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Da questão ambiental na região trinacional à (re)construção participativa civilizatória

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Expediente

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Luciana Ribeiro - sesunila Doutora em Educação Brasileira. É docente do ILAESP. Participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

Minha aula sobre a questão ambiental na região trinacional no curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” pretendeu contextualizar, brevemente, quanto aos principais problemas ambientais vividos em nossa região, aproveitando para pensá-los em suas raízes civilizatórias, de modo a subsidiar a atuação das professoras e professores da rede municipal de ensino. A perspectiva de onde parto para abordar a questão é a da Educação Ambiental, doravante apenas EA. Sua origem se dá nos idos da década de 1970, com as Conferências Intergovernamentais de Estocolmo (1972), de Belgrado (1975) e de Tbilisi (1977), organizadas

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pela ONU. Em Tbilisi, foram organizadas 41 Recomendações em nível mundial, endossadas por 150 países. Os fundamentos da então nascente EA foram essas recomendações, entre as quais destaco sucintamente as bases principais: (a) educar indivíduos e coletividades de modo participativo e interdisciplinar; (b) partir de problemas da realidade local (c) tomados ao modo de temas geradores, no sentido freireano. Pretende, com isso, desenvolver (d) o pensamento complexo, conforme Edgar Morin e, posteriormente, Enrique Leff; e (e) a ética da sustentabilidade, tendo em vista a (f) construção de uma nova ordem internacional responsável, cooperativa e solidária, garantidora da qualidade ambiental para todos e todas. Aqui faço um parênteses, pois cabe diferenciar essa proposta da agenda desenvolvimentista neoliberal da maioria das empresas e de setores do governo, derivada da ideia de desenvolvimento sustentável, cunhada pelo Relatório Brundtland e apresentada durante a Rio-92, explicitada na Agenda 21. Neste mesmo evento, paralelamente, o Fórum Global de ONGs e Movimentos Sociais propunha o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Este é o documento inspirador do movimento e das políticas de EA na América Latina. De modo que a palavra sustentabilidade assume significado diferente para os educadores e educadoras ambientais (proveniente de sociedade sustentável) e para o empresariado (proveniente de desenvolvimento sustentável). Finalizando o parênteses, segundo Tbilisi e documentos posteriores, a EA deve ter (g) caráter permanente, (h) abranger a educação não-formal, todos níveis de ensino formal e os meios de comunicação

de massa; (i) dirigir-se a todas as categorias profissionais e idades; (j) vinculando-se à legislação, às políticas e às decisões relativas ao ambiente adotadas pelo governo. Estes fundamentos da EA voltam-se à construção de conhecimentos, valores, comportamentos, habilidades e práticas, indissociáveis entre si, capazes de fortalecer comunidades e pessoas a fim de que participem ativamente na construção de soluções e de medidas de prevenção aos problemas ambientais, bem como da gestão da qualidade ambiental. O documento de Tbilisi enfatiza a necessidade de mostrar claramente as interdependências econômicas, políticas, sociais e ecológicas, as quais levam a consequências de alcance internacional. Posteriormente, outros documentos incorporaram estas recomendações em seus princípios, objetivos e estratégias, como podemos ver no Tratado já mencionado, na Lei Nacional de EA e nos consequentes Política e Programa Nacional de EA, no Brasil, de 2005. Segundo os documentos, o ambiente deve ser entendido indissociavelmente em seus aspectos ecológicos, sociais, econômicos, científicos, tecnológicos, políticos, culturais, éticos e estéticos. Portanto, o “ambiental” da EA se refere a este conjunto de processos indissociáveis, nunca tendo sido restrito a tratar apenas aspectos ecológicos ou geográficos, como ainda se costuma imaginar. Com base nesse entendimento, que fundamenta meu trabalho como educadora ambiental, iniciei a aula diferenciando problemas de conflitos ambientais, frequentemente confundidos entre si. O problema ambiental pode estar ocorrendo, com amplo e intenso impacto, sem ter

se tornado conflito. Já o conflito ambiental se dá quando os interesses relativos ao uso ou à posse de bens ambientais são disputados explicitamente, usualmente contrapondo a sobrevivência de povos e comunidades a interesses do capital. Importa, ainda, diferenciar os problemas de seus efeitos e causas. Abordamos, na aula, os conflitos e problemas na região. A situação ambiental de Foz do Iguaçu foi analisada a partir de dados de recente pesquisa realizada pelo Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, da UNILA, em parceria com o Coletivo Educador Municipal, sobre a percepção ambiental no município. De acordo com habitantes de Foz, os problemas ambientais se concentram em três temas: desmatamento, lixo, água (incluindo infraestrutura, disponibilidade e contaminação). Os principais conflitos lembrados em Foz do Iguaçu são a contaminação por agrotóxicos (na água, no solo, no ar, nos trabalhadores e nos consumidores), prejudicando a pequena produção orgânica local, e a disputa em torno da reabertura ou não da antiga Estrada do Colono, cujos dezessete quilômetros cortariam o Parque Nacional do Iguaçu em dois. Em Puerto Iguazu, também se destacam os mesmos três temas: (a) resíduos: queima, falta de separação; (b) vegetação: queimadas, falta de arborização urbana; (c) água: moradias próximas de rios, falta de rede esgoto e de tratamento da água. Os conflitos ali se dão em torno das terras indígenas, disputadas pelos grandes empreendimentos hoteleiros internacionais e, do uso de agrotóxicos, sobretudo pela multinacional ARAUCO, monocultivadora de pinus. Na outra borda da fronteira, em Ciudad del Este, a

