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Isaias Miliano
Isaias Miliano Isaias Miliano (Uiramutã-RR, 1971)
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Qual é a sua etnia?
ATELIÊ DO ARTISTA, EM 24 DE MARÇO DE 2015.{ { Meu pai é Macuxi, minha mãe é Patamona, que é uma outra etnia que fica entre as duas fronteiras. Eu me considero mais Patamona mesmo, acho que é onde está a veia artística e essa coisa toda. Ela até hoje é a minha inspiração. Fui saber dos meus avós, dos meus tios, todos tinham uma veia artística, então, eu acho que daí que veio. Os índios Patamonas eles falam inglês, espanhol, português e a língua patamona. São da região da Guiana, na região da fronteira onde falam várias línguas. Vira um caldeirão cultural aí, né? De línguas, de cantos, de falas. Eu nasci nessa fronteira doida aí.
Como tu começou a trabalhar com arte?
Com doze anos eu me mudei para Porto Velho, meu pai morava lá. E era muito engraçado porque meu pai queria me levar pra ver, pra trabalhar com ele, era época do garimpo lá. E eles garimpando lá e eu coletando as raízes. “Meu filho é louco! A gente aqui trabalhando e ele coletando raiz!”. Eu já tinha a veia. Conheci um mestre lá, quando eu tinha uns dezesseis anos, o mestre Ramos Oleiro, um mestre da arte. Ele ainda está vivo, acho que vive em Pimenta Bueno. E ele me deu a direção. “Olha, está aqui a pintura, escultura, madeira, cerâmica...”. Fiz cerâmica um tempão com ele, hoje eu não faço mais.
Durante três anos estive lá com ele, num barracão de arte. Ele que me indicou as direções. Depois me disse: “Olha, tá bom, tá pronto. Pode ir embora”. E aí, eu não parei mais de produzir. Hoje eu escolhi trabalhar só com madeira, pintar alguma coisa, fazer mais produção voltada para a instalação, eu gosto muito de instalação. Mas isso depois de outras trajetórias, né? Porque eu comecei isso, voltei pra Boa Vista pra desenvolver o trabalho, não consegui desenvolver o trabalho, fui para uma escola dar aula de arte, dei aula durante uns dez anos, esqueci um pouco do meu trabalho, da minha produção.
Aí, dei um tempo e passei a desenvolver só o meu trabalho: grafismo rupestre da Amazônia. Com um outro olhar, um outro tema, com os tribais, em busca das pinturas corporais dos povos de Roraima, da maioria das etnias, tentando transformar isso na plástica, trazendo para as pessoas verem, dos sítios arqueológicos também, trazendo para as galerias, enfim. Mas pra fazer tudo isso, tive que andar, viajar, pra depois jogar na madeira, na pintura. É um trabalho que eu gosto e até hoje não parei. Expus muito aqui em Boa Vista, com os artistas daqui. Foram várias exposições coletivas e individuais, aí desisti um pouco de Boa Vista e fui fazer um trabalho na bacia amazônica, de começar a expor por Macapá, Belém, Manaus, depois Brasília. Depois fui expor em São Paulo e fiquei por lá cinco anos, fazendo um trabalho de intervenção urbana também e várias coisas... com instrumentos também, personalizando, fazendo murais, tudo com esse tema. Depois resolvi voltar, de novo (risos) e voltei pra montanha, Pacaraima, desenvolvendo um trabalho de arte lá na fronteira, intervenção urbana também, mas agora com as comunidades indígenas. Oficinas em comunidades indígenas, trabalhando esse lado da madeira, da pintura, da argila... e agora voltei para Boa Vista.
Qual foi a tua relação com a madeira pra tu curtir ela e estar nela até hoje?
(Risos). Quando eu enjoei de trabalhar com cerâmica, eu passei seis meses sem produzir. Fui para as montanhas, lá para onde eu nasci, no Uiramutã, e quando eu voltei, recebi um convite para trabalhar no Senai, com madeira. E eu fui lá e tinha tudo para eu trabalhar a parte tecnológica da madeira. Tinha, na época, um tema que era chamado de Roraima Ouro Verde, que eles tinham um projeto de desmatar mesmo, transformar em pasto, detonar tudo e tinha muita marcenaria, muito lixo de serraria e eles não estavam nem aí, jogavam na rua, em qualquer lugar. E eu na época passei a fazer uma campanha de que podia reaproveitar. E era um tiro no pé, porque eu trabalhava no Senai, que era uma instituição que tinha uma serraria e uma marcenaria da federação das indústrias, e eu dentro dizendo não, que não podia fazer aquilo. Daí eu passei a trabalhar só com o cedro, que é uma madeira que já está entrando em extinção e ninguém planta, não tem nenhum trabalho científico em cima. Eu passei a dar mais atenção e desenvolver um trabalho com o cedro, porque até aí era o que mais tinha na rua, até hoje tem aí. E hoje com essa mudança, essas novas construções, eles estão reformando e jogando fora, na rua. Eu continuo coletando o mesmo cedro daquela época.
Em 2005, eu faço uma exposição grande dentro do Senai contando essa relação entre eu e o resto que vocês derrubam. Deu um choque na época, dei um tiro no pé na frente de todo mundo, pensei: “Os caras vão dar minhas contas” (risos). Mas eu não deixei eles me darem não, eu fui lá e pedi minhas contas. Em 2002, tem uma empresa de fora, chamada Neo Eventos, de Brasília, que vê esse trabalho e resolve investir. E aí, eu participo das grandes feiras da Amazônia, inclusive as de Roraima, que era a Amazon Tec na época. A empresa comprou o stand pra mim e eu vou expor e apresento esse trabalho pra sociedade roraimense e dou um susto em todo mundo, que era de que tudo que eles jogavam fora, tacavam fogo, podia ser transformado em arte, objetos de arte, decorativos, utilitários, enfim. Eu não sou contra o desmatamento, acho que tem a época certa de tirar, de aproveitar.
