Guilherme Bakunin Araújo Sá - O CINEMA AMERICANO DE GÊNERO NOS ANOS 1990

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Belas Artes

Guilherme Bakunin Araújo Sá

O CINEMA AMERICANO DE GÊNERO NOS ANOS 1990

Belo Horizonte 2014


GUILHERME BAKUNIN ARAÚJO SÁ

CINEMA DE GÊNERO AMERICANO NOS ANOS 1990

Monografia apresentada ao curso de Artes Visuais de Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Artes Visuais, Cinema de Animação.

Orientador: Evandro José Lemos da Cunha

Belo Horizonte 2014


GUILHERME BAKUNIN ARAÚJO SÁ

O CINEMA AMERICANO DE GÊNERO NOS ANOS 1990

Monografia submetida à banca Examinadora designada pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Artes Visuais, Cinema de Animação.

Aprovada em ______ de ______________________ de 2014.

____________________________________________ Professor Evandro José Lemos da Cunha Orientador

_____________________________________________ Professor Luiz Roberto Pinto Nazário Membro da Banca Examinadora


RESUMO Este projeto tem como objetivo trabalhar as ideias expostas por Jim Collins em seu ensaio “Genericity in the Nineties: Eclectic Irony and the New Sincerity”, de 1993, a partir do estudo dos caminhos que o cinema de gênero americano começou a percorrer entre o final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, a saber: a “ironia eclética” e a “nova sinceridade”, através de exemplos específicos de cada caminho e do desenvolvimento de uma argumentação que consolide esses dois conceitos. Palavras-Chave: Nova Sinceridade, Ironia Eclética, Cinema de Gênero, Cinema Americano, Estudo de Gênero, Jim Collins.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 5 2 DEFINIÇÕES INICIAIS E NECESSÁRIAS ..................................................................... 6 3 IRONIA ECLÉTICA ........................................................................................................... 8 3.1 Ironia eclética: Noções gerais............................................................................... 15 4 NOVA SINCERIDADE ...................................................................................................... 16 4.1 Nova Sinceridade: Noções gerais ......................................................................... 24 5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 25 NOTAS .................................................................................................................................... 27 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 28



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1 INTRODUÇÃO

Esta modesta monografia surge a partir da necessidade de que novas ideias da crítica cinematográfica possam ser mais fervorosamente trabalhadas na academia, afim de gerar bibliografia e possibilitar pesquisas futuras mais aprofundadas e instigantes. Naturalmente todos os conceitos aqui apresentados não são fechados e definitivos. Todos os significados podem ser traduzidos, transformados e subvertidos, a partir da interpretação e argumentação de cada um. Mas as constatações de Collins encontram respaldo na observação dos filmes por ele mencionados, e na identificação das características e elementos por ele apontados em outros filmes. Muitos outros filmes poderiam ser mencionados nesse estudo, mas decidiu-se forcar especificamente em seis, para dar o aprofundamento possível, mas necessário, nos conceitos que pretende-se desenvolver. Através da comparação direta entre filmes mais ou menos do mesmo ano e no mesmo gênero, buscou-se explanar da maneira mais clara possível as constatações de que Collins foi percursor. De Volta para o Futuro III e Dança com Lobos são ambos de 1990 e pertencem, cada qual à sua maneira, ao gênero faroeste, muito embora guardem gigantes diferenças entre si, o que explicita claramente como se dão os dois caminhos que o cinema de gênero pode aqui explorar. Pânico e Os Viciosos são dois filmes de terror, com duas aproximações bastante distintas do gênero. Nenhum dos dois filmes foi citado no ensaio de Collins, até por serem posteriores, de 1996 e 1995 respectivamente, portanto suas características são facilmente identificáveis como pertencentes a vertentes distintas na aproximação do cinema de gênero nos anos 1990. Coração Selvagem e Campo dos Sonhos guardam como única semelhança serem, em gênero, similares. Mas através do drama familiar, seus respectivos diretores exploram temas e imagens completamente distintas, ainda que mágicas, fabulosas.


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2 DEFINIÇÕES INICIAIS E NECESSÁRIAS

Em 1993 o crítico Jim Collins cunhou o termo “nova sinceridade” para se referir a um caminho específico nos filmes americanos da época, em contraste com um outro, o qual referiu como “ironia eclética”. A ideia de contraponto surge a partir da observação de que muitos filmes de gênero no começo dos anos 1990 ou trabalhavam com a justaposição de elementos que não pertenciam originalmente ao gênero narrado, ou partiam numa incessante busca de uma “pureza perdida”. Ambas as proposições são respostas coletivas ao que Collins chama de “panorama da cultura americana saturada pela mídia”, definido pela hiperconscientização dos filmes de gênero de sua própria hibridização. Esse fenômeno é apontado por Collins como consequências de três principais fatores: a) O impacto da televisão no cinema, por volta de 1950, responsável principalmente por demarcar quais tipos de filmes receberiam prioridade na produção da velha Hollywood; b) O advento da fita vhs, no início dos anos 1980, responsável pela difusão simultânea de filmes das mais variadas épocas; c) A circulação incessante de signos e imagens, através do cinema, vídeo e televisão, contribuindo para a construção de um extenso vocabulário imagético na “vida cultural pós-moderna” (COLLINS, 1993, p. 246) A assimilação desses três principais fatores possibilita acesso imediato a um grande escopo de produções cinematográficas de forma aleatória e simultânea.

“A simultaneidade não diminui o status cultural [da contemporaneidade], mas altera suas funcionalidades possíveis, que possui vastas implicações de como gênero, e por extensão cultura popular, funcionam na cultura contemporânea.”¹ (COLLINS, 1993, p. 246, tradução livre.)

Acesso a uma ampla bagagem cultural de imagens e signos e a circulação globalizada desses elementos criam uma audiência sofisticada, muito mais consciente das formatações


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narrativas, que anseia um cinema que, mesmo na genericidade seja capaz de atender às demandas dessa sofisticação.


