ÉVORA CARTA AO FUTURO DE
CABRITA NASCIMENTO
FICHA TÉCNICA
Exposição e Catálogo
Edição | SBID-Serviço de Biblioteca e Informação Documental UÉ
Produção e Coordenação Editorial | Rute Marchante Pardal
Textos | Cabrita Nascimento, Francisco Bilou, Manuel Piçarra, Marco Lopes, Rute Marchante Pardal
Revisão Textos | SBID.UÉ
Design Gráfico | Pedro Lopes / Divisão de Comunicação UÉ
Fotografia e Edição de Imagem | Cabrita Nascimento
Curadoria Exposição e Imagem | Rute Marchante Pardal
Execução e Montagem da Exposição | SBID.UÉ
Transportes | Serviços Técnicos UÉ
Contactos Gerais | SBID – Serviços de Biblioteca e Informação Documental Universidade de Évora, Largo dos Colegiais, 2. 7004-516 Évora
Telefone dinamização cultural SBID | 266 740 813
E-mail | din-cultural@bib.uevora.pt
Agradecimentos | Reitora UÉ, Administradora UÉ.
O artista agradece à Universidade de Évora, à Câmara Municipal de Évora, na pessoa de José Conde, diretor do departamento sociocultural da Câmara Municipal, a Manuel Piçarra, fundador e diretor do Jornal Diário do Sul de Évora, a Francisco Bilou, historiador de arte, e a Marco Lopes, diretor do Museu Municipal de Faro.
O presente Catálogo foi publicado por ocasião da entrega do Prémio Vergílio Ferreira 2023, na inauguração da Exposição, Évora Carta ao Futuro, do Fotógrafo Cabrita Nascimento, no dia 01 de março de 2023, nos espaços do corredor de acesso à sala das Bellas Artes dos SBID-Serviços de Biblioteca e Informação Documental, e na Cisterna, ambos no Colégio do Espírito Santo da Universidade de Évora
do passado, um futuro no presente
« (…) dal numero delle città immaginabili occorre escludere quelle i cui elementi si sommano senza un filo che li connetta, senza una regola interna, una prospettiva, un discorso. E’ delle città come dei sogni: tutto l’immaginabile può essere sognato ma anche il sogno più inatteso è un rebus che nasconde un desiderio, oppure il suo rovescio, una paura. Le città come i sogni sono costruite di desideri e di paure, anche se il filo del loro discorso è segreto, le loro regole assurde, le prospettive ingannevoli, e ogni cosa ne nasconde un’altra. (…) Anche le città credono d'essere opera della mente o del caso, ma né l'una né l'altro bastano a tener su le loro mura. D'una città non godi le sette o settantasette meraviglie, ma la risposta che dà a una tua domanda.»1
Évora Carta ao Futuro é um projeto do fotógrafo Cabrita Nascimento, inspirado num texto de Virgílio Ferreira, Carta ao Futuro, publicado pela primeira vez em separata, na Revista Vértice, em 19582.
Na data em que a Universidade de Évora galardoa o escritor angolano Ondjaki, com o Prémio Literário Virgílio Ferreira 20233, os SBID- Serviços de Biblioteca e Informação Documental juntam-se à comemoração, com a proposta visual do fotógrafo Cabrita Nascimento. Esta é uma proposta que ilustra a arte do olhar sobre a cidade de Évora, por intermédio da acutilante leitura de um dos autores maiores do panorama literário português do século XX. A obra do escritor que, acuradamente, reflete a cidade de Évora, é agora transposta para a obra do fotógrafo, através de um jogo de luz e sombra que nos acaba por trilhar a memória de um passado, que o futuro, no presente, nos obriga a (re)visitar.
Por entre as leituras de Carta ao Futuro, e sob um olhar crítico e atento, escritor e fotógrafo ilustram as gentes e as ruas da cidade de Évora, e (re)criam, plasmando, aquela é a cidade do Património e da Cultura, a cidade do passado, e de um futuro no presente. Cidade Património Mundial da Humanidade, designação atribuída pelo Comité do Património Mundial da Unesco, em 1986, e futura Capital Europeia da Cultura, em 2027.
1 In “Le città invisibili”, in Collezioni "Supercoralli" e "Nuovi coralli", Italo Calvino, n. 182, 1ª ed., Einaudi, 1972. Aqui a Tradução: «(…) do número de cidades imagináveis é preciso excluir aquelas cujos elementos se somam sem um fio que as ligue, sem uma regra interna, uma perspetiva, um discurso. É das cidades como dos sonhos: tudo o que se possa imaginar pode ser sonhado, mas mesmo o sonho mais inesperado é um quebra-cabeças que esconde um desejo, ou o contrário, um medo. As cidades, como os sonhos, são feitas de desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, suas regras absurdas, suas perspetivas enganosas, e cada coisa esconda a outra. (…) As cidades também se julgam obra da mente ou do acaso, mas nem uma nem outra bastam para manter as suas muralhas erguidas. Você não gosta das sete ou das setenta e sete maravilhas de uma cidade, mas da resposta que ela dá à sua pergunta.» Diálogo entre Gran Kan (Kublai) e Marco Polo sobre o tema da Cidade como um Sonho, no romance “Cidades Invisíveis”.
2 In “Carta ao Futuro”, Vértice - Revista de Cultura e Arte, Separata nº. 180/181, setembro de 1958.
3 Prémio que, desde 1997, é atribuído pela Universidade de Évora, para homenagear o escritor que lhe dá nome, distinguindo uma obra literária relevante de língua portuguesa, nos domínios da ficção e/ou ensaio.