Então, até hoje meu tema é esse, eu conto a parte científica do cedro, pra quê ele é usado, quanto tempo dura para nascer uma árvore, de que forma... é no tempo dele. Não é você querer plantar um cedro, o cedro é raro. E aqui em Boa Vista tem todas as espécies e não tem nenhum trabalho científico voltado pra isso.
Quando tu fala que conta a história do cedro, como que você conta essa história?
Falo da parte científica, do que pode ser extraído. Perfume amadeirado... O cedro é uma madeira que pode ter várias funções e as pessoas jogam fora aqui, não tem nenhum valor agregado pra eles. O cedro só nasce no final do inverno, ele solta uma sementinha tão pequenininha, aí o vento leva, vai decidir onde vai cair essa semente, tem que ter um alagado, se não tiver um alagado ele vai morrer. Nossa, é uma história para o cedro nascer e as pessoas não dão esse valor aqui. Tem o cedro doce, o amargo, o cedrinho. Nesse trabalho com o cedro, eu pego todo esse trabalho científico, coloco para um lado, pego o tema arqueológico, dos grafismos indígenas dos povos, pra quê é usado aquele grafismo: um ritual de casamento, um ritual da roça, um ritual de guerra, um ritual fúnebre. Todo o grafismo ele tem uma linguagem pra eu poder pegar e lançar num trabalho, em um entalhe e contar a história de cada personagem que foi colocado ali. E eu estou com um tema agora chamado Mandala, porque eu uso dois temas: é um sol e uma estrela dos sítios arqueológicos daqui e em volta com os grafismos. Então, essas três semanas eu estou focado nesse trabalho, montando e remontando, e montando... e contando essa relação do sapinho com o macaco, depois com o índio que come o macaco... (risos). O macaco ele usa o sapinho, o veneno do sapinho.... (risos). Tá todo mundo ligado aí entre os três.
Como é o teu processo criativo?
Tem o exercício, né? Não dá pra chegar direto. Às vezes eu vou, mas antes eu faço alguns rascunhos pra saber se aquilo que eu quero. Faço algumas fotografias e a madeira também. Tem um processo bem lento. Pra mim fazer uma mandala, uma peça... vixe, é um ritual. Tem que dançar em volta, bolar ferramenta, acordar bem. Porque quando começo, não quero mais parar. Porque se eu parar, como é que eu vou
voltar para o mesmo ritmo? Porque depende muito do braço, da força. Tem todo um trabalho geométrico também. Antes eu riscava, hoje eu não risco. Como já estou há muito tempo fazendo, eu já levo direto. Depois, o resto é moleza pra mim. O cedro é muito macio, seco, né? Há mais de dez anos, vinte anos ali. E com os cortes precisos que eu dou, eu já tenho um tempo mais rápido de desenvolver. Às vezes eu passo dois dias para terminar uma peça. Então, nesses dois dias eu tenho que levar o processo como se eu fosse uma fábrica mesmo: tenho que acordar cedo, e arrumar tudo, e começar, e só parar cinco da tarde, seis da tarde. Aí, eu tenho uma peça pronta já. Aí, posso sair na noite e ficar feliz. No outro dia, volto porque tem o acabamento. Se é pra montar uma coleção dessa que eu tô montando, duas semanas, três semanas... todos os dias tenho que fazer força, poeira, tinta... eu só uso cera, já eliminei o verniz.
E o que te inspira, Isaias?
A natureza, né? Eu vivo envolvido com ela. Natureza. Mulheres bonitas. Agora eu estou solteiro, mas sempre rola umas intervenções românticas que inspira muito, né? (Risos). É verdade. Artistas, amigos, família. Amigos, amigos. Tudo isso me inspira.
O cedro só nasce no final do inverno, ele solta uma sementinha tão pequenininha, aí o vento leva, vai decidir onde vai cair essa semente, tem que ter um alagado, se não tiver um alagado ele vai morrer. Nossa, é uma história para o cedro nascer e as pessoas não dão esse valor aqui. Tem o cedro doce, o amargo, o cedrinho. Nesse trabalho com o cedro, eu pego todo esse trabalho científico, coloco para um lado, pego o tema arqueológico, dos grafismos indígenas dos povos, pra quê é usado aquele grafismo: um ritual de casamento, um ritual da roça, um ritual de guerra, um ritual fúnebre.
Edinel Pereira
Edinel Pereira (Mucajeí-RR, 1965)
ATELIÊ DO ARTISTA, EM 30 DE MARÇO DE 2015.{
Como que tu começou a trabalhar com arte?
Foi de lá desse município [Mucajaí] que saiu toda essa história. Porque tudo que eu via lá, eu queria reproduzir, queria desenhar. Nasci em uma família muito pobre de agricultores. Nós éramos dezoito irmãos... e eu sempre fui muito curioso, tudo que eu via, eu queria retratar. E começou a despertar isso porque na época minhas irmãs faziam curso de pintura com as irmãs da igreja e elas faziam aquelas pinturas em pano de prato. E eu era criança ainda, mas eu ia com elas pra fazer aquele borrão no carbono, pra desenhar, pra ajudar elas. Aquilo foi me despertando. Eu sempre carregava uma tinta, um pincel, levava pra casa e queria pintar. Mas eu sempre gostei de trabalhar, de pintar com as questões que a própria natureza oferecia.
