Noites do sertão um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães Rosa (Mon.)

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Noites do Sertão: um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães Rosa

Trabalho de conclusão de curso Apresentado ao Centro Universitário Senac - Campus Santo Amaro, como exigência parcial para obtenção do grau de graduação em Publicidade e Propaganda

Orientador Prof. Juliano Do Amaral Carvalho

São Paulo 2014

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T266n Teixeira, Bárbara Miranda.

Noites do Sertão: um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães Rosa. / Bárbara Miranda Teixeira. - São Paulo, 2014. 96 f.;il.color.

Orientador: Juliano do Amaral Carvalho.

Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Publicidade e Propaganda) – Centro Universitário Senac Santo Amaro, São Paulo, 2014. 1.Comunicação 2.Imagem e Memória 3.Fotografia 4.O fotógrafo viajante I.Carvalho, Juliano do Amaral(orient.) II.”Noites do Sertão: um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães Rosa”

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Noites do Sertão: um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães Rosa

Trabalho de conclusão de curso Apresentado ao Centro Universitário Senac - Campus Santo Amaro, como exigência parcial para obtenção do grau de graduação em Publicidade e Propaganda.

Orientador Prof. Juliano Do Amaral Carvalho

A banca examinadora do Trabalho de Conclusão de Curso, em sessão pública realizada dia 10/06/2014 , considerou a candidata: Bárbara Miranda Teixeira Examinadora: Camila Garcia Examinadora: Sônia Avalonne Presidente: Juliano Do Amaral Carvalho São Paulo 2014

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Agradecimentos Eu sempre gostei de escrever, sempre, agora é a maior prova desse amor: vou escrever em pessoas. Escrever para agradecer pessoas. Escrever para inspirar, respirar, transpirar. Meu TCC inteiro foi isso, intenso, o maior projeto da minha vida (até agora, claro), o maior amor que eu podia ter impresso, um pedaço de mim. E como eu vou fazer para escrever e agradecer cada um que passou pelo meu caminho nesse tempo? Quem ficou, quem foi embora, quem voltou e quem chegou. Teve gente que veio de terras distantes e se instalou em mim, teve gente que nunca saiu daqui de dentro, teve gente que saiu mas continua aqui. É pra vocês tudo isso. Deixou de ser só pra mim no momento em que eu decidi tocar vocês. Espero conseguir alcançar a metade do mundo, da forma como eu fui alcançada, espero que através desse agradecimento as pessoas que eu mais amo se sintam abraçadas, sintam esse carinho doce que eu coloco aqui. É o meu agradecimento por meses de paciência, meses de dedicação, meses em que eu me senti sozinha mas também me senti apoiada de todos os lados possíveis, porque um pedaço dessa caminhada foi mesmo solitário. Foi solitário porque foi meu.

Ao meu pai, por ser a única pessoa do mundo que me faz sentir confortável no si-

lêncio. A minha mãe, por sua delicadeza, firmeza e jeito bonito de olhar o mundo. A Priscilla, por cuidar de mim tanto tempo e fazer com que eu encontre a mim mesma, uma vez por semana, no meu canto. A minha avó Maria, que virou uma pessoa encantada e me fez querer encantar os outros também. E por fim aos meus amigos, meus irmãos, o amor que nunca morre. Obrigada, obrigada!

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“Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.”

João Guimarães Rosa

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Resumo O principal objetivo deste experimento é trazer um outro olhar para a literatura de Guimarães Rosa através de um livro de fotografias. O conto escolhido para abordagem é “Noites do Sertão”, parte do “Corpo de Baile”, importante livro de novelas de João Guimarães Rosa. Através de experiências vivenciais e pesquisas, percebe-se que o conto é um dos menos conhecidos e se caracteriza como a novela do autor com maior influência sensual, apesar dos preconceitos e convenções da época em que ele se passa, logo, foi escolhido devido ao valor que as palavras podem transmitir através de imagens fotográficas. Foram realizadas pesquisas acerca de formas de linguagem fotográfica, história do autor, análise de campo, construção do personagem, imaginário popular, costumes e relatos de pessoas da cidade do autor que ajudaram a construir seus contos e influenciar em seu processo criativo, assim como teorias dos pensadores Antônio Cândido, Vilém Flusser e John Urry. O trabalho também contou com entrevistas, apoio de fotógrafos, jornalistas, professores da literatura brasileira e comunicólogos que serviram para dar embasamento e solidez ao presente estudo, representado um diferencial para o desenvolvimento da pesquisa durante o processo criativo e do estudo de campo. O foco será trazer um olhar mais acessível à literatura através das imagens fotográficas, analisar a lacuna de trabalhos anteriores ao tema e, ainda, explorar a ideia do sentir sendo transmitido através das fotografias combinadas com o conto. São poucos os projetos culturais e imagéticos que abordam o tema de forma mais acessível e impactante. A expectativa é que o presente estudo gere questionamentos para futuros projetos culturais que abordem a literatura de forma dinâmica e estética, incorpore a linguagem caracterizada pela oralidade em outras mídias, principalmente a fotografia, e transmita outro olhar sobre a obra e a comunicação do autor, além de explicar a influência do espaço para compreensão da obra de Guimarães e a importância da vivência em suas terras. Palavras-chave: 1.Comunicação 2. Imagem e Memória. 3. Fotografia. 4. O fotógrafo viajante

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Abstract The main objective of this experiment is to bring another look at Guimarães Rosa´s literature through a photography book. The chosen tale to approach is “Noites do Sertão”, part of the “Corpo de Baile”, important novels book by João Guimarães Rosa. Through living experiences and research, we realize that the tale is one of the least known and is characterized the authors novel with the most sensuous influence, despite the prejudices and conventions of the time, hence it was chosen due to the value that words can transmit through images. Research was made about photographic language, author´s history, field analysis, building character, popular imagery, customs and stories of author´s townspeople who helped the author to write his tales and influence his creative process, as well as theories from Antônio Cândido, Flusser and John Urry thinkers. The work also included interviews, photographers support, journalists , Brazilian literature and communicologists who served basis and gave strength to this study, representing a differential for the development of research during the creative process and the field study . The focus will bring a more affordable look to literature through the images , analyze the gap previous work to the theme , and also explore the idea of feeling being transmitted through photography combined with the tale . Few cultural and imagistic projects that address the topic more accessible and impactful way. The expectation is that this study generates questions for future cultural projects that address dynamically literature and aesthetics , incorporating the language characterized by orality in other media , especially photography, and transmit another look over the work and the communication of the author , plus to explain the influence of space for understanding the Guimarães work and the importance of living on his land . Keywords: 1.Communication 2.Image and Memory 3.Photography 4.The traveling photographer

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Sumário

Introdução............................................................................................................................................................................................01

2. “Historiando”- Guimarães Rosa e sua vida...........................................................................................................02

2,1 A vida do autor.......................................................................................................................................................................03

2.2 Sua obras.....................................................................................................................................................................................09

2.3 Curiosidades............................................................................................................................................................................12

2.4 “Noites do Sertão” - Dão Lalalão e Buriti......................................................................................................14

3. “Viajança” - A experiência da viagem para o Sertão de Rosa.....................................................16

3.1 “Contografia” - A cartografia própria do conto roseano...............................................................18

3.2 “Viveramor” - Pessoas, a alma de Cordisburgo.....................................................................................29

3.3 Brasinha - O Arauto de Guimarães Rosa.............................................................................................................33

3.4 Cordisburgo x Antônio Cândido - Um novo olhar sobre a crítica de Cândido......44

3.5 Cordisburgo e Antônio Cândido – Encontro de olhares..............................................................48

4. “Fotograflorir” - A construção da imagem fotográfica.....................................................................53

4.1 O aparelho fotográfico...................................................................................................................................................55

4.2 Imagens: construção, olhar, recepção e universo fotográfico................................................58

4.3 O estrangeiro e o olhar do fotógrafo viajante......................................................................................62

4.4 Elaboração do processo gráfico para experimento..........................................................................67

5. Considerações finais...........................................................................................................................................................70

6. Bibliografia....................................................................................................................................................................................72

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7. Anexos..............................................................................................................................................................................................76

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Introdução

Em “Noites do Sertão: um olhar fotográfico sobre a literatura de Guimarães

Rosa, será analisado como a literatura deste autor é compreendida de formas diferentes por seus leitores e a partir da análise destes olhares tratar sobre a dificuldade em potencial da obra em atingir uma fatia maior de pessoas. Recorte do Objeto: Abordagem não convencional de “Noites do Sertão”, que faz parte do livro “Corpo de baile”.

O projeto em seu primeiro capítulo baseia-se na vida e trajetória do autor

Guimarães Rosa e do conto abordado, compreendendo a necessidade de conhecer primeiramente o autor para depois estudar sua obra com mais profundidade.

Para fundamentar o estudo, a pesquisa de campo foi feita na cidade de

Cordisburgo, descrita no segundo capítulo. Dessa forma foi possível vivenciar e compreender o processo criativo de Rosa, conhecer o povo sertanejo e a própria paisagem que por wvezes faz papel principal nos contos do autor.

Na cidade de “Cordis”, o foram captadas grande parte das fotografias para o ex-

perimento e esse processo e a construção das imagens ganha peso no terceiro capítulo. Nele, foi possível entender como através da fotografia é possível acender um novo olhar para a escrita de Rosa e proporcionar diferentes percepções de sua poética, além de despertar interesse e tornar mais acessível a um número maior de pessoas o seu universo literário. Nesse capítulo também é explorado o olhar do fotógrafo viajante para a concepção dessa fotografia do “sentir” e a criação de imagens de valor.

Assim, foi possível fazer uma análise mais próxima e dentro dessa temática, buscar

entender o porquê da literatura Roseana ser tão facilmente e popularmente compreendida na cidade natal do escritor e dificilmente nas grandes cidades? Qual a influência da vivência e do estudo não só metodológico, mas também do próprio povo sertanejo, que inspira as obras do autor? Como funciona a elaboração dessas fotografias do “sentir”? E a partir dessas perguntas procurar novas formas de divulgação e elaboração de objetos e ações culturais que propaguem a literatura brasileira. Final_TCC.indd 1

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2. “Historiando”- Guimarães Rosa e sua vida Neste capítulo segue a história da vida do autor, suas curiosidades e peculiaridades

que ajudam a compreender suas obras. Os contos do escritor e sua vida estão intrinsica-

mente ligados, tendo momentos em que a linha que separa o irreal do real se torna tênue, despertando ainda mais o interesse e admiração pelo trabalho de Guimarães.

2.1 Vida do autor João Guimarães Rosa nasceu na cidade de Cordisburgo, em Minas Gerais, dia 27 de Junho de 1908. Seus pais, Florduardo e dona Francisca, eram ambos naturais de Minas Gerais. O primogênito, desde pequeno, se interessava pelo estudo das línguas e da cultura. Seu pai era dono de um armazém e este foi reproduzido dentro do museu que leva o nome do autor e se situa na mesma cidade. Os dois possuíam uma ligação muito forte, que pode ser vista na troca de correspondências entre eles. Guimarães não vivia o cotidiano do sertão, então seu pai lhe enviava por cartas os detalhes do dia-a-dia que traduziriam o espaço em palavras, nos cadernos de anotações do filho. Autodidata, Rosa começou a estudar francês aos seis anos, sozinho, mas com a chegada de um professor, pouco tempo depois, deu início ao Holandês e prosseguiu estudando os dois idiomas. Até os nove anos estudou em Belo Horizonte, onde morava com os avós, e em seguida se mudou para São João del Rei e morou em um internato, porém não conseguiu se adaptar. Concluiu os estudo em Belo Horizonte e em 1925 iniciou a Faculdade de Medicina de Minas Gerais, se formando em 1930 e indo exercer a profissão em diversos pontos afastados. Casou-se com Lígia Cabral Pena em 1930 e teve duas filhas, entretanto, seu ca-

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samento não durou muito e romperam poucos anos depois. Em 1929 ocorreu seu início nas letras, com os contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke, O mistério de Highmore Hall e Makiné, todos para o concurso da revista “O Cruzeiro” e, por conseguinte, todos foram premiados e exibidos na mesma, em 1929 e 1930. A recompensa foi de cem contos de réis, o que hoje equivale a cinco mil e seiscentos reais.

De volta a sua primeira profissão, médico, Guimarães costumava viajar a cava-

lo para atender seus pacientes e em troca recebia bolos, ovos, verduras, legumes, galinhas entre outros. Ficou em Itaguara por dois anos e lá conheceu Manoel Rodrigues de Carvalho, um raizeiro, que se tornou seu amigo e alvo de sua admiração. Os raizeiros eram pessoas que tinham conhecimentos passados de geração à geração sobre os benefícios medicinais, das plantas, raízes e espiritualidade. Detinham informações sobre o modo certo de realizar a coleta, como fazer o preparo e diversas outras informações. Em seus livros, Guimarães cita essas figuras que são características da região.

