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Coleção

Patrimônio

imaterial: fotografia, cartão-postal e a renovação do olhar

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amazonense

Sávio Stoco II

Apresento um esboço de estudo que considero no horizonte de uma História da Arte, já que pretendendo analisar e historicizar uma produção em específico, ou seja, promover um estudo de caso. É um trabalho que se inicia, pensado para a ocasião destes seminários. Será minha primeira aproximação a esta coleção de imagens e também ao universo da produção de um grupo de fotógrafos de diferentes gerações que na virada para o século xxi residiam em Manaus, sendo nascidos ou não.1 Infelizmente não localizei outros trabalhos acadêmicos ou de outros segmentos que pudessem me munir de melhor forma, portanto faço a sugestão da importância deste tema para outros colegas pesquisadores. Falaremos de artistas da fotografia que marcaram particularmente a formação do meu olhar, e acredito que de um público amplo, na atenção para com a imagem fotográfica no ambiente amazonense, muitos ainda atuantes marcando a cena atual.

Apesar de minhas pesquisas acadêmicas tanto no mestrado como a no doutorado, em andamento, se dedicarem ao universo do cineasta luso-brasileiro Silvino Santos (1886-1970), meu propósito não é seguir fugindo da significativa influência e importância dos artistas contemporâneos que me nos rodeiam – muito pelo contrário. A proposição destes seminários deixaria isso a mostra.

Escolhi me debruçar propositalmente sobre uma coleção de imagens que poderiam ser consideradas um tanto alheias ao “circuito da arte”, se mantivermos um entendimento restrito do que isso significa. Pois esta coleção não teria sido incluída em exposições de arte, nem em catálogos ou livros artísticos – meios mais reconhecidos considerando as práticas manauaras, pelo menos na época do seu lançamento. Trata-se da coleção de cartões-postais denominada Patrimônio Imaterial, editada pela Secretaria Estadual de Cultura do Amazonas por volta de 2003.2 Um projeto que tinha muito para se tornar uma previsível propaganda governamental aliando um órgão estadual com os cartões-postais – suporte este que se tornou para todos nós sinônimo de clichê de um lugar, de uma cidade, estado ou nação. Mas que por conta do ponto de vista de experientes ou jovens fotógrafos nos coloca uma diversidade de imagens de importância para o repertório artístico; por conta disso, penso até mesmo que poderíamos usar o termo “postais de autor”.3

Estes cartões-postais foram dispostos em bancas de revistas, vendidos como outros menos diferenciados. Hoje localizar esses cartões é uma verdadeira tarefa de pesquisador.4 Quero dizer com isso que, doze anos após seu lançamento, sumiram da maior parte dos pontos de venda no centro de Manaus. Devem figurar em álbuns de colecionadores de postais ou em gavetas de quem os recebeu quando enviados, junto a outros postais convencionais –sendo esta rica coleção de imagens fotográficas relegada ao destino pouco analisado das imagens postais. Assim, parece que prematuramente sumiram também da memória mais geral; alguns colegas do meio artístico que pude consultar preliminarmente pouco ou nada recordavam da iniciativa.

O que me parece lamentável já que as fotografias nos trazem instigantes e renovadores olhares para os lugares e práticas amazônicas, distanciando-se do que poderíamos considerar um tanto mais previsível: belas vistas dos monumentos históricos conhecidos, paisagens naturais ou convivências exóticas (cobras, botos, macacos ou pássaros apoiados em ombros humanos). Assim são até hoje os cartões-postais convencionais produzidos, indicando a permanência e força de um repertório sedimentado e sugerindo a particularidade da coleção que acima: Mandiocas, rio Tiquiê, am.abaixo: Cuias, rio Tiquiê, am (originais em cor). Cartões-postais a partir de fotografias de Andrea Hagge. comentaremos, motivo também pelo qual vejo a importância de retermos estas imagens em um horizonte de uma cultura visual 5 mais amplificada. que significados apreendemos do amazonas distante ou próximo à capital a partir da coleção patrimônioimaterial?