Eu vim conhecer uma tela já adolescente, eu só pintava em restos de madeira, em restos de coisas vegetais, em capemba, essas coisas assim. Aí, o pessoal dizia: “Você não é um artista”. E eu ficava preocupado com aquilo. Mas depois que eu vim conhecer uma tela, eu não achei aquela maravilha.
Hoje eu continuo desenvolvendo trabalhos com reaproveitamento de resíduos porque eu não achei tanta graça numa tela. Depois que eu conheci uma tela, eu fiquei pensando: qual é diferença de uma tela pra um pedaço de papel, pra um pedaço de madeira? Hoje eu continuo fazendo. Eu pinto muita tela, mas na maioria dos meus trabalhos eu busco trabalhar reutilizando sobras de madeira, de compensado, de MDF... A última exposição que eu fiz era só sobre persianas de janelas. Eu pinto em cúpulas de parabólicas... eu gosto de trabalhar assim. Em 86 eu fiz questão de mostrar que eu era um artista e fiz questão de expor meus trabalhos na região onde eu nasci, lá onde foi que surgiu, no Mucajeí. Aí eu fui, passei um mês, eu já morava em Boa Vista, aí eu fui pra lá, fiz coleta de materiais e fiz uma exposição que o tema era Raiz, porque foi de lá que partiu toda a minha vivência, esses conhecimentos foi lá.
E tu estava falando antes que trabalhava com teatro. Como foi essa história?
É porque a gente sempre teve essa veia artística, né? Eu não tinha muito conhecimento, mas a gente fazia aquele teatrinho de igreja. A gente tinha o Grutec, que era um grupo dos irmãos e dos amigos. Enquanto meus amigos estavam responsáveis por atuar, eu era responsável pela cenografia, pelo figurino, por essas questões que era mais da plasticidade. Mas às vezes eu atuava também.
Fala um pouquinho mais desse seu trabalho com reaproveitamento de material.
Eu sempre gostei de trabalhar com reaproveitamento, porque a primeira matéria-prima que eu comecei a trabalhar na minha vida foi a areia. Meus pais não tinham condições de comprar uma tela, essas coisas, então eu tinha que trabalhar com a matéria-prima que estava nos meus pés. Até hoje eu utilizo a areia de várias maneiras, tanto em tela, em disco de vinil, garrafas, caixas. De primeiro, quando eu era criança, nem cola a gente tinha, a gente usava grude, a mamãe usava aquela goma e eu passava nos papéis de cimento, que a gente colhia pra utilizar. Meu pai era agricultor e na época não tinha saco e a gente fazia os sacos a partir das camadas dos sacos de cimento, que são várias camadas. A gente tinha que fazer os sacos pra atender os clientes. E ali eu fazia desenhos com areia, com carvão... eu sempre estava desenhando. Além de vender o produto, ia uma arte junto no saco. Meu pai falava: “Para de fazer isso menino! Tu não tem o que fazer não? Fica riscando os sacos dos clientes”. Mas eu sempre estava lá, desenhando, querendo deixar alguma marca minha. Foi daí que surgiu toda a história.
Edinel, como é o seu processo criativo?
Eu adoro desafios e adoro também retratar minhas questões regionais. A natureza, os nossos lavrados, os buritizeiros, a flora, a fauna... eu gosto muito de explorar essas questões. Mas o que vier eu tento passar pra tela. Geralmente nas minhas exposições eu não gosto de colocar só as telas, eu gosto de fazer as instalações com a temática que abrange a exposição. Desde criança eu venho desenhando e todos os rabiscos que eu fiz nas sobrecapas de cadernos e outros suportes eu guardava. Uma vez eu fui participar de um concurso e, folheando esses rabiscos, eu pensei: “rapaz acho que vou passar isso pra uma tela” e passei. E não é que eu ganhei o concurso! E era um desenho de oitenta e pouco.
E você é autodidata?
Sim, nunca tive aula. Pra não dizer que nunca tive, uma vez quando eu vim pra cá, já adolescente, minhas irmãs já estavam aqui pra terminar os estudos. Aí, tinha uma mulher dando uma aula de pintura e minha irmã mesmo que me inscreveu nesse curso. Quando eu cheguei lá, eu fiquei decepcionado porque a mulher queria que a gente fizesse só cópias! E eu acho horrível a gente fazer cópias. Por isso hoje quando eu dou aula eu não levo nada meu, porque eu gosto de ver o potencial de cada um, a parte criativa.
Qual o ambiente que você gosta de trabalhar?
Pra mim não importa. Eu gosto de pintar quando eu estou com raiva, eu gosto de pintar quando estou alegre, eu gosto de pintar quando eu estou triste... já que eu não consigo me expressar bem falando, passar pras palavras o que eu sinto, aí eu procuro passar para as minhas telas. Se estou sentindo alguma coisa, o que eu pinto ali acaba se referindo a alguma situação que eu estou passando no momento. Tem vezes que de repente vem alguma coisa, aí eu jogo na tela.
DALMIR FERREIRA
(SERINGAL BOM DESTINO, PORTO ACRE-AC, 1952)
Dalmir Ferreira
{ATELIÊ DO ARTISTA, 27 de junho de 2014. {
Fala um pouquinho de onde tu veio.