Trabalhou

como

filantropo

na

Força

Pública

e

em

1933

foi

para

Barbacena na função de Oficial Médico do 9º. Batalhão de Infantaria. Diferente dos percursos a cavalo que ele era obrigado a fazer durante sua estada em Itaguara, no Batalhão ele realizava geralmente a revista o exame médico costumeiro e algumas festividades em dia cívico, onde o escolhiam como tribuno da corporação. Com isso, desfrutava de mais tempo para aplicar-se com empenho no estudo de línguas estrangeiras. Ainda obteve acesso aos documentos do quartel onde auferiu importantes referências acerca do sertanejo barranqueiro que viveu na localidade do Rio São Francisco até meados de 1930. Antes que os anos 30 chegassem ao fim, houveram mais dois concursos literá-

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rios. Com o livro de poemas “Magma”, o autor alcança o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Concorreu também ao prêmio Humberto de Campos, com o que se transformaria em um de seus livros mais famosos, “Sagarana”. A importância desse volume é caracterizada pela mais pura forma e oralidade característica da literatura do autor. Algo que ficaria mais claro anos à frente e se tornaria marca registrada do escritor, que se preocupava tanto em transpassar os limites da literatura que estavam sendo impostos até então. Sugeriram que João Guimarães prestasse concurso para o Itamarati, devido ao seu profundo conhecimento de idiomas estrangeiros, além da competência e sapiência. Ele o fez e conquistou o segundo lugar. No ano de 1938 seguiu para Alemanha como Consul Adjunto. Participou da guerra e lá também conheceu sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho. Ela era uma mulher extremamente forte e com o apoio de Guimarães ajudou na fuga de diversos judeus para fora do país. Seu nome se encontra tanto no Jardim dos Justos como no Museu do Holocausto. Essas homenagens são feitas aqueles que se colocaram em perigo para ajudar a salvar a vida dos judeus. Tanto João quanto Aracy permaneceram, posteriormente, na Alemanha sob custódia durante quatro meses na cidade de Baden-Baden juntamente com outros brasileiros como o pintor e amigo Cícero Dias, voltando apenas quando foram trocados por diplomatas alemães, em 1942. Tudo ocorreu porque o governo brasileiro suspendeu relações diplomáticas e apoiou os Aliados da Segunda Guerra Mundial, indo contra as Potências do Eixo, onde a Alemanha se encontrava dando seu apoio. Após voltarem para América se casaram no México, pois não existia, ainda, divórcio no Brasil e Guimarães até então continuava casado com Lígia. Após passar pelo Brasil, foi para Colômbia na qualidade de secretário da Embaixada. Se manteve lá até 1944 e durante esse período escreve o conto “Páramo”, onde conta a experiência de morte que pode ser sugerida pelas características que o próprio autor parece ter vivido durante sua estada pelo país. Bogotá, que foi a cidade onde ele ficou, tem detalhes

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peculiares para quem não está acostumado ao estilo de vida. Além das questões climáticas muito diferentes do Brasil, ainda acontece o processo de rarefação do ar. O escritor só volta ao Brasil em 1945 e vai direto para Paraopeba, na fazenda que pertenceu a sua família para depois seguir a cavalo para Cordisburgo. Um ano depois é designado chefe-de-gabinete de João Neves da Fontoura e segue para Paris à Conferência de Paz. No entanto, em 1948 está de volta a Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira, no evento da IX Conferência Inter-Americana. Durante o ato acontece o assassinato do líder popular Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquerdista Revolucionaria. Fica em Paris de 1948 a 1950, onde é nomeado primeiramente como Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura para depois se tornar Chefe da Divisão de Orçamento e finalmente ser promovido a Ministro de Primeira Classe, cargo equivalente ao de Embaixador. Regressa ao Brasil em 1951 e em 1952 vai em excursão para o Mato Grosso, onde escreve sua obra “ Com o Vaqueiro Mariano”. Assim, como costumava fazer por correspondência com seu pai, os dias que passava no Brasil recolhia o máximo de informações possíveis sobre tudo e andava sempre com um caderno de anotações embaixo do braço. As perguntas iam desde novidades sobre as pessoas, até costumes, dados sobre a flora e fauna, causos, canções e estórias dos sertanejos. O universo de Guimarães se compõe de tudo isso, dessas pessoas e suas vidas, da regionalidade, da oralidade do povo, do modo de se vestir e se portar. O sertão está impresso na alma dessas pessoas e na do escritos também.Sua próxima novela foi “Corpo de Baile”, de onde se originou o volume conhecido como “Noites do Sertão”, a obra considerada “erótica” de Guimarães e que retrata dois romances.

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Até então, conhecido no Brasil como criador do regionalismo na literatura, sua obra adquire caráter universal a partir do lançamento de Grande Sertão: Veredas, cuja estreia foi em maio de 56. Este foi o terceiro livro de Rosa, e durou cerca de dois anos para ser concluído. É uma de suas obras mais conhecidas e conta a história de Riobaldo e seu amor por Diadorim.. O livro foi traduzido para várias línguas e recebeu três prêmios nacionais: Machado de Assis, Carmen Dolores Barbosa e Paula Brito. João é um romancista que faz parte da terceira geração modernista brasileira, no topo da lista, que contém Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Em 1969, depois de exercer a função de chefia no Serviço de Demarcação de Fronteiras, recebe uma homenagem pelo seu exercício como diplomata, o pico máximo da Cordilheira Curupira recebe seu nome. Tendo sido sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa como condecoração do Itamarati à sua função de chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.A deficiência na sua saúde começa a mostrar sinais em meados de 1958. Guimarães tinha hipertensão arterial, estava acima do peso, era sedentário e o cigarro também estava presente em sua vida, lhe causando diversas alergias nas vias respiratórias. Porém, o escritor dizia que o cigarro lhe servia de inspiração para escrever, do contrário se sentia vazio. Sua saúde debilitada apenas estreitou sua ligação com o misticismo e ele passou a incluir leituras diárias relacionadas à espiritualidade e como a morte pode ser encarada Seu livro “Primeiras Estórias” foi lançado em 1962 e em 1963 candidatou-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (teve dez votos na primeira vez, em 1957) no lugar de João Neves da Fontoura. Ele é então eleito por totalidade, mas a posse é adiada e sem data marcada, se realizando somente quatro anos depois em 16 de Novembro de 1957. Em 1965 acontece o Congresso de Escritores Latino-Americanos e criam a Primeira

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Sociedade de Escritores Latino-americanos, onde Guimarães Rosa e Miguel Angel Asturiaseriam eleitos vice-presidentes. Logo, no ano de 1967, João Guimarães Rosa vai ao México como preposto do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores. Quando regressou foi convidado a se juntar com Jorge Amado e Antônio Olinto para compor o júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap, considerado o mais importante do país. Seu último livro, um emaranhado de contos, se chamou “Tutaméia”. Depois de adiar por quatro anos a sua posse, o escritor decidiu ocupar seu lugar na Academia Brasileira de Letras. Dizia que demorara tanto tempo por ter medo da emoção que o momento poderia lhe provocar. À vista disso, dia 19 de Novembro de 1967, morre subitamente em Copacabana no próprio apartamento, sem ter tempo de pedir socorro.Mesmo depois de sua morte, João é indicado em 1967 para o prêmio Nobel de Literatura, porém, devido ao seu óbito a indicação foi barrada. Sua vida sofreu diversas reviravoltas e ele passou por vários ramos da educação, desde a medicina até diplomacia. Toda sua individualidade aparece acentuada em sua forma de escrever.

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2.2 Sua obras 1929: Caçador de camurças: conta a história de dois amigos que lutam pelo amor da mesma mulher. Ela lança um desafio: irá se entregar aquele que conseguir caçar uma camurça das montanhas, iniciando assim uma disputa de vida ou morte. Assim como Kai Anagke, Makiné e O mistério de Highmore Hall, o autor entrou em um concurso no ano de 1929 na revista “O Cruzeiro”. Na época ele mesmo admitia não escrever com muito sentimento e dedicação e se questionava pela intensidade de seus trabalhos iniciais. 1929: Kai Anagke: o conto possui seis páginas e conta a história de Zviazline que disputa um torneio de xadrez e acaba por ser envenenado. Depois disso, ele passa por uma experiência que o leva a ter alucinações e onde conhece a verdade sobre os mistérios do jogo. 1929: O mistério de Highmore Halll: esta obra segue a linha oposta aos contos que viriam a seguir. Não possui as descrições do sertão, da sua fauna e flora, dos costumes. Pelo contrário, é um conto inspirado em Edgar Allan Poe. Conta com a Escócia como cenário e se baseia em romances góticos, tendo um protagonista chamado Angus que se muda para viver em um casarão antigo a pedido do velho John Highmore, que possui uma estranha doença. O conto conta com uma rede de intrigas e mistérios 1929: Makiné: neste conto começa a aparecer detalhes que viriam a ser intensificados, mais tarde, como sua característica predominante: o regionalismo. A história se passa no Brasil, narrando a chegada do astrólogo Kartpheq com vários escravos e segue até o sacrifício de uma criança indígena gerando a revolta do povo Tupinambá contra os visitantes. 9

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1936: Magma: é o livro de poesia de Guimarães Rosa e demorou a ser publicado devido à falta de interesse do autor. Ele não gostava de ser conhecido como poeta e não se achava convincente como tal. 1946: Sagarana: primeira publicação a conter evidentes características da oralidade do autor. Também foi o primeiro livro de contos a não ser renegado pelo mesmo. Atualmente conta com oito contos: O Burrinho Pedrês, A volta do marido pródigo, Sarapalha, Duelo, Minha Gente, São Marcos, Corpo Fechado, Conversa de Bois, A hora e vez de Augusto Matraga. Inicialmente tiveram mais três contos: Questões de Família, Uma História de Amor e Bicho Mau. Apesar de serem contos diferentes, todos possuem características que interligam, como os costumes, o ambiente, as paisagens e a mistura do real com o imaginário. 1947: Com o Vaqueiro Mariano: o conto foi criado a partir de uma viagem do autor ao Maranhão, mais tarde seria publicado no livro “Estas Estórias”. Relata a própria viagem do autor acompanhando o vaqueiro Mariano em suas paragens com o gado, bem como outras aventuras que surgem pelo caminho como um incêndio na mata. 1956: Corpo de Baile: livro de contos dividido em Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. O último conhecido como o livro de Guimarães que mais se aprofunda no sertão erótico, nas relações sensuais e não convencionais que sobrepõe os preconceitos da época. 1956: Grande Sertão: Veredas: obra mais conhecida do escritor e uma das mais importantes da literatura brasileira e portuguesa. Ainda com aspecto sertanejo, mistura diversos detalhes de outras culturas. Conta a história do sertanejo Riobaldo e de seu envolvimento com Diadorim, que fica na borda entre amizade e um relacionamento afetivo amoroso.

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1962: Primeiras Estórias: livro de Guimarães com 21 contos, entre eles os mais impor-

tantes são: “A menina de lá” e “A terceira margem do rio”. 1964/1965: Campo Geral e Noites do Sertão: ambos já tinham sido publicados no livro Corpo de Baile, passaram por revisões e foram lançados novamente em 1964 (Campo Geral) e 1965 (Noites do Sertão). Campo Geral aparece posteriormente no livro Manuelzão e Miguilim. É um romance que se passa no Mutum e conta a história de Miguilim, uma criança, e a trajetória de sua vida. Já Noites do Sertão é dividido em Dão Lalalão e Buriti. 1967: Tutaméia – Terceiras Estórias: diferente da maioria dos livros de contos lançados até então, este possui histórias que seguem a linha diferente e são extremamente curtas. Dividido em 40 contos e publicado pouco antes da morte de Guimarães. 1969: Estas Estórias (póstumo): reúne oito novelas do autor, entre elas a conversa com o vaqueiro Mariano. As demais são: “Página de saudade”, “A simples exata história do burrinho comandante”, “Os chapéus transeuntes”, “A estória do Homem do pinguelo”, “Meu tio Lauaretê”, “Bicho mau”, “Páramo”, “Retábulo de São nunca” e “O dar das pedras brilhantes”.

1970: Ave, Palavra (póstumo): livro que reúne contos, notas de viagem, diário, poe-

mas, reportagens poéticas e tudo relacionado ao autor e publicado depois de sua morte em 1970. Foi considerado pelo autor uma mistura de variações de todos os seus trabalhos.

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2.3 Curiosidades 1. Sua família o chamava de Joãozito. Quando tinha seis anos, leu, em francês, seu primeiro livro: Les Femmes Qui Aimment. 2. Formou-se em 1930 em medicina, porém não exerceu durante muito tempo a profissão, pois tinha dificuldades em aceitar as dores do mundo. 3. Seu primeiro conto estreou na revista O Cruzeiro em 1929, chamado “O Mistério de Highmore Hall”. A história, no entanto, não está em nenhum de seus livros, pois o autor não considerava que fosse relevante. Todos os contos, tirando “Makiné”, fogem das características predominantes de sua escrita, a regionalidade. 4. Ele utilizava cadernetas para descrever tipos e paisagens e anotar sensações e expressões, além de entrevistar pessoas acerca de seus costumes e crenças. 5. Morou na Alemanha durante a segunda guerra e certa noite, quando saiu para comprar cigarro, ao voltar sua casa estava bombardeada. Isso o tornou ainda mais supersticioso. 6.

Demorou

para

tomar

posse

de

seu

lugar

como

membro

da

Academia Brasileira de Letras porque dizia ter medo da emoção que poderia sentir. Quando finalmente decidiu-se, faleceu três dias depois. Chegou ainda a ser indicado ao prêmio Nobel de Literatura, mas sua inscrição foi barrada devido a sua morte. 7. Foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha Nazista, onde conheceu sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho. Juntos, ajudaram a entrada de judeus no Brasil

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concedendo centenas de vistos para os refugiados do nazismo. Ambos trabalhavam para emitir passaportes para judeus sem a marcação característica, com o “J” vermelho, que os identificava, Aracy então misturava os vistos com a papelada despachada que passava despercebida. 10. Aracy e Guimarães ficaram detidos três meses em um hotel da Alemanha, até que o Brasil conseguiu um acordo de troca e eles foram devolvidos. Quando voltaram não podiam se casar porque o divórcio ainda não era permitido no Brasil, o autor ainda continuava casado perante a lei, então foram para o México e lá se casaram. Ficaram casados até a morte do escritor em 19 de Novembro de 1967.

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2.4 Noites do Sertão: Dão-Lalalão e Buriti O livro “Noites do Sertão” é apontado pelo popular como a novela “erótica” de Guimarães. Não um erotismo forçado, mas sutil, de época, trabalhado através de neologismos e figuras de linguagem. Dividido em dois contos: “Dão Lalalão” e “Buriti”. Fez parte de “Corpo de Baile”, publicado em 1956, e originalmente composto por dois volumes sendo dividido mais tarde em três livros menores.

Dão-Lalalão Primeira novela do livro, conta a história de um vaqueiro aposentado e matador de valentões. Conhece Doralda uma mulher extremamente bonita e prostituta em um bordel. Apaixonado, Soropita a tira de lá e se casa, tornando-se fazendeiro e se restabelecendo num povoado perto de Andrequicé. Doralda vira uma esposa de primeira. A novela gira em torno de seu ciúme que fica mais aparente quando surge um amigo, que também é boiadeiro (Dalberto), e Soropita tem medo que ele conheça Doralda de seus tempos no bordel. Ele passa por diversas confusões sobre o que fazer com relação a Dalberto e pensa inclusive em matá-lo devido a seu ciúme exagerado. Dalberto estava só de passagem e vai embora sem sua comitiva. Iládio, que é um dos membros da comitiva, volta para saber se Dalberto ainda se encontrava na fazenda. Ao ver que não estava lá faz um comentário desconfiado sobre Soropita tê-lo matado. O fazendeiro já raivoso não faz nada na hora, mas depois vai atrás de Iládio na venda e o ameaça. Nada acontece, mas Soropita reafirma sua posição de matador e volta para casa atrás de Doralda.