A partir da literatura de Vergílio Ferreira, transposta pelo olho/lente de Cabrita Nascimento, encontramos a dialética do olhar, que capta aquelas que são as marcas físicas de uma cidade vivida na dureza de um tempo, em que o vagar é arcano do branco e preto de um sul ao sol, mas também as marcas d’alma e a essência dos muros e mouros, das muitas vidas transfiguradas pelo «alarme da memória», que inquieta o presente. Fazendo eco da inquietação do escritor, que alerta e ilustra a cidade de Évora sob o «alarme da memória», que ignora a «exatidão do presente», encontramos a cidade “preto no branco”, com as suas casas e modas, com as suas gentes de cal viva e terra, distantes dos altos muros dos palacetes que dormem. Sob os olhares de turistas alheios, e de estudantes e moradores que a habitam, empodera-se uma cidade que gentrifica do alto do monte, que alumia e cobre de sombra as praças, as gentes, as ruas, as escadas, as portas e pórticos, as janelas, os palácios, as igrejas e catedrais, e que resiste, digna, na brandura do seu vagar.
Em Cântico Final, obra literária de Virgílio de 1960, uma reflexão sobre arte sugere-nos que, «Na sua evidência imediata, na sua imediata eficácia, a arte é tão simples! Porque o que é difícil e complicado não é sentir a arte, mas explicar a obra, como o que é difícil não é o amor, a alegria, a amargura, mas teimar em fazer deles tratados de psicologia.»4
Tendo em conta que a arte transporta em si a evidência dos sentidos e dos sentimentos, importa realçar que a criação artística constitui, não apenas, a representação material e figurada de uma estética, mas, e também, o sumo da própria vida do homem que, no seu todo, e através desta, e dos espaços que habita, (re)cria e molda um produto interpretável. Explicar a arte poderá, de facto, não ser tão fácil quanto senti-la.
“A teoria social de que os seres humanos são produtos das suas circunstâncias e educação [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária.”5
Neste sentido, a arte (e a criação artística6) também tem potencial para ser entendida enquanto ação revolucionária, uma vez que condensa em si um modus operandi e uma linguagem que se pode alavancar na possibilidade de nos expressarmos e projetarmos perante um senti(ment)do, uma ideia, um conceito, um projeto, imaginando (homo imaginosus)7 e emocionando-nos através do mundo conceptual das ideias e dos pensamentos que nos rodeiam; e na capacidade de nos transformarmos, na prática, através desta, pela intrínseca relação circunstancial entre o espaço-tempo, e a matéria societal8 da qual somos feitos.
“The human ability to form concepts, to abstract, to imagine and to elaborate projects, that is, the ability to anticipate, is in turn closely linked to material and social living conditions. Even the most elementary, and certainly the more complicated human concepts and ideas, are not the ‘pure’ products of imagination and mental work, totally independent of, and unrelated to material production. They emerge in the last instance as mental processing—processing by the human brain—of elements of material life experiences. They are therefore inseparable from the involvement of the individual in nature and society.”9
Assim, quando falamos de arte (e de criação artística), se por um lado falamos do seu potencial transformador, e da capacidade para fazer (Homo faber)10, e nos fazermos sentir no outro (comunicar); por outro, falamos também do inestimável património cultural variável, e coletivo (marca profunda das diferentes vivências e memórias ao longo da história), que gera e impulsiona ímpetos à interpretação, e à própria construção do legado que nos habita, e que, em ultima instância, procuraremos preservar através da conservação da memória, e/ou metamorfosear através da criação
Com a presente mostra expositiva, assumiremos as marcas desse património que nos habita. As marcas do escritor do séc. XX, tecidas pelo silêncio ensurdecedor dos séculos passados, que se apressam na demora de um olhar do séc. XXI e, desmultiplicando-se, aproximam os polos. O branco e o preto, a luz e a sombra continuarão a resgatar do passado, as vivências no presente, com os olhos postos no futuro.
6 Nas suas múltiplas formas, seja pela via da palavra escrita, através da literatura, dramaturgia ou argumento; seja pela via da palavra oral, através do teatro, da música; seja pela via da imagem estática, através da fotografia, cenografia, artes plásticas, arquitetura; ou pela via da imagem em movimento, através da vídeo-performance, dança, etc.
7 Termo referenciado no texto de Ernest Mandel in “We Must Dream. Anticipation and hope as categories of historical materialism” (1978). Disponível em: https://www.iire.org/node/940 Texto proferido num colóquio realizado em 1978 (e publicado pela primeira vez em 1980), em homenagem ao filósofo Ernst Bloch (1885-1977), onde o autor contribui para o debate que aborda alguns dos conceitos utópicos de Ernst Bloch, na expectativa de engajar as noções de futuro no pensamento socialista.
8 Sobre as perspetivas que colocam e analisam a arte no seu contexto social e histórico, ver o artigo acima referenciado de E.Mandel, e os estudos do ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo, Walter Benjamim (1892-1940); e sobre a tese de que a arte partilha de uma condição especial de relação objeto-sujeito, concebida a partir de uma práxis social, permitindo ao homem alcançar uma condição elevada de sujeito consciente, propondo-nos (sob bases materialistas de produção teórico-filosófica marxista) o desafio de esclarecer o estatuto categorial específico da arte, base para a teoria do reflexo artístico da realidade, ver os estudos do filósofo e historiador literário húngaro, Georg Lukács (1885-1971).
9 In “We Must Dream. Anticipation and hope as categories of historical materialism” (1978), de Ernest Mandel. Disponível em: https://www.iire.org/node/940 Aqui a tradução: “A capacidade humana de formar conceitos, de abstrair, de imaginar e de elaborar projetos, ou seja, a capacidade de antecipar, por sua vez, está intimamente ligada às condições materiais e sociais da vida. Mesmo os conceitos e ideias humanas mais elementares, e certamente as mais complexas, não são produtos puros da imaginação e do trabalho mental, totalmente independentes e alheios à produção material. Surgem em última instância como processamento mental - pelo cérebro humano - de elementos das experiências da vida material. Portanto, são inseparáveis da participação do indivíduo na natureza e na sociedade.”