Eu nasci no início da década de 50, num seringal e foi no seringal que eu vivi os melhores anos da minha infância. Foram seis anos que eu vivi lá. Foi muito interessante, porque a despeito de que hoje, a gente que vive aqui em Rio Branco, acha que é um lugar um pouco atrasado. Não era. O seringal, o Bom Destino, ele tinha, naquela época, melhores condições do que aqui. Tem uma série de coisas que eram bem próprias daquela época e de alguma forma eu trago ainda algumas influências daquele tempo. Algumas vezes eu me pego, não sei se é a idade que tá chegando, eu me pego pensando em algumas coisas que eram muito interessantes naquela época, naquele tempo. No seringal havia um costume em casa de vestir o bule com uma vestimenta de frio
que depois eu soube que era para conservar o calor do café, do chá, e aquela vestimenta transformava o bule num galo, numa coisa assim, e aquilo mexia com a minha criatividade, mas eu ficava, principalmente, divertido com aquilo.
Como que tu começou a trabalhar com arte?
Foi quando eu estava em Manaus. Nós chegamos em 58 e em 60, eu comecei a fazer um curso de arte, porque foi uma espécie de castigo e ao mesmo tempo de aposta que o papai fez. Eu desenhava muito bem. Uma vez eu desenhei uma barata que o papai tentou matar na parede e era um desenho... aí ele descobriu que eu estava querendo fazer um curso na Escola Panamericana de Artes, era um curso por correspondência. Porque em Manaus tinha muito pouco cursos de arte. Não sei se você sabe, mas o Brasil era Brasil e a Amazônia não era Brasil. A Amazônia era de Portugal. Foi uma Carta Régia que integrou a região norte ao Brasil. Belém era a capital do Grão-Pará. O Grão-Pará não prestava contas ao Rio de Janeiro, prestava contas à Lisboa. E os portugueses não tem muita fama de terem desenvolvido as artes. As artes que eles desenvolveram foram as humanidades. Eles desenvolveram muito a poesia, essas coisas, mas as artes visuais, eles fizeram, mas não com o viço, com o esplendor que outros países encontraram. E eu acho que isso se estendeu pra cá, porque de alguma forma a região norte não tem como qualidade grandes expressões, embora, claro, tenha. A arte que foi grande destaque foi a fotografia. A fotografia se desenvolveu num nível tão grande em Belém que era melhor do que em qualquer outra região do país. Os melhores laboratórios de fotografia estavam em Belém e não no Rio, em São Paulo.
Eu sempre gostei das artes. Das artes visuais, principalmente, porque foi a que eu desenvolvi mais precocemente. Mas tem as outras também. A poesia, eu adoro poesia, leitura. Uma das áreas que eu me interesso muito é a memória, patrimônio histórico. A gente sabendo de onde a gente vem, com certeza a gente sabe para onde vai.
O que eu deveria ter feito era ter ido para um lugar mais evoluído, onde talvez eu tivesse desabrochado com mais vigor. Eu já estive por aí. Já estive muitas vezes fora daqui. Estudei em São Paulo, mas nunca me passou pela cabeça em me radicar efetivamente fora daqui da Amazônia. E na Amazônia eu andei muito, na época de topografia eu andei muito. Eu não sei. Eu acho que eu aprendi a gostar daqui. Mas na área cultural eu gostaria que a gente tivesse mais do que a gente tem. Eu gostaria de ver o Teatrão funcionando, eu gostaria de ver uma galeria aberta, eu gostaria de ver uma biblioteca não tão bonita assim, mas com um acervo... uma biblioteca o que ela tem de bonito são os livros.
Como é o seu processo criativo?
De alguma forma, eu tenho várias motivações que se diferenciam. Por exemplo, eu tenho época que eu tô escrevendo poesia e não tem espaço pra pintura, e raramente eu pego em uma caneta para fazer esboço. De
qualquer maneira, não tem uma semana que eu não pegue e faça, por uma questão até de obrigação. É muito complicado a gente não ter uma cobrança, porque quando a gente não tem uma cobrança, a gente simplesmente não faz. Quando tem um concurso, quando tem uma exposição, quando tem um convite, quando tem um amigo que te pede para fazer um trabalho sobre um dado assunto, ou algo assim, eu fico satisfeito e ao mesmo tempo preocupado porque normalmente a gente tem prazos. Ajuda muito você ter essa obrigação, ter quem cobre de você. É isso que faz o artista, é o compromisso de ter que fazer alguma coisa. Já corri pra fazer portfólio, para participar, e no final das contas eu sabia que eu estava fazendo só para aproveitar a oportunidade, eu sabia que não ia passar, não ia dar em nada, mas eu faço assim mesmo. Tem muitos que simplesmente eu olho, tem toda a possibilidade, e eu digo “não, eu não vou fazer. Não vou fazer porque eu não quero”. Quando a idade vai chegando, aí você já começa a ficar enjoado com você mesmo. “Eu não vou pintar isso aí não. Estou com um livro aí que é uma beleza, eu prefiro ler”. A vontade de fazer alguma coisa passa. A gente não está aqui para esperar. Ninguém vive de espera. Eu não sei esperar nada, eu sou muito esquentado. Se a gente tem algo a fazer, ou a gente faz ou vai fazer outra coisa. Mas esperar é uma coisa muito ruim. É assim que eu sou em termos de me preparar para fazer alguma coisa.
