismo, juntos, nunca deram bons resultados. Ivan sabe disso. José Frota também.
1 Nota da organizadora: texto revisto em 15 de junho de 2009 pelo curador, que optou por manter o original publicado no catálogo da exposição de José Frota no Portfólio do ano de 2007 (exposição realizada de 2 de dezembro de 2007 a 20 de janeiro de 2008 no Itaú Cultural). Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
O “mininu bunitu” que faz os sonhos, do conto de Ivan, está aí para denunciar, certamente, mas também para encantar e comover. Em torno dele, formatando sua infância e determinando sua vida adulta, estão a pobreza, a exploração e a violência. Esses três elementos são bastante frequentes na literatura social contemporânea, crua e cruel. O autor, para não chover no molhado, quebra a rotina dessa literatura introduzindo a incomum fala afetiva que também cerca Rafaelzinho. Os comentários carinhosos e cômicos do pai e da mãe evitam o clichê da criança espancada e, de quebra, criam uma bolha de afeto que torna o entorno muito mais abominável. No plano da ficção, essa estratégia legitima e fortalece a denúncia.
Sem título I 2007 I processo cromógeno, 60 x 180 cm I Foto: José Frota