10 Idem.
E assim, através da Arte e da Literatura, e de duas visões sobre uma mesma cidade, percorremos, também, os espaços habitados pelas gerações mais novas que integram a comunidade académica (e que em larga maioria nos chegam de outras cidades nacionais e internacionais). Os mesmos espaços que Vergílio Ferreira habitou e eternizou através da sua obra, Carta ao Futuro (1958) e Aparição (1959), e que a Universidade de Évora memoriza através do Galardão Prémio Vergílio Ferreira que, anualmente, entrega a um escritor de língua portuguesa. No fundo, esta é uma homenagem à memória coletiva da cidade e da Universidade de Évora, e um tributo à literatura de Vergílio que, enquanto professor do Liceu de Évora, vivenciou os muros da Academia Eborense, entre 1945 e 195911
É uma homenagem que visa também chamar a atenção da sociedade para a importância da salvaguarda e valorização do património cultural, material e imaterial. Uma salvaguarda da memória coletiva que vive de (e nas) pessoas, e de (e com) afetos. Por isso é também uma chamada de atenção face à dimensão urbana da vida coletiva, uma compreensão que requer um olhar crítico e atento sobre as qualidades e as contradições dos centros históricos, e sua gentrificação, e que, tal como na literatura de Vergílio Ferreira e de Italo Calvino, assume aqui uma atitude pedagógica e criativa. Porque, tal como refletia Marco Polo12 com Gran Kan13, no já citado romance “Le Città Invisibili”14, talvez colocando e formulando perguntas com desejo e sem medos, consigamos imaginar e criar respostas mais próximas desse fio condutor, que liga e projeta do passado, um futuro no presente.
Por estas várias razões é uma homenagem à dimensão histórica do tempo, e do que isso (nos) representa. Uma homenagem à literatura que reflete essas várias dimensões. Uma homenagem ao ensino, à arte e cultura, e à utopia15 que desejamos para o futuro!
À Cidade da Humanidade!
Rute Marchante Pardal SBID – Serviços de Biblioteca e
11 Entre 1836 e 1979, no espaço do Colégio do Espírito Santo funcionaram outras instituições,
as
a
a Escola Industrial (1914-1951), e o antigo Liceu Nacional de Évora (1841-1979). In AAVV (2011), Guia Histórico do Colégio do Espírito Santo. Universidade de Évora.
12 c. 1254-1324. Marco Polo foi mercador, embaixador e explorador veneziano do século XIII, célebre pelas suas aventuras “As Viagens de Marco Polo”, livro que narra ao ocidente europeu as maravilhas da China, da sua capital Pequim, entre outras cidades e países da Ásia Oriental.
13 1215-1294. Kublai Khan foi o quinto grão-cã do Império Mongol, entre 1260 e 1294, e o fundador da dinastia Yuan, que dominou grande parte da Ásia Oriental.
14 Diálogo entre Gran Kan (Kublai) e Marco Polo, sobre o tema da Cidade como um Sonho, do romance de Italo Calvino, "Cidades Invisíveis" Acessível em https://www.lebellepagine.it/res/site51630/res566723_dialogo-3-Calvino.pdf
15 Aqui entendida na aceção filosófica de Ernst Bloch. Na possibilidade de emancipação humana, através de uma alternativa que desacredite a desesperança, e que reconheça na instauração da esperança como princípio, e no ato de agir coletivamente, a via para uma melhor condição humana.
ÉVORA CARTA AO FUTURO
Há um pulsar do tempo na obra “Carta ao Futuro” de Vergílio Ferreira, há a criação de uma levitação poética na forma como as suas palavras descrevem Évora; há um fluir liquido do tempo, que abala e retorna, que se cria e auto-recria, que se move eternamente como um rio imaginário que nunca desagua no mar. É uma Évora intemporal que se projeta para uma dimensão futura ou para um presente permanente; é uma Évora que é imortal.
Tocado pela obra-prima de Vergílio, começo a ouvir dentro de mim mesmo o chamamento poético da “existência” de uma Évora; “aparição” subtil e íntima, que me impulsiona, enquanto artista, ao meu infinito criativo.
Ao estabelecer um vínculo com a obra de Vergílio Ferreira, vivenciei um abalo sublime, purgativo. Dentro dessa aura que une obras-primas e público, as melhores faces das nossas almas são reveladas e ansiamos pela sua libertação. Nesses momentos, reconhecemos e descobrimos uma parte desconhecida de nós, as profundezas insondáveis de nosso próprio potencial, criação que se alimenta de criação, criatividade que comunica com criatividade, e os limites mais distantes de nossas emoções. A própria cidade de Évora se torna uma entidade orgânica, torna-se “pessoa”, um ente existencial. As pessoas têm de ser lembradas constantemente que são seres humanos (o existencialismo é um humanismo); e as cidades têm de ser reinventadas constantemente como “cidades humanas”. Esta peregrinação ao longo de oito anos pelo espaço-tempo da cidade de Évora constitui-se como uma “rememoração futura”. Roland Barthes (1915-1980) considera que a fotografia deve ser “silenciosa”, não por uma questão de discrição, mas de música; a subjetividade absoluta só é atingida num estado de silêncio; a foto toca-nos, quando, fechando os olhos, deixamos que os pormenores que ela contem, subam sozinhos à nossa consciência afetiva. Para Barthes a fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa. Neste sentido para o ensaísta francês da semiologia linguística e fotográfica, a fotografia não é um objeto estético; não é um objeto histórico; não é um objeto sociológico; a fotografia é a “ciência impossível do ser único”, é uma testemunha muda, que emociona, que rememora, que sensibiliza, que sente, que pensa.
“Projetar a luz nas profundidades do coração humano, tal é a vocação do artista”, é uma afirmação de Schumann, que vai ao encontro daquilo que Kandinsky considerava ser a função da arte, como uma intuitiva expressão da “necessidade interior”: impressões, improvisações, composições são um caminho
para dar vida espiritual à criação artística, que possa provocar um efeito na pessoa que a contempla, uma reflexão, um pensamento, uma mudança.