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3 IRONIA ECLÉTICA

Temos a ironia eclética quando ocorre a justaposição de elementos anacrônicos e estranhos ao gênero que o filme busca retratar. Essa relação assume contornos inclusive metalinguísticos, pois nos casos em que há ironia eclética ela é geralmente acompanhada da autoconsciência narrativa na questão do gênero: é como se o próprio filme estivesse ciente de sua genericidade. O caminho aqui é justamente o oposto daquele percorrido na “nova sinceridade”. A paródia aparece com certa frequência, como uma maneira de comentar o gênero ao qual o filme se dedica, de maneira que não se pretende partir desse gênero para caminhar rumo uma reflexão que gera ressignificação, mas parte-se do gênero para trabalhar a colagem de diversos elementos num plano de fundo original. De acordo com o ensaio de Collins, a ironia eclética parte da justaposição de elementos anacrônicos para então assumir caminhos específicos em cada tipo de filme:

“As maneiras divergentes e por vezes até conflitivas que as narrativas recentes rearticulam as estruturas convencionais de gêneros populares se tornou uma característica distinta na textualidade contemporânea. (...) Enquanto as apostas e estratégias [dos filmes] podem diferir [entre si] profundamente, há uma coisa em comum: o reconhecimento de que as características convencionais dos filmes de gênero que estão subjugadas a essa rearticulação intensiva não são meramente restos de um passado cultural desgastado – esses ícones, cenários e convenções visuais continuam a levar consigo uma certa carga de ressonância cultural que precisa ser retrabalhada de acordo com as exigências do presente.”² (COLLINS, 1993, p. 256, tradução livre.)

Em De Volta para o Futuro III (Back to the Future III, 1990), de Robert Zemeckis, ocorrem diversos estranhamentos em razão da contemporaneidade do protagonista Marty (Michael J. Fox) conflitante com a época em que o filme se passa – por volta de 1880, no “velho oeste americano”. O mais explícito estranhamento é a própria presença da máquina do tempo – um carro DeLorean – em um cenário insólito de faroeste. Em uma das cenas, Marty e Doc usam cavalos para puxar o DeLorean através do deserto: o futuro, presente e passado


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coexistindo através de uma colagem eclética e pós-moderna, capaz de sintetizar em um mesmo plano John Ford, H.G. Wells e cultura popular dos anos 1980. O plano de fundo original em De Volta para o Futuro III é o faroeste, enquanto a colagem de diversos elementos está presente nas figuras contemporâneas de Marty McFly, Dr. Emmet Brown (Christopher Lloyd) e até mesmo o próprio veículo que, no filme, funciona como uma máquina do tempo (o carro DeLorean). Além dos personagens, há outros elementos que também fazem parte dessa colagem. É o caso da placa de publicidade composta por índios, que aparece segundos antes de Marty voltar no tempo, fazendo referência direta ao passado que Marty estava prestes a visitar, um passado que não é real, mas da ficção, o passado mitológico do velho oeste americano, que a própria cultura cinematográfica clássica ajudou a criar. Também é o caso das diversas referências que se tem em De Volta para o Futuro III a outros filmes, especialmente os faroestes, como o relógio da cidade referenciando tanto a Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) quanto aos outros dois filmes da série De Volta para o Futuro, o festival da cidade referenciando ao clássico Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946), de John Ford, ou as recorrentes citações de Marty a Clint Eastwood. Justapor elementos originalmente pertencentes a uma cultura visual distinta já seria argumento para classificar De Volta para o Futuro III como pertencente a “ironia eclética”, mas o filme de Zemeckis não para por aí, pois se constrói a partir da fundação sólida de seus dois filmes antecessores (o primeiro e o segundo filmes da série De Volta para o Futuro), criando conexões literais com um vocabulário que esses outros filmes desenvolveram. Essa conexão ocorre na história o tempo todo, sem antecipação ou alvoroço: é exigido do espectador o conhecimento prévio dos dois primeiros filmes para que a experiência de se assistir ao terceiro seja completa e satisfatória. Isso pode parecer óbvio, se tratando de filmes de uma mesma série, mas a verdade é que existem inúmeros exemplos, anteriores e futuros à trilogia de Zemeckis, que contradizem essa aparente óbvia expectativa: os filmes do 007, da trilogia dos dólares, do Dr. Mabuse, a franquia Poderoso Chefão, os primeiros três filmes do Homem Aranha, o Cavaleiro das Trevas, etc. Os filmes dessas séries, em menor ou maior grau, possuem certa interdependência, mas cada filme é fechado e coeso em si mesmo. Parte dessa conexão acontece naturalmente por se tratarem de filmes arquitetados para se relacionarem diretamente uns com os outros (no presente, por exemplo, do primeiro até o último filme não se passa mais do que 24 horas), mas muito decorre do próprio vocabulário