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Buriti Segunda novela de “Noites do Sertão”, conta a história de Miguel chegando ao Buriti e conhecendo Iô Liodoro, fazendeiro muito rico que mora com suas duas filhas, Maria da Glória (Glorinha) e Maria Behu, a filha beata, e a nora Leandra (Lalinha). Miguel, o Miguilim de “Manuelzão e Miguilim”, volta para o sertão de Minas, já formado em veterinária, para cuidar do gado de Iô Liodoro e se apaixona por Glorinha. Em paralelo, Lalinha vive com o sogro, abandonada pelo marido Iô Irvino que fugiu com outra.

Em meio a diversas passagens, Miguel vai embora deixando Glorinha com a promessa

de que irá voltar. O conto passa a focar, então, em Lalinha e sua confusão mental, já não sabe se sente falta do marido, se gosta de morar no Buriti. Certa noite começa a flertar com o sogro, Iô Liodoro. Toda noite eles se encontram e ela pergunta se ele a acha bonita, enquanto serve um chá, ou vinho, deixando na mesa um lampião menor pousado ao lado do seu. Eles flertam durante algum tempo, mas um dia o sogro decide que ela deve ir embora e delicadamente introduz o assunto. Lalinha fica muito magoada sem saber que ele havia recebido uma carta do filho dando a certeza de que não iria mesmo voltar (a mulher com quem fugira tinha tido um filho). Então Iô Liodoro não precisa mais manter Lalinha no Buriti. Lalinha só descobre a existência da carta quando começa a fazer as malas e Glorinha acaba por lhe contar.

Algo inesperado acontece então no Buriti, antes de Lalinha partir. Maria Behu, que

já estava doente fazia algum tempo, vem a falecer. Lalinha acaba decidindo ficar mais um tempo na fazenda e descobre através de Glorinha a carta, e mais do que isso, depois de algum tempo descobre que Glorinha andava diferente após a morte da irmã porque teria se entregado ao velho Iô Gualberto. Desesperada com o futuro de Glorinha ela diz que vai até a cidade procurar Miguel e em sua última noite se deita com Iô Liodoro. O livro termina com Miguel voltando ao Buriti para procurar Glorinha.

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3.Viajança

a experiência da viagem para o sertão de Guimarães Rosa

O presente capítulo irá tratar sobre a experiência nas terras de Guimarães Rosa, que

inspirou, em conjunto com o conto “Noites do Sertão”, a concepção do trabalho experimental. A pesquisa iniciou seus passos na cidade de Cordisburgo, terra Natal do escritor João Guimarães Rosa, localizada no sertão de Minas Gerais. Não só a cidade em si como as pessoas foram parte importantes do roteiro que aqui será descrito. Nas próprias anotações do autor (encontradas no Museu Casa de Guimarães Rosa), percebe-se que o povo sertanejo era seu grande objeto de estudo. A partir das experiências datadas no percurso, se desenvolveu então a linha de pensamento que conduzirá a pesquisa. Toda a experiência vivencial contribuiu e influenciou de forma substancial para concepção da mesma.

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3.1 Contografi a – A cartografiA própria do conto roseano As informações sobre o trajeto e roteiro necessárias para a viagem, foram obtidas através de um grupo de teatro que faz investigação pelas terras de lá, afinal todas as peças são inspiradas em Guimarães Rosa. O grupo se chama “Redimunho” e foi fundado em 2003, na cidade de São Paulo, por Rudifran Pompeu, e pesquisa diversos autores, mas foi em Guimarães Rosa que encontraram um norte para a elaboração de sua própria dramaturgia. Conta com atores de diferentes escolas e também é dirigido por seu fundador. Rudifran atua não só como diretor, mas também como dramaturgo e por vezes propriamente ator. É gaúcho, natural de Uruguaiana, extremo sul do Brasil, filho de João Orestes Pompeu e Cirlei Marques de Almeida, mudou-se para Porto Alegre ainda muito jovem e começou no teatro aos 14 anos. Após alguns trabalhos como ator em Canoas e na capital gaúcha, resolveu mudar-se para São Paulo, em meados de 1988, onde trabalhou em Campinas e na capital com alguns diretores como Marcos Bryto, Adilson Barros, Roberto Lage, Marcus Alvisi. Também foi Arte Educador em projetos do Governo do Estado, entre 1990 e 1997, coordenando a área de Teatro dentro do projeto Enturmando. O grupo Redimunho foi contemplado três vezes com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, prêmio que possibilitou ao grupo uma larga temporada de seus espetáculos. Entre as peças estão: “A Casa”, “Vesperais na Janela”, “Marulho, o Caminho do Rio” e a mais recente “Tareias”.

A influência do grupo teatral foi fundamental para reafirmar a importância de pes-

quisas nesse âmbito e para reforçar o envolvimento com o tema. Como o próprio diretor do grupo diz: “O ator é um homem que deserta de si. A crise pequena burguesa não combina com o sertanejo que buscamos”. Essa mesma influência e busca pelo verdadeiro sertanejo leva até Cordisburgo, uma cidade que vive em torno do escritor, uma cidade que traduz poesia em cada esquina. É preciso olhar apurado para enxergar muito bem.

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Cordis (como carinhosamente os cidadãos de lá a chamam) se localiza em Minas Gerais, próximo a Sete Lagoas. Cordis vem do latim coração e burgo da palavra burgs (germânico) significa aldeia, cidade, vila, ou seja, no sentido literal Cidade do Coração. Um trecho sobre a história da cidade contada no Museu Casa de Guimarães Rosa, que fica na cidade de Cordisburgo: Segundo escreveu Waldemar de Almeida Barbosa (, no verbete dedicado a Cordisburgo em seu Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, o coração a que se refere o nome é o Sagrado Coração de Jesus, objeto de devoção tradicionalmente cultuado na Diocese de Mariana, em cujo seminário estudou e foi ordenado o padre João de Santo Antônio, o fundador de Cordisburgo. Em 1883 após passar 20 anos percorrendo a região central de Minas Gerais como missionário, o padre João adquiriu em leilão a fazenda do Melo, parte do chamado Vínculo da Jaguara. A localidade era conhecida como Saco dos Cochos, pela prática de se espalhar no pasto cochos de sal para alimentar o gado. A fazenda teve sua área utilizada para a fundação de um povoado a que foi dado o nome de Vista Alegre. Nesse povoado, havia uma capelinha dedicada a São José, ao lado da qual o padre João construiu, em 1894, sua casa. No mesmo ano, foi iniciada a edificação da Igreja do Coração de Jesus, inaugurada em 1894 com a benção do templo pelo bispo de Mariana, D. Silvério Gomes Pimenta, e missa cantada pelo padre João de Santo Antônio.Até 1890 a localidade, parte do município de Sete Lagoas, foi conhecida como Coração de Jesus da Vista Alegre. O decreto estadual no. 99, de 9 de junho de 1890, que criou o distrito de paz local, denominou-a Cordisburgo da Vista Alegre. Em 1893, foi inaugurada a estação telegráfica. Em cinco de agosto de 1904, foi inaugurada a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, marco no desenvolvimento do povoado. A lei estadual no. 556, de 30 de agosto de 1911, incorporou o distrito ao município de Paraopeba. Finalmente, pelo decrete- lei no. 148 de 17 de dezembro de 1938, o distrito foi elevado à categoria de município, com o nome de Cordisburgo¹.

1 Texto transcrito do Museu Casa de Guimarães Rosa, sob curadoria de Leonardo Magalhães. Informações na Bibliografia p.73. Final_TCC.indd 19

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Em seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa também conta a sua versão Roseana da construção da cidade de Cordisburgo. Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, mil maravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vaqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob os demais de estrelas, falava-se antes “os pastos da Vista Alegre”. Santo, um “Padre Mestre”, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grutas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha talvez sido seu único gesto desengajado; gratuito. Tomando da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou de “o Burgo do Coração”. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do Universo. Mas por “Cordisburgo”, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava ele, chefe e o amigo meu, João Neves da Fontoura. – “Vamos ver o que diz Cordisburgo...”(...) Mais eu murmure e diga, ante macios morros e forter gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais- que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico. (ROSA, João Guimarães, Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras¹(ABL),1967.)

1 Trecho transcrito do Museu Casa de Guimarães Rosa - Cordisburgo - MG. Informações na Bibliografia, p.73.

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Para compreender o processo criativo do autor é preciso entender a relação com a cidade natal dele, pois todos os contos e toda a inspiração partem dali. Rosa costumava se corresponder com a família e amigos através de cartas e nessas ele pedia informações a respeito da cidade, dos costumes, dos eventos e assim conseguia compor seus contos. Abaixo segue um trecho da carta em que autor se corresponde com o pai, Florduardo, ou “Seu Fulô”, a respeito de uma viagem que faria para Cordisburgo: Rio, 6 de Novembro de 1945. Papai, aproveitando uma folga, escrevo esta, dirigida tanto ao Senhor como à Mamãe, aos quais começo pedindo a benção(...) Agora, o mais importante: penso poder ir ai, em começo de dezembro próximo. Passarei cinco dias aí em Belo Horizonte, seguindo para Vila Paraopeba (de ônibus) – Três Barras – Cordisburgo (a cavalo), e regressando, de trem, mas sem demorar em Belo Horizonte. A viagem é em companhia do Pedro (Dr. Pedro Barbosa), e a convite do mesmo. Em Cordisburgo, passaremos dois dias, indo à gruta do Maquiné. Se o Senhor gostar de ir, convido-o, para viajando de trem, ir encontrar-se conosco em Cordisburgo, regressando juntos, três dias depois. Além de aproveitar a oportunidade para penetrar de novo naquele interior nosso conhecido, retomando contacto com a terra e a gente, reavivando lembranças, reabastecendo-me de elementos, enfim, para outros livros, que tenho em preparo. Creio que será uma excursão interessante e proveitosa, que irei fazer de cadernos abertos e lápis em punho, para anotar tudo o que possa valer, como fornecimento de côr local, pitoresco e exatidão documental, que são coisas muito importantes na literatura moderna. Pena é que me seja possível realizar o que vinha há muito prometido: levar comigo os primeiros volumes do livro, para causar-lhes uma surpresa a todos¹.”(ROSA, João Guimarães, 1945, carta ao pai Florduardo Pinto Rosa)

1 Carta encontrada no Museu Casa de Guimarães Rosa - Cordisburgo - MG . Informações na Bibliografia, p. 73. Final_TCC.indd 21

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Assim, a viagem à Cordisburgo passa a ser de fundamental importância para embarcar nesse sertão poético e consequentemente na obra do autor. São dez horas de carro, e a maior parte do caminho não é possível enxergar as famosas veredas: elas estão se extinguindo e são encontradas apenas na estrada que segue ainda mais para o sertão, na cidade de Andrequicé. A literatura de Guimarães tem uma cartografia própria, ou seja, o nome dos lugares onde acontecem as aventuras de seus livros são, em grande parte, inspirados em locais reais, transformando o sertão mineiro em palco de contos fantásticos roseanos. Transmutando a geografia mineira encontra-se, por exemplo, o personagem Manuelzão, que é natural de Andrequicé, e foi baseado em Manuel Nardi (Dom Silvério, 6 de junho de 1904 — Andrequicé, distrito de Três Marias, 5 de maio de 1997). Vaqueiro que levava Guimarães para as comitivas e era admirado por sua sabedoria e conhecimento acerca do sertão de Minas Gerais. Fez parte do conto “Manuelzão e Miguilim”. Trecho do conto: “Ele, Manuelzão, nunca respirara de lado, nunca refugara de sua obrigação. Todo prazer era vergonhoso na mocidade de seu tempo... Ah todo o mundo, no longe do redor, iam ficar sabendo quem era ele, Manuelzão, falariam depois com respeito.”(ROSA,João Guimarães,1976, p.194.) Para entender essa cartografia presente nos livros não pode faltar as famosas veredas que entremeiam todos os contos de Guimarães, e por isso estão como a primeira parte do trabalho, junto com a definição e compreensão desse sertão mineiro, pois a literatura de Rosa tem essa presença regionalista. O sertão de minas é diferente do nordestino, castigado e seco. Segundo o Novo Dicionário da Lingua Portuguesa, corresponde a:

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Região agreste, distante das povoações ou terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, longe do litoral. 3. Interior pouco povoado. 4. Bras. Zona pouco povoada do interior do país, em especial do interior semiárido da parte norte-ocidental, mais seca do que a caatinga, onde a criação de gado prevalece sobre a agricultura, e onde perduram tradições e costumes antigos. (...). (FERREIRA, A. B. de H,1975, p.1293)

Em Minas Gerais a região do Norte do estado é chamada de sertão, mas nem toda ela se encaixa na descrição de clima semiárido, como o próprio escritor relata: Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! O sertão é do tamanho do mundo. Sertão é dentro da gente. O sertão é sem lugar. O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa. O sertão não chama ninguém às claras; mas, porém, se esconde e acena. O sertão é uma espera enorme. Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.(ROSA, João Guimarães, 1986, p.11.)

Ou seja, são vários sertões e entre eles cidades muito pobres, mas também cidades em desenvolvimento que já iniciaram novas técnicas de irrigação. Nesse clima ameno (em comparação com o sertão nordestino) são encontrados campos planos e as famosas veredas. Vereda de acordo com o dicionário Silveira Bueno: “s.f. caminho estreito; senda; rumo”(BUENO, Francisco da Silveira, 1996, p.674). E geograficamente falando é um tipo de formação vegetal do Cerrado, caracterizada pelos solos saturados de água onde se pode encontrar buritis e palmeiras em meio a agrupamentos de arbustos. Por garantir a umidade

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até em épocas de seca, funciona como local de fornecimento de água para outros animais, o que representa um “caminho” para essa fauna e flora. Hoje existe dificuldade para encontrar veredas, esse bioma tão diferente. O promotor Paulo Cesar Vicente de Lima, que luta pela conscientização e preservação das mesmas, em um trecho de sua entrevista cedida para o portal Observatório Eco, diz que não se tem notícias de veredas recuperadas após degradação. Nessa luta pela preservação ele criou o “Programa Vereda Viva”, para conscientizar o próprio governo e população que não é mais apenas um espaço de preservação. Percebe-se a luta ao constatar que é cada vez mais difícil encontrar esse bioma por lá, os buritis reinando no meio do campo, da vista plana, vista esta retratada nas obras de Guimarães, principalmente em Grande Sertão: Veredas.