Um combate pelo património Faço fotografias pelo prazer de comunicar, de transmitir visões de futuro… toda a fotografia é uma metáfora de futuro; existe no espaço-tempo contínuo em que se materializam os olhares. Esta exposição sobre a Évora, cidade património mundial da UNESCO, é um combate pelo património; pelo património cultural que herdámos dos nossos antepassados e pelo património cultural que queremos deixar aos nossos descendentes. O combate pela preservação do património é um combate positivo, de todos os cidadãos sem exceção; mas os artistas, como produtores de cultura, têm uma responsabilidade acrescida nesse combate.
Somos o que comemos, a língua que falamos, as ruas e as casas que habitamos, os objetos que usamos, os livros que lemos, as músicas que ouvimos, as tradições e a história que transportamos na nossa genética cultural. A nossa identidade está em permanente mutação e construção, mas assenta em raízes bem definidas.
Olhar e ver. O que importa é ver. Ver com os olhos e com a alma, deixando descansar o coração. Combater pelo património, é preservar o património, criando estratégias de resistência ativa à normalização planetária em curso: ao nível local, as entidades estatais, as associações, os indivíduos, devem confluir num caminho comum contra a mercantilização do património e pela afirmação de identidades locais genuínas. Nesta luta constante contra a rotina administrativa (no sentido lato), como muito bem referiu Françoise Choay, o local é o ideal; o local é onde vivemos o mundo, onde construímos o mundo; o local é o universal.
Tinha quinze anos quando entrei nas instalações do FAOJ (fundo de apoio aos organismos juvenis) de Évora, no Largo da Misericórdia, para frequentar um curso de iniciação à fotografia orientado por José Conde. No resultado dessa experiência realizou-se uma exposição coletiva de trabalhos realizados no curso, num átrio do FAOJ que dava para a rua Miguel Bombarda. Estes meus primeiros trabalhos revelados foram precisamente sobre Évora: a cidade onde cresci e estudei sempre foi um dos meus objetos privilegiados de análise estética. A este curso seguiram-se cursos de aperfeiçoamento e de especialização, em Évora, orientados por José Vieira. Passei depois também eu a ser formador de fotografia e cinema. Seguiram-se mais cursos de especialização em Lisboa, Porto e Paris, orientados por formadores franceses
do CEMEA. Esta formação baseada em métodos ativos, não sendo escolar, era muito boa, quer em termos técnicos, quer em estética e história da fotografia.
A minha primeira exposição em Évora foi no Palácio D. Manuel e a segunda no Museu de Évora. E a minha primeira exposição sobre Évora (médio formato analógico Bronica Etrsi 645), produzida por Nelson Lage para a autarquia de Bruxelas (foi exibida mesmo em frente da sede da OTAN, em Evere), esteve também em exibição no Palácio de D. Manuel, integrada nos encontros “Luz do Sul” comissariados por José M. Rodrigues.
Por esta altura adorava toda a obra ficcional de Virgílio Ferreira. Quando entrei na sua obra ensaística, a descoberta do pequeno livro “Carta ao Futuro” foi uma revelação e fonte de inspiração para retomar o tema Évora, mas de um ponto de vista totalmente distinto, o da preservação do património, em sentido lato.
Com os textos do existencialista Ferreira inscritos na minha mente, percorri as ruas da cidade, frase a frase, conceito a conceito, ao longo dos períodos do dia, com as suas variações de luz, ao longo das estações do ano, ao longo de mais de 8 anos, acompanhado das minhas fiéis Fujifilm Xpro2 e Xpro3, o digital mais analógico que conheço.
Agradeço à Universidade de Évora a oportunidade que me ofereceu para produzir e expor este projeto no contexto do prémio Vergílio Ferreira 2023, e em particular aos SBID- Serviços de Biblioteca e Informação
Documental, e à Dra. Rute Marchante Pardal, minha interlocutora. Agradeço à Câmara Municipal de Évora pelo financiamento das impressões e por permitir que esta exposição, inaugurando em Évora, possa tornar-se itinerante em várias cidades portuguesas e europeias, e em particular ao Dr. José Conde que foi o meu interlocutor. Agradeço ao Dr. Marco Lopes, diretor do museu de Faro, pelo amável texto que escreveu para este catálogo, e pela oportunidade que me deu de expor, por duas vezes, no museu que superiormente dirige. Agradeço ao Dr. Francisco Bilou, um investigador de referência na análise histórica da cidade de Évora, pelo amável texto que escreveu para este catálogo. Agradeço ao Senhor Manuel Piçarra, fundador e diretor do jornal “Diário do Sul”, que foi aluno de Vergílio Ferreira e é uma testemunha fundamental para se interpretar a história da segunda metade do século vinte eborense, e pela gentileza de ter escrito um texto para este catálogo.
Bibliografia
Barthes, Roland, OEuvres Completes (Tome V, 1977-1980), Seuil, 2002.
Cartier-Bresson, Henri, O imaginário segundo a natureza, GG, 2004.
Castello-Lopes, Gérard, Reflexões sobre Fotografia, Assírio&Alvim, 2004.
Choay, Françoise, Le Patrimoine en questions – Anthologie pour un combat, Seuil, 2009.
Ferreira, Vergílio, Carta ao Futuro, 3.ª edição, Bertrand, 1981.
Kandinsky, Wassily, Do Espiritual na Arte, Dom Quixote, 1987.
Sontag, Susan, Ensaios sobre Fotografia, Dom Quixote, 1986.
vários colegas e alunos do Liceu Nacional de Évora
Vergílio Ferreira em Évora
Nos finais dos anos 40 tive o privilégio de ter sido aluno do professor Vergílio Ferreira, durante dois anos letivos, no Liceu André de Gouveia, instituição de ensino residente nos espaços da atual Universidade de Évora, que, muito justamente, criou o Prémio com o nome do consagrado Escritor e Pedagogo.
