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Jonathas de Andrade
Amor e Felicidade no Casamento I 2007 I instalação fotográfica I Foto: Jonathas de Andrade
Eduardo brandão1
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curador
Amor e Felicidade no Casamento é o trabalho que Jonathas de Andrade faz com a adaptação fotográfica do livro de mesmo nome. Nele, o artista articula procedimentos artísticos a uma reflexão sobre a dimensão estética e moral da fotografia.
O conteúdo do manual Amor e Felicidade no Casamento é dividido em três volumes: O Matrimônio, A Vida Sexual e Problemas Conjugais. Escrito pelo alemão Fritz Kahn, popular nas décadas de 1960, 1970 e 1980, o livro orientava a classe média de diversos países a se relacionar amorosamente e constituir família segundo preceitos morais hegemônicos da época. Tais preceitos formavam indivíduos capazes de agir com base em parâmetros simples de certo e errado.
O artista adaptou as questões do livro aos ensaios fotográficos criados dos cromos 35 milímetros do acervo de Macário, um aficionado a câmeras fotográficas e filmadoras super-8. Durante os anos 1970,
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Jonathas de Andrade no Portfólio do ano 2008, realizada de 10 de agosto a 19 de outubro, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A exposição de Jonathas é fruto de leitura de portfólio realizada em Pernambuco como resultado da itinerância da exposição da Cia de Foto, em 2008, para essa cidade. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Macário registrou a vida de sua família e eventos ocorridos no quartel em Maceió onde trabalhava. Além do tradicional álbum de família, encontram-se no acervo seus bons momentos, que ele quer mostrar publicamente por meio da representação privada.
Ao relacionar o livro de Kahn ao acervo de Macário, o artista estabelece correspondências que questionam o status da estética fotográfica e contemporiza as reflexões sobre a moral que o livro provoca. Na fotografia, a substituição do suporte analógico pelo digital acentuou a decadência e o enfraquecimento de uma tradição. Em sua obra, Jonathas faz a mesma operação também com os preceitos morais.
Ao contrário dos preceitos de Kahn, que tenta regular o erro e a surpresa, a obra de Jonathas nos faz repensar o desvio e o fracasso. A releitura do livro Amor e Felicidade no Casamento posiciona o acaso e a falência do planejado como o lugar da intuição e da particularidade.
Foto: Jonathas de Andrade I instalação fotográfica I 2007 I Amor e Felicidade no Casamento
I Foto: Jonathas de Andrade Páginas do manual Amor e Felicidade no Casamento , de Fritz Kahn, que integra a instalação fotográfica de mesmo nome
A espera do adeus1
Thiago Corrêa
O velho perguntou se estava na hora. O médico respondeu que ainda não, os exames mostravam boas condições de saúde e ele podia retomar a vida. Tentou argumentar dizendo que àquela altura não tinha mais motivos para voltar a viver, até a extrema unção ele já recebera, mesmo contra sua vontade. O médico nem ligou, foi logo recomendando uma pausa no cigarro, caminhadas no início da manhã e pílulas amarelas antes das refeições.
Dá barato? Com um sorriso, o médico explicou que era bom para a memória. Então, doutor, o jeito é continuar com o fumo, debochou, antes de dar um até logo, achando que o reconheceria novamente. Saiu do hospital sem saber aonde ir. Parou no primeiro fiteiro, pediu um maço de cigarros e uma xícara de café. Colocou três colheres de açúcar. Enquanto mexia a bebida, tentou justificar a pressa dos carros, imaginando seus encontros e destinos. Rompeu os pensamentos com a cortina de fumaça expulsa dos pulmões. Caminhou na direção contrária dos automóveis. Seguiu pelo muro branco até achar o portão de metal. Passou por estátuas, mármores e anjos para encontrar os ossos da esposa numa das gavetas do Cemitério de Santo Amaro. Acendeu outro cigarro, como se esperasse alguém. Concebeu seu próprio enterro sem lágrimas, orações e coroas de flores.