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metalinguístico que a franquia formatou, ao unir ciência, cultura popular, cinema de gênero, personagens históricos, etc. É esperado que o espectador possua uma “alfabetização” de generalidades, que perpassam vários campos de conhecimento (da moda à música, do cinema à História, etc), constituindo um vocabulário pós-moderno por excelência. Um fundamento marcante para a “ironia eclética” no cinema de gênero é justamente o reconhecimento dos filmes pertencentes a esta classificação de que a bagagem do espectador comum tornou-se muito mais sofisticada e intertextualizada do que em outros tempos; exigese desses filmes, portanto, que dialoguem com esse espectador, através de um vocabulário de referências e conexões que seja igualmente sofisticado e intertextual. Um outro exemplo de “ironia eclética” no cinema americano dos anos 1990 é Pânico (Scream, 1996). O renomado cineasta Wes Craven, tido por muitos como um dos grandes expoentes do cinema de terror dentro dos Estados Unidos, lançou em 1996 o primeiro filme dessa franquia, que não fora talvez pensada para ser uma franquia, mas uma ambiciosa e divertida homenagem a um subgênero do cinema de terror conhecido como slasher. Existem alguns elementos que caracterizam o que se chama de slasher. Quase sempre os personagens principais são jovens e formam um grupo de amigos que vão sendo um a um assassinados por uma figura misteriosa, que se relaciona com o grupo em razão de algum evento passado que tem, no tempo presente, um significado marcante de sua memória (por exemplo, em Pânico, o evento marcante é o assassinato da mãe da protagonista, ocorrido exatamente um ano antes dos eventos do filme). A origem do slasher está em Reação em Cadeia (A Bay of Blood, 1971), do grande mestre italiano Mario Bava. No filme, herdeiros de uma mesma família são assassinados, um de cada vez, por uma das filhas e seu marido (algo que só é revelado ao final do filme), para que eles possam ficar com todo o dinheiro da matriarca, que também fora assassinada por uma outra pessoa). No final, marido e mulher são mortos inexplicavelmente pelos seus filhos pequenos. Com essa gênese, o slasher já é uma vertente irônica do gênero de terror, pois releva a morte ao plano do mais puro espetáculo, esvaziando-a de significados. O objetivo é um só: o filme slasher deseja orquestrar as mais variadas e masoquistas mortes para seus personagens, tudo para deleite do espectador. A ironia aqui contida vai além do sentido comumente atribuído ao termo, de deboche. É a ironia dramática, artifício narrativo amplamente utilizado


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desde os tempos da tragédia grega, que ocorre quando a mensagem transmitida pela obra tem caráter de alienação em relação ao personagem – ou seja, o filme utiliza o personagem para transmitir ao espectador certa mensagem, sem que o personagem tome ciência dessa informação. Isso ocorre no slasher devido a uma particularidade deste subgênero, as sucessivas e espetacularizantes mortes. Diante de um filme slasher, o espectador reconhece essa particularidade e se torna ciente de suas ferramentas, dos seus clichês. Quando um personagem está próximo de sofrer um ataque, por exemplo, o espectador já é capaz de prever que esse ataque de fato ocorrerá. Pânico surge nos cinemas num momento histórico específico, em que o slasher já havia caído em exaustão com o público. Porém, assume como proposta uma abordagem intertextual que encontra seus fundamentos nos princípios da “ironia eclética”. O filme é inteiramente consciente de que a) é de fato um filme e b) é de fato um filme de terror slasher, e seus personagens brincam, através de suas falas e ações recorrentes, com esse conflito. Um fundamento importante para que Pânico assuma esses contornos de autoconsciência de gênero é que, no universo do filme, filmes do mesmo gênero existem e são a todo momento referenciados. Numa das cenas, por exemplo, Randy (Jaime Kennedy) assiste a um filme de terror em que uma criatura está atrás da personagem principal. Ele começa a gritar “olhe para trás, olhe atrás de você”, no exato instante em que o assassino está atrás dele, empunhando uma faca, prestes a mata-lo. Porém, uma das cenas mais emblemáticas de “ecleticidade genérica” ocorre logo no início, em que a protagonista Sidney (Nave Campbell) está falando com o assassino ao telefone. Ele pergunta qual seu filme de terror preferido, e ela responde que não gosta “dessas merdas”, justificando que os clichês do gênero são irritantes, entre os quais ela cita o velho clichê da garota que, após investigar um barulho no escuro, corre escada acima para fugir da criatura/assassino. Após um pouco mais de conversa, Sidney realmente sai para investigar se há alguém do lado de fora da sua casa, mas não encontra ninguém. Então ela entra, tranca a porta de casa e vira para ir em direção à sala, quando é repentinamente atacada pelo assassino. Após golpeá-lo com o telefone, ela tenta fugir para fora de casa, mas como a porta está trancada, não há tempo hábil para isso, portanto ela é obrigada a subir as escadas.


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Essa cena é tão importante porque escancara que Pânico está ciente dos clichês do subgênero ao qual propositalmente se enquadra, mas se recusa terminantemente a fugir deles, sempre se pautando pelo diálogo de intertextualidades metalinguísticas com o espectador. A intertextualidade também é assunto importante em Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990), de David Lynch. Com interpretações de Nicolas Cage, Laura Dern e Diane Ladd, o filme narra as aventuras de um jovem casal pelas estradas do meio oeste americano enquanto tentam escapar das garras opressoras de uma mãe possessiva. O vocabulário imagético do filme é formulado a partir da intercalação entre fantasia e realidade, entre o escapismo e o mundano. A fim de darem sentido a um mundo que não compreendem perfeitamente, os jovens Sailor e Lula (Cage e Dern respectivamente) apropriam-se das imagens de O Mágico de Oz para apontarem quais são seus medos, incertezas, sonhos e alegrias. As relações mais básicas aqui presente são a bruxa má do oeste como a mãe possessiva de Lula; a estrada de tijolos amarelos como caminho para a felicidade; e o lugar além do arco-íris como a felicidade plena. Ao aproximar seu filme do clássico juvenil de Victor Fleming, Lynch traça uma relação fundamentalmente intertextual que, por se tratarem de obras tão dissonantes entre si, existe em disparidade. Enquanto O Mágico de Oz é um filme essencialmente sobre valores morais e família, Coração Selvagem é um drama familiar com ares de horror e erotismo. Collins menciona David Lynch em seu ensaio, caracterizando parte de seu trabalho como “paródia ambivalente” (COLLINS, 1993, p. 256). Coração Selvagem se encaixa nessa descrição, pois sua estrutura também se assemelha muito a de um road movie (filme de estrada, onde o assunto da história se desenrola ao longo de uma viagem ou jornada), com percalços e emoções semelhantes aos de O Mágico de Oz, estreitando ainda mais a relação entre os dois filmes. Há um aspecto também bastante relevante quando se fala de “ironia eclética”, que Collins define como “sequestro de signos” (COLLINS, 1993, p. 256).