Fiquei a dever-lhe preciosos ensinamentos na Literatura, e recebi dele provas de estima, sublinhadas por saber que eu era um estudante muito pobre envolvido na capa e batina que alguém me oferecera.
Foi ele que me indicou ao Sº Reitor dr. Bartolomeu Gromicho, para que me responsabilizasse pela organização do jornal académico “O Corvo”, e foi Vergílio Ferreira — meu saudoso Professor, que me dispensou aos exames de acesso à Universidade, na área de Direito e História Filosófica. Nesse dia deu-me conselhos úteis para os estudos que iria seguir.
O Professor Vergílio Ferreira era uma figura de Mestre, que ensinava com larga abundância de exemplo e com diálogo aberto aos seus alunos.
Gostava da sua Escola e da cidade de Évora, onde tinha um núcleo de amizades, em que se destacava o médico dr. Alberto Silva, Francisco José Caeiro, o diretor da Biblioteca Pública de Évora, dr. Armando Nobre Gusmão, notável Poeta, o eng. Reis Pereira, e os pintores António Charrua e Henrique Ruivo. Vergílio Ferreira, pela sua postura, tinha uma particular auréola entre os seus colegas de Ensino.
Devo-lhe conselhos literários e portas que me abriu, quando fundei em 1951 a Revista Horizonte, e em 1956 quando fundei o Jornal Literário dom Quixote e, já muitos anos depois, quando dirigi o Jornal de Évora e me foi atribuído o Prémio Nacional de Reportagem, pelo Diário Popular.
Guardei sempre religiosamente as cartas em que respondia às minhas dúvidas, com aquela sua letra miudinha terminada com o seu ex-corde, do teu velho Professor Vergílio Ferreira, que em Évora já preparara alguns dos seus Livros, foi depois daqui acrescentando as mais notáveis obras que o tornaram no mais prestigiado escritor da sua geração
Várias foram as vezes que evocou a Évora-Cidade Branca e Monumental, enaltecendo figuras do seu passado e das grandezas universitárias desta urbe.
Não foi apenas na “Aparição”, que Évora foi lembrada, porque vinte anos depois vinha até cá ver amigos, visitar as ruas e praças, e o seu velho Liceu André de Gouveia.
A sua passagem de vários anos a ensinar em Évora deixou um marco de saudade entre os seus alunos e colegas.
Pela sua independência de carácter deixou marca na cidade que o homenageou, com uma merecida artéria citadina, porque a sua presença valorizou muito o prestígio histórico e cultural de Évora.
Pela sua ética, antes e depois do 25 de Abril, demonstrou a sua fidelidade aos princípios democráticos que sempre defendeu.
Ex-aluno anos 40
M. M. Piçarra
JAN 2023
Évora, presente ao futuro
Diz Agostinho de Hipona nas suas Confissões que “não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras”. Aceite-se, pois, esta diluição do tempo verbal como um contínuo presente (de praesens, literalmente “o que está à nossa frente”). E isto é tanto mais válido quando tratamos de escrever para fora do tempo como fez Vergílio Ferreira na mensagem dirigida a um amigo do futuro. Esta epístola, que passou à história literária como Carta ao Futuro, é, de algum modo, uma confissão remetida de Évora para o mundo que virá...
É claro que o humanismo cristão de Santo Agostinho difere do humanismo existencialista de Vergílio Ferreira, escrevendo ambos em tempos históricos tão distintos, embora sobre inquietações tão próximas. Mas, o que mais importa sublinhar nas palavras de ambos é como nos confortam estes seus diálogos intemporais, escritos generosamente como presente ao futuro.
Contudo, neste passo reflexivo cabe perguntar: valeriam de muito estes diálogos intemporais fora da Arte?
A resposta parece clara e é Vergílio Ferreira quem a proclama: “jamais seria imaginável um mundo entendido fora do sentimento estético”.
Sim, a Arte é sempre uma via possível para a redenção do ser.
É justamente nesta diluição do tempo verbal comprometido com o sentimento estético que devemos situar a obra de Cabrita Nascimento. E esta exposição, nascida (há muito) da leitura da Carta ao Futuro de Vergílio Ferreira, é o melhor exemplo desse compromisso. Desde logo porque o tema é Évora. A sua e a nossa Évora – essa cidade de aparição, de deslumbramento, que perdura ardente nos nossos olhos há tantos anos... Uma cidade entrevista no silêncio, feita de silêncios, de pausas intersticiais onde cabem todas as palavras possíveis. E talvez as impossíveis. Donde, ao percorrer esta exposição, peça a peça, memória a memória, afluam primeiramente as palavras de Vergílio Ferreira: “Évora é uma cidade branca como uma ermida…”. E até pode parecer que esta mostra fotográfica se conforme a um simples roteiro vergíliano, procurando a redenção do que ficou preso no tempo verbal do passado. A exposição, todavia, é muito mais do que simples revisitação nostálgica a uma cidade que “ignora a exatidão do presente”, que conhece apenas “o alarme da memória”.
Talvez por isso (ou também por isso) a Évora que Cabrita Nascimento recria nos seus “olhos da alma” seja feita a preto e branco, a primeira e a mais universal linguagem cromática. E tem razão: reduzida à essência de formas e texturas, a cor pouco acrescentaria à imagem como valor de expressão. Deste modo, sem azuis de céu ou ocres de sol dourado, “é dentro da emotividade que o mundo tem (mais) sentido”. Essa emotividade é dada ao observador (nem podia ser de outro modo) pelo genuíno compromisso entre as formas entrevistas e o arquétipo que delas interiorizámos. Diálogo passageiro em todo o caso, pois que ele tende a dissolver-se à medida que outras leituras trazem novas possibilidades, pois a familiaridade de uma porta, de uma janela, de uma rua, convoca-nos a imaginar outras viagens não previstas… Na verdade, a fotografia, como a epistolografia, também é uma das formas diretas de comunicar que melhor suporta “uma larga margem de silêncio”.