De acordo com Cesar Vicente: (...) há veredas de vários tipos, mas uma coisa todas têm em comum, são verdadeiros “oásis do Sertão”, pois acumulam água durante o curto período chuvoso e vão liberando-a aos poucos durante a estiagem. São refúgio da fauna, verdadeiros corredores ecológicos e responsáveis pela formação de vários afluentes mineiros do São Francisco. Em razão da importância desse ambiente em 2005 realizamos uma grande operação na região, e visitamos cerca de 30 veredas em pelo menos 10 municípios. A situação é realmente muito preocupante, praticamente todas as veredas visitadas estavam em processo de assoreamento e rumo à desertificação. Isto, em razão de grandes passivos ambientais decorrentes de políticas públicas equivocadas como o PRÓ-VARZEA e FISET, programas do governo federal que há décadas incentivou a drenagem

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de veredas para favorecer a agricultura e o plantio de grandes áreas de reflorestamento na região, centenas de veredas foram extintas.Durante a operação realizada esta situação foi confirmada. Foram feitos vários laudos que se tornaram inquéritos civis públicos em diversas comarcas, alguns já convolados em Termos de Ajustamento de Conduta.(LIMA, Paulo Cesar Vicente, Disponível em <http://www.observatorioeco.com.br/promotor-luta-em-defesa-das-veredas>)

Ainda na rota literária, mas já na cidade de Cordisburgo, com cerca de 10.000 habitantes, todos parecem se conhecer e saberem quem é e quem não é turista. A simplicidade tem força presente e as ruas foram pensadas com placas de trechos dos livros do autor, ou de suas notas pessoais, todas traduzindo o espaço e o povo. Um exemplo são os coqueiros que ficam na praça da igreja principal, igreja do sagrado coração, como diz um trecho das notas pessoais do autor encontradas pelas ruas de Cordisburgo: “Tira transversalmente – cortando a de Cima, a de Baixo, a linha férrea e a ruazinha anônima, e separando o corpo do arraial do morro-d-igreja – há a rua de Todos os Santos ou Avenida; ou do Açougue”. Nas ruas de baixo, depois da linha do trem, estão as casas mais antigas e onde também se localiza o zoológico de pedra, que na verdade é uma praça com diversas esculturas de animais pré-históricos, em seus tamanhos originais, que foram encontrados na região.

Além dessa rota literária que mostra o percurso de Guimarães, também se encontra o

circuito das grutas, que é composto pelos municípios de Baldim, Capim Branco, Cordisburgo, Jequitiba, Lagoa Santa, Matozinhos e Sete Lagoas. Em Cordisburgo fica a Gruta do Maquiné, que também faz parte de contos do escritor, como no caso de “Recado do Morro” Nas redondezas há uma gruta que fica a 5 km de Cordisburgo e foi descoberta por

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Joaquim Maria Maquiné, em 1825, na época ele era proprietário das terras. Mas ela foi explorada cientificamente depois da chegada de Dr. Peter Wilhelm Lund, em 1834. Peter Lund era um famoso arqueólogo dinamarquês que explorou algumas cavernas em Minas Gerais, principalmente a Gruta do Maquiné. Todas essas informações são obtidas no museu que fica ao pé da gruta. A gruta tem sete salões, divididos em 650 metros lineares. É constituída principalmente por carbonato de cálcio, mas possui outros minerais como sílica, gesso, quartzo e ferro. As formas das galerias foram moldadas com a ação da água, inclusive os monitores que acompanham a entrada na gruta contam que o esqueleto da preguiça gigante (seis metros) foi encontrado no último salão da galeria. Lund ficou quase dois anos fazendo seus estudos dentro da gruta. Após sua morte o governo da Dinamarca adquiriu posse sobre seus estudos, pois eram eles que financiavam. Lá foram descobertos restos humanos da era quaternária, além de esqueletos de diversos animais, que variavam de três a seis metros. O nome das galerias internas varia de acordo com o tipo de formação que possuem, são véus, salões e cores por toda a parte, uma relíquia escondida no meio das pedras, mas que hoje em dia conta com monitoração e um museu. Um detalhe curioso é que tanto na gruta quanto nas ruas da cidade, existe a presença de pedras que parecem quartzos. Não é difícil de achar e confundir com alguma coisa que tenha um valor material real, que não seja somente a sua beleza, e, assim, como na gruta, muitas pessoas acabam levando embora. Nas ruas esse ato não causa tanto problema, porém, nas grutas, desencadeia uma série deles que vão desde a oxidação do ácido presente nas mãos das pessoas até o impedimento da formação de estalactites e estalagmites. Além desse museu, ainda existe o Museu Casa de Guimarães, situado na cidade

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de Cordisburgo. Contam os administradores que a construção e elaboração foi um verdadeiro desafio, um trabalho de muita dedicação. A última pesquisa de campo responsável pela elaboração do acervo de imagens e obtenção de novas perspectivas imagéticas acerca da rota literária Roseana, teve duração de três meses e percorreu pouco mais de 1500 km, passando pelas cidades de Cordisburgo, Curvelo, Morro da Garça, Inimutaba, Presidente Juscelino, Araçaí, Felixlândia, Três Marias, vila de Andrequicé, Pirapora, Buritizeiro, Várzea de Palmas, Lassance e Corinto. Sendo guiados por pesquisadores de Cordisburgo – Maria de Fátima Castro, José Maria Gonçalves e José Osvaldo dos Santos (Brasinha) – o grupo obteve informações sobre lugares, grupos e diversas manifestações culturais que compõem agora o acervo disponível para pesquisa e futuras exposições, revelando o valor e principalmente as ligações das cidades visitadas com a obra do autor. No mesmo local se reúne os componentes do projeto educativo Grupo de Contadores de Estórias Miguilim, que é formado por jovens moradores de Cordisburgo, contadores de história com idades que variam entre 10 e 18 anos. Eles são responsáveis por guiar a visita dentro do museu e principalmente dar vida à obra de Guimarães através da contação. Idealizado por Calina Guimarães, prima de Guimarães, o grupo segue hoje com parceria junto ao museu e a comunidade local. Os jovens são selecionados e preparados especicamente para seguir a narração oral dos fragmentos literários de Rosa. Tem como objetivo apoiar e incentivar as crianças a estudarem, expandindo horizontes e trabalhando não só o intelecto como o próprio crescimento psicológico e novas perspectivas dentro do espaço/ comunidade. Se esses jovens desejarem continuar os estudos e seguirem para a faculdade, após concluírem o ensino médio, eles poderão ficar em Belo Horizonte, lá terão moradia custeada pelo projeto. Com esse incentivo, além de seguirem uma carreira adquirem o gosto pela leitura e a capacidade de memorização muito forte. Hoje quem é responsável pela formação deles é a Dora Guimarães em conjunto com Elisa Almeida e Lúcia Correa Goulart de Castro.

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A Miguilim Larissa, com 12 anos, relata que eles têm 15 dias para memorizar o conto que poderá ser narrado aos visitantes no fim da visita guiada. O projeto exige apenas que mantenham boas notas no colégio e responsabilidade durante o percurso como Miguilins, que é passar a história e o ritual de contação. O museu possui um acervo riquíssimo e explora a tradição como mecanismo para atrair o público. Eles frequentam não só eventos culturais locais como de outras cidades, sendo reconhecidos a nível nacional.

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3.2 “Viveramor” – Pessoas, a alma de Cordisburgo

Após a constatação de toda influência do meio na literatura Roseana, cabe agora

refletir um pouco sobre a influência das pessoas e suas características que fundamentalmente permeiam a obra do autor em riquezas de detalhes e tipos. Em Cordisburgo todo mundo é meio poeta. O ritmo da cidade muda em confronto com o espaço. Na casa da dona Dadá percebe-se a fala Roseana de cada um dos visitantes que por lá passam. Dona Maria, por exemplo, é uma senhora que ensinou o escritor a jogar damas, ela tem dificuldade para se comunicar devido à idade, mas é possível compreender que ao aprender algo tão simples (no caso jogar damas) com uma pessoa tão humilde o autor reafirma sua capacidade de ensinar coisas, mas aprender muitas outras, como ele mesmo diz em uma de suas famosas frases que é exibida no Museu Casa de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Em “Cordis” todos são assim, não é preciso dizer mais do que um “oi, tudo bem” e as portas estão se abrindo, os corações e principalmente os alambiques porque todo lugar tem cachaça nova acompanhada de rapé e cigarro de palha, como na música que Maria Bethânia canta interpretando um poema de Guimarães Rosa: Meu cigarro de palha, Meu cavalo ligeiro, Minha rede de malha, Meu cachorro trigueiro. 29

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Quando a manhã vai clareando, Deixo a rede a balançar, No meu cavalo vou montando, Deixo o cão a vigiar. Cendo um cigarro de vez em quando, Pra esquecer de pra alembrar, Que só me falta uma bonita morena, Pra mais nada me faltar, Que só me falta uma bonita morena, Pra mais nada me faltar. Boiadeiro .Vai boiadeiro que a noite já vem Guarda o teu gado e vai pra junto do teu bem De manhazinha quando eu sigo pela estrada Minha boiada pra invernada eu vou levar São dez cabeça é muito pouco é quase nada, mas não tem outras mais bonitas no lugar Vai boiadeiro que o dia já vem Levo o teu gado e vai pensando no teu bem De tardezinha quando eu venho pela estrada A fiarada ta todinha a me esperar São dez fiinha é muito pouco é quase nada mas não tem outros mais bonitos no lugar

Vai boiadeiro que a tarde já vem Leva o teu gado e vai pensando no teu bem

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E quando eu chego na canssela da morada Minha Rosinha vem correndo me abraçar É pequenina é miudinha é quase nada mas não tem mais bonita no lugar Vai boiadeiro que a noite já vem Guarda o teu gado e vai pra junto do teu bem¹. A cidade possui algumas figuras ilustres e conhecidas entre elas, seja por serem donos de negócio locais ou envolvidos com a política. Neste contexto, Laerte é uma dessas pessoas importantes em Cordisburgo, pois tem uma pousada bastante conhecida. Ele diz que nunca vai sair de lá, quer viver e morrer naquela terra sertaneja que ele tanto ama. Uma das coisas que ele mais gosta de fazer é sentar com a “caninha” (modo de chamar cachaça em Cordisburgo), o potinho de rapé e olhar a chuva cair no quintal onde tem plantado um pé de manga. Ele é sobrinho do personagem Juca Bananeira, do livro Sagarana, no conto burrinho Pedrês. Juca era pajem de Guimarães e na sua infância contava muitos “causos” para o autor e foi uma das pessoas que o influenciou através da contação de histórias, a oralidade que mais tarde se tornaria característica de seus contos.

O trecho a seguir ilustra o conto em que Juca está presente: Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência

1 Música interpretada por Maria Bethânia e texto de Guimarães Rosa

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de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.(ROSA, João Guimarães, 1984, p.10.)

Em um de seus “causos”, Laerte conta sobre a vinda de uma turista do Rio de Janeiro que se hospedou em sua pousada. Ela pediu uma história qualquer sobre a cidade e ele relatou o funcionamento do trem de ferro que fica na rua acima de sua pousada. A mulher, então, criou um poema baseado nesse “causo”.

A história se iniciava com uma fala bem Roseana: “o trem subia cuspindo fogo” e

resumia o percurso da linha ferroviária que ia de Cordisburgo até Belo Horizonte. Essa figura de linguagem e a idiossincrasia, ou seja, essa forma de falar que pode ser caracterizada e compreendida apenas por algumas pessoas em particular, define a linguagem regional. Isso foi de importância crucial para unificar o trabalho, pois as imagens da pesquisa necessitam transmitir o sentimento, a história em primeiro lugar. Assim, é possível permitir a identificação e interpretação de acordo com a bagagem de cada um que se deparar com o presente estudo. Diferente de uma fotonovela, as fotografias precisam falar por si só, através de uma análise apurada, uma análise visual e de sentimento individual. Os símbolos são essenciais e as conversas trazem esses símbolos, pela própria análise simplista que eles fazem. O trem soltar fumaça, liberar esse vapor faz um movimento que Laerte associou ao ato de cuspir, como se não fosse somente o trem máquina, mas o trem humano, o sentimento reinando e pairando por ali. Mais do que a movimentação de cargas, no passado ele movimentava pessoas e significava a vida da cidade, tudo girava em torno da estação, segundo ele. E no meio desses costumes e histórias, que além de conhecer o autor, se molda um olhar fotográfico.

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3.3 Brasinha - O arauto de Guimarães Rosa

José Osvaldo dos Santos, ou Brasinha como é conhecido em Cordisburgo, compõe

o time de pesquisadores regionais sobre a obra de Guimarães Rosa. Diz ele que o apelido veio da escola “eu não ficava quieto, andava para todo lado e o professor falava: - Senta aí rapaz, parece que tem uma brasa aí que você não pode sentar que vai queimar a bunda...”.