As fotografias de Andrea Hagge nos levam a uma descoberta mais declaradamente longínqua, pois citam os rios Tiquié, um braço do Uaupés no município de São Gabriel da Cachoeira, um dos mais afastados à Noroeste de Manaus, e também festividades de Santo Antônio de Borba no rio Madeira, à Sul do estado. Captados naquele primeiro curso d’água, temos dois cartões indígenas femininos. Em formatos fotográficos aquadradados, as imagens nem mesmo se curvam à dimensão retangular tradicional da mídia postal (10 x 15cm). Na beira do rio a paisagem da floresta se destacaria, como em muitas das imagens amazônicas – isso se não fosse a comedida cena da mulher que descasca montes de macaxeiras dispostos em quatro grandes cestos. A roupa ocidentalizada e recatada da trabalhadora contrasta com a imagem da mulher indígena mais comumente imaginada e explorada na tradição iconográfica, em que a sensualidade é almejada – e o trabalho escamoteado. Fica aos observadores o destaque do duro trabalho enquadrado por Hagge a partir da compreensão da sua leitura contemporânea da tradição indígena. No segundo cartão, mais trabalho: o artesanato da pintura de cuias pinceladas com os próprios dedos. Chama a atenção mais uma vez a vestimenta, um short e uma blusa sem mangas com chinelos de borracha e cabelos com presilhas e arrematados num rabo-de-cavalo. A silhueta desta figura descrita formada pela luz que entra de fora do ambiente prepondera e só ao fundo outra paisagem mais comu- mente trabalhada pela tradição visual aparece desfocada: uma maloca de palha. Assim, somos aproximados destas mulheres.

Antônio Iaccovazo capta no cartão-postal nomeado de Canoas não apenas este meio de transporte, o que seria um tema amazônico mais previsível a meu ver. Mas temos, sim, como que uma “terceira margem” formada no Lago de Coari; pois embarcações diversas e multicoloridas acumulam-se compactadas. Estão sutilmente habitadas,contendo cenas de comerciantes e crianças, com roupas a secar em um dos tetos no sol ardente que rebate nas lonas plásticas azuis. Dinâmicas fotográficas sugerem a vivência efervescente nas cidades amazonenses e não a caça do tipo exótico. Ao fundo, nesta mesma imagem vemos ainda uma “quarta margem” do lago formado por uma fábrica de gelo, frigorífico, posto de gasolina e algumas casas – todos flutuantes.

Neste sentido de uma imagem que articularia fundo e primeiro-plano dialogicamente, temos também Festa na água, de Lula Sampaio.6 A comemoração a que o título se refere está ao fundo, enquadrada com espontaneidade. Movimento, conversas, danças, banho de chuveiro, homens e mulheres bronzeando-se ao sol ou protegidos pela cobertura de zinco e palha, treliças, arcos e as cores fortes da construção, dando a ver o complexo de uma arquitetura tradicional reprocessada. E mais próximo do fotógrafo, um sorridente e publicitário vendedor de óculos solares made in China, com camisa tipo “polo” para dentro da bermuda com cinto, ladeado de uma porção de mesas e cadeiras metálicas também a apresentar cada uma sua marca de bebidas que hidratam os festivos personagens.

Outra fotografia de Lula Sampaio, Equilíbrio, nos mostra, também com um enquadre flagrantemente despre- tensioso, um grupo de trabalhadores incomuns no clichê amazônico: produtores de redes multicoloridas, expostos ao sol no teto de um barco regional. Ao fundo, vemos novamente uma paisagem fluvial ceder lugar ao tema desta atividade mais renovada. Coisa que também vale para os barcos regionais que vemos em cena (os redeiros estão no teto de uma das embarcações) e para um grupo de pescadores que manejam suas redes mais ao fundo.

Um garoto absorto em sua atividade de escorrer seu tempo enchendo a vigésima primeira garrafa pet com tucupi, com outras tantas a lhe esperar esperar, marca a fotografia Domingo no mercado, de Carlos Navarro. Em O alquimista, do mesmo fotógrafo e no mesmo mercado municipal Adolpho Lisboa, observamos o canto privilegiado do “elixir da longa vida”: ervas, temperos e condimentos, assim como sucos dos mais diversossabores (maracujá, goiaba, tapereba, açaí, carambola, murici, acerola, abacaxi, buriti, camu-camu, caju, capuaçu, goiaba, manga, graviola), coco e gelo. Ficamos também absortos lendo as placas sortidas.