“Nesse ponto esses signos se tornam referências duplas, referindo-se ao mundo “realmente real”, mas também à realidade do conjunto, responsável por formatar as experiências cotidianas nessas culturas. É a negociação individual desse


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conjunto que forma o processo delicado de não apenas manter, mas de rearticular memórias culturais”³ (COLLINS, 1993, p. 255, tradução livre)

Na argumentação de Collins, o cinema de gênero reflete aspectos sócio-culturais de uma determinada cultura, e a rearticulação desse gênero escancara que muitos desses aspectos já foram transformados pela sociedade. Essas rearticulações são, como mencionado na citação acima, “negociações individuais”, cada filme realizando a sua própria. Por exemplo, Thelma e Louise, de Ridley Scott, rearticula o road movie e o “buddy film” (filmes em que o assunto principal é a amizade entre dois protagonistas masculinos) ao falar sobre a realidade oprimida das mulheres num contexto de gênero essencialmente masculinizado. Coração Selvagem por sua vez, rearticula noções de família e burguesia afim de criar uma história de amor redentora, em que Sailor e Lula conseguem no fim a prerrogativa de serem livres: livres das convenções de uma família estruturada, de uma classe social essencialmente opressora. O tempo todo o filma pulsa com o embate entre o passado e o presente, daqueles que têm posses e lugar estabelecido num mundo vigente contra aqueles que são nômades, cujas posses se limitam aos seus intensos sentimentos. Segundo Tom Jannings, o arco dramático de Coração Selvagem é a história da nova classe média temendo retornar as suas origens desprivilegiadas:

“O passado sempre os alcança. (...) Os amantes buscam libertarem-se de abastada mãe de Lula cujo status deriva do gangsterismo – em muitos aspectos mais representativo para a história da economia Americana do que lojistas. (...) O inferno da classe baixa paira, e as preocupações de Sailor, Lula, sua família e comunidade, colidem e refletem com a cruel paixão animalesca de seus habitantes. (...) Eles escaparam do gueto, mas ao expressarem paixões perigosas podem retornar. Para estarem a salvo, o romance deve se limitar à própria classe e raça, demarcados psicológica e geograficamente por estruturas sociais convencionais americanas.”4 (JENNINGS,

Tom,

Class-ifying

Contemporary

Cinema.

Em:

<http://www.tomjennings.pwp.blueyonder.co.uk/Class.html>. Acesso em 25 novembro 2014, tradução livre.)


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É interessante a palavra escolhida por Collins para referenciar esse aspecto específico da “ironia eclética”: os signos, nesse sentido, não são meramente furtados, mas exatamente sequestrados; o termo original utilizado pelo autor é “hijack”, fazendo referência direta ao ato de sequestrar um veículo. Nesse caso, os signos são tomados de posse para seguirem por um outro curso, sob as rédeas de seu novo utilizador. Em Coração Selvagem, a classe abastada é ressignificada em monstruosidade; o passado em trauma e fogo; o sexo em “droga e anestésico”. A estrada, que em road movies é geralmente símbolo de libertação, é aqui mero palco de uma fuga implacável fadada ao fracasso quase fatal dos protagonistas. A história é interpelada por flashes intrusivos de chamas em profusão e por imagens ruidosas da faixa amarela das estradas – figurações que dão o tom do confronto entre o passado obscuro e o presente em escapada.


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3.1 Ironia eclética: Noções gerais

Jim Collins identifica uma exaustão no panorama cultural americano e propõe que esse desgaste afeta em cheio o cinema de gênero americano a ponto de iniciar uma transformação em seus valores mais essenciais, e identifica duas correntes principais nas quais essa transformação acontece. À primeira dessas correntes ele dá o nome de “ironia eclética”, caracterizada pela dissonância, pela justaposição de imagens que claramente não pertencem ao mesmo universo. Essa justaposição pode se dar nas mais variadas formas, através de inúmeras estratégias visuais e narrativas. A ecleticidade decorre da justaposição de imagens, e a ironia decorre da consciência de que essas imagens são anacrônicas e dissonantes entre si. Os filmes que trabalham com gênero através de “ironia eclética” tendencialmente utilizam grande arcabouço de referências ou metalinguagem. Em De Volta para o Futuro III, essa corrente é observada na mescla do gênero faroeste com imagens e comportamentos contemporâneos, além de constante uso de referências a outros filmes, especialmente aos dois anteriores da franquia. Em Pânico, a metalinguagem faz as vezes de protagonista, revelando não só que os filmes são capazes de articularem redes autorreferenciais, mas que o público de massa é capaz de captar perfeitamente essa mensagem. E em Coração Selvagem, David Lynch se apropria do vocabulário imagético de O Mágico de Oz para falar sobre uma história que, através do surrealismo e dos gêneros de drama, romance e road movie, fala sobre uma nova e maculada classe média. Existem obviamente outras maneiras nas quais a “ironia eclética” acontece, não sendo possível mapeá-las num estudo tão curto – nem mesmo Collins, que cunhou o termo, foi capaz de fechar a definição de seu conceito. Mas ele identifica os parâmetros gerais dessa vertente, possibilitando futuros aprofundamentos e/ou argumentações a partir das ideias que ele desenvolve.


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4 NOVA SINCERIDADE

A “nova sinceridade”, em contrapartida, acontece quando há a busca incessante por uma pureza perdida. É um retorno ao gênero original, mas através de uma consciência contemporânea sólida. O filme que pertencente a essa classificação não pretende emular ou parodiar um gênero; pretende ser, de fato e irrevogavelmente, um filme de gênero, ao mesmo tempo em que trabalha com problemáticas supostamente contemporâneas num espaço de tempo idealizado. Em Dança com Lobos (Dances with Wolves, 1990), temos um retorno ao filme de faroeste, mas de maneira diversa daquele de De Volta para o Futuro III. Dessa vez não há justaposição de elementos anacrônicos e estranhos. O filme de Costner é um faroeste revisionista que se esquiva dos elementos formais padrões do faroeste comum, enquanto o subverte para torna-lo mais humano. Dança com Lobos acontece durante um período específico da história americana, logo antes da colonização, quando o Tenente Dunbar (Kevin Costner) é enviado pelo exército para a fronteira com o Oeste afim de aprender sobre o estilo de vida dos nativos locais. A maioria dos filmes faroeste, porém, acontece no período colonizador, quando os brancos já se estabeleceram em terras do oeste. Através das interações e anotações do Tenente Dunbar, Dança com Lobos se situa num período pré-colonizador, ao mesmo tempo em que trabalha com o gênero faroeste e resolve as problemáticas contemporâneas desse gênero (que é a própria colonização, a dizimação dos índios em terras americanas e a falência do cinema faroeste clássico em reconhecer a cultura nativo-americana como legítima ou ao menos existente). Jim Collins descreve em seu ensaio alguns componentes encontrados, de maneira geral, nos filmes de “nova sinceridade”:

“(...) a volta ao tempo longe da sofisticação corrupta da cultura midiática em direção a uma autenticidade perdida definida simultaneamente como um cultura popular elementar ainda-não-corrompida, e como espaço bem sucedido de projeção narcisista, o “espelho mágico” do herói; a colocada em primeiro plano daquilo que é não apenas intertextual, mas também do “original-textual”, na qual um gênero original


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assume uma postura quase-sacra como garantia de autenticidade; a fetichização do “crer” ao invés da ironia como única maneira de resolução de conflitos; a introdução de um imaginário de genérico novo que se torna o único espaço onde conflitos insolúveis podem ser resolvidos.”5 (COLLINS, 1993, p. 259, tradução livre.)

A respeito disso, vale observar algumas coisas. Primeiramente, que a “nova sinceridade” surge como resposta a um problema de saturação de cultura midiática, como se houvesse demanda para que fossem feitas novas explorações no que diz respeito a gênero e cinema num contexto americano. O primeiro componente arrolado por Collins é justamente aquele que é, para ele, o mais primordial: o retorno a um tempo que não é apenas passado, mas também idealizado. Segundo, o que foi traduzido como “original-textual” é originalmente referido por Collins como “ur-text”, termo de origem alemã pertencente à cultura da composição musical. “Ur-text” é a versão impressa original da composição, procurada quando o objetivo é reproduzir da maneira mais exata possível àquilo que o compositor original pretendeu. Collins furta esse termo para seu estudo objetivando referir-se ao gênero original, sem justaposições nem interferências, que ocorrem naturalmente no cinema com o passar das décadas. Portanto, também é objetivo da “nova sinceridade” buscar esse gênero imaculado, original. A respeito do componente mais primordial, ele se encaixa em Dança Com Lobos perfeitamente, pois ao situar-se no período pré-colonizador, o filme é capaz de partir realmente do princípio da questão que aborda para então problematiza-la e resolvê-la. O problema mais emergente é justamente o tratamento que os nativos receberam no cinema americano de faroeste ao longo das décadas, num reflexo/metáfora com o tratamento dado a eles pelos colonizadores: cheio de ódio, preconceitos, deboche. O tenente John Dunbar não é um colonizador, mas uma espécie de cartógrafo, responsável por conhecer a região da fronteira e seus habitantes naturais. Para resolver a questão dos índios no cinema faroeste, Costner faz uma regressão que é anterior ao próprio cinema faroeste em si, na busca do mais puro princípio. Essa regressão ao princípio ocorre no cinema da “nova sinceridade” por três motivos principais: o primeiro é que apenas ao afastar-se da contemporaneidade mirando no passado, num passado idealizado e não corrompido, é que as problematizações contemporâneas de cinema de gênero podem apontar para algum lugar; a segunda é que esse afastamento ocorre


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não apenas no nível da história, mas no gênero em si; a terceira, é que esse lugar geralmente se análoga com o protagonista. À princípio, o tenente Dunbar é um homem vazio, de personalidade desforme. Os contornos da pessoa que ele realmente é são acentuados apenas na medida em que ele se afasta do nacionalismo yankee indo em direção ao estilo de vida da tribo Sioux. Através da conversão de Dunbar em Sioux, ressalta-se outro componente mencionado por Collins: a crença colocada acima da ironia como ferramenta para solucionar conflitos. Ao entregar-se ao estilo de vida nativo, Dunbar está desmunido de sua identidade cultural original à procura de uma outra que lhe tenha mais valor e identificação. Essa estrega ocorre através de fé, e não da racionalização. Quando o tenente é capturado pelo exército yankee, sua conversão é tratada com ironia e desprezo, mas Dunbar permanece inflexível, mesmo diante da iminente possibilidade de ser executado, pois a sua crença é agora potente demais para ser ignorada. Em Campo dos Sonhos (Field of Dreams, 1989), Ray Kinsella (Kevin Costner) ouve uma voz vinda do seu milharal que diz: “se você construir, ele virá”. A interpretação de Ray é que se ele construir um campo de beisebol, o jogador favorito de seu pai, Shoeless Joe Jackson (Ray Liotta) retornará para um último jogo. Movido por uma crença firme, porém inexplicável, Ray gasta suas despesas e constrói o tal campo, mas a voz não cessa em lhe dar novos enigmas para serem decifrados. Logo no início o filme descreve brevemente o contexto familiar passado de Ray, ressaltando alguns aspectos importantes da complicada relação que tem com seu pai e também da apaixonada proximidade que, tanto ele quanto seu pai têm do beisebol. Quando Ray constrói o campo, Shoeless Joe Jackson realmente retorna do além para jogar, fundando ali uma fissura no tempo e na realidade. Embora a ação natural do filme se dê no final dos anos 1980, o campo mágico existe em 1919, ocorrendo aí a manifestação do primeiro componente citado por Collins, com a adição de um pormenor específico ao filme, já que a histórica equipe dos Chicago White Sox – a qual pertence Joe Jackson – entregou naquele ano o campeonato mundial para os Cincinnati Reds, muito embora não tenha sido provado que Jackson realmente participou dos escândalos. Ou seja, o campo mágico marca o retorno de um tempo anterior à corrupção cultural midiática citada por Collins, mas também da corrupção mais literal, praticada pela equipe adorada pelo pai de Ray.