Apaixonado pela obra de Guimarães, principalmente por estudar o que tem de real

dentro dos contos, ele criou o grupo Caminhos do Sertão, que realiza a Caminhada Eco- Literária, passeio com a rota dos livros do escritor. Este grupo partiu da ideia de continuar a contação de história por aqueles que fizeram parte do Grupo de Contadores Miguilim, mas que já tinham atingido a idade limite. Após algumas narrações em frente aos pontos reais que eles localizavam na cidade, a inspiração foi surgindo para continuar essa busca e tornar um passeio cultural de Cordisburgo. Brasinha diz: ”Porque ouvir Guimarães Rosa é melhor que ler, tem uma musicalidade, uma sonoridade, uma coisa...” usando essas palavras para explicar a relação do espaço e do sentir dentro da literatura de Rosa. Algo que ele acredita fazer toda a diferença para a compreensão não só dos contos, mas também da vida: é preciso tocar, ver, imaginar e respirar essa literatura. A seguir, entrevista na íntegra realizada com José Osvaldo dos Santos (Brasinha) em sua loja Ave Palavra, na cidade de Cordisburgo: “Essa é a minha loja, loja de recordações, Ave Palavra. Não vendo nada que está aqui. As pessoas me dão as peças e contam uma história do objeto e eu guardo pra poder contar

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também. Eu comecei esse projeto e por enquanto se chama “Recordanças”. Gostaria muito que museus de outras cidades adotassem esse mesmo esquema para fugir daquela coisa de museu intocável, sabe? Porque ao visitar museus, na maioria deles, você não pode tocar em nada, não pode fotografar, e eu acho isso um absurdo. Eu fui a um evento sobre museus, me chamaram para participar, e a gente estava conversando e pediram minha opinião. Minha opinião é a seguinte: eu tenho meu espaço, que na verdade eu chamo de falta de espaço, minha ave palavra. Eu estou lá no meu mundo, sentado, vendo as pessoas passarem, de repente uma senhora lá da roça de mão pega com uma menininha pequena para em frente a loja. A criança diz à mãe: Vamo entrar aí? Olha que legal, tanta coisa. A senhora diz: não fia, não vamo entrar não isso aí é museu. Quer dizer, é a concepção que as pessoas têm de museu. Então eu montei esse espaço, com objetos antigos, para que as pessoas pudessem tocar e sentir a história do objeto. Voltando a Guimarães Rosa, eu não sou acadêmico, não tenho nada contra acadêmico, sou só um sertanejo apaixonado pela literatura do Rosa. Eu vivo fuçando as coisas reais que têm dentro dessa ficção: eu procurei o ão, eu procurei o espírito santo, eu procuro os lugares e acho... acho muitos. Certa vez uma professora, doutora em literatura, veio fazer uma fala aqui em Cordisburgo sobre Guimarães. Toda vez que eu me lembro do conto Buriti eu me lembro disso. No conto Buriti tem a Maria Behu, que é uma beata, a Glorinha que é o oposto de Behu e Lalinha, a cunhada das duas. No caso dessa história ficamos em suspense: será que a Lalinha está gostando do sogro? Será que o sogro está apaixonado por ela? O que de fato está acontecendo? Você fica naquela... A paixão que tenho pela literatura de Guimarães me leva a achar tudo muito mágico. Essa é a minha leitura, você faz a sua e assim vai.

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Continuando, veio uma estudiosa aqui pra cidade com sua definição para o nome de Maria Behu, definição essa que ela encontrou nos livros de literatura. Nisso, uma senhora daqui, que estava na loja, perguntou: você não sabe o que significa behu não?... Ficamos em silêncio. Então ela disse: na procissão do enterro, na semana santa, eles encenam levando Jesus Cristo morto, depois que desce da cruz. Nessa procissão do enterro tem a moça que canta e representa o pano que enxugou o rosto de Cristo, ela canta em latim e o coro de mulheres beatas, que usam o véu no rosto, segue cantando e recitando atrás: Behu, Behu. A gente chama de Behu essas mulheres que cantam seguindo a moça na semana santa. Não é a toa que o Guimarães Rosa a chamou de Maria Behu, porque pra nós Behu nos leva a uma beata. Essa mulher simples deu uma definição e a professora ficou sem reação porque era tão diferente da que ela encontrou nos livros. A literatura dá esse direito de você optar por vários caminhos. Guimarães Rosa é uma leitura com a alma.

O mundo de Guimarães, em criança, foi esse aqui. Onde ele buscava inspiração?

Aqui. O processo de escrever é impressionante. Como no conto “Dão Lalalão” quando ele fala do Soropita andando a cavalo, fazendo aquelas viagens, ele menciona até a casa de marimbondo que vê no caminho, comparando-a com uma caixa de papelão.

A forma como ele define pequenas coisas mexe com a gente. Comecei a ler Gui-

marães Rosa por causa de um personagem real, o Juca Bananeira, que tinha uma barraca aí em frente. Seu personagem aparece no livro “Sagarana”, aliás, nome muito bonito para nós. Na época fui conversar com o Juca e comentei: Ouvi falar que o senhor é o personagem tal... Ele me recebeu com uma fala bem Roseana, uma fala que é do Guimarães: ô Brasinha eu to lá dentro do “Sagarana”, eu to no burrinho pedrês. Tive que ler o burrinho pedrês para encontrar o personagem vaqueiro com o nome de Juca Bananeira (minha primeira leitura), que é grandioso também..Juca me contou que quando menino era vizinho do Guimarães e o pai

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dele pedia pro Juca cuidar do menino porque ele não gostava de brincar, só gostava de ler.

Guimarães Rosa ficava pedindo pro pessoal do trem trazer revista. O pai achava aqui-

lo meio estranho, imagina o que o povo vai pensar... Não, vamos arrumar um rapaz esperto pra ensinar esse menino a ficar esperto também. Guimarães fez uma homenagem ao amigo de infância colocando-o num conto. Continuei a leitura, encontrando lugares, história, pessoas, fatos reais... Daí pra frente foi uma leitura diferente. Tenho três filhos, um dos meus filhos foi um dos miguilins. Foi aquela coisa. Com isso comecei a viajar e a procurar os lugares e as histórias. Claro que os doutores, professores e o pessoal têm o caminho deles para que façam um trabalho acadêmico, mas não podem deixar de incluir esse povo do sertão... Quando você fala para as pessoas daqui: você leu Guimarães Rosa? Eles falam pra que ler Brasinha? A gente sabe tudo, tudo que ele escreveu a gente entende. Porque é o entendimento das pessoas daqui. Quando você começa a falar que uma coisa é difícil ninguém nem vai ler... Eu quero uma coisa que é fácil. No livro “Grande Sertão” mostra o sertanejo como acadêmico. Em um dos textos Riobaldo fala: dessas suas altas ideias eu navego muito mal (fala para o visitante que está chegando), mas quem estava navegando mal era o visitante. E aí? Outro “causo” é o do Soroco, uma história em que mãe e filha começam a cantar uma canção e que perturba Soroco. Ele as leva para serem internadas num manicômio em Barbacena. Ali na praça da estação acontece toda a história. É uma ficção e teve uma narração. Quando o pessoal ouviu a narrativa eles se situaram geograficamente dentro do conto. No momento em ele fala que o Nenego chega à plataforma do trem e diz que está tudo em ordem para a internação da mãe e da filha. As pessoas de Cordisburgo sabem que o Nenego existiu, ele era um juiz de paz que exercia o cargo de delegado quando este não estava. Uma

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pessoa que não é de Cordis não saberia dessa existência. Acho que as pessoas precisam buscar o conhecimento, os fatos e origem para compreender as histórias. São coisas que você precisa ter no seu trabalho. Um professor do Rio de Janeiro falou de Nenego, só que ele leu Nenégo, tipo: eu nego a minha condição de poder olhar essas mulheres. Então falei: não, mas não tem nada de Nenégo, é Nenêgo. Contei a ele que era um homem que morava aqui. Ele achou muito interessante a história e fez até um trabalho sobre isso. Guimarães Rosa escreveu para o acadêmico, claro, mas ele também escreveu para o povo dele. Então, essas histórias contadas nas obras dele são de um homem que estava à frente de seu tempo. No “Dão Lalaão” quando ele fala das mulheres usando cocaína é impressionante. Naquela época era quase impossível falar sobre esse assunto e ele traz isso pra literatura de uma maneira que não agride. O cara tira a mulher do cabaret porque se encanta com ela. Uma das partes maravilhosas é quando ele viaja e leva o vestido dela para sentir o cheiro. São definições maravilhosas. Eu achei interessante esse titulo porque várias pessoas falam coisas diferentes. Certo dia estava conversando com amigos e uma senhora (que nunca leu Guimarães Rosa) me ouviu falando “Dão lalalão”. Ela disse: parece o sino chamando as pessoas para orar. Para uma pessoa que nem leu Guimarães Rosa, quase analfabeta, foi uma bela definição, o som da palavra comparado ao toque do sino. Tem sentido, o sino aqui toca avisando a morte de alguém e quando o enterro está chegando na igreja. Eu tenho um amigo que fez um filme sobre os sinos, eles falam. “Grande Sertão: Veredas”: você pensa em sertão e logo imagina um lugar seco, o inferno, um lugar sem vida, mas as veredas depois dos dois pontos são o oásis do sertão. É onde tem água.

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O Sertão é um lugar sem vida, retrato do inferno; veredas, o paraíso, o céu, é agua. Parece que o titulo já demonstra o conflito do Riobaldo, será que Deus existe? Mas se não existir e isso tudo? A minha definição é essa. Eu optei por fazer a leitura assim, viver desse mundo, conversar com as pessoas, conhecer. Tem a fala, a oralidade e a musicalidade. Alguns anos atrás uma menina esteve em Cordisburgo para estudar. Ela era apaixonada pela literatura de Guimarães. Na época me perguntou: Brasinha onde é o ão? E eu sei que tem um lugar que se chama Espírito Santo e no “Dão Lalalão” fala de espirito santo. Tem um trecho que ele diz: do alto da trindade se avista o morro da garça. Trindade é um lugarzinho que tem um morro muito alto que dá pra ver o morro da garça, mas essa é uma definição nossa, o acadêmico pode fazer a sua leitura. Não quero dizer que a minha leitura seja a certa, mas é um jeito de entender a literatura e que as pessoas vão percebendo que isso é possível. . Dentro do “Dão lalalão” tem uns lugares (buriti das mulatas) em que tudo existe. Um professor da UFMG veio a Cordis e disse: o Brasinha fala como se tudo existisse, mas isso tudo é uma ficção. Eu sei que é uma ficção, mas qualquer pessoa que escreve uma ficção parte do real, ele não nasce num mundo de ficção. Então eu falei: vai pra Cordisburgo porque o Guimarães fala isso. Quando questionaram que “Grande Sertão:Veredas” era muito complicado ele disse: vai pra Cordisburgo. O professor veio e eu o acompanhei por dois ou três dias. Ele retorno para sua cidade e depois me ligou: Brasinha me desculpa o que eu falei. Eu falo pras pessoas: até onde aquilo é real e até onde é ficção? Tenho uma amiga que diz: tudo no Guimarães vira ficção, é bonito. Campo Geral é danado de bonito. E no conto do Miguilim ele fala de um boticário que já estava velho, se achava puro de alma, o sr Soande, e que iria pro céu vivo. Ele faz umas asas, sobe num pé de mamão, pula pra voar, cai e vai para o céu, mas o céu de lalau. Essa história é contada em Cordisburgo há cem anos ou mais. Um caso verídico que se você perguntar pra qualquer pessoa mais antiga

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ela te conta essa história. Existiu um farmacêutico que chamava seu Rocha e a filha, Maria da Rocha, fazia asa de anjo, sabe aqueles anjinhos que vão coroar? O tempo foi passando e o sr Rocha foi ficando meio esclerosado e ele pensou: vou usar uma dessas asas e vou pro céu vivo, aí ele pulou e se machucou muito. Certa vez um tradutor italiano escreveu para o Guimarães e perguntou na carta: o que é céu do Lalau? Guimarães diz: ah não sei, são coisas faladas na minha terra e não se define. Fiquei curioso e um dia eu estava na barbearia de um amigo chegou um senhor e falou: fulano morreu, lá em São Thomé... O barbeiro perguntou: será que ele foi pro céu?...O senhor respondeu: foi pro céu, mas o céu do lalau. Quando terminou eu perguntei: seu Durvalino o que é céu do Lalau? Ele respondeu: é que lá em São Tomé existia um homem que chamava Lalau e ele era terrível, muito, muito ruim, então o céu do Lalau é o céu do demônio, o céu do inferno. Eu entendo que a partir dessa história o Guimarães fez a reflexão que para chegar ao céu você tem que passar por um sofrimento. Por que a gente não vai pro céu vivo? Se é tão bonito porque a gente não vai vivo? Então essa é a minha leitura e eu acabo vivendo esse mundo todo do Guimarães Rosa. Há sempre alguém me contando alguma coisa. Do burrinho pedrês tem o senhor Cristalino, analfabeto. Um dia ele sentou aqui (ele tá com cem anos) para esperar o ônibus que o levaria para a roça e chovia muito. Ele falou: que chuva hein Brasinha? Essa chuva me faz lembrar o córrego da fome, aquele córrego quando enche vira bicho. O Guimarães Rosa diz: o córrego da fome é uma cobra devoradora de gente. Ele completa: certa vez se não fosse o burro do meu tio Sinoca ele teria morrido, se ele não agarra no rabo do burro ele morria. Sinoca era irmão da minha mãe, meu tio. Nisso, me lembrei de uma entrevista que o Guimarães disse que o burrinho pedrês era um caso real da terra dele. Só que ele floreou aquilo, usou sua magia de escritor. Ele escreve o que a gente quer falar, mas só consegue depois de ler. Você quer dizer, mas não dá conta de passar para o papel, só Guimarães para fazê-lo. Por exemplo: amor é pássaro que bota ovos de ferro. Tem todo um processo para

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escrever. Isso é a definição que ele dá ao sentimento mais bonito do mundo e das pessoas. Guimarães teve a magia de passar isso pra literatura porque ela é universal. Você sabe o moço do elefante? Que tem uma casa na entrada da cidade em formato de elefante. Então, ele veio aqui e falou o que ia fazer. E eu, na minha paixão pela literatura do Guimarães, achando que eu poderia influenciar na sua escolha disse: Por que você não faz um boi? Um cavalo?... Ele respondeu: Brasinha você falou pra mim há pouco tempo que o sertão é do tamanho do mundo, o sertão está em toda a parte. O meu sertão é o da Índia. Fiquei sem resposta, não está aqui mais quem falou, faça o elefante, você tem toda a razão. Eu sempre me pego nas palavras do Riobaldo que o professor nem sempre ensina, de repente ele pode também aprender e isso é maravilhoso. Esse sertão que o Guimarães Rosa escreve é claro um sertão geográfico, do Brasil, do nordeste, do mundo. Mas tem o que está no seu interior que pode ser: tão bonito, tão estranho, tão misturado, tão promissor, tão ingrato...É o sertão que está dentro da gente e que o Guimarães o tornou universal. Bárbara, essa é a minha visão, esse jeito de ler e não só com Guimarães Rosa, mas com qualquer outro autor. Eu tive a felicidade de ser conterrâneo, de ser Guimarães. Minha definição é que ele fez uma leitura da alma do homem do sertão e botou pro mundo. A gente fica todo vaidoso por ele ter se inspirado na gente, nesse povo daqui. Eu acho que as pessoas podem escrever sim, acho que todo mundo tem a vaidade da criação, que não queiram escrever igual ao Guimarães Rosa. Eu leio muitas coisas bonitas, que não são de Guimarães. A gente também não pode colocá-lo em um altar. Nessas minhas andanças ouço muitas coisas. Certo dia uma mulher falou pra mim: Brasinha você imagina, existem pessoas que tem a magia de passar pela literatura como o Guimarães. Não é algo impossível. Eu por exemplo nunca dei conta de ler Ulisses, mas jamais

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vou falar que é uma literatura que ninguém entende, não posso falar isso sem ter lido. Outra senhora lá do sertão virou pra mim e perguntou: Você mora perto do mar? Eu Não. Ela: Você conhece o mar? Eu: Conheço. Ela: O mar é bonito? Eu: O mar é lindo. Ela: Que cor é o mar? Eu: Que cor a senhora acha que é? Ela: Da cor do seu olho. Seu olho é azul ou verde? Eu: O mar tem hora que é azul, tem hora que é verde. E ela continuou a falar expressando a vontade enorme de conhecer o mar. Eu perguntei: Mesmo sem conhecer qual você considera mais bonito o mar ou o sertão? Ela não esperou nem eu terminar e disse: o sertão, o sertão é muito mais bonito. Quer dizer, ela quer conhecer o mar, acha que ele é bonito, mas o sertão é tem sua beleza maior. Houve silêncio ela virou e falou: É... A vida da gente é composta. Um escritor que pega essa fala e leva pra literatura dá seu toque mágico, ele escreve e você dá conta de entender. Eu digo que o Guimarães Rosa foi mais esperto, ele pegou tudo. Eu não concordo com essa ideia de que você não vai atingir o que quer (contei da carta que ele escreveu ao parlamento francês se recusando a visitar). Ele fala que quando queria saber das coisas, ao invés de contar histórias como ele não sabia ele escrevia. Essa era a humildade dele. Até criaram um dicionário pra ele. Outra visitante, Nilce Santanna veio para cá e ela estava escrevendo. Nós fomos almoçar na gruta e ela me perguntou: Brasinha, o Riobaldo chama a nhorinhá de prostitutriz o que significa pra você? Eu disse: acho que ele nunca colocaria nada como prostituta ou como meretriz, eu imagino mais prostituta atriz, uma atriz que atua como prostituta. Todos ficaram em silêncio e eu disse: mas doutora se a senhora escreveu assim deixa porque eu estou falando como eu compreendo. Então ela disse: não tinha pensado nisso. E eu falei: mas é claro a Nhorinhá quando chega ao sertão.