É, pois, deste viajar pelo silêncio das formas que nos fala esta Évora, Carta ao Futuro. Umas vezes de forma direta, outras em tom mais subtil, como num desafio aos nossos sentidos. Evoco aqui o que experienciei quando vi, a primeira vez, uma das fotografias em exposição: como não deixar de reconhecer na coluna do Convento dos Lóios, que divide o templo romano em duas metades, uma memória longínqua de D. Rui de Sousa (ali perto sepultado), o negociador do Tratado de Tordesilhas em nome do Príncipe Perfeito… Tal como um mundo dividido a meio, é preciso este estímulo visual para melhor entendermos a importância da unidade-identidade do conjunto.
Daí que o que mais me ocorre para caracterizar esta Carta ao Futuro de Cabrita Nascimento seja a de uma Évora vista em instantes poéticos, tantas vezes nascidos de uma subtil comensurabilidade de planos e de um cuidado equilíbrio de volumes. Fugindo do “cliché” arquitetónico que impõe ao fotógrafo a disciplina da ortogonalidade, bem se pode dizer que nesta mostra fotográfica há muito racionalismo nos surpreendentes instantes poéticos.
Só depois me chega a luz, a sombra. Que são, no seu jogo volúvel, aquilo que mais transforma as formas da cidade em objeto estético. Vergílio Ferreira vê nesta metamorfose uma “obscura luz de eternidade”, que passa sobre as formas imóveis como nós passamos pela cidade. Talvez “porque a habitamos como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos nela intrusos…”
Mas não. Ninguém pode ser intruso em algo que, de tão humano, já pertence à humanidade. Muito menos nela podemos considerar Vergílio Ferreira como um intruso – logo ele que faz parte da identidade literária da cidade. Somos, isso sim, partícipes de uma realidade que nos transcende no breve da nossa
passagem, mas cuja instância histórica nos pertence por direito natural. Vivemo-la. Sentimo-la. Desejamo-la. E isso é tudo.
Cabrita Nascimento exorta-nos, pois, a essa singular relação com Évora através destes surpreendentes instantes poéticos. Bem sabe ele que as cidades (todos os lugares habitados!) são criações humanas que só a humanidade os explica e lhes dá pleno sentido. Donde, uma exposição fotográfica com esta força temática nos apelar a esse sentido largo de pertença, a que ele chama, e com razão, um “combate pelo património”. Subscrevo-o, na forma e na substância. Tão importante é a salvaguarda física de um monumento (natural ou artificial) como a sua valorização cultural. Por isso se diz Património Cultural, porque a “nós” diz respeito. Dar importância a esse património nascido da cultura (material e imaterial) é tanto mais eficaz quanto a profundidade do diálogo que com ele se estabelece. Um diálogo decisivo, na verdade. Tão transcendente, aliás, que ele se apresenta hoje, a todos nós, como o mais nobre presente ao futuro da cidade – fazê-la Capital Europeia da Cultura!
Razão sobeja para sublinhar, também em testemunho de gratidão a Vergílio Ferreira e a Cabrita Nascimento, quão importantes são para Évora estas suas Cartas ao Futuro
Francisco Bilou Historiador de Arte JAN 2023Évora: retratos da sua alma e do seu ritmo
Há fotogenia na cidade de Évora. Pelos encantos patrimoniais dos seus monumentos de idade respeitável, pelas casas impecavelmente pintadas de branco e de outras tonalidades que preenchiam os dias de trabalho de homens e mulheres, pelos jardins de sombras fresquinhas e pelas fontes retemperadoras em dias mais quentes, que os faz nesta capital alentejana. Mas também há encanto nas suas gentes. E no seu vagar. Tudo isso seduz à vista e à lente. Que tanto pode ser em grande ângulo ou pequeno. Consoante o pormenor. Tanto pode ser um rosto dorido de anos na ceifa, como pode ser uma jovem estudante universitária de um país distante. Évora é esse caldo cultural, que não é apenas de hoje, mas de tempos mais recuados. E não faltam vestígios a lembrar, em quantidade e qualidade.
Um templo, que nas bocas de muitos ainda se apelida de Diana, uma catedral majestosa que se vê ao longe, igrejas de todos os estilos e séculos, aquedutos do tempo dos romanos, teatros onde atuaram os ilustres, muralhas imponentes e um sem fim de outros monumentos. Monumentalidade e património, que nem sempre tiveram uma vida fácil. Pela idade, pelo desgaste, por cataclismos, por restauros pouco recomendáveis. Por isso, sofreu mudanças. Nem sempre documentadas, nem sempre fotografadas. Se a fotografia é inventário e preservação, também pode ser bondade e generosidade. Porque convida a entrar na cidade, nas suas ruas, na sua intimidade. Espreitando ora uma gárgula que fica nas alturas da Sé, ora um gato a trepar o muro de uma casa senhorial, à procura de abrigo. Acenando a um transeunte ou captando uma festividade tradicional. Melhor, só o olhar de alguém da terra, que como se diz, sempre conhece os cantos à casa. E não só. Conhece os pormenores que escapam a qualquer forasteiro, conhece as ruas que muitas vezes são calcorreadas sem que se tenha reparado num elemento decorativo secular, e conhece até alguns dos seus segredos, que a fotografia sempre pode revelar um pouco.