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O segundo componente, descrito como “o espelho mágico do herói” acontece na medida em que, dentro do filme, torna-se claro que o campo não é construído para fazer retornar antigas lendas do beisebol, mas para que Ray seja possibilitado de resolver as questões pendentes com seu pai. Num certo momento do filme, Ray fala sobre como o seu pai teve uma carreira fracassada no beisebol, e sobre como seu pai teria projetado nele a sua frustração. Durante a adolescência, Ray teria parado de jogar bola com o pai, fugindo posteriormente de casa durante anos, sem retornar a tempo de se desculpar. A jornada de Campo dos Sonhos é o despertar do herói para essa pendência, e sua consequente luta para resolvê-la. A respeito do conflito entre crença e ironia, Campo dos Sonhos é também especialmente adequado para análise, pois o tempo todo as pessoas taxam Ray de maluco, por não conseguirem ver no campo construído por ele os jogadores do passado (ao passo que Ray e sua família veem). Ou seja, ao passo que o herói tenta manter inabalável sua crença, mesmo diante das adversidades específicas apresentadas pelo filme (Ray está à beira da falência), essa crença é rebatida duramente pela ignorância daqueles que não possuem a força da sua fé. É no campo mágico também que ocorre a manifestação do último componente descrito por Collins: a construção de um imaginário que torna possível a resolução dos conflitos. Em razão da fissura temporal provocada pela construção do campo, acontece a materialização do pai de Ray, mas não sua versão corrompida pela amargura do fracasso de seu sonho, mas uma outra, bem mais jovem, repleta de estímulos e ânimos. No campo mágico, o pai de Ray não é um jogador fracassado, mas um jovem esguio e promissor. E Ray, agora mais maduro, não é mais um adolescente em crise existencial, incapaz de suportar e compreender a pressão opressora do pai, mas um pai de família emocionalmente bem resolvido. Diante dessas circunstâncias, possíveis apenas através da construção desse campo mágico, idealizado, manifestação pura daquilo que é chamado de “nova sinceridade”, Ray e seu pai são capazes novamente de jogar bola, unidos pelo afeto existente entre ambos, mas também pela paixão que compartilham. Os Viciosos (The Addiction, 1995), de Abel Ferrara, coloca questões pertinentes da “nova sinceridade” sob a ótica do cinema de terror. No filme, uma estudante de filosofia interpretada por Lili Taylor é repentinamente transformada em vampiro e deve lidar com seu anseio por sangue humano e todas as implicações éticas e morais disso.


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A assimilação de Os Viciosos na “nova sinceridade” é um pouco mais complicada do que a de Campos dos Sonhos, por exemplo, porque muitos dos elementos arrolados por Collins como caracterizantes do que ele define como “nova sinceridade” não são, talvez, explicitamente identificáveis, sendo necessária uma análise um pouco mais aprofundada do filme para serem encontrados. Primeiramente, observa-se que elementos da estrutura técnica da obra, como e especialmente a fotografia em preto e branco e um certo aspecto tosco na captação de imagem e áudio, existem para que o filme assuma contornos nitidamente antigos, muito embora lide com inquietações contemporâneas. Caracteriza-se aqui, então, o retorno ao “original-textual”, através de meios sonoros e visuais principalmente, e não tanto formais ou filosóficos (como ocorre em Campos dos Sonhos). Outro aspecto sumariamente importante é o que Collins define como “volta ao tempo longe da sofisticação corrupta da cultura midiática em direção a uma autenticidade perdida” (p. 259). Mais uma vez, esse aspecto aparece explicitamente em Campos dos Sonhos, e em Os Viciosos

sua

manifestação

é

mais

contida,

expressa

no

próprio

processo

de

crescimento/aceitação de sua heroína. Primeiramente, há de se notar que estamos na Nova York dos anos 1990, cheia de sujeira, carros, fumaça, prédios, asfalto e sujeitos estranhos. É o revelar completo de um contexto social contemporâneo corrompido, cheio de bagunça e encontros desajustados. É nesse lugar que Katheleen Conklin é mordida por uma figura feminina misteriosa durante a noite, apenas para se ver com fortes dores e desconfortos psicológicos algumas horas mais tarde, em função de um desejo que fora recém-despertado, muito provavelmente em função da estranha mordida: o desejo de sangue humano. A principal inquietação de Os Viciosos é o conflito pelo qual Kathleen passa entre ceder aos seus recém adquiridos instintos, cedendo ao mesmo tempo à maldade, pois tirar sangue humano de uma pessoa significa mata-la (ou transforma-la igualmente nessa criatura morta, vampírica, que ela agora é), ou resistir, tendo uma postura moralmente bela que vai, porém, contra aquilo que ela é e deseja. A “nova sinceridade” requer um lugar específico, de forte significado para a história. Um lugar que é ao mesmo tempo reflexo narcisista do herói e único local possível para resolverem-se conflitos impossíveis.


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Portanto, para que um filme seja “nova sinceridade”, é necessário que nele se encontre esse lugar mítico, capaz de transformar para sempre a vivência do herói. Em Dança com Lobos esse lugar é a cultura Sioux, que descortina para Tenente Dunbar a pessoa que ele necessita ser, enquanto se torna palco da aproximação improvável de cultura nativa e cultura yankee, harmoniosa e respeitosamente. Em Campo dos Sonhos esse lugar é o campo de futebol construído por Ray, que é ao mesmo tempo um campo e um portal do tempo, capaz de tornar possível o retorno de seu pai para que eles possam, mesmo após a morte, se reconciliar. Esse lugar também existe em Os Viciosos, embora não se manifeste fisicamente. O local de projeção narcisista bem-sucedida de Kathleen é o momento em que ela reconhece sua essência maldosa, aceita suas desfigurações e se compromete a enfrenta-las, diretamente, não como negação de seu próprio ser, mas como força motriz para uma redenção que ela, ao final do filme, acredita ser possível. É um lugar que de uma só vez é um retorno ao tempo, um espelho-mágico e o espaço mítico onde o insolúvel é solucionado: é a salvação através da religião, mais precisamente a religião católica.