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E é isso. Acho que onde o Guimarães estiver ele deve estar muito feliz em saber que o seu povo está divulgando sua obra, acho que era isso que ele queria. Em entrevistas ele dizia pras pessoas lerem seus livros em voz alta. Entende? Todo esse envolvimento é uma caminhada do espírito.” O Brasinha não é somente um dos precursores do grupo Caminhos do Sertão, mas também é diretor cultural da Associação dos Amigos do Museu Casa Guimarães Rosa, Cordisburgo, e diretor cultural do Circuito Turístico Guimarães Rosa, além de referência para os próprios acadêmicos que vão à cidade procurar informações com ele. Em Agosto de 2008, por exemplo, saiu uma entrevista na Folha de São Paulo sobre a semana Roseana e é claro que o Brasinha estava presente. Assim como também participou da palestra de cem anos de Guimarães Rosa no Teatro da PUC em 2007. Em muitas reportagens relacionadas ao autor ele aparece como figura de renome e que tem propriedade para falar de Guimarães, afinal são muitos anos de adoração ao mestre como ele mesmo chama. A seguir um trecho do site jornalocal.com.br, escrito por Sandra Venâncio em 2008, relata a experiência de conhecer Brasinha e reafirma a sua fama de estudioso da obra Roseana, além de retratar um pouco a importância da vivência: Brasinha está aberto para receber cada visitante com um sorriso e com uma eterna disposição para contar histórias e falar de Guimarães Rosa. Ele é atração em Cordisburgo, mais que a impressionante e tão procurada Gruta do Maquiné, situada ali perto da cidadezinha. Brasinha faz gestos e conta: “Rosa está vivo, e vai chegando devagar, cada vez que alguém sente que o sertão é sozinho, o sertão é dentro da gente, o sertão é sem lugar. (VENÂNCIO, Sandra, 2008, Disponível em <<http://jornalocal.com.brsite/educacao/arquivo-4454/>).

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Assim, pode-se perceber a importância do contato com esse personagem para o presente estudo, que apesar de não ser um acadêmico representa tanto para a cidade e para o conhecimento da obra roseana. Além de conhecedor de Guimarães Rosa, Brasinha também é uma figura que ilustra o “sentir” e a importância de uma vivência na cidade para a compreensão do autor e de suas obras.

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3.4 Cordisburgo x Antônio Cândido – Um novo olhar sobre a crítica de Cândido As relações de vivência na cidade trouxeram outro olhar para o trabalho e a partir da entrevista com Brasinha foi possível não só traçar um paralelo, mas também uma espécie de relação de oposição entre pontos de vistas sobre a obra de Guimarães. Através de estudo do sociólogo e literato Antônio Cândido e desse novo olhar, proporcionado pela pesquisa de campo realizada em Cordisburgo, incorpora-se ao projeto uma relação de oposição de ideias, criando um contraste entre a entrevista realizada com Brasinha e a crítica de Cândido. Por um lado, Cândido questiona sobre a influência criadora de Guimarães, que segundo ele é impossível de ser proporcionada sem se tornar servidão¹. A seguir trecho da crítica: De modo geral, lembro que escritores como Machado de Assis ou Graciliano Ramos podem influenciar em sentido positivo a maneira de escrever dos mais moços, porque de certo modo trabalharam dentro dos cânones da prosa literária de nossa língua. É possível inspirar-se neles sem perder a personalidade. No caso de Guimarães Rosa, isso não me parece possível. Ele pode ser admirado até o fanatismo, como acontece, mas não o vejo exercendo influência criadora, porque a sua marca é tão peculiar que transforma a influência em servidão. (CÂNDIDO, Antonio, 2006, Disponível em < http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp763/pag14.htm>)

1 Servidão: s.f. Estado do servo, do escravo.Escravidão.Privação da independência ou da liberdade Sujeição, dependência

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Percebe-se na cidade natal do autor em questão outra visão, não a de servidão tal qual defendida por Cândido, mas a que o próprio escritor serviu: o regionalismo local, as referências e o povo sertanejo. Muitas histórias são contadas pelo povo, mas através das mãos habilidosas de Guimarães puderam ser transmitidas por meio da literatura. Apesar de ser um escritor erudito, ele escreveu para os intelectuais de sua época e de tempos vindouros, mas muito mais para aqueles de sua terra, conterrâneos de Cordis, pois foi através do contato com esses contadores que o autor pode construir essa formação literária, como ele mesmo relata em suas cartas ao tradutor italiano Edoardo Bizarri. Por exemplo, a influência de Juca Bananeira, que mais tarde se tornou personagem de um conto baseado em fatos reais (segundo Guimarães Rosa e o povo da cidade), levou as histórias da roça ganharem vida com os floreios do autor. Juca Bananeira cuidava de Guimarães Rosa na venda de seu pai. Seu Florduardo dizia que Joãozito, como carinhosamente chamava o filho, precisava de uma companhia que não fossem os livros. Guimarães Rosa sempre que podia pedia aos viajantes da cidade para trazer livros quando retornassem. Assim, seu pai contratou Juca como pajem do menino. Este, por sua vez, contava histórias que mais tarde se tornariam referências e até mesmo originariam os próprios contos de João Guimarães Rosa. Juca Bananeira foi também boiadeiro, carroceiro, açougueiro e ainda por cima delegado, mesmo sendo analfabeto. Faleceu com cento e quatro anos em 1998, um ano depois do Manuelzão, outro boiadeiro personagem de Rosa. Todas essas histórias podem ser encontradas tanto no Museu Casa de Guimarães Rosa, em notas pessoais do autor, quanto na boca do povo da cidade que tem muito orgulho em ter um conterrâneo personagem dos livros de Guimarães.

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Percebe-se não só por essas características do próprio Bananeira, mas também pela vivência de que Cordisburgo é um povoado humilde mas cheio de histórias. As pessoas são apegadas a tradições e gostam de contar “causos”, além de ostentarem certa vaidade, por terem um escritor tão ilustre como conterrâneo, assim como seus próprios personagens. É interessante trabalhar com a reflexão de que em Cordisburgo pessoas humildes, e por vezes analfabetas, apreciam a literatura dele como algo que pode ser compreendido por outros meios, mesmo que vivenciais. Por que nas cidades e grande centros pessoas consideram a obra de Guimarães uma leitura tão difícil ou até mesmo inacessível? Talvez a resposta esteja mesmo na vivência. É preciso uma viagem assim para compreender com que olhos o escritor enxergava, olhos da simplicidade, olhos que floreiam ao escrever, mas não anulam a essência. Deste modo, Guimarães coloca, inclusive, o sertanejo na posição de intelectual e de estudioso dos mistérios da terra, mas baseado em sua natureza simplista, de cria e de criador, como mostram os trecho a seguir, que representam não só a sabedoria do sertanejo, mas também o reconhecimento de sua própria condição, que por vezes o torna ainda mais sábio através da humildade: “Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração.”(ROSA,João Guimarães, 1986, p.14.) A ficção é criada a partir da realidade e esse é um dos componentes principais do processo criativo de Guimarães. O espelhamento de personagens com os próprios cidadãos da cidade mescla e ilustra a capacidade de transgredir regras e transformar pessoas simples em

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encantadas, em colocar o sertanejo em uma posição que não é comum, mas nem por isso quer dizer que não seja possível.

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3.5 Cordisburgo e Antônio Cândido – Encontro de olhares

Ainda pensando na posição defendida pelo autor Antônio Cândido, mas dessa vez

numa convergência com suas ideias para a construção do personagem, pode-se chegar à conclusão de que as pessoas quando pensam no enredo de uma história, ligam-se intrinsicamente ao personagem que habita o conto, na sua trajetória, costumes, cotidiano, vida, problemas e no decorrer do destino do próprio personagem durante sua trama no livro. Como indica Antônio Cândido:“ O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo.” (CANDIDO, Antônio, 1974, p.53.) Segundo Antônio Cândido existem três elementos centrais no desenvolvimento da novela: o enredo, a personagem e as “ideias”. Essas ideias são caracterizadas pelos valores e significados que vem do romance. Através desse conjunto de ideias o leitor pode se identificar, projetar, transferir, se relacionar de forma afetiva e intelectual. A personagem é quem dá vida para o enredo e às ideias que constam ali, porém não pode sobreviver separada dos mesmos, mas como afirma Antônio Cândido ela é o elemento mais importante: [...]pode-se dizer que é o elemento novelístico mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e XX; mas que só adquire pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de um romance. (CANDIDO, Antônio, 1974, p. 54 e 55.)

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A personagem entra em um paradoxo a partir do momento que se compreende que ela é um ser fictício, ou seja, como pode existir o que não existe? O problema do que parece ser verdade no romance, depende desse personagem ficcional que pode ser uma fantasia, mas comunica a mais legítima verdade. Pode-se entender então que a personagem é a concretização desse ser fictício relacionado ao ser vivo. Existem semelhanças e diferenças entre o ser real e o fictício e são essas que criam o sentimento de realidade. Quando se conhece o ser real, a primeira impressão é caracterizada pelo visual, quando lidamos com o personagem fictício se tem as informações fragmentadas. Os seres são, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Daí a psicologia moderna ter ampliado e investigado sistematicamente as noções de subconsciente e inconsciente, que explicariam o que há de insólito nas pessoas que reputamos conhecer, e, no entanto, nos surpreendem, como se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente sua área de essência e de existência.(CANDIDO,Antonio, 1974, p. 56,)

Em um romance literário, essa maneira fragmentária caracteriza o jeito insatisfatório e incompleto que o leitor analisa seus semelhantes no processo de identificação, transferência e auto reconhecimento. Esse reconhecimento com os personagens é imanente à condição e a própria experiência do leitor, ou seja, não é possível controlar essa comparação entre leitor e personagem. Porém, no romance essa mesma comparação é criada como ferramenta para sugestionar esse infinito que é o conhecimento do outro.

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Então, são criadas características do personagem para mantê-lo identificável, mas sem perder sua complexidade. Os símbolos que compõe a personalidade e características da persona literária proporcionam então uma viagem de interpretação. Durante a existência interpretam-se pessoas para torná-las únicas e de fácil compreensão, deste, em um romance, o autor transforma a persona dando a forma mais lógica e coesa da sua natureza., tal como Cândido ressalta: “O escritor lhe deu, desde o início, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo de ser.” (CANDIDO, Antônio, 1974, p.59) A sua profundidade passa a ser diferente, pois todas as informações estão à mostra, foram pré-selecionadas pelo autor, para transmitir a lógica do conto, a simplificação estrutural que o romancista permite. Em sua outra obra de análise sobre a literatura, Antônio Cândido realiza um ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, esse ensaio é dividido em análises sobre os personagens, o cenário e principalmente os diálogos envolvidos e a arte do autor para criar. Cândido fala da realidade utilizada pelo autor para moldar o personagem existente e seus ambientes, entrando novamente na questão de que a ficção coexiste com a realidade na literatura Roseana: Aqui, um vazio; ali, uma impossível combinação de lugares; mais longe uma rota misteriosa, nomes irreais. E certos pontos decisivos só parecem existir como invenções. Começamos então a sentir que a flora e a topografia obedecem frequentemente as necessidades da composição; que o deserto é sobretudo projeção da alma, e as galas vegetais simbolizam traços afetivos. Aos poucos vemos surgir um universo fictício, à medida que a realidade geográfica é recoberta pela natureza convencional.(CANDIDO, Antônio, 1974, p. 124,)

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A importância do meio físico, como dito pelo próprio Brasinha na entrevista exposta neste projeto, é retratada através do cenário que serve de suporte para escrita de Guimarães Rosa, tornando a realidade envolvente, mas ao mesmo tempo bizarra. Essa natureza funciona como complemento e por vezes representa uma personagem, ou seja, o ambiente recebe a nomeação de persona literária e começa a agir como tal, pois é parte fundamental da composição dos contos e é retratado como uma pessoa, com todas as suas características e personalidade. Os processos criativos de Guimarães permitiam a criação de mundos através da exploração da língua, mas não somente através de neologismos como também ressuscitando palavras antigas, originadas do português clássico, que caíram em desuso. Mesmo depois das revelações, tanto da criação de palavras quanto da cartografia que o inspirou a criar meios físicos e personagens, o universo do escritor parece ainda mais fascinante, pois possibilita ainda a descoberta diária, a surpresa. Dessa forma é possível concluir que tanto os estudiosos quanto o povo sertanejo de Cordisburgo, concordam que para se entender Guimarães Rosa é preciso mergulhar na sua literatura, viver os sertões e deixar que o sertão tome conta. Assim se obtém o entendimento acerca de sua obra e por vezes até dos próprios conflitos pessoais. A vivência é de extrema importância para estudar a literatura Roseana, os processos criativos do escritor e a construção de seus personagens que mesclam real com irreal transformando livros em histórias de aventura e fantasia.

