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3.2 Chegou a hora de experimentar
from Izabela Borges Corrêa - DE ALUNA A PROFESSORA DE TEATRO: influências e reflexões sobre a prática...
by Biblio Belas
3.2 Chegou a hora de experimentar!
O Plano pedagógico do VDM consistia em três módulos:
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No Módulo I, os jovens têm aulas quatro vezes por semana no primeiro semestre. Na 1ª etapa do ano letivo, fazem aulas na área que escolheram e também nas outras áreas artísticas. Na 2ª etapa, os jovens constroem e participam do espetáculo multidisciplinar e nesse período passam a ter aulas todos os dias e ensaios nos finais de semana. Na 3ª etapa, finalizam o ano letivo fazendo uma avaliação de tudo o que aprenderam. MINAS. Plug. Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias (CICALT) Núcleo Valores de Minas.Centro interescolar de cultura arte linguagens e tecnologias cicalt valores de minas. [S.I]: Valores de Minas, 2017.
No primeiro momento as aulas tinham um caráter de iniciação, éramos apresentados a práticas de consciência corporal e vocal, jogos cênicos e de improvisação. No decorrer do ano letivo e das aulas erámos estimulados à criação, pesquisa, leituras e registro, intensificando muito mais durante o processo de criação do espetáculo final, que era previsto enquanto parte do currículo do curso. Houve então um momento onde percebi algumas diferenciações de ensino, em relação à instituição anterior que eu estive. Uma delas foi quando disseram aos alunos da necessidade de um aquecimento corporal, instaurando assim uma rotina que eu nunca tinha feito antes.
Havia o aquecimento como preparação a um estado de prontidão cênica, exigida de diferentes formas durante o espetáculo que seria construído. Era também uma maneira de desenvolver uma consciência corporal individual e coletiva, já dialogando com a primeira cena do espetáculo. O espetáculo foi estruturado dentro do formato tradicional de palco italiano, que foi pensado para contribuir esteticamente em todas as cenas. A primeira cena nomeada “A criação do mundo” e trabalhou com diferentes planos (alto, médio e baixo), além de conseguir explorar toda a área cênica ao mesmo tempo. A cena iniciava com dois alunos do circo, um vestido de preto, simbolizando a terra, e uma vestida de branco, simbolizando o céu. Deitados no chão, no meio do palco, como na figura Yin Yang7 . Pouco a pouco vão saindo alunos da dança e do teatro de diferentes coxias, tanto do lado direito quanto do esquerdo e vão formando um círculo, fechando com o “céu” e a “terra” dentro, como se fosse um abraço. A princípio esse círculo era formado por mais ou menos treze alunos, que olhavam para baixo e
7Yin Yang é um princípio da filosofia chinesa, onde yin e yang são duas energias opostas. Yin significa escuridão sendo representado pelo lado pintado de preto, e yang é a claridade.
a cada nova entrada era necessário acrescentar mais alunos para que fosse possível fechar o novo círculo que se formava (quase como um rocambole, cheio de camadas). Com isso, ao final tínhamos cinco círculos fechados em torno do “céu” e da “terra”, onde a entrada de cada grupo, e o movimento representado como uma respiração iniciando do plano médio ao plano alto eram regidos pelo tempo da música que era executada ao vivo durante o espetáculo. A imagem a seguir mostra essa cena:
Fonte: Frame retirado pela autora, do DVD do espetáculo “O Herói e a Armadura” (2010).
Depois de algum tempo desse grande corpo pulsando em conjunto, surge uma frase que diz “Na junção de uma natureza oposta deles (céu e da terra), surge o amor”8. E aí a
personagem Terra levanta com uma mão a personagem Céu, enquanto os atores que estavam ao redor, com o corpo mais encurvado, “fechado”, olhando para baixo, começam fazer um movimento inverso, abrindo, destacando o “nascimento”. O foco está todo no casal do meio, “a casa do ovo se partiu, dividindo em dois, o céu e a terra”, até que do teto cai uma lira circense e o Céu segue girando, lá de cima, de mão dada com a Terra, que está com os pés no chão. “Então o Céu cobriu e fecundou a terra fazendo-a gerar muitos filhos que passaram a habitar o vasto corpo da própria mãe, aconchegante, hospitaleiras.” “Ah o amor, se ele pudesse existir eternamente, sem medo e danos como no princípio, mas não, ele não deu conta, ele não suportou e por isso o caos surgiu novamente” . Essas frases são ditas por