“No filme (...), a fé Católica é retratada como algo que seu possessor ingora, ou até nega, mas que eventualmente torna-se forte demais para ele: algo insistente e, em última instância, belo. Para descrever essa visão, Ferrara faz uso de uma série de ferramentas narrativas relacionando o venal com o sagrado.”6 (SCOTT, Jason Mark, Beautiful and Opressive – Lyricism and Catholic Angst in Abel Ferrara’s Bad Lieutenant.

Em:

<http://offscreen.com/view/bad_lieutenant>.

Acesso

em

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Novembro 2014, tradução livre.)

Neste excerto, Jason Mark Scott fala a respeito de outro filme do diretor, mas a correlação entre as temáticas torna possível o uso desse pedaço de texto para descrever uma característica de Os Viciosos, até porque no último a ideia de redenção através da fé católica é ainda mais evidente e manifesta. Falar sobre catolicismo é, dentro do contexto da estética de Abel Ferrara, falar de cultura popular; seu cinema é fortemente influenciado pela sua origem italiana, num embate feroz contra a cultura americana a qual sua criação fora submetida. Essa dicotomia na construção de personalidade do diretor se análoga muito bem com o que a própria ideia de “nova sinceridade” significa para os anos 1990: o cinema de gênero que se enquadra nos


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preceitos da “nova sinceridade” tenta recuperar as raízes perdidas com o que há de mais clássico e puro em determinado gênero, enquanto coexiste com a intensa tendência de miscigenação cultural do fim do milênio. E o catolicismo enquanto cultura popular é milenar, de forma que retornar a ela é olhar para trás em muito e muito tempo. Enquanto em Campo dos Sonhos o retorno à cultura popular demarca-se nos Estados Unidos dos anos 1920, por exemplo, em Os Viciosos, sair do contexto jovem e universitário da efervescente Nova York dos anos 1995 para retornar ao catolicismo é um regresso ainda mais impactante. Diante dos tormentos por Kathleen na sua cidade-mãe, incapaz de encontrar a paz interior que ela tanto procura por ver-se subjugada demais a uma vontade moralmente maldosa que ela não consegue controlar, o seu último refúgio é a encontrar a todo custo a morte; Kathleen tenta de fato morrer materialmente, mas vê-se impedida de concretizar tal tarefa devido as particularidades da pessoa que ela é. Consegue, no entanto, sepultar seu corpo num sentido espiritual, fundamentalmente católico. Fazer morrer o corpo, na mitologia cristã, é abrir mão de seus desejos e suas vontades; segundo essa mitologia, somente assim poderá ser alcançada a vida eterna, em gozo de plena felicidade. Entregando-se à fé católica, Kathleen consegue reunir motivação suficiente para abrir mão de seus desejos carnais (o vício em sangue humano) e, mais do que isso, consegue alinhar seus posicionamentos morais e filosóficos com uma teoria que parece ser sólida e verdadeira o suficiente para inquietar seus incômodos mentais. É preciso observar novamente que Os Viciosos é, antes de qualquer coisa, um filme de terror sobre vampiros; possui lá suas variadas interpretações, e realmente há fortes indícios de que o vampirismo é usado também como metáfora para representar qualquer tipo de vício ou distúrbio humano – mas é, repito, um filme sobre vampiros em primeira instância. O vampiro, mitologicamente, é representado em total desacordo com o catolicismo – uma das maneiras mais efetivas de salvar-se de um, segundo as mais famosas histórias, é ter posse de uma cruz, por exemplo. Realocar o vampirismo para um contexto de redenção católica é, portanto, “introduzir um novo imaginário genérico que se torna o único local onde os conflitos insolúveis podem ser resolvidos”, e ainda fazendo uso da “fé ao invés da ironia como única maneira de se resolver conflitos” (COLLINS, 1993, p. 259), como Collins propõe. É exatamente através do uso dessas forças que o diretor Abel Ferrara faz florescer uma de suas mais notáveis características: o uso do catolicismo como dispositivo narrativo. Como


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apontado por Jason Mark Scott, a fé católica manifesta-se de forma tão intensa no imaginário dos filmes de Ferrara que torna-se força inexorável, irresistível. Criar uma atração entre o vampirismo e o catolicismo é unir, através das inquietações pessoais do diretor, duas forças antagônicas, excludentes; essa união só é possível, dentro de Os Viciosos, pela constatação de que simplesmente não há outra saída para Kathleen – das infinitas escolhas que ela poderia fazer enquanto pessoa, a única que lhe pacificaria seria a redenção católica.


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4.1 Nova Sinceridade: Noções Gerais

Collins defende que o cinema Americano de gênero caminhou para duas direções distintas diante das demandas do entretenimento no final dos anos 1980. A primeira é a “ironia eclética”, em que ocorre a justaposição de elementos que não pertencem ao mesmo lugar; a segunda é a chamada “nova sinceridade” que se apropria do gênero não para justapor elementos estranhos e anacrônicos entre si, mas para buscar, essencialmente, uma pureza perdida. Essas apropriações do gênero no cinema americano demonstram uma tentativa de reinvenção diante de um paradigma de esgotamento. Enquanto essa reinvenção acontece na “ironia eclética” através da imersão de elementos dissonantes, provindos dos mais variados universos narrativos, a “nova sinceridade” busca uma harmonia completa de todos os elementos. A busca por essa pureza não surge através da paródia ou da mera emulação. A “nova sinceridade” se define por uma série de características “meta-mitológicas” (p. 262), em que a relação entre presente, passado, ficção e realidade é pulsante e ambivalente. A busca pelo passado puro é sempre relacionada com um presente corrupto e maculado; essa relação ora ocorre no plano diegético (dentro da dimensão ficcional da narrativa) ou extra-diegético (fora da dimensão ficcional da narrativa). Dança com Lobos é um exercício pleno da meta-mitologia a qual Collins se referiu, pois tem como temática fundamental a relação da cultura nativo-americana com o cinema, especialmente o cinema faroeste, utilizando a “nova sinceridade” para construir novas significações para essa relação. Em Campo dos Sonhos, o passado-presente acontece diegeticamente, enquanto o herói busca através de um lugar puro, mágico e impossível no tempo se reconciliar com os traumas do passado, purificando a relação com seu falecido pai. E em Vício Frenético, Abel Ferrara propõe a dissolução de tempo ao colocar em questão a imortalidade, transformando toda a humanidade em massa confusa e disforme que introjeta morte, guerra e desespero na natureza, a sua salvação podendo ser alcançada apenas através de uma fé mitológica previamente professada – o catolicismo.