Um trabalho de arte nunca me leva a vida toda. Ele me leva até uma semana antes. Eu tenho que escolher um tema e deixar tudo preparado, porque em uma noite eu sei que faço, eu sei que pegando com dedicação eu faço, eu sou capaz de fazer. É difícil, mas se ela estiver na cabeça eu faço. Se eu ensebar demais... o tesão de uma pintura pra mim é a feitura e não o produto final.
Eu gosto da arte contemporânea. Gosto. Embora não suporte a carga de enganação que ela trás. Muita coisa que não é nada. Que não exige esforço nenhum e que acho que nem quer dizer nada. Mas como é que a gente vai saber que uma coisa não quer dizer nada, né? (risos).
Eu sempre gostei das artes. Das artes visuais, principalmente, porque foi a que eu desenvolvi mais precocemente. Mas tem as outras também. A poesia, eu adoro poesia, leitura. Uma das áreas que eu me interesso muito é a memória, patrimônio histórico. A gente sabendo de onde a gente vem, com certeza a gente sabe para onde vai.
Ivan Campos
IVAN CAMPOS (RIO BRANCO-AC, 1960)
Conta pra mim essa história de novo Ivan, agora gravando.
A arte entrou na minha vida por intermédio da minha mãe. Porque na época que eu tava internado ela desenhava no forro das carteiras de cigarro, aí ela me dava. Desenhava muita mulher pelada, tomando banho dentro de bacias. Minha mãe desenhava bem mulher pelada. Minha mãe nunca estudou desenho, é uma coisa que vinha com ela, né? Ela ia desenhando e me dando. Eu tinha um pacote assim de desenho e ficava vendo aquelas mulheres peladas, eu tinha oito anos de idade e tinha aquilo comigo. E aquilo veio ficando comigo. Quando eu saí do hospital - eu fiquei nove meses internado com tétano, quase morri - já saí com aquela vontade de aprender a desenhar. CASA-ATELIÊ DO ARTISTA, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2014.
E eu gostava também de ler gibi. O meu irmão disse que quando eu aprendesse a ler, ele ia me dar gibi. O primeiro gibi que eu ganhei foi um tal de Brasinha, não sei se tu conhece o Brasinha. É um satanazinho que anda de tridente e fraldinha. Aí, eu passei a gostar de desenho e história em quadrinho e aquilo me motivou muito. Foi quando eu comecei a desenhar pra minha mãe bordar. Desenhava muito caju e tomate pra ela bordar. Aí nesse tempo, eu fui pegando mais conhecimento de desenho, eu fui estudando com outras pessoas. Eu estudei com o Jaider Damasceno, foi um dos caras que me iniciou, hoje ele nem pinta mais. Eu só trabalhava em preto e branco. Eu vim começar a trabalhar com cor, eu já tinha vinte anos de idade. Eu até tenho assim que evoluir um pouco dentro da pintura, na cor, tá muito atrasada pra mim, a minha evolução, pra onde eu quero chegar. Eu estou fazendo outros trabalhos com figura humana, aí eu faço outros estudos em cima disso. Porque pra mim é fácil pintar o meio ambiente com a luz que o meio ambiente dá, agora trabalhar como trazer aquilo ali já está sendo mais difícil. Requer muito estudo acadêmico, essas coisas todas, e eu nunca frequentei uma academia de Belas Artes, eu venho “pingando por cima da pedra”, só pela força de pintar mesmo, entendeu?
Tu quer que fale o que é arte pra mim? Porque assim, arte pra mim é uma coisa muito profunda, não é simplesmente pegar umas tintas, um pincel, um pano e... quer dizer, a arte, ela não tem um caminho apontando, a pessoa é que vai escolher um caminho ali dentro da arte pra... Tu tá entendendo o que eu quero dizer? São várias ramificações que a arte tem, né? Dentro da pintura, então...
Tu tem uma pintura de bota, né? Qual que é a história?
Tenho. Tá até com o Danilo [de S´Acre] essa pintura. Um colega meu chegou e disse pra mim: “Rapaz, tu só pinta com essas tintas de tecido aí, mas tu não pinta com óleo não. Tu não sabe pintar com óleo não. O óleo é que é o material dos grandes pintores”. E virou as costas e foi embora. E eu fiquei com aquilo na cabeça. Aí, fui na rua e comprei umas bisnagas de óleo, aí fiquei olhando pras bisnagas... “o quê que eu vou pintar com isso?”. Aí, olhei e tinha um par de botas meu na porta da casa. Aí eu pensei: “vou treinar com essas botas”. Eu gosto muito de botina, quanto mais velha pra mim melhor. Aí, comecei a pintar, pintar, aí por trás tinha uns tênis dos meninos, aí começou a entrar a luz do sol pela porta, era de manhã cedo, bem cedinho. Aí, aproveitei a cena e pintei. Aí um dia o Danilo foi lá em casa e gostou. Aí me convidou pra uma festa na casa dele e eu não sabia que era o aniversário dele. Aí eu cheguei lá e todo mundo trazendo presente pra ele. Eu fiquei assim... voltei pra casa e contei pra Ana. Aí ela disse: “rapaz como tu faz uma coisa dessa? Leva aquelas botas que tu pintou que o Danilo também gosta de bota”. Aí ficou lá com ele. Tu chegou a ver?
Cheguei sim.
Ficou bonita?
Ficou sim.
Foi mesmo? Rapaz, o Danilo vasculha muito a internet. Por lá ele achou uma pintura do Van Gogh e disse: “Rapaz, é idêntica a que tu pintou”.
Mas eu nem sabia.
Ivan, o que te inspira a pintar?