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Em seu livro Cândido termina justamente com uma reflexão sobre isso: Se o leitor aceitou as premissas deste ensaio, verá no livro (no caso Grande Sertão: Veredas, que é o objeto de estudo) um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” Entremos nessa realidade fluida para compreender o Sertão, que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos outros. O sertão é o Mundo.(CÂNDIDO, Antônio, 1974, p. 139,)

Assim, através desse olhar de Antônio Cândido que se une a própria percepção do povo da cidade de Cordisburgo, percebe-se a necessidade de compreender além dos personagens o ambiente em que a história se passa. Esse meio age como persona literária, o sertão ganha ares de “mocinho” ou “vilão” dentro do conto, adquirindo sua própria personalidade. Ambos, personagem e cenário, têm o mesmo valor para a literatura de Guimarães Rosa. Reconhecendo esse ambiente é possível entender também os personagens reais e por isso a importância tão grande de uma experiência vivencial como essa. Mergulhando de uma vez no cenário roseano e alcançando, dessa forma, os ingredientes necessários para dar embasamento ao experimento que é o livro de fotografias.

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4. “Fotograflorir” - A construção da imagem fotográfica e sua importância para o experimento Após ser constatada a importância da viagem e da experiência sensorial vivenciada na cidade de Cordisburgo, parte-se para a análise do aparelho utilizado e como foi a construção da imagem que será transmitida através do experimento. Como o mesmo se reflete em um livro de fotografias que irá proporcionar um novo olhar sobre a obra do autor João Guimarães Rosa, é importante compreender todos os passos utilizados para a finalização como: aparelho fotográfico e a linguagem, como a imagem pode se comunicar para o mundo, segundo Vilém Flusser, o olhar estrangeiro e do fotógrafo viajante atráves do estudo de autores como John Urry, Maureen Bissilliat e Pierre Fatumbi Verger e a elaboração do projeto gráfico do experimento.

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4.1 O aparelho fotográfico

As imagens utilizadas no projeto foram produzidas através de um aparelho, no caso

a máquina de fotografar, e para entender as imagens é importante compreender o processo de sua formação desde o início. O filósofo Vilém Flusser diz que o aparelho fotográfico influencia diversos outros aparelhos, tanto de pequeno como de grande porte. Cada cultura possui determinados aparelhos e estes “objetos culturais” podem ser divididos em: bens de consumo (aparelhos criados para serem consumidos) e instrumentos (que foram criados para produzirem estes bens de consumo). No caso da máquina de fotografar, esse objeto se torna um instrumento para produzir imagens, ou seja, bens de consumo. A máquina de fotografar funciona como uma conexão entre a natureza e a informação, pois através dela que objetos são captados e traduzidos para modificar a vida dos homens. O responsável por essa “manipulação” é o fotógrafo, que produz símbolos e também os armazena com a intenção de não apenas serem consumidos mas serem contemplados, analisados e lidos. Assim, esse fotógrafo deixa de ser trabalhador em função do objeto e passa a ser informador, isto é,“ O fotógrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da realização do universo fotográfico.” (FLUSSER, Vilém, 1985, p.15.)

Ele se esforça para conhecer ao máximo as capacidades ignoradas do objeto. O

fotógrafo não trabalha, mas sim brinca. Nesta brincadeira ele busca esgotar as possibilidades do aparelho caracterizado como “rico” devido a característica de não se esgotarem suas funções.

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Esse sistema complexo é chamado pelo filósofo comunicacional Vilém Flusser de Caixa Preta e dentro dessa definição o mesmo diz: A pretidão da caixa é seu desafio, porque, embora o fotógrafo se perca em sua barriga preta, consegue, curiosamente, dominá-la. O aparelho funciona, efetiva e curiosamente em função da intenção do fotógrafo. Isto porque o fotógrafo domina o input e o output da caixa: sabe como alimentá-la e como fazer para que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho, sem, no entanto, saber o que se passa no interior da caixa. Pelo domínio do input e output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado. (FLUSSER, Vilém, 1985, p. 15.)

Essa é uma caixa mágica, a extensão dos olhos do fotógrafo e por isso é necessário saber, captar, nesse mundo repleto de imagens, aquelas que possuem valor e significado. E esse mesmo significado chega ao receptor de forma distorcida, pois antes ela passa por diversos envolvidos no ato de fotografar, e estes são responsáveis pela forma como as pessoas irão enxergar e interpretar aquela imagem, ou seja, uma manipulação inerente. É possível enxergar isso no trecho de Flusser a respeito da constituição do aparelho fotográfico e a cadeia de interesses que se forma antes da imagem chegar ao consumidor: O fotógrafo exerce poder sobre quem vê suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A indústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum. No jogo simbólico do poder, este se dilui e se desumaniza.(FLUSSER, Vilém, 1985, p. 17.)

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i Compreende-se então a definição de aparelho como um brinquedo complexo que não pode ser completamente esclarecido, ele caminha lado a lado com o “funcionário” (pois trabalha para o aparelho) e no caso é o fotógrafo responsável pela forma como aquela imagem irá se comunicar ao mundo. O valor da imagem e sua significação dependerão do olhar que o fotógrafo queira transmitir. No caso desse projeto, o pensamento na construção de imagens anda em parceria com a análise dos contos antes das fotografias. O intuito é passar a história de forma que o receptor possa fazer uma análise o mais livre possível, permitindo ter sua própria associação e interpretação, dando asas à imaginação na concepção do conto e da linguagem Roseana. Isto é, através do aparelho fotográfico proporcionar uma interação e um novo olhar sobre o livro “Noites do Sertão” de Guimarães Rosa. Pode-se dizer que a literatura Roseana funciona como as fotografias, pois vive um processo de constante mudança, afinal, as interpretações podem diferir de acordo com o momento em que a pessoa que está lendo vive, com sua bagagem cultural e com seu conhecimento acerca do mundo, então não é possível que exista uma interpretação única e imutável, o mesmo processo acontece na construção da imagem fotográfica. Apesar de ser manipulada na sua concepção, são os olhos do receptor que definirão qual o real valor da fotografia.

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4.2 Imagens:Construção, olhar, recepção e o universo fotográfico Depois de entender o aparelho como objeto de construção, chega a hora de entender como a imagem pode conversar com o receptor, qual a sua função e a melhor forma de compreender os processos criativos de sua formação nessa pesquisa. Imagens são representações de algo e sua origem vem da imaginação. No primeiro capítulo de “A Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”, Flusser caracteriza imaginação da seguinte forma:“Imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens.” (FLUSSER, Vilém, 1985, p.7) Assim, ela oferece um espaço para a interpretação dos símbolos. E nesse contexto acontece o olhar que vagueia por essas imagens e é chamado de “scanning”. Esse vaguear segue os impulsos do observador, cada visualização é diferente porque quando um olhar se volta para algo, percebe novas coisas e adquire novas percepções. Não existe uma impressão certa ou errada e sim o olhar do receptor e do emissor. A partir disso percebe-se a tendência do olhar em se voltar para elementos simbólicos centrais e assim estabelecer as relações de interpretação. Quanto aos textos, decifrá-los é descobrir as imagens significadas e a sua relação que é muito importante para compreensão das histórias. Inicialmente os textos eram caracterizados como metacódigos de imagens, mas hoje já se percebem determinadas imagens como metacódigos de textos. Porém, uma das maiores discussões presentes no livro “Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia” é o fato de os textos taparem as imagens que pretendem ser representativas para o homem. Um dos desafios desse projeto

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é isso: trabalhar as imagens de forma que elas se comuniquem sem a necessidade de textos, pois o uso de textos poderia barrar o processo imaginativo na compreensão delas No decorrer da história do Ocidente, na Idade Média, surge a “textolatria”, palavra que representa a idolatria por esses textos, as imagens passam a viver em função deles. As imagens técnicas, fotografias, surgem como uma saída para essa crise dos textos. E o intuito desta pesquisa é justamente trazer um novo olhar, livre de amarras, que vá contra essa idolatria e consiga se utilizar de imagens representativas sem a necessidade da presença textual. Diferente da tradução, pois esta além de limitar nunca será exatamente igual ao real, nas traduções as informações podem se perder por diversos motivos e isso ocorre inclusive com idiomas. Por exemplo, nem sempre haverá uma palavra que seja igual para aquele significado. As imagens técnicas são aquelas produzidas por aparelhos. Segundo Vilém Flusser as imagens: Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado. Com efeito, são elas símbolos extremamente abstratos: codificam textos em imagens, são metacódigos de textos. A imaginação, à qual devem sua origem, é capacidade de codificar textos em imagens. Decifrá-las é reconstituir os textos que as imagens significam.(FLUSSER, Vilém, 1985, p. 10)

E na construção dessa imagem o fotógrafo e seu olhar servem como elo entre a imagem e seu significado. Por essas características a elaboração desse tipo de imagem merece certas estratégias para pensar e enxergá-la. Elas deixam de ser apenas imagens e passam a trabalhar como um envolvimento entre a cultura do povo e a disseminação de ideias sobre determinado tema. Depois de compreen-

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der a construção da imagem, segue-se para o ato de fotografar. Ao se fotografar é importante pensar a composição da imagem, como já foi relatado anteriormente, elas precisam ser informativas e interessantes. Fotos comuns todos podem tirar hoje em dia, por isso é importante estar atento ao que se classifica como novo. O pensador Vilém Flusser caracteriza o fotógrafo como caçador, como se pode ver no trecho a seguir que inicia o quarto capítulo de seu livro “Filosofia da Caixa Preta- Ensaio sobre a filosofia para nova fotografia”: Quem observar os movimentos de um fotógrafo munido de aparelho (ou de um aparelho munido de fotógrafo) estará observando movimento de caça. O antiquíssimo gesto de caçador paleolítico que persegue a caça na tundra. Com a diferença de que o fotógrafo não se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto é, pois, estruturado por essa taiga artificial, e toda fenomenologia do gesto fotográfico deve levar em consideração os obstáculos contra os quais o gesto se choca: reconstituir a condição do gesto. (FLUSSER, Vilém, 1985, p. 18)

O fotógrafo então é responsável por esse gesto, de fotografar e tornar a fotografia atrativa e informativa, utilizando dessa superfície plana para retratar as cenas simbolicamente. Para essa imagem chegar ao receptor ela precisa ter valor, essa fotografia precisa ser pensada e captada pelo emissor como forma de retratar momentos significativos. No mundo atual as pessoas têm muita facilidade para obter fotos, antigamente com as analógicas era mais difícil e por isso as imagens possuíam um valor maior. Hoje em dia elas podem ser consideradas descartáveis porque as pessoas podem simplesmente ceder ao impulso de tirar uma foto quando quiserem. Novamente surge a questão da fotografia atualmente funcionar

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como condutor, representando um texto que sobreviva de forma oculta pela imagem e esta aparece novamente como elemento principal e não complementar. Como filósofo da mídia Flusser então ressalta e explica: O universo fotográfico é um jogo de permutação cambiante e colorido com superfícies claras e distintas, chamadas fotografias. Estas são imagens de conceitos programados em aparelhos e tais conceitos são símbolos vazios. Sob análise, o universo fotográfico é universo vazio e absurdo. No entanto, como as fotografias são cenas simbólicas, elas programam a sociedade para um comportamento mágico em função do jogo. Conferem significado mágico à vida da sociedade. Tudo se passa automaticamente, e não serve a nenhum interesse humano. Contra essa automação estúpida, lutam determinados fotógrafos que procuram inserir intenções humanas no jogo.(FLUSSER,

Vilém, 1985, p. 38)

É justamente a resposta e o questionamento do experimento, transformar imagens simbólicas em imagens de valor que possibilitem uma interpretação midiática individual. Deixar de lado as imagens puramente descartáveis e sem propósito, e focar em fotografias que deixem não só a mente do receptor aberta para informações como despertem dentro dele a vontade de transpassar o universo imagético para o caminho do universo literário. As imagens fotográficas desse livro são a representação, a porta de entrada para a o universo de Guimarães Rosa e seu livro “Noites do Sertão”.

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4.3 O estrangeiro e o olhar do fotógrafo viajante

Chegamos ao olhar que permeia a elaboração do experimento: o olhar do fotógrafo

viajante ou do turista. Exemplificando isso, vem a teoria de Vilém Flusser sobre o estrangeiro, ainda que em seu livro “Lingua e Realidade” essa explicação esteja relacionada com fenômenos da linguagem, é possível fazer uma associação e entender como funciona o olhar do fotógrafo viajante que nada mais é do que um constante estrangeiro no meio. A seguir o trecho que explica o estrangeiro: Naturalmente estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca”. Ser estrangeiro, portanto, é necessário, tanto quanto viajar, ou imigrar. Navegar é preciso, viver não é preciso. E o filósofo navegava e escrevia não apenas entre dois continentes mas também pelo menos quatro idiomas.(FLUSSER, Vilém, 2007, p.11.)

Partindo desse pensamento de que o estrangeiro está em toda parte, e não é nada mais nada menos do que um ser que vive em constante migração, é que se segue para a análise de construção das imagens técnicas utilizadas nesse experimento e de onde surgiu esse olhar Quando se viaja para algum lugar, olha-se para ele com diferentes olhos afinal aquele não é o ambiente em que se está acostumado. Ou seja, esse olhar do turista não é uno, existem diversas formas de olhar para um ambiente, registrá-lo e isso vai depender da bagagem cultural e intelectual do fotógrafo. É durante as viagens que acontecem os fenômenos mais significativos para esse fotó-

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grafo, no livro “O Olhar do Turista” de John Urry, o turismo é classificado como: Os períodos de residência em outros lugares são breves e de natureza temporária. Existe uma clara intenção de voltar para casa dentro de um período relativamente curto. Os lugares são escolhidos para serem contemplados porque existe uma expectativa, sobretudo através dos devaneios e da fantasia, em relação a prazeres intensos, seja em escala diferente, seja envolvendo sentidos diferentes daqueles com que habitualmente nos deparamos. Tal expectativa é construída e mantida por uma variedade de práticas não turísticas, tais como o cinema, a televisão, a literatura, as revistas, os discos e os vídeos, que constroem e reforçam o olhar. (URRY, John, 2001, p.7)

Assim, como forma de reforçar esse olhar, foi realizado o estudo de campo na viagem para Cordisburgo para captar com o olhar do viajante cada detalhe e símbolo que pudesse ser importante para o projeto. Na realidade, esse olhar é voltado para tudo que tira a pessoa do lugar comum, dos aspectos sociais e visuais com que ela está acostumada a viver em sua cidade. Essa visão separa da experiência de todos os dias e sugere uma nova. Em suas vidas cotidianas as pessoas acabam por acostumar seu olhar, já durante a viagem ela apura sua sensibilidade para captar e compreender o máximo de informações possíveis. O olhar abrange a elaboração de uma coleção de signos, por isso entra a questão de um universo semiótico. As pessoas, então, quando viajam já vão com um olhar esperançoso de encontrar um signo pré-definido, este por sua vez, elaborado através de informações que ela captou antes de entrar nessa experiência turística.