E no fim dessa jornada, que nunca está terminada, pois no dia seguinte o instinto ou a agenda pede mais uma vez a máquina a tiracolo, faça chuva ou sol, frio ou calor, ainda se partilha a vida da cidade, as suas gentes e os seus legados. Esse é um dom, que é dado pela exposição e pela fotografia do Cabrita Nascimento. E nesse sentido os museus devem ser mais do que espaços de mostra, recebendo apenas mais um projeto. Deles se espera que sejam locais de promoção de valores. Não apenas os de salvaguarda e de proteção do património. Seja pela fotografia, pela escultura, pintura ou outras artes nobres. Importa também que sejam espaços globalizadores. Onde se possa mostrar Évora em qualquer parte do país. Como aconteceu no Museu Municipal de Faro. Um museu precisa de horizontes, que não apenas os da sua geografia. Sabe-se hoje, pela investigação e pela fácil circulação de dados, e até pela fotografia, que todos temos mais em comum do que se imagina. Mas dos museus também se confia que sejam estimuladores de uma cidadania em que o património, seja ele material ou imaterial, seja objeto de estudo, in-
ventário, dinâmica cultural e turística, conteúdo letivo para escolas, e não apenas um bonito adorno, que faça de bilhete-postal. Como tal há várias dimensões no museu, que não apenas a expositiva. O lado mais visível do seu trabalho. Entra aqui também o restauro, a arqueologia, serviços de mediação de públicos, a vigilância, a museografia, a história de arte. E o mesmo com a fotografia. Que não se mede apenas pelo seu carácter estético. Sempre necessário e merecedor dos melhores planos. É preciso uma boa luz, a hora adequada, a lente certa e alguma sorte. Nem tudo se controla. Há sempre alguma falha ou obstáculo de última hora.
Se bem que o imprevisto também pode surpreender, emprestando à imagem uma certa genuinidade, que sempre faz falta. Mas não há fotografia sem afeto. Bem captado neste projeto, que nos transporta para lugares onde nos apetece estar, seja pelo aconchego das pessoas, pela luz das praças, pelo convívio nas esplanadas ou pela grandeza dos monumentos. Sentimo-nos atraídos e deseja-se viajar. Sem pressas, como manda o ritmo nestas paragens. Ao mesmo tempo a fotografia também devolve recordações e baús das memórias. Aos filhos da terra, que emigraram ou que voltam mais amiúde sempre que o trabalho dá folga. E a outros, que não sendo filhos, se sentiram adotados.
Como o que escreve este texto. No tempo em que andava de capa e batina, entre o antigo colégio do Espírito Santo, o Palácio do Vimioso ou o Palácio do Cordovil. Ir ao museu e ver as fotos provoca sempre uma sensação de retorno, de regresso, de memória. Nesse imaginário, assim que se fecham os olhos, invadem-nos sempre no pensamento os monumentos, as pessoas, o cante, a boa comida e a sempre inebriante bebida. Tudo isto num museu por perto. Para preservar, para estudar, para conhecer, para valorizar. Mas também para emocionar e comover. E se a saudade apertar temos sempre as fotografias de Cabrita Nascimento.
Marco Lopes Diretor do Museu Municipal de Faro JAN 2023CARTA AO FUTURO
Vergílio Ferreira 3ª edição, Livraria Bertrand, 1981 (Excertos inspiradores)
“Évora é uma cidade branca como uma ermida. Convergem para ela os caminhos da planície como o rasto da esperança dos homens. E como a uma ermida, o que a habita é o silêncio dos séculos, do descampado em redor. Conheço dos seus espectros, a vertigem das eras, a noite medieva mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares. Vozes de populaça, gritos de condenados, ecos de reis, senhores, estrépito de guerras, ódios e sonhos, sob a imobilidade dos mesmos astros. Como um cofre do tempo, irrealizado e absoluto, a cidade ignora a exatidão do presente, conhece apenas o alarme da memória. As casas novas têm todas a mesma idade de séculos.” (páginas 10/11)
(“Anunciação da beleza.”) “Nas ruas ermas, os candeeiros meditam sobre velhos espectros, velam o rasto do mundo desaparecido, essa ausência que se sente em tudo o que foi tocado pelo homem e lhe retém o calor da vida. Mas porque esta cidade não confraterniza connosco, porque a habitamos como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos nela intrusos, eu reconheço-lhe a verdadeira face não à luz da evidência diurna, mas a uma obscura luz de eternidade.” (páginas 11/12)
“Lembro-me perfeitamente, meu amigo, de quando vi pela primeira vez o Templo Romano…. Ignoro ainda se o monumento se alinha entre as belas obras de arte, essas perante as quais estamos todos autorizados a comover-nos. (“Arte e emoção estética”.) Ignoro-o, porque hoje sei que o milagre pode surgir quando menos o suspeitamos: uma frase musical de um tocador ambulante, o assobio de quem passa, um talo de erva que irrompe de uma juntura de pedras, podem alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição da beleza. Subi a rua que vai da Praça, mal reparei então na Sé, obscurecida a um canto, cheguei enfim à acrópole onde se ergue o Templo. Catorze colunas nuas levantam-se para os astros banhadas da lua quente que iluminava o largo. Viam-se as estrelas por entre elas, o espaço habitava a sua irrealidade, irradiava essa mão de pedra à sua infinitude. Suspenso de memória e de uma obscura interrogação, ali fiquei algum tempo, tocado dessa indistinta surpresa que é o halo do limiar da vida, a anunciação das origens. Tenho visitado o Templo a outras horas de lua; mas jamais o alarme me visitou assim puro e fulminante, talvez porque o sabê-lo, o procurá-lo, lhe velava um pouco a face – talvez porque ele só reconhece a verdade de quem não está prevenido, de quem vem desarmado dos combates diurnos.” (páginas 12/14)
“Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção – ou não bem de atenção, não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez.” (página14)
“Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu reconhecimento quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela esta alinhada, danificada, endurecida entre as coisas que nos cercam.” (página 24)
“A memória fácil do homem é apenas a sua recordação. Ela começa para cada um de nós naquilo que desde a infância lhe referenciou a vida. Mas a outra, a memória pura e que é apenas a vertigem das eras, eco de uma voz que transcende os limites do tempo, recuperando-se talvez aí, nesses pontos de referência, instala-nos todavia, porque o momento é de milagre, num passado e num futuro sem limites, reinventa-nos num acorde único, essa música milenária de estrelas e de nada, abre-nos à aparição da vida onde somos um breve ponto perdido, e a memória é assim uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura expectativa de uma interrogação submersa. É então possível vencer a muralha concreta que nos cerca, a realidade imediata, os factos conhecidos ou relembrados, e acordar à distância ilimitada o eco dessa voz que nos transcende.” (páginas 27/28)
CABRITA NASCIMENTO NOTA BIOGRÁFICA
Iniciou estudos em fotografia aos 15 anos de idade na Casa de Cultura da Juventude de Évora do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis). Continuou os estudos de aperfeiçoamento e especialização em fotografia, com formadores franceses do CEMEA, no FAOJ Porto, FAOJ Lisboa e Paris (Acordo Luso-Francês).