Leu nomes, viu datas, cruzes e estrelas. Teve a impressão de que aquilo um dia havia sido importante, mas já não lembrava o porquê. Sua memória mais parecia um museu de imagens corroídas, sem legenda com explicações. Fragmentos, dispersos em colônias de mofo. Sentiu que estava desaparecendo antes mesmo de os vermes provarem sua carne. Em breve, seria apenas um corpo, vinculado a histórias contadas por documentos e álbuns de fotografia.
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Jonathas de Andrade no Portfólio do ano de 2008, realizada de 10 de agosto a 19 de outubro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Deixou o cemitério com o sol se pondo. O tom amarelado da luz lhe trouxe uma nostalgia, como se lembrasse dos fins de tarde em que observavam o mar pelas janelas. No caminho de casa, com a chegada da noite, sentiria ainda mais saudade se recordasse que o bom mesmo era quando eles ficavam no sofá, prolongando o pôr do sol na parede escura, imagem tantas vezes admirada com olhares de profundo silêncio em busca do encontro entre o céu e o mar.
A parede fora preenchida por um aquário. Dele saía a única luz que revelava o contorno dos objetos do seu apartamento. O velho trancou a porta, deu comida aos peixes e foi direto ao banheiro. Lá, acendeu mais um cigarro antes de se encarar no espelho. Encontrou vários velhos, cada um refletindo novas histórias para completar os espaços em branco da sua memória. Vácuos que o separavam do dia em que conhecera a mulher de trejeitos infantis. Mas as rugas e a falta de cabelos denunciavam que ele era um só, com trajetória cheia de cicatrizes enfumaçadas, à espera do adeus.
Amor e Felicidade no Casamento I 2007 I instalação fotográfica I Foto: Jonathas de Andrade
Sobre Thiago Corrêa1
Raimundo Carrero curador
Desde os primeiros textos, Thiago Corrêa tem apresentado duas qualidades: a ironia e o equilíbrio. É claro que há muita ironia na prosa brasileira contemporânea e, por isso mesmo, se exige cada vez mais do narrador. É preciso saber chegar na hora certa, no momento exato, na circunstância precisa. É aí, justamente, que a obra dele se destaca, exibindo o equilíbrio. Por isso, é um texto que fica bem harmônico na frente do leitor.
Neste trabalho, por exemplo, tudo é feito para que haja equilíbrio entre o prosador e a fotografia, ambos de uma grandeza maravilhosa. Mas, se não houvesse equilíbrio, e ao lado do equilíbrio a sutileza, os dois não se integrariam. De forma alguma. É aí, então, que entra a sobriedade de Thiago Corrêa, com sua habilidade irônica, às vezes corrosiva – que deve ser, também, uma das qualidades fundamentais da ironia.
Assim, podemos destacá-lo como um dos autores fundamentais da nova – e até novíssima – geração de escritores pernambucanos, preparando-se para publicar uma obra que vai marcar o quadro da literatura brasileira. Cronista, ele tem também uma visão crítica da prosa, de forma que está
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 9 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Jonathas de Andrade no Portfólio do ano de 2008, realizada de 10 de agosto a 19 de outubro no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
preparado para esta missão tão decisiva na vida de qualquer pessoa: a literatura.
Para que o prosador e a fotografia estejam juntos, é preciso revelar a aproximação entre eles: uma espécie rara de melancolia, que vai se tornando tensa e intensa na crônica – ou conto? – de Thiago e que ganha contornos ainda mais definitivos na fotografia de Jonathas de Andrade. Há neles uma espécie de tristeza de fim de dia, de saudável domingo que termina, numa lição de eternidade e afeto. Creio que, juntos, eles se explicam e se justificam. Estão aqui para expor uma invejável viagem em torno do humano.
Amor e Felicidade no Casamento I 2007 I instalação fotográfica I Foto: Jonathas de Andrade
I Foto: Jonathas de Andrade instalação fotográfica I 2007 I Amor e Felicidade no Casamento
Amor e Felicidade no Casamento I 2007 I instalação fotográfica I Foto: Jonathas de Andrade