8 Os fragmentos das falas citados foram retirados por mim do áudio do DVD do espetáculo “O Herói e a Armadura.”.
pessoas do coro e enquanto é falada, cada círculo começa a se desfazer e se tornar independente. O coro segue dizendo “Agora, não de maneira insondável, mas aqui nesse mesmo mundo nosso, na forma do medo, do terror, da guerra, da covardia, da solidão.” E seguem cantando até que todos os círculos que estavam em movimento giratório começam a mover-se no sentido contrário ao que estavam, e de costas vão desenrolando e saindo pela coxia, todos os grupos juntos, sobrando apenas a Terra em cena, em pé e imponente. Nessa cena era totalmente necessário cuidar de si e do outro, pois a qualquer descuido rolaria um efeito dominó (uma pessoa caindo em cima da outra) devido à estrutura cíclica da cena que envolvia todos os alunos do teatro (74) e da dança (62) o que quantificava 136 pessoas (nesses cinco círculos)9 . Sempre escutei que teatro não se faz sozinho, que no mínimo precisamos de alguém para atuar e outro alguém para assistir. Na criação daquela cena os espectadores eram os nossos professores que tinham um desejo muito grande que desse certo cenicamente e ao mesmo tempo uma preocupação com os nossos corpos, “Não se mate, mas também não se poupem” dizia uma professora. Os alunos-atores viviam na prática que um descuido, uma falta de atenção, poderia machucar-se, ou você ou o machucar o outro. Mas para entenderem que o estado de atenção era essencial e necessário foi preciso muito tombo e caídas em efeitos dominó. Vi que foi preciso vivenciar na prática, proporcionando aos alunos o entendimento de que aquele discurso dos professores não era apenas um sermão qualquer, era algo que deveríamos nos atentar. Obviamente, nem todos tinham essa consciência. A noção de coletividade, acredito que era vista de diferentes formas naquele ambiente, cada círculo (dos cinco em cena) tinham uma responsabilidade macro (pensando no conjunto da cena) e micro (o próprio círculo). Às vezes ao finalizar a cena era possível ver alguns círculos saindo “de ré” de uma maneira limpa e outros deixando rastros, como sapatos perdidos. Durante as aulas de teatro era muito comum dizer que tínhamos que cuidar do nosso e do corpo do outro, mas não fazia tanto sentido tal como se apresentou na execução desta cena. Talvez, lá no início do processo, durante as aulas, isso de “cuide dos corpos de vocês” era instituído para irmos acostumando e acionássemos quando fosse necessário. Era isso que eu pensava. Ou seja, nossa preparação inicial com as aulas, não era desvinculada da proposta final que os professores já visualizavam e favoreceu a preparação do espetáculo. Ou seja, o processo tinha ligação direta com o produto, tal como elaborado por Joaquim Gama:
9 Essa quantidade de alunos de cada área é exata e retirada do programa do espetáculo que foi entregue para o público.
Não se trata de optar pela primazia do processo em detrimento do produto ou vice-versa, e sim pela escolha de métodos que favoreçam a construção do conhecimento teatral dentro de parâmetros educacionais claros, participativos e criativos. (GAMA, 2002, p. 269)
Outro ponto de destaque para mim foi à insistência dos professores pela necessidade do registro, tanto online quanto em manuscrito, o que Cecília Salles (1998, p. 17) nomearia como ideia de registro. “Pode-se dizer que esses documentos, independentemente de sua materialidade, contêm sempre a ideia de registro.” e os documentos são, portanto,
Registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma gênese que agem como índices do percurso criativo. Estamos conscientes de que não temos acesso direto ao fenômeno mental que os registros materializam, mas estes podem ser considerados a forma física através da qual esse fenômeno se manifesta. Não temos, portanto, o processo de criação em mãos mas apenas alguns índices desse processo. São vestígios vistos como testemunho material de uma criação em processo. (SALLES, 1998, p.17)
Através da minha pesquisa para escrever este trabalho de conclusão de curso somando com minha tentativa de buscar algum conceito acadêmico que exemplificasse as diferentes formas de registros dos documentos do meu processo enquanto aluna do VDM, encontrei a autora citada acima. Essa então foi a minha primeira experiência com o registro, que durante o ano de 2010, era o meu trabalho quase que diário de minhas vivências, tarefas e aprendizados no dia-a-dia dentro do projeto e que hoje já a vejo com outros olhos todo esse processo que vivi.
Já durante a graduação fiz outros diários de bordos com a mentalidade de que sendo estudante de Licenciatura e que eles serviriam como instrumentos auxiliadores para futuras criações de planos de aula, por exemplo. Além de estar presente como descrição de algum tipo de processo criativo. Curioso, que por mais que eu já tenha tido esse insight de registrar o meu processo em algumas disciplinas da graduação, eu não tive até então a maturidade de ver meus registros (no diário de bordo e no blog do VDM) como um potente material que tenho acesso. A minha primeira sensação foi de ter vergonha ao ver o que eu escrevia há oito anos.
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Fragmento do meu diário de bordo, explicitando uma parte do aquecimento corporal feito com bastão. Fonte: Elaborada pela autora.
Em 2010, quando eu tinha como obrigação escrever meu diário de bordo com uma finalidade de registro de um processo de curso e não só de criação do espetáculo, eu não imaginava que um dia eu iria lê-lo com fins acadêmicos, em um processo de criação-ensinoaprendizagem. Imaginava que eu visitaria esse documento e que serviria “apenas” como um diário, igual a esses que fazemos quando somos mais novos. Seria um material que me levaria puramente a revisitar uma época vivida e não auxiliar um processo de escrita. Ricardo Figueiredo (2015) em seu artigo “Deixem pegadas! A construção de narrativas poéticas no processo de formação continuada de professoras da Educação Infantil” apresenta o conceito de protocolo pelo viés brechtiano, utilizando para análise o portfólio produzido pelas cursistas de um curso de aperfeiçoamento na área da Educacional Infantil, ocorrido em 2014 e propõe que ao olhar para trás e ver suas vivências, escolhas, trajetos, é olhar a sua trajetória com acertos, erros e tentativas. E isso é como ver as suas próprias pegadas em um ato de caminhar de um processo, e essas “pegadas” não devem, nem há como, serem apagadas, já que o caminho é importante.