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Da Estética do Lavrado e suas imagens in progress
Anderson Paiva II
Imenoami, imenoami
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Imenoami, imenoami
Orei ma, orei ma
Ê ikei, ikei
Muita onda
Ê ikei, ikei
É macuxi, muita onda
Os refrões acima destacados são parte de uma canção que tem por título “Eu sou Negão”, lançada pelo cantor baiano Gerônimo na década de 1980, nos primórdios do Axé Music. Eu cresci ouvindo essa música, no entanto jamais havia entendido qual o sentido destas palavras.
Em 2010, quando migrei para Boa Vista, capital de Roraima,1 pude compreender um pouco mais claramente não todas essas palavras cantadas (possivelmente em alguma das línguas indígenas do estado), mas o que pode ser o porquê desse “Muita onda”.
Para mim, trata-se se uma expressão de surpresa pela diversidade, singularidade e pelas ambiguidades de um jovem estado que porta tradições milenares com uma identidade em constante transformação, desde a herança cultural da matriz indígena à memória dos pioneiros e migrantes das diversas partes do Brasil. Não à toa, em Roraima o termo Macuxi é algo muito além do etnônimo de uma das sociedades indígenas do seu território, ele refere-se popularmente aqueles “nativos” ou nascidos no estado. Essa condição de pertencimento e reconhecimento a partir do local de origem ocorre em função da diferenciação entre roraimense (pessoas nascidas no estado mesmo sendo filhos de migrantes) e roraimados (migrantes que possuem vínculo afetivo com o estado).
O roraimense, enquanto macuxi, pertence a terra. O migrante, enquanto roraimado, se faz na terra.
Acredito que esta questão é fundamental para tecermos nossas considerações sobre a produção de significados e a construção da visualidade roraimense presente, principalmente, na pintura e na fotografia contemporâneas, de modo a constituir o que denomino por Estética do Lavrado.
Essa estética marca-se, sobretudo, no estabelecimento da paisagem como elemento de diferenciação como uma “outra Amazônia”, ou seja, uma Amazônia singular em uma Amazônia plural. Mas não só, em seu aspecto amplo o lavrado passa a ser paisagem-personagem, como fundamento básico da produção artística contemporânea roraimense. Essa primeira dimensão da paisagem se inicia com a formação do Movimento Roraimeira, na década de 1980, como bem observado por Oliveira, Wankler e Souza (2009) ao tratar principalmente da relação entre as letras das músicas e os elementos identitários em disputa por consolidação. Contudo, essa paisagem do lavrado, descrita no primeiro período deste movimento, de 1984 a 2000, como atribuem estes autores, é ainda uma paisagem enquanto locus e ideação estetizada que se faz pela contemplação e inventariação dos seus elementos (Monte Roraima, Lago Caracaranã, Pedra Pintada e Rio Branco) em um percurso narrativo que parte da paisagem cultural de uma cidade que se percebe “linda de se ver” quando olha para o lavrado à paisagem natural símbolo do estado, como na música “Cidade do Campo”, de Eliakin Rufino.
A Estética do Lavrado não se estabelece na tradução da distinção dicotômica entre paisagem cultural (cidade) e paisagem natural (lavrado), ou seja, não se trata somente como paisagem-território. Ela se configura enquanto processo de devir e se constrói como paisagem-personagem. Podemos elencar como suas principais características no plano da visualidade: (a) o valor da aura da imagem em seu destaque da fauna e flora local, (b) captura do sentimento nativista, (c) ressignificação da dimensão do espaço na composição, (d) representação do elemento humano secundário a natureza, (e) construções afetivas da memória e (f) incorporação de cores fortes e contrastes. Desse modo se percebe a importância para os artistas que atuam nessa dimensão estética em dialogar com as mitopoéticas presentes nesta atmosfera cultural em que aspectos como a cor-terra e a calor-cor se evidenciam plástica e visualmente. As características que elencamos da Estética do Lavrado podem ser notadas nas práticas contemporâneas desenvolvidas nas artes visuais (Augusto Cardozo, Amazoner Okaba, Carmézia Emiliano, Jaider Esbell, Isaías Miliano), no cinema e audiovisual (Alex Pizano, Claúdio Lavôr, Thiago Briglia) e na fotografia (Jorge Macêdo, Devair Fiorotti, Adílson Brilhante). Estes são alguns exemplos. Contudo, trataremos brevemente apenas da obra destes dois últimos fotógrafos para ilustrar brevemente a noção de paisagem-personagem na fotografia artística em Roraima. fotografia: Devair Fiorotti (Acervo do Artista). fonte: https:// youpic.com/photographer/DFiorotti/devair-fiorotti-from?flow=pic fotografia: Adílson Brilhante (Acervo do Artista) referências cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. Lisboa: Edições 70, 2014. oliveira, Rafael da Silva; wankler, Cátia Monteiro; souza, Carla Monteiro de. Identidade e poesia musicada: panorama do Movimento Roraimeira apartir da cidade de Boa Vista como uma das fontes de inspiração. Revista Acta Geográfica, Ano III, n. 6, 2009. rangel, Adriana Moreno. “Cultura e identidade híbrida na obra do artista plástico roraimense José Augusto Cardozo”. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Roraima. Boa
Devair Fiorotti (Itarana – es, 1971) é artista plástico, fotógrafo, professor e músico. Seu trabalho em fotografia artística apresenta um tratamento sensível da luz na diluição da paisagem na atmosfera poética da cor e da temperatura. Os contornos relevam aspectos de um lavrado ressignificado em que o amarelo suplanta a cromática natural, reconhecível, operando em domínio próprio a criar uma aura que se dissipa gradualmente entre planos de contraste ressonantes sob as serras e montanhas do estado.
Adílson Brilhante (Rosário do Sul – rs, 1942) é um fotógrafo incansável em experimentar novas abordagens sobre a paisagem roraimense. Suas fotografias em infravermelho capturam e traduzem a essência do lavrado depurado segundo uma lógica própria que encanta pelo estranhamento/reconhecimento dos elementos quase personificados, mas que são dessacralizados para assumir uma outra identidade enquanto paisagem.
A Estética do Lavrado, em seu process in progress, não é, portanto, uma noção pronta, mas antes se constitui como uma postura de se encarar a paisagem roraimense e as possibilidades singulares da sua constituição imagética pelos artistas, fotógrafos e cinegrafistas (roraimenses e roraimados) atribuindo sentido às suas vivências e subjetividades no diálogo com esse personagem natural que está presente nos campos e lavrados para aquém e além da fronteira.
Ela está inscrita no plano da visualidade e da identidade e se faz notar nas práticas artísticas e no imaginário daqueles que se dispõem a contemplá-la para além de meramente pousar os olhos no campo. Estética da apropriação e ressignificação de uma paisagem-símbolo que se faz paisagem-personagem.
Vista – rr, 2012. nota
1. Roraima é dos mais novos estados do Brasil, tendo sido criado através da Constituição Federal de 1988, quando passou da condição de território a estado federativo.