Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #8

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #8 DEZEMBRO 2021 – DEZEMBRO 2022



LABOR IMPROBUS OMNIA VINCIT


FICHA TÉCNICA


SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #8 dezembro 2021 – dezembro 2022

Ficha Técnica Diretor Francisco Serra Loureiro Editora Edite Gaspar Colaboraram nesta edição Ana Isabel Guerra, Andreia Madalena Magalhães Jesus, Beatriz Coelho, Beatriz Rodrigues Rufino, Fábio André Coelho da Silva, Isa Raquel Pinto Pereira, João Vasco Loureiro, Juliana da Silva Cavadas, Libânia Fonseca Queirós, Márcia Passos, Marco Antunes, Maria João Machado, Patrícia Anjos Azevedo, Patrícia Ferreira, Patrícia Veloso, Paulo Alexandra Ferreira João, Pedro Correia, Sandra Pereira, Sara Luís Dias, Sérgio Magalhães, Susana Patrícia Martins Pereira, Suzana Fernandes da Costa, Tânia Cunha, Vanessa Rocha e Virgílio Félix Machado Conselho Geral Tel. 213 849 200 | Fax. 213 534 870 | geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 | Fax. 222 054 140 | c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 | c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 | Fax. 213 534 834 | c.r.lisboa@osae.pt Design Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Periodicidade Anual ISSN 2182-9225 Depósito legal 358745/13 Registo na ERC com o n.º 126587 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 | Lisboa N.º de contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução www.osae.pt Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. ESTATUTO EDITORIAL disponível em http://osae.pt/pt/pag/OSAE/estatutos-editoriais/1/1/1/361


ÍN DI CE


Nota introdutória...................................................................................................................... 11 O regime da transparência fiscal nas sociedades de solicitadores e agentes de execução .................................................................................................................................... 13 A conversão da penhora em hipoteca: tratamento processual, fiscal e registral ........ 25 A venda conjunta entre processo executivo e processo de insolvência ......................... 36 Insolvência e Covid-19: O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE) e o Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE) ....... 54 Informações e práticas pré-contratuais no novo regime do crédito hipotecário .......... 67 O arresto marítimo, o conceito de navio, a penhora de embarcações de recreio e os vazios legais .............................................................................................................................. 96 Autos de Constatação no Processo Civil e no Arrendamento ......................................... 117 O Direto de Remição – No âmbito do Processo Executivo ............................................... 122 O Contrato e os Bens e Serviços Não Solicitados .............................................................. 137 A administração da massa insolvente pelo devedor......................................................... 149 Penhora do Património Conjugal ......................................................................................... 180 Breve resenha sobre os métodos para evitar ou atenuar a dupla tributação internacional ........................................................................................................................... 205 O Impacto da Pandemia Covid-19 no Desempenho Estatístico das Ações Executivas Cíveis: O que nos dizem os dados até ao momento? ........................................................ 216 O Documento Particular Autenticado ................................................................................. 235


Nota introdutória


Nota introdutória Sendo uma das principais atribuições da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução colaborar na administração da Justiça, tem sido nosso objetivo diversificar essa mesma colaboração, nomeadamente através de diversos contributos que promovam um desenvolvimento técnico e intelectual de todos os profissionais desta Ordem, tornando-os cada vez mais preparados para o auxílio ao cidadão. É assim objetivo desta oitava edição da coletânea "Solicitadoria e Ação Executiva Estudos" contribuir para um maior desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional e intelectual das nossas profissões, agregando significativos contributos que fomentam o desenvolvimento de matérias jurídicas de relevo para o exercício das nossas profissões. É já apanágio da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a conservação destes contributos intelectuais, ambicionando que também as gerações vindouras os venham a conhecer, refletindo sobre os mesmos e criando, também elas, novas problemáticas e soluções. Mais uma vez, e como em anteriores edições, contámos com trabalhos de diversos associados, bem como de estudantes de diversas instituições de Ensino Superior, os quais enriqueceram, de sobremaneira