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Logo, a viagem passa a possuir um caráter de personagem principal e de valor para o desenvolvimento do trabalho. A pesquisa de campo realizada em Cordisburgo e que trouxe parte das fotografias utilizadas, não foi apenas permeada pelo olhar do fotógrafo viajante mas também pelo olhar do estrangeiro, aquele que desconhece o espaço e percebe a novidade e oportunidade em cada canto. Apesar do olhar já construído através de pesquisas em São Paulo, foi na cidade mineira que esse olhar se concretizou e resultou em imagens, que mais tarde e de volta à cidade de São Paulo, resultariam em inspiração. Isso porque parte das fotografias foram realizadas em locação, no espaço do Grupo Redimunho (mencionado no capítulo 3), mas o sentir e vivenciar captado em Cordisburgo pôde ser reproduzido de forma fiel, coisa que não seria possível sem essa vivência turística anterior. Seguindo esse olhar do fotógrafo viajante, surgiram dois fotógrafos referência para o trabalho. Não pela técnica fotográfica em si mas pela vivência como viajantes e também pela influência sertaneja (no caso de Maureen Bissiliat). Pierre Fatumbi Verger foi um fotógrafo viajante e etnólogo do século XX, ele viajou todo o tempo e de diversas formas. Era francês mas se encantou pela Bahia, chegando inclusive a se render a religião do Candomblé e aos costumes populares. Viajou por diversos países e atuou como fotojornalista, tendo suas fotografias publicadas em muitas revistas. Já Maureen Bissiliat realizou trabalhos de fotografias voltadas para João Guimarães Rosa e sua principal obra “Grande Sertão: Veredas”. Nascida na Inglaterra, mas naturalizada brasileira, participou de diversas amostras e exposições. O perfil de Maureen é muito inspirador para esse projeto e seu envolvimento com o sertão também, ela realizou as mesmas viagens necessárias para a concepção dessa pesquisa, mostrando mais uma vez a importância do

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vivenciar e sentir para elaboração do experimento. Para ficar mais pautável segue um trecho da entrevista dela onde relata sua experiência em Andrequicé, povoado de Manuelzão: Comecei a conhecer os sertões por suas veredas. Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: “A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!.” Sim, o próprio Manuel Nardi, inspirador do conto “Manuelzão e Miguilim”, publicado em 1956, como parte do livro Corpo de baile: um bom augúrio para a busca planejada!

Indaguei acerca de um lugar para pernoitar e o moço do boteco me levou à

casa de uma velha senhora que me recebeu com a acolhida espontânea e ampla dos que pouco têm, mas muito oferecem: ovo frito, saborosa farofa e um café mineiro, doce, perfumado e ralo, daqueles que descem como água benta apaziguando a sede!

Dormi com a candeia acesa, a esteira no chão. Acordei cedo, o sol des-

pontando no horizonte, no friozinho da madrugada. E lá estava ele, Manuelzão, sombra esguia na parede caiada, chapéu de abas firmes, capa de feltro azul, rosto de couro curtido, olhar de águia me aguardando sem prosa, pronto para o retrato que viria a ser – para mim e para muitos – emblemático da estirpe rija dos gerais de Guimarães. De repente, me olhando a esmo, deparei com a figura de um ho-

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mem – um vaqueiro, talvez? Pedi licença para tirar o seu retrato. Sisudo e cismado, ele não quis me atender. Satisfeita com a sorte, feliz da vida, com Manuelzão na máquina, passei o dia fotografando boiadas na poeira do campo. No fim do dia, de volta para Andrequicé, avistei a figura do homem, lá me esperando, calmo e quieto, no aguardo de seu retrato: era isso que ele queria ter. Acontece que de manhã, quando me viu pela primeira vez, ficou com medo. Por ser cigano achou que eu era da polícia e estava lá para prendê-lo. Era isso, então. Como os romas da França de Sarkozy, os ciganos dos gerais também são malvistos, estigmatizados como gatunos e ladrões de cavalos, vítimas de velhos preconceitos encravados na contramão da história, levando a guerras e desentendimentos entre nações. (BISILLIAT, Maureen, 2013, Disponível em < http:/www.blogdoims.com.br/ims/ajoao-guimaraes-rosa-por-maureen-bisilliat/>)

Dessa forma, conclui-se a importância dessa linguagem visual para a concepção das fotografias e seus significados, enxergando fotógrafos referência e reafirmando o valor da vivência em campo e da inspiração por de trás da construção dessas imagens. Mais do que simples fotografias, mais do que apenas uma história ou um autor essas imagens precisam falar por si só, mas permitindo a livre interpretação de acordo com a bagagem e conhecimento, além da posição de estrangeiro para um objeto novo.

Diferente da fotonovela, a intenção da fotografia desse experimento é permitir diver-

sas análises sem fugir da história original, mas despertando o interesse de conhecer o conto profundamente.

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4.4 Elaboração do processo gráfico no experimento

Para despertar esse interesse e pensando na questão de imagens de valor, percebe-

se que a capacidade visual do homem contemporâneo vem se perdendo devido ao fato de receber uma carga gigantesca de imagens e estímulos. No livro a “Era da Iconofagia”, Norval Baitelo (2005) afirma que essa crise de visibilidade gera a perda do sentir, da capacidade de se encontrar presente naquele tempo. Passa-se a compreender imagem não só como um fruto da visão mas também como objeto que possa ser percebido por todos os outros sentidos como olfato, gustação, tato e audição. Esse é o valor que ela passa a receber e que o experimento também tenta transmitir. Além das imagens fotográficas, mesclar elementos perceptíveis ao tato e olfato, fornecendo uma viagem dos sentidos e incorporando o imaginário. Foram usadas faixas de tecido diferentes, carimbos e cheiros não só naturais do linho mas também pensados para compor o livro como um todo. Quando a imagem passa a ser visível não só ao sentido da própria visão mas também aos outros ela adquire um valor maior, aspectos que antes eram percebidos através apenas dos olhos ganham uma nova importância. Assim é causado o impacto que falta atualmente devido essa crise, esse aglomerado de imagens sem valor que ocasionalmente surgem devido a atual facilidade de se reproduzir (como relatado no primeiro subcapítulo “O aparelho fotográfico”). Ainda seguindo a teoria de Baitello, ora devoramos ora somos devorados pelas imagens que são criadas. E esse bombardeamento impede que as pessoas percebam o próprio

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corpo no espaço, os próprios sentidos, vivendo em um desequilíbrio e perdendo o senso de proximidade com as obras. O experimento serve para tentar resgatar esses sentidos e transmitir a literatura de Guimarães por outros olhos, mas colocando o corpo no presente e possibilitando a interação com a obra. O próprio corpo é comunicação, evolução e vínculos possibilitados pelo sentir. O olhar é proveniente do corpo, através dele surgem as imagens, os sentidos e as possibilidades para uma pesquisa como essa. As imagens atuais, como já relatado anteriormente, sofrem tantas reproduções que passam a ser nulas de significados e o grande desafio do experimento ao transmitir essas fotografias é transformá-las em uma experiência, em imagens de valor, em mais do que simples fotos e sim construir significados e vivência. Transformando o corpo de quem receber em personagem ativo e não mero observador, vivendo o aqui e agora e devorando as imagens na mesma intensidade em que elas devoram o ser humano. Como fazer isso? Possibilitando o corpo decifrar as imagens. Nesse meio de produção exagerada por que optar pela confecção de um livro e não de um site ou instrumento virtual? Justamente pela falta e dificuldade em criar laços na atualidade, pela descarga de informações e necessidade do homem estar em vários lugares ao mesmo tempo sem conseguir estar em nenhum por inteiro. Através de um livro além dessa interação com outros sentidos também ocorre a necessidade de parar para consumir aquela imagem, para dar conta e decifrar aquele objeto, aprofundando sua ligação e criando um vinculo. Dessa forma e a partir dessas reflexões é possível compreender o processo criativo e de pesquisa que levou a confecção e elaboração do trabalho, partindo do conceito inicial

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sobre o aparelho fotográfico, passando por teorias de construção fotográfica, o olhar do fotógrafo viajante para, enfim, refletir sobre a importância e o significado da imagem e seu valor. Entendendo como as imagens ganham profundidade a partir desses conceitos e a partir de sua criação, e como poderão afetar a própria concepção e causar os efeitos desejados na vida das pessoas que consumirem o experimento.

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Considerações Finais O Projeto por buscar retratar e refletir a paixão pela literatura e obra Roseana, juntamente com a tarefa de traduzir esta paixão em pesquisa, imagens, estudo epistemológico e empírico, tornou-se um grande desafio a ser transposto para alcançar um desafio maior: Como fazer para que mais pessoas enxerguem esse universo tão bonito e importante da cultura literária brasileira? Foi a fotografia que trouxe uma resposta para estes desafios, mas mais do que fotos técnicas, precisavam ser fotos do “sentir”, fotos não só para a visão, mas para os sentidos do espectador o que só foi possível através do trabalho esperimental. Foram meses de trabalho de pesquisa aqui em São Paulo, a busca por várias metodologias e visões que estudiosos tinham do autor, mas tudo só se tornou tátil e possível depois da viagem para Cordisburgo onde foi realizada a pesquisa de campo e compreendido o processo criativo de Guimarães. A viagem in loco permitiu o contato com muitas pessoas que pareciam saídas de contos e foi com elas que pode ser compreendida a relação vivencial com a literatura. Eles entendem os contos de Guimarães sem precisar ler porque vivem aquilo, respiram o autor, e encaram suas obras com a simplicidade própria sem precisar procurar diversas justificativas e significados. Na realidade ficou claro neste trabalho que o escritor inspirou-se nas histórias daquele povo sertanejo e as transformou em conto, em obras eruditas que retratam o popular daquele povo e sua realidade. Essa diferença de realidades e olhares, junto com as figuras de linguagens, neologismos e simbolismos acaba por dificultar a leitura de pessoas que estão em grandes cidades como São Paulo por exemplo. Em Cordisburgo compreendeu-se a necessidade de explorar os sentidos no experimento, porque onde mais isso seria possível? Buscar então referências para compreensão do processo de construção das imagens, visitar diversos olhares e enfim traçar um projeto que poderia ser transformado em superte físico: o livro de fotografias. Ele seria um dos possíveis

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meios dessa propagação da literatura Roseana para uma maior fatia de pessoas. As imagens tem o intuito de atrair e o mix de texturas e objetos utilizados buscam manter essa atenção. O resultado foi um livro, com cada pedaço pensado para envolver o receptor, desde a escolha dos tecidos até o cheiro que eles exalam. Desde as cores, até a fonte e a explicação da composição. Tudo em harmonia com o conto em que ele foi inspirado, pensando em transmitir Noites do Sertão de forma que as pessoas possam ler e ter sua própria interpretação, de acordo com a sua bagagem mas se interessando em conhecer o conto por trás disso. Com isso, o projeto busca contribuir e somar com os diversos olhares que a obra Roseana propicia e muitos ainda pouco explorados. Desta obra vasta, de um dos mais importantes escritores da fase modernista e que merece ser estudada, preservada, respeitada e divulgada em todos os tempos e modos, tendo o presente projeto este objetivo, senão o de dar oportunidade às pessoas conhecerem a literatura Roseana de outra forma, de um jeito mais dinâmico e atrativo que quebre as barreiras iniciais do preconceito com as obras de Guimarães e aproxime do povo muito além de seu tempo, de sua terra.

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Referências Eletrônicas Causo, Roberto de Sousa. No sertão da literatura popular. Disponível em <http://terramagazine.terra.com.br/ficcaoespeculativa/blog/2011/10/09/no-sertao-da-literatura-popular/ >, 2011, Acesso em: 21 de Out. 2013. LIMA Paulo Cesar Vicente de, Promotor luta em defesa das veredas, o oásis do sertão. Disponível em <http://www.observatorioeco.com.br/promotor-luta-em-defesa-das-vereda-o -oasis-do-sertao/>. Acesso em: 22 de Jan. 2014. VENÂNCIO, Sandra. Cordisburgo, a terra do Rosa. Disponível em <http://jornalocal.com.brsite/educacao/arquivo-4454/>, 2008. Acesso em: 20 de Fev.2014. BISILLIAT, Maureen. A João Guimarães Rosa por Maureen Bisilliat. Disponível em < http:/www. blogdoims.com.br/ims/a-joao-guimaraes-rosa-por-maureen-bisilliat/>, 2013. Acesso em: 18 de Mar. 2014. CÂNDIDO, Antonio. O super-realismo de Guimarães Rosa. Disponível em < http://www.usp. br/jorusp/arquivo/2006/jusp763/pag14.htm>, 2006. Acesso em: 23 de Out. 2013.

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Anexos

Estação de trem de Cordisburgo

Placa de trem “roseana”

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Placa do Museu Casa de Guimarães Rosa

Morador de Cordisburgo

Carcaça de Tatu

Armário de Guimarães Rosa

Entrada da gruta de Maquiné 76

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Venda do “Seu Fulô”

Miguilins no Museu Casa de Guimarães

Casa de Guimarães Rosa e hoje Museu

Igreja do Sagrado Coração - Cordisburgo

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Paisagem Veredas de Andrequicé

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Antiga estação de trem de Cordisburgo

Gruta de Maquiné

Placas espalhadas pela cidade de Cordisburgo

Casa antiga em Cordisburgo 78

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Gruta de MaquinĂŠ

Loja do Brasinha em Cordisburgo

Trem de carga em Cordisburgo

Antiga olaria em Cordisburgo 79

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