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Um relato de como

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DOS AUTORES

DOS AUTORES

mito imaginário através de narrativas domésticas

Um grande cocar de penas de araras vermelhas e azuis; pulseiras e tornozeleiras de fibras vegetais trançadas; diversas sementes coloridas; apitos de madeira que assobiam pássaros. Em minhas mãos, arco e flecha. Um chocalho de cabaça em punho e uma saia de palha e penas na cintura da minha irmã. Esta é uma das primeiras imagens que consigo trazer à memória da minha infância em torno de quatro anos de idade. Com essas indumentárias originários de aldeias indígenas da Amazônia, brincávamos de índios eu e Maíra. Nós dois nascemos em Manaus na década de 1970, por um desvio do acaso, enquanto nosso pai integrava a primeira turma de mestrado em Ecologia do Brasil, e nossa mãe pesquisava a flora amazônica e tinha filhos. Juntos vivemos em um dos alojamentos destinados a estudantes do Inpa – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. À época, a instituição ficava afastada do centro da cidade e tinha a mata bem próxima; de certa forma nossa casa era poeticamente limítrofe: tendo a frente voltada para a cidade e os fundos para a floresta. E essa situação muito própria rendeu grandes experiências à nossa família e histórias a contar ao longo dos anos subsequentes.

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A certo momento do dia, de supetão aparecem dezenas de insetos, aracnídeos e pequenos rastejantes que, com velocidade, simplesmente passam. Tão rapidamente e na sequência, um “tapete” de formigas invade toda a casa, ganhando terreno pelo piso, móveis, objetos e, inclusive, o berço em que eu dormia. Todos recomendavam à minha mãe aflita: “Não tente tirar o menino, simplesmente feche o cortinado que elas passam!” Exatamente assim, por cima do berço passaram enquanto eu dormia. Outra vez, apavorada, minha mãe se tranca no banheiro comigo. Atrás de nós dois um macaco corre a fim de tomar minha mamadeira. Minha mãe grita enquanto o animal estica o braço entre a fresta da porta fechada tentando alcançar-nos.

Assim, surpreendentes e exóticas histórias se somam, como tucanos comendo à janela da cozinha, lentas e curiosas preguiças no terraço, etc. Contudo, minha memória não dá conta do passado vivido no Amazonas. Aquela imagem que tenho dos “indiozinhos” não era em Manaus, mas em Recife, para onde me mudei com apenas dois anos de idade. E em Pernambuco cresci fertilizando a imaginação com aqueles “fatos” que teria vivido tão próximo aos rituais da natureza. Nos anos que se seguem, cresce a expectativa de um dia conhecer aquele lugar ao qual eu pertencera, mas que ainda não me pertencia. Uma promessa do meu pai dizia que ao Norte voltaríamos quando eu completasse doze anos. A irregular situação financeira da família obrigou a postergação dessa viagem para os quinze anos, depois aos dezoito... até nunca se concretizar.

A Arte Como Pretexto

As pessoas viajam para ver o que já sabem que vão encontrar 2

Mover-se em busca de experiências em outras paragens, a fim de (re)conhecer paisagens, culturas e histórias distintas, é o que motiva pessoas em deslocamento no mundo inteiro. Por outro lado, as conhecidas imagens icônicas de sítios distantes são publicadas ao redor do mundo, tornando tais lugares, monumentos e pessoas, de alguma maneira familiares. E, em busca dessas “memórias públicas” de um lugar em que nunca estiveram, seguem os ávidos turistas. Uma vez em seu destino, só dependerá do interesse individual a decisão de tão so- mente consumir o já esperado, ou se permitir aproximações mais intensas com cada realidade singular local. E assim vou eu, “turista” em minha própria cidade natal, após 32 anos de expectativas e construções de prováveis estereótipos, seja por relatos e fotografias da família, seja por “imagens postais” que nos chegam de várias maneiras.