O título dá o tom e direciona o imaginário junto à imagem captada em Início do fim, do mesmo Navarro. Recobramos os seringueiros do passado nestas fotografias de utensílios feitos de latão (lamparinas, baldes e coifão) enfileirados em algum tipo de ambiente museográfico atual. Em Início do fim II, um superclose em uma pequena lamparina apagada, iluminada sim com uma luz entardecente, parece não deixar dúvidas de que “ouvimos” falar de um passado dos seringais.

Roumen Koynov capta o olhar singular do estivador que descansa do trabalho, apoiando um papagaio em seus ombros recém saído do seu trabalho e ainda com sua cabeceira e tão queimado pelo sol que sua tatuagem desaparece em seu braço. Uma cena urbana, captada na orla manauara, que recoloca o pássaro num local menos idílico do que outras imagens postais. Penso que o mesmo aconteceria na imagem de Iacovazzo, Menino com Jibóia, que nos traz aparentemente um clichê turístico, mas numa tão dada distância e ao invés de fazer o sensacionalismo do close nas serpentes amazônicas seguradas por nativos, mais nos dizem de uma atual prática turística em si – isso porque avistamos o jovem, o animal e sua canoa de um ponto de vista como do alto de uma embarcação mais privilegiada. uma produção contemporânea não se conectaria com o passado das imagens do lugar do qual se pronuncia?

Um percurso rumo à historização para compreendermos esta produção em nossa época começa na observância do fato que pode ser o mais óbvio, o lançamento do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial –considerando que a coleção analisada, por conta do termo que a nomeia, tenha sido formatada institucionalmente rente a este entendimento. Ideia que no geral pode não ter entrado tão diretamente em pauta para os artistas, pois muitas das imagens e contextos de produção pesquisados possuem estímulos outros e anteriores.7 acima: Equilíbrio abaixo: Festa na água (originais em cor) Cartões-postais a partir de fotografias de Lula Sampaio.

Instituído no ano 2000, o pnpi provocou mudanças importantes na forma de atuação da política cultural, trazendo a cultura popular –bens imateriais –para o campo do patrimônio, antes entendido mais focado nos edifícios e monumentos. Essa mudança de foco impacta a concepção das políticas culturais por algumas razões, sendo a primeira delas o destaque que a cultura popular ganha na agenda política, deixando de lado certa visão romântica dos folcloristas – e da arte, diga-se de passagem –de isolá-la como algo imutável.

As políticas públicas relacionadas com o patrimônio preocupam-se em manter preservada a visão cultural do Estado, por meio dos heróis nacionais e dos prédios históricos (algo bem mais familiar aos postais tradicionais), mas o que o novo conceito coloca em voga é a atenção voltada à cultura cotidiana das pessoas, o saber popular, os modos de fazer, as relações sociais da comunidade. É neste ponto que entendo tocar no seu geral essa coleção de postais – claro, com alguma variação entre as imagens, fotógrafos de trajetórias distintas e com imagens produzidas em diversos contextos.8

Essa dimensão está contida nas imagens da coleção delimitada. Mas haveria outro fator a se considerar na historicização que tem a ver com a materialidade desta série – por serem cartões-postais. Esta mídia em papel de intensa circulação, fácil de transportar e que a partir das duas últimas décadas do século xix se inscreve na história da cultura fotográfica de forma ampla, fazendo das cidades brasileiras partícipes.