situação não difere. A questão da moradia dos indígenas e da produção alimentar orgânica afetada pelas monoculturas de soja são os conflitos mais expressivos. Com relação aos problemas ambientais da Grande Ciudad del Este, novamente são mencionados os resíduos e a poluição em geral, os efeitos das mudanças climáticas sobre a infraestrutura urbana e a habitação, principalmente devido a enchentes e granizo. No tocante à habitação, sobretudo às ocupações irregulares, os três municípios a apontaram como problema, por razões diferentes: pressão sobre os rios, resíduos, insegurança da população. Como se vê, a região trinacional padece de problemas e conflitos similares e, diante deles, é fundamental construir soluções conjuntas e/ou integradas, especialmente do ponto de vista das populações mais afetadas. Se os problemas e conflitos ambientais são similares em geral, as formas de lidar com eles, no entanto, podem ser bastante distintas. Historicamente, há abordagens meramente tecnicistas, limitadas aos efeitos dos problemas ambientais. Há também abordagens conservacionistas, que apostam na superação do antropocentrismo por meio do cultivo da sensibilidade, da reconexão com a natureza e da difusão de informação ecológica. Finalmente, as abordagens ambientalistas críticas reúnem as soluções tecnológicas e educativas anteriores, mas sob outra ótica e finalidade, pois dirigem-se à origem da questão, isto é, o modelo de sociedade predominante, construído na Modernidade ocidental. A economia, a política, a construção e a difusão do conhecimento, são pilares estruturadores da sociedade.

Importa saber que a forma como funcionam é apenas uma construção, cabendo, portanto, outras possibilidades. O formato atual surgiu na busca de resolver problemas do contexto histórico feudal. De fato, houve avanços. A nova liberdade econômica então instaurada rompia com a imobilidade e conservadorismo feudal; a política representativa e tripartite buscava superar os autoritarismos dos regimes monárquicos, absolutistas, imperialistas e teocráticos; a ciência construiu possibilidades explicativas inéditas ao substituir a estruturação dogmática do conhecimento; a educação bancária alcança hoje populações antes inimagináveis, chegando a 90% da humanidade. Contudo, tais avanços também trouxeram problemas. A democracia representativa não tem dado conta de representar os diversos interesses, necessidades e setores da sociedade, os quais permanecem majoritariamente alienados e alijados dos processos decisórios. O capitalismo neoliberal, voraz e excludente, tem demonstrado sua crueldade socioambiental a pretexto da defesa da liberdade, na prática restrita e dirigida apenas ao mercado. Em sua ilusão de crescimento inesgotável, explora a base material da vida no planeta, exaurindo ecossistemas, trabalhadores e trabalhadoras, restando um rastro de corrupção, individualismo e desigualdade. A ciência ultra especialista promove ganhos no conhecimento dos detalhes, porém perde de vista a complexidade da realidade. Pretendendo-se neutra e objetiva, equivoca-se, servindo à estrutura político-econômica como se acima dela estivesse. A educação bancária contribuiu para a escolarização de bilhões de pessoas, mas à custa de um caráter autoritário,

conservador e frequentemente desconectado da realidade estudantil, sendo útil à manutenção do status quo.

Neste momento de crise civilizatória da Modernidade, quando os problemas e conflitos ambientais se agudizam e crescem exponencialmente, se explicitam as raízes da questão na falta de cultivo da ética. Nosso limite, o individualismo. Nossa necessidade, a autonomia e a interdependência. O que fazer: enfrentar as deficiências históricas da estruturação da sociedade. Nos reconstruir subjetivamente para construir intersubjetivamente. A reinvenção da política exige o desenvolvimento de uma lógica cooperativa e instrumentos ampliadores da co-responsabilidade lúcida. Considerar a vida como valor soberano e o atendimento às necessidades reais a partir dos limites da biosfera, permitirá à economia conquistar abundância e universalizar o bem estar social. A perspectiva inter e transdisciplinar, sistêmica e complexa, bem como a superação do mito da neutralidade ética, dará à ciência condições de melhor aproximar-se da realidade, além de possibilitar a releitura de conhecimentos hoje periféricos dos diversos povos originários e populações tradicionais. A universalização real da educação, indo além da socialização inicial, exige compromisso com a humanização, com o senso de pertencimento à Terra, com a liberação dos potenciais das comunidades, com o respeito às singularidades simultâneo ao apreço pelo patrimônio acumulado pela humanidade. Em síntese, a resolução dos críticos problemas e conflitos socioambientais da atualidade, seja em nível local ou global, exige da sociedade a perspicácia e a profundidade de buscar as causas da situação nesse modelo de sociedade

pautado pela exploração capitalista, que ignora o fato dos processos basilares do planeta sustentarem também a vida humana. A transição para um novo mundo possível está em curso. Em meio aos efeitos danosos do modelo de sociedade hegemônico, vem se delineando um novo experimento de humanidade, integrada ecológica e socialmente. Pode ser exemplificada, entre diversos outros, em saberes e práticas como a permacultura; a agricultura sintrópica; a agroecologia; o design regenerativo; a educação crítica e humanista; a atuação em redes solidárias e cooperativas; as empresas B; a democracia pura; a economia do bem comum; as ecovilas; os territórios sustentáveis; a democracia ecológica radical; a justiça restaurativa; as décadas de propostas participativas de uma Constituição Planetária; o resgate cultural do bem viver. O longo momento de transição que vivemos no século XXI nos desafia e nos convida a superar a alienação em todas as suas formas, construindo a integração de si, a integração com o outro e a integração com o mundo. É um processo de auto-reeducação, ao mesmo tempo que um investimento coletivo e confiante, construindo participativamente políticas públicas e fortalecendo redes comunitárias, a partir dos elementos que nos unem – na condição de humanidade.

O livro das árvores -Ticuna, 1999 Desenhos da Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues e Jussara Gomes Gruber 66

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