Talita, esses dias tem sido assim tão seco, deserto pra mim. Tá ficando tão seco e deserto pra mim na pintura. Eu não tenho mais tanta inspiração como antes. Eu pinto assim mais por força de hábito. Anteriormente, a gente mais jovem, tinha uma série de coisas que traziam evolução pra mim, inspiração... O universo que eu vivia era tipo um vulcão, sempre em erupção, saía pra piseiro com outros, bebia, aquela coisa toda. Então, aquilo também favorecia de uma certa forma. Eu chegava em casa com a cabeça fervendo e ia pintar e tudo. Mas hoje em dia eu tô mais seletivo pra me inspirar e tudo. Eu tenho vontade de fazer pintura no sentido de pinturas angelicais, essas coisas. Eu nunca pintei uma Santa Maria, eu nunca pintei um São José. Pintura ambiental pra mim já é uma coisa bem desgastante, eu não tenho mais aquele gás. Eu acredito que o que tinha que fazer de pintura ambiental eu já fiz. Tu me perguntasse o que me inspira na pintura, né? Pra mim agora é só a vontade de pintar. A força de vontade pintar é o que me traz inspiração.
Tem um horário específico que tu gosta mais de pintar?
Rapaz, a minha família estranha se eu não estiver pintando. Eu estou toda hora pintando. Eu pinto todo dia da minha vida, é muito raro o dia que eu não pinto. É como vestir roupa. Se eles me virem nu, vão me estranhar, é a mesma coisa de me virem sem pintar. Tá entendendo o que eu tô falando? Bem, na verdade, se eu puder escolher eu gosto de manhã, quando o sol tá saindo. É uma coisa mágica pra mim quando o sol está saindo.
Como é o teu processo criativo?
Na verdade quem me direciona é o próprio trabalho. Eu não faço o que eu quero,não. É o que o trabalho vai dizendo que eu tenho que fazer. Às vezes eu fico puto com isso. Às vezes eu quero pintar uma flor e a flor não aparece, aparece um mato diferente. Quero pintar um inseto e saí um passarinho. Porra, eu nunca mando na minha pintura! Às vezes eu fico pensando que não sou eu que estou pintando, é uma outra força, uns outros seres que talvez movam os braços da gente. Eu fico pensando que pra fazer um movimento de braço tem muita coisa que faz aquela energia... né? Habitam muitas coisas dentro da gente.
Como é o ambiente que tu gosta de pintar?
Como eu sou um pintor familiar, pinto em casa, eu já me acostumei com mulher, filhos passando pra lá e pra cá. Agora, se tiver uma outra pessoa, tu acredita que eu já me fecho mais? Uma pessoa alheia. Agora, eu gosto de pintar ouvindo música, eu mesmo faço a seleção.
Que tipo de música tu gosta de ouvir?
Música instrumental. Mas ultimamente eu tenho gostado mais de música pro lado espiritual... vou ficando mais velho e já tenho que me preparar pra quando sair daqui (risos). Vou mais pro lado espiritual, que fala de Jesus, essas coisas e tal. Não dispenso as outras não, mas agora eu ouço mais esse lado aí, acredita?
Tu falando isso, eu lembrei que as pessoas dizem que as tuas pinturas parecem mirações do daime. Tu se identifica com isso?
Eu bebi tanto daime na minha vida que eu sinto que tá entranhado um pouco. Quando eu conheci o daime, foi na mesma época que eu comecei a trabalhar com pintura. Interessante isso. Mas eu não pinto quando eu tô em transe, não consigo mesmo, acho que nem dá. Fica lá ligado naqueles negócios, não dá pra pintar não (risos). Agora não vou dizer que não me auxiliou, porque tudo é experiência, de tudo a gente tira ensino, não é verdade? Fica a critério de quem vê a pintura e também tem a experiência com daime. Eu não bebo daime pra ficar doidão. Eu bebo pra vasculhar a minha consciência. Escavacar o que tem que escavacar e cobrir outras.
Tu quer que fale o que é arte pra mim? Porque assim, arte pra mim é uma coisa muito profunda, não é simplesmente pegar umas tintas, um pincel, um pano e... quer dizer, a arte, ela não tem um caminho apontando, a pessoa é que vai escolher um caminho ali dentro da arte pra... tu tá entendendo o que eu quero dizer? São várias ramificações que a arte tem, né? Dentro da pintura, então...
Simone Bichara SIMONE BICHARA (RIO BRANCO-ACRE, 1965) {
ESPAÇO GAYA, EM 9 DE SETEMBRO DE 2014. {
Fala um pouquinho da tua história, Simone.
Eu sou acreana do pé rachado, como o povo aqui costuma dizer. Sou filha de boliviano descendente de espanhol com sírio libanês. Desde criança eu sempre tive uma conexão muito forte com a floresta, sempre gostei das artes e pintava desde pequeninha. E isso veio da minha mãe, porque ela sentava com todos os filhos pra desenhar, pra pintar. E não só daí, eu tenho dois irmãos que pintam, que desenham. Com dezoito anos, quando eu fui trabalhar na Comissão Pró-Índio, depois na Funai, e entrei nas aldeias muito nova, sem falar nenhuma língua indígena e os índios também, naquela época poucos falavam português, só as lideranças, os professores e os monitores. E quando eu cheguei na mata, aquele silêncio, aquele povo maravilhoso e aquela energia fortíssima da floresta e eu sem falar a língua deles e eles sem falarem a minha língua, era muito silêncio mesmo, fora o silêncio da mata, você fica muito ali no centro da força da floresta. Então, eu comecei a ver, eu dei uma pirada, comecei a ver aqueles círculos completos, eu via inteiro, completo, com cores, formas, tudo. E como eu me envolvi muito com os índios, e os índios fazem os mariris, as festas, e nas festas tem as
pinturas e daí eu já comecei a pintar com eles, aprendi a pintar, a fazer os kenês, e pintava os índios e eles me pintavam. Foi uma sintonia muito forte. Eu achava que estava vendo o sol como o índio via, porque eu não conhecia a palavra mandala. Depois de muito tempo eu fiquei uma temporada em Brasília, pintando, e a Keila Diniz olhou um trabalho meu e disse: “nossa, você está pintando umas mandalas lindas”. Então, pela primeira vez eu escutei a palavra mandala e eu fui pesquisar. Eu acho que meu trabalho vai além do que é uma mandala. Se você pegar uma mandala tradicional tibetana, o meu trabalho vai além. O meu trabalho é em círculo e por isso as pessoas chamam de mandalas e eu mesma comecei a autodenominar de mandalas. Mas o meu trabalho é extremamente acreano, amazônico, florestal, brasileiro e todo centrado mesmo na energia da floresta, dos povos tradicionais, dos povos indígenas. E eu vejo também que tem uma conexão com a África, que é uma coisa muito forte em mim, na minha natureza. Eu costumo dizer que eu sou negra sim, eu me considero negra, eu não sou branca. E tenho essa profunda conexão com a Mãe África, é o berço da humanidade.
E às vezes eu sinto que tem alguma coisa oriental, por ser em círculo, até pela minha descendência. Às vezes é como se eu pintasse vitrais em madeira. E aí assim, fiz minha formação holística de cinco anos em Brasília, em 96, e a conclusão do meu curso foi uma mostra de cinquenta obras, mais um projeto chamado Mandala Terapia. De lá pra cá, eu venho realizando muitas exposições em vários estados brasileiros e no exterior. E eu não pinto só em círculo, o que eu faço, eu faço em qualquer formato, só que eu adoro o círculo, é difícil sair do círculo pra mim. Se você observar, quase tudo no universo que é poderoso e essencial à vida é em círculo: os planetas, o nosso olhos, os orifícios do nosso corpo, a roda, o poço... O círculo realmente é uma forma de poder, é uma forma de cura. A proposta essencial desse trabalho é levar para o mundo a energia da floresta. Antes de qualquer coisa, é isso. É chegar no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e colocar essas obras para aquelas pessoas que vivem naquele mundo tão urbano, tão concreto, tão de correria, tão de loucura, elas poderem ali, a partir daquela visualização, das formas, das cores, respirar e fazer a conexão com a floresta física e com a floresta sagrada.
E como é o teu processo de trabalho, desde a ideia até a feitura da obra?
Eu tenho mania de reaproveitar tudo, eu não consigo jogar as coisas fora. Não é de apego, é porque eu acho que tem tanta gente precisando, porque eu vou estragar? Eu pensei: “poxa, já que eu gosto tanto dessa coisa de reaproveitar e o papel usado ele não tem valor comercial, valor artístico, o quê que eu poderia estar utilizando para também estar colaborando com essa questão da sustentabilidade?”. Aí me veio a coisa da madeira reciclada. Aí eu pinto na madeira reciclada. Tudo que eu faço é autodidata. Então a proposta, além de levar a energia da floresta, eu digo pro mundo que o tanto de mata que já foi derrubada a gente não precisa derrubar mais. Tem terra suficiente pra plantar e muita madeira
caída no chão que você pode reaproveitar. A ideia é mostrar aquilo que eu faço, que eu recebo, porque, às vezes, eu deito e vejo a obra inteira, eu fico doidinha. Se a minha mão acompanhasse a velocidade da minha mente, eu teria trilhões de obras. Eu sou rápida, mas o meu trabalho é demorado. Eu não sou uma artista que pinta uma obra em um dia, uma semana. A maioria das minhas obras são de dois, três, oito meses. Eu sou rápida, mas é um trabalho muito minucioso. Então assim, é através da beleza, da arte, tocar as pessoas pro simples, pro belo, pra natureza, pra importância da floresta, dos povos tradicionais e a questão da reciclagem e do compartilhar.
Além do teu trabalho como artista, tu mantém aqui o Espaço Gaya.
Uma grande paixão minha desde pequena foi essa coisa da cura. Não é que eu seja uma curandeira, uma xamã, mas eu sempre tive essa fé, essa fé muita forte em Deus, nos seres da floresta, porque eu cresci vendo esses seres. Tinha uma mulher que ela ia na janela da casa da minha mãe todos os dias, com uma onça pintada, e ela levava leite pra gente tomar. E não era uma loucura da minha cabeça, porque meus irmãos lembram da mesma coisa. Eu cresci vendo caboclos, esses seres encantados, a rainha da floresta, para qual eu tenho uma verdadeira devoção. Mesmo fazendo faculdade de história, eu fui fazer holismo e depois fiz várias outras formações em renascimento, massagem ayurvédica, yoga, inúmeras coisas. E eu sempre soube que um dia eu ia ter um espaço que ia ser pra arte, pra educação e pra cura. A proposta essencial desse trabalho é levar para o mundo a energia da floresta. Antes de qualquer coisa, é isso. É chegar no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e colocar essas obras para aquelas pessoas que vivem naquele mundo tão urbano, tão concreto, tão de correria, tão de loucura, elas poderem ali, a partir daquela visualização, das formas, das cores, respirar e fazer a conexão com a floresta física e com a floresta sagrada.
Danilo De S’Acre
danilo de s’acre
CASA-ATELIÊ DO ARTISTA, EM 18 DE ABRIL DE 2015.{
Como começou seu interesse pelas artes?
Acho que desde criança, esse universo criativo, né? Eu tinha esse contato com a natureza, com as selvas, eu me sentia muito observador. Observava muito as plantas, as nuvens, principalmente os insetos, os animais e a beleza da natureza. Acho que isso me influenciou muito. Depois demonstrei uma certa facilidade pro desenho, utilizava materiais bem primários mesmo, carvão, terra, areia, barro e comecei assim. A gente não tinha muitas condições de materiais, então a gente inventava, usava pasta de dente, mercúrio, coloral... os pincéis era aquele talinho de capim que a gente batia e fazia pincel. Era muito primário, praticamente pré-histórico (risos).
E quando tu começou a querer realmente trabalhar com arte?
Ainda na adolescência. A gente veio pra cidade, aí já conheci outros artistas, outras pessoas que trabalhavam com arte, um ajudava o outro. Conheci o Dalmir Ferreira que já batalhava nas artes, conheci o Genésio Fernandes que me ajudou muito, me dava dicas, tintas, e a Universidade Federal que ajudou a gente no departamento de extensão. Naquele tempo não tinha internet, a TV estava chegando e livro de arte quase não tinha. Eu fui para Brasília quando tinha dezoito anos, terminei o segundo grau lá, fazia exposições já. Entrei no teatro amador. E naquele tempo tinha muito disso, teatro amador era um núcleo que tinha gente que cantava, gente que era poeta, artistas visuais, era bem legal isso. O grupo de teatro agrupava muita gente de vários segmentos. Depois de dois anos voltei para o Acre, entrei pro Grupo Semente e fiquei militando no campo das artes. Em 1980 trabalhava na UFAC, fui despedido e fui para o nordeste, Recife e João Pessoa. Fiz algumas exposições por lá, mas fiquei pouco tempo, porque minha meta era ir pra Itália. Depois fui pro Rio de Janeiro e do Rio fui para Itália. Fiquei treze anos lá. Dormi na rua, passei fome, mas depois dei a volta por cima, conheci umas pessoas e as pessoas ajudam sempre e isso é muito bom. Sempre tive boas pessoas no meu caminho. Me interessava muito esse contato com as pessoas, com artistas de vários lugares do mundo, acho que isso me enriqueceu muito. E a leitura, ver, visitar museus, visitar exposições, acho que isso traz para o artista uma capacidade muito maior de investimento no próprio trabalho.
Eu sou um canibal de imagens, gosto muito de devorar imagens. Devorar e vomitar essas imagens.
Como costuma ser o ambiente que tu gosta de trabalhar?
Eu já trabalhei na rua, já fui muito exposto trabalhando na rua. Não gosto assim, de muita gente diferente vendo o meu processo de trabalho. Mas não tenho nada contra. Eu gosto de trabalhar em casa, com bagunça mesmo. Me concentro ali, gosto de ouvir música sempre enquanto trabalho e gosto do ambiente caseiro, a bagunça dos meninos, gente falando... bagunça doméstica, isso me dá uma certa segurança. A solidão também gosto, mas já me acostumei com esse dinamismo familiar e usar a casa como ambiente de trabalho mesmo. Tem o ateliê,
mas eu nem dou muita bola pro ateliê. Prefiro pintar dentro de casa.
Antigamente eu acreditava em inspiração. Hoje não. Inspiração pra mim é você ter um insight pra começar e fazer. Inspiração é você pôr a mão na obra. Porque vai sair alguma coisa, mesmo que você não tenha noção do que vai ser. Ultimamente, eu tenho trabalhado mais com abstrato, então não sei de cara o que vai sair. É mais espontâneo, vai saindo com o tempo.
Acho que o nosso universo aqui do Acre, a gente vive na Amazônia, desse calor tropical, acho que isso tem uma energia muito grande, os povos indígenas daqui, a cultura ribeirinha, a cultura indígena, a cultura da Amazônia, acho que isso dá muita bagagem para a criatividade. Acho que o artista amazônico, ele tem um quê de diferente. A gente ainda tá meio amarrado, a gente vive naquela coisa de não se soltar muito. Deve ter cidades mais desamarradas, que já saiu um pouco dessa coisa. Mas o amazônico, ele ainda vive essa coisa de ser bairrista, e a gente tem que ser mundial, universal. Fica muito naquela coisa regional e isso atrapalha um pouco. Não que eu não goste, eu gosto, mas acho que você tem que saber usar esse regional de uma maneira mais universal, pra alcançar outras linguagens, outros lugares.
Tu quer falar mais alguma coisa?
Antigamente eu ficava naquela “não sei qual é meu estilo, não sei qual é minha escola” e eu ficava em crise porque tinha que ter um estilo, tinha que ter uma corrente. Agora eu me acho tão livre que pra mim eu posso fazer o que eu quiser. Não vou ficar preocupado com isso e vou viver sempre em crise. Porque é tão bom a gente viver em crise nesse sentido da criação, né? Porque você tá sempre buscando outras coisas e inventando coisas diferentes e isso é bom, né? Faz parte do universo criativo. A minha crise é no sentido de produzir coisas diferentes, ficar buscando coisas e sempre aprendendo. E no final a gente não sabe de nada. A gente vai embora e não aprendeu quase nada. E vai ser sempre assim.