Fez estudos de cinema (Porto e Figueira da Foz) e vídeo (Porto e Lisboa) no FAOJ, e de cinema na Secretaria de Estado da Cultura (em Lisboa, Santarém e Évora).
Foi animador cultural e formador em cinema, fotografia, vídeo, animadores socioculturais e gestores associativos, no FAOJ/IPJ de Évora, Setúbal, Lisboa e Guarda e na Escola Profissional Bento de Jesus Caraça de Évora. Exerceu funções de formador europeu na Direção Geral XXII da Comissão da União Europeia (em Luxemburgo, Esbjerg, Narbone e Nápoles). Foi formador de formadores profissionais de juventude nos Centros Europeus de Juventude do Conselho da Europa em Estrasburgo e Budapeste. Foi formador de dirigentes e gestores associativos em Cabo Verde (Tarrafal e Maio) ao abrigo da cooperação com os PALOP.
Desempenhou as funções de Diretor Regional da Cultura do Alentejo, do Ministério da Cultura, durante a vigência do XVII Governo Constitucional.
Licenciou-se em Sociologia na Universidade de Évora e fez a Pós-Graduação em Direito da Cultura e do Património Cultural na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
No âmbito audiovisual, realizou quatro curtas metragens em super oito, “Encontros” (sobre Évora)/prémio melhor filme documental festival do Porto e segundo prémio festival de Arcos de Valdevez (transmitido pela RTP2), “Mágico”/prémio melhor filme experimental festival Porto, “Silence” (sobre Monsaraz)/prémio melhor filme documental festival do Porto (transmitido pela RTP2), “Évora Centro Histórico” (com Túlio Espanca)/finalista em festivais do Porto e Lisboa, exibido no Festival da Figueira da Foz e no Teatro Garcia de Resende em Évora; realizou os vídeos “Évora Pulsar” e “Évora os Povos e as Artes”.
No âmbito da fotografia participou em quinze exposições coletivas. Dos seus projetos individuais destacam-se os seguintes: “Naturezas Vivas”, Solar dos Salemas, Alcácer do Sal, 1989; “Alentejo Paisagem”, Casa
da Cultura de Mora, 1990; “Monsaraz em Silêncio”, Igreja de Santiago, Monsaraz, 1991; “Imagens Além Tejo”, CME-Palácio D. Manuel, Évora, 1991; “Natura”, Museu de Évora, 1992; “Paisagem Alentejana”, Centro Europeu de Juventude, Estrasburgo, 1998; “Ciganos entre Fronteiras”, Centro Internacional Juventude, Luxemburgo, 1999; “Veneza para Sempre”, Centro Europeu Juventude, Budapeste, 2000; “Évora Centro Histórico”, galeria municipal Evere, Bruxelas, 2003; “Évora, as luzes e a cidade”, CME-Palácio D. Manuel, encontros fotografia LUZ DO SUL, comissariados por José M. Rodrigues, 2004/Serviços Centrais do IEFP, Lisboa, 2004; “Chefchaouen, um sonho azul”, Casa das Artes de Mertola, 2005/Museu de Tavira, 2016/Universidade de Évora, 2017/Casa da Cultura de Silves, 2018; “O País da Imanência sem Mácula”, Biblioteca Sophia de Mello Breyner/comemorações do centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen, Loulé, 2019; “A Beleza nua sem exaltação e Incandescente” (para António Ramos Rosa), Museu de Faro, 2019; “Évora carta ao futuro”, Museu de Faro, 2020; “Alentejo Alma da Paisagem”, Museu de Estremoz, 2019/Casa da Cultura de Mora, 2019/Centro UNESCO de Beja, 2020/Casa do Cante, Serpa, 2020; “Alentejo Mayor”, Centro Ciência do Café, Campo Maior, 2020/ Biblioteca José Saramago, Beja, 2020/Casa Esporão Morgado, Évora, 2021/ Biblioteca de Cuba, 2021/Biblioteca de Almodôvar, 2021/ Biblioteca Luís de Camões, Alvito, 2022/ Museu do Cante, Serpa, 2022; “Alentejo Anamnesis”, Centro de Artes de Sines, 2020-21; “Imponderável Sul”, BPE Biblioteca Pública de Évora, 2021; “A Grande e Ardente Terra de Alentejo – Viagem com José Saramago”, Biblioteca José Saramago-CMB, centenário de José Saramago, 2021-22; “Alentejo Anamnesis”, Mosteiro da Flor da Rosa, Crato, 2023.
Publicações: Foto capa Revista Ação Regional e Local “Cadernos Municipais”, nº57, julho 1992; reportagem fotográfica sobre Évora na revista “Estética”, nº7, agosto de 1994; reportagem fotográfica sobre o Alentejo na revista “Estética”, nº10/11, dezembro 1994, portfólio de fotografia “Alentejo da minh’Alma”, na revista “Imenso Sul”, nº8, outubro de 1996; portfólio de fotografia “Veneza”, na revista cultural “Y.LEM”, nº1, outubro de 2000; foto capa jornal semanário “A Sul”, 2019; portfólio de fotografia sobre o Alentejo no jornal “Diário do Alentejo”, 2019.
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