Quando a coleção Patrimônio Imaterial é lançada em Manaus em 2003 é um período pouco posterior a um resgate importante particularmente no repertório visual amazônico. É quando se redescobre um dos principais fotógrafos e pioneiro na edição de postais na Amazônia brasileira – o fotógrafo alemão George Huebner (18621935). Primeiramente isso ocorre com a edição francesa do livro George Huebner: Um Fotógrafo em Manaus (Musée d'ethnographie de Genève, 2000), do pesquisador alemão Daniel Schoepf.9

Manaus vai se interessar por essa pesquisa a partir desta iniciativa; em 2001 o Centro Cultural Palácio Rio Negro, administrado pelo estado, recebe uma exposição baseada nesta publicação e de mesmo nome. E o mesmo órgão que edita a coleção Patrimônio imaterial, a sec, financia a edição do livro sobre Huebner em português em 2005. Para avaliarmos rapidamente a pertinência deste lembrete, basta dizer que Huebner marca o repertório visual da sua época com criações que atualizam ideias visuais anteriormente postas, destacando monumentos de uma capital amazonense recém-reformada, mas também de seus arredores bucólicos; diversas vistas de rios com vilas seringalistas, trabalhadores destas e algumas etnias.

Tendo esses dois fatos, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (2000) e a revalorização de Huebner e seus postais – alçados a uma produção de valor na tradição visual amazônica e apontados por Shoepf como rigorosas criações dos artistas Huebner e seu sócio Libânio do Amaral10 –, teríamos um contexto em que se encontra a concepção da coleção Patrimônio Imaterial. Juntar estes fios distanciados pelo tempo nos recolocam a intertextualidade e aprofundam o significado da coleção, e da produção de seus fotógrafos, no esforço de renovar o olhar direcionado a lugares e dinâmicas amazonenses pouco revelados.

Notas

1. A história da fotografia amazônica nas décadas de 1980 e 1990 perpassa as mostras e as publicações Fotonorte I (1987) e Fotonorte II (1998) empreendidas pela Fundação Nacional de Arte. Da primeira edição participaram 7 nomes do Amazonas, na segunda, 9. Há ainda os livros Amazônia, Luz e reflexão (1998) e Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo (2008), ambos da mesma instituição. Dentre os nomes que trabalhamos neste texto,AndreaHaggeeLulaSampaiosãoincluídosnesteslivros.

2. Este dado careceria de apuração mais certeira, pois não consta indicada nos postais, nem mesmo na catalogação da coleção nos documentos do Museu da Imagem e do Som do Amazonas, onde podem ser encontrados em Ma- naus. Porém sua entrada neste acervo foi no ano de 2003 gerando esta hipótese quanto ao ano da sua publicação.

3. Agradeço à apresentação deste termo pelo fotógrafo Patrick Pardini, que prestigiou a apresentação em Belém e gentilmente relatou sobre sua própria participação em um projeto de “postais de autor” no contexto belenense nos anos 1980.

4. Ao todo localizei 26 tipos diferentes dos seguintes fotógrafos: Andreia Mayumi (2), Andrea Hagge (5), Antonio Iaccovazo (4), Lula Sampaio (3), Wesley Andrade (3), Carlos Navarro (6), Roumen Koynov (3). Agradeço a Andrea e Lula pelos dados e autorização para publicação.

5. Sobre este conceito ver o texto disponível na internet Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares, de Ulpiano T. Bezerra de Meneses.

6. Ver no texto de Alex Pazuello neste livro uma referência a este fotógrafo.

7. É o caso das fotografias de Hagge do Tiquiê que datam de 1996-97 e fazem parte de uma iniciativa pessoal da artista de criação fotográfica.

8. Por exemplo, as duas imagens em preto e branco da jovem fotojornalista Andreia Mayumi – há anos afastada da criação fotográfica –foram feitas para a ocasião da reportagem especial para o jornal A Crítica, retrabalhadas em formato livro-reportagem e fotográfico no contexto do seu trabalho de conclusão de curso de Comunicação

Social – Jornalismo pela Ufam, intitulado O beiradão de Humaitá: retratos da solidão (2002) e republicadas em diversos meios.

9. É este autor quem argumenta sobre o pioneirismo de Huebner na edição de postais.

10. É importante também notarmos a influencia do discurso de Daniel Shoepf apresentando a trajetória de Huebner, notável na tese de doutoramento (ufrj, 2009) de Andreas Valentin.

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