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5 CONCLUSÃO

Segundo Jim Collins, uma das aproximações mais comuns da crítica cinematográfica ao cinema de gênero provém do estudo dos mitos, ocorrendo a leitura de “narrativas populares enquanto mitos secularizados das sociedades modernas” (p. 243). Dessa forma, o cinema de gênero muitas vezes é percebido na crítica cinematográfica como representações ficcionalizadas de aspectos políticos, sociais ou culturais de um determinado lugar. Se o cinema de gênero é reflexo da sociedade que o produz, compreender e destrinchar sua linguagem e estrutura é muito mais do que meramente classificar filmes. É olhar e perceber a relação entre homem e fenômenos culturais de seu tempo. O ensaio de Jim Collins é extremamente importante, pois identifica uma tendência do cinema de gênero americano em se transformar na medida em que reconhece demandas e limitações específicas de um tempo. Sob o panorama dos anos 1990, o paradigma do entretenimento demonstrava sua exaustão diante da hibridização das imagens, narrativas e signos populares que afetaram a sociedade americana por volta dos anos 1980. O cinema de gênero foi capaz de operar a partir dessa percepção, desbravando-se por dois caminhos que Collins identifica prontamente, denominados de “ironia eclética” e “nova sinceridade”. Pouco se produziu a partir desses conceitos desde então, mas recentemente os termos têm sido mais assimilados na crítica cinematográfica, especialmente o último, “nova sinceridade”, pois é dele que surgem outros caminhos do cinema de gênero/cinema independente que estão cada vez mais em evidência. O ensaio de Collins, ainda inédito em português, foi responsável por fomentar pesquisas nos caminhos do cinema de gênero a partir dos anos 1990. As transformações certamente não acabaram lá. O “tecido pós-moderno da vida cultural” (p. 246) continua afetando profundamente o cinema americano como um todo, especialmente o cinema produzido por milhões de dólares para uma audiência massificada. Hoje as demandas já são outras, e tornar-se estimulante perpetuar a pesquisa de Collins construiu e que outros autores desenvolvem desde então, afim de identificar os fenômenos culturais emergentes do nosso


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tempo, e como eles se relacionam com as nossas vivências cotidianas, individuais ou coletivas, globalizadas ou nacionais.


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NOTAS

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“This simultaneity does not diminish the cultural "status" of the former so much as it changes its possible

functions, with has far-reaching implications for how genres, and by extension popular culture, function in contemporary culture.” ² “The divergent, often confliction ways in which recent narratives rearticulate conventional structures of popular genres has become a distinguishing feature of contemporary textuality. (...) While stakes and strategies may differ profoundly, they do have one thing in common - the recognition that the features of conventional genre gilms that are subjugated do such intensive rearticulation are not the mere detritus of exhausted cultures past: those icons, scenarios, visual conventions continue to carry with them some sort of cultural charge or resonance that must be reworked according to the exigencies of the present.” ³ “At this point theses signs become doubly referential, referring to a "really real" world, but also to the reality of the array, which forms the the fabric of day-to-day experience in thoses very cultures. It is the individual negotiations of the array that form the delicate process of not just maintaining but constantly rearticulating cultural memories.” 4

“The past always catches up with them. (...) The loves seek freedom from Lula's well-off mother (Dianne Ladd)

whose statu derives from gangsterism - in many ways more representative of American economic history than shop orners. (...) The underclass hell looms, and the concerns of Sailor, Lula, their family and community, collide with and mirror the cruel animal passions of its denizens. (...) They escaped from the ghetto, but expressing dangerous passion could return them there. To be safe, romance must stay withing the class and race limits staked out in geogrphy and psychology by conventionla American social structures.” 5

“(..) the move back in time away from the corrupt sophistication of media culture toward a lost authenticity

defined simultaneously as a yet-to-be-contaminated folk culture of elemental purity, and as the site of successful narcissistic projection, the hero's magic mirror; the foregrounding not only of the intertextual, but of the "Urtextual", in which an originary genre text takes on a quasi-scred function as the guarantee of authenticity; the fetishizing of "belief" rather than irony as the only way to resolve conflict; the introduction of a new generic imaginary that becomes the only site where unresolvable conflict can be successfully resolved.” 6

“In the film (...), Catholic faith is portrayed as something it's pssessors labour under, even deny, but which is

finally too strong for them: something insistent and ultimately beautiful. In order to describe this vision, Ferrara employs a series of narrative tableaux interrelating the venal and the sacred,”


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLINS, Jim. Genericity in the Nineties: Eclectic Irony and the New Sincerity. In: COLLINS, Jim, COLLINS, Ava Preacher, RADNER, Hilary. Film Theory Goes to the Movies. Londres: Routledge, 1993, Genericity in the Nineties, p. 242-263. JENNINGS, Tom, Class-ifying Contemporary Cinema. Disponível em: http://www.tomjennings.pwp.blueyonder.co.uk/Class.html. Acesso em: 25 novembro 2014. SCOTT, Jason Mark, Beautiful and Opressive – Lyricism and Catholic Angst in Abel Ferrara’s Bad Lieutenant. Disponível em: http://offscreen.com/view/bad_lieutenant. Acesso em: 25 Novembro 2014.


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