No sentido de remontar uma história em parte nunca vivida, convido o meu pai para a minha primeira viagem de retorno ao Amazonas; ele que também não voltara àquelas terras havia décadas. Muitos e emocionantes reencontros se sucederam. Nos laboratórios do Inpa e salas de aula da Ufam, estranhamente o fato de os colegas de profissão dos meus pais terem me visto de fralda, parecia credenciá-los a tios legítimos. Próximo dali, para minha surpresa, a casa que me recebeu bebê, embora desgastada e servindo como sede à Associação dos Servidores do Inpa, permanece praticamente inalterada, ainda com mata chegando aos fundos. “Reconheço” o piso avermelhado, a escada de cimento, as janelas, o terraço. Meu pai aponta para um canto do quarto, e lá pude “ver” meu berço e as tais formigas. Sigo em direção ao banheiro e, mesmo três décadas depois, a porta desnivelada ainda é a mesma - de fato pela fresta de baixo seria possível passar o braço de um macaco brincalhão.

Jornada Linha Do Horizonte

O artista não “tira” fotografias, ele “faz” fotografias 3

Provavelmente, um artista/fotógrafo viajante, a propósito de executar um trabalho, se diferencie de um turista clássico pela possibilidade de converter a habitual contemplação em ação e em imagens potencialmente incomuns, reveladoras, questionadoras, etc. Com vocabulários próprios e vivências imersivas, tomamos para si um território novo que se apresenta como um laboratório de inúmeros estímulos visuais e sensoriais. Para além da observação e do mero registro de passagem, nos permitimos relacionar e intervir no estado das coisas, seja com uma atitude direta, seja através de uma forma de ver e apreender, deslocando o trivial. o choque com o esperado

Foi com essa espécie de álibi de seguir vontades e fazer o que desejasse que procurei ser ativo ao longo dos meus sucessivos encontros com a Amazônia. Uma vez sozinho, permiti que minhas viagens fossem cada vez mais longas e mais distantes. Assim me lancei para muito além do Inpa, do Teatro Amazonas, do comércio da capital, e fora do encontro das águas e seus turistas. Depois de horas entre balsa e ônibus, aporto, em um dia de semana, no município de Novo Airão, às margens do rio Negro, uma porta de entrada ao arquipélago de Anavilhanas. E, quando se está sozinho e sem agenda, formulamos novas impressões sobre o tempo. Mais radicalmente, quando estamos sozinhos na linha do horizonte, passamos a nos relacionar de outra maneira com o espaço, sobretudo ao perceber o quanto somos ínfimos especialmente na magnitude amazônica.

Sim, estava tudo lá. A vibrante luz equatorial que obriga qualquer cor a ser mais cor, o sublime por-do-sol, o riomar, o “céu-que-desaba”, as árvores-arranha-céus, as araras multicor, os botos cor-de-rosa, os peixes “pré-históricos”, os macacos de mil e uma identidades, enfim, tudo mais ou menos como o descrito e apresentado por outros, mas agora diante dos meus olhos e disponíveis ao meu corpo, sob minha interpretação. A sensação de encontro é excitante e estimula o desbravamento. Não houve hesitação ou espera; em poucas horas já provocara contato com pessoas, com o rio e com a mata. Alguns quilômetros percorridos a pé, tantos outros de bicicleta ou de jangada, e logo parecia que eu iria conter aqueles lugares. Então fui indo mais longe, muitas horas de viagem rio adentro em busca de novas paisagens, do que eu ainda não tivesse visto. De fato, alguns recantos distintos em beleza incomum se apresentam. Encontros esporádicos com caboclos ribeirinhos tornam esse laboratório mais vivo e trazem uma experiência mais humana à predominância natural. E assim os dias transcorrem, ou escorrem no lento tempo das águas. O que é grande torna-se imenso. O que é lento torna-se infinito. O que é espaço perde-se na imensidão. o momento crucial Espaço e tempo para nada, só para estar lá. Mas sei que “derivar sai mais caro”. Porque demanda mais tempo, demanda mais dinheiro para estar, para parar, para “nada fazer de produtivo”. Também “sai mais caro” porque atenção, percepção requer envolvimento, algo que, algumas vezes, estamos desacostumados a empenhar.

Após algumas semanas e muitas viagens, a repetição da paisagem passa a me intrigar. Do ponto de vista do interior do rio, toda margem por entre as ilhas parece modulada no mesmo padrão. As “estradas líquidas” são inúmeras, mas praticamente só diferem na largura. Então me surge a oportunidade de embarcar junto à equipe técnica do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a partir de Manaus, em uma viagem de mapeamento e monitoramento pelo rio Negro e seus afluentes, com parada no município de Barcelos. Uma fantástica travessia de dois dias num avião monomotor anfíbio, realizando pousos estratégicos em bases flutuantes do instituto ao longo do rio. Sem dúvida as paisagens são estonteantes e cada ângulo descortina uma nova “foto/pintura”. Porém, olhar aquilo tudo de cima só reforçou a angustiante sensação abismal que tive de uma certa repetição infinita.

Livrar-se da encruzilhada da perplexidade foi um desafio para uma pretendida atuação artística na imponente Amazônia. Será que existe a possibilidade de qualquer ação artística não ser encapsulada por tal grandiosidade e magnitude da paisagem? Como ressignificar o lugar artisticamente em um ambiente já tão “pronto” e naturalmente poderoso de sentidos? Apropriar-se de quê exatamente, posto que infinitas são as possibilidades que se entrelaçam? Como construir esteticamente quando estamos rodeados por tão eloquentes visualidades? É possível um indivíduo sozinho pretender ser tão notável quanto a exuberante natureza que o circunda?

Bem sabemos o quanto a crise em um processo criativo é necessária. As chamadas “entressafras” criativas são inevitáveis para a maioria dos artistas e se constituem em saudáveis e valiosas pausas, que podem abrir espaço para a autocrítica e a entropia em seu fazer artístico. Às vezes é preciso parar e deixar que o mundo passe, sentir e inspirar o entorno com órgãos atentos. Mas parar torna-se mais complexo e arriscado quando se está em plena manobra, em pleno voo. Corro o risco, percorrendo noites e dias de silêncio em virgília; quando uma caderneta, um lápis, uma câmera fotográfica e um computador viram instrumentos do investigador. Aos poucos, uma coleção de imagens e palavras frescas vão se somando àquelas “memórias construídas” do passado. Oscilo entre a familiaridade e a estranheza. Observações de grandes e pequenos acontecimentos naturais aguçam a percepção, como distinguir o reluzir de diferentes temperaturas de cor solar nas nuvens e encontrar seus paralelos nas pedras e areias multicor tingidas de dife- rentes minérios; verificar mimeses de todos os tipos, como entre os peixes e as folhas, as raízes e os répteis, os berros de papagaios e os gritos de crianças; tudo é potência de vida e de criação.

Quando os elementos inicialmente em repouso são aquecidos em progressão, quase que de supetão, surge o ponto de ebulição. Há um momento em que um processo de criação é capaz de “mudar a chave” que converte o trivial em singular. Decodificando e movendo os signos, torcendo, criando paralelos, justaposições, adições... A ação que um artista provoca no seu meio pode modificar o lugar, como uma pequena pedra lançada em um lago, que não altera o lago, mas que em seu percurso – da superfície às profundezas - move águas e modifica seu entorno durante sua passagem.

Em dias férteis de janeiro, faço tucunarés flutuarem, aves se acumularem, peixes virarem minerais ou vegetais, troco habitats, construo esconderijos, manipulo águas e animais, em interações quase alquímicas. A prática de assumir o lugar da pequena pedra lançada ao lago demanda atenção às imensas forças nas quais nos atiramos. Sobretudo, requer também certa displicência face a elas, necessária curiosidade de quem não sabe, que encoraja e dá sentido à arte. E a flutuação entre estar atento e assumir essa displicência foi minha norteadora ao longo de meses entre 2010 e 2013, em que reinventei o lugar das minhas memórias construídas.

Notas

1. Experiências vividas por Rodrigo Braga na Amazônia entre outubro de 2010 e junho de 2013, por ocasião das pesquisas e trabalhos para o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2010 e o Projeto lab verde via Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais – 9.° edição.

2. Leonzini, Nessia. Brasil Desfocos: o olho de fora. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2007, p. 33.

3. phillips, Lisa. The American Century – Art & Culture 19502000. New York: Whitney Museum of American Art, 1999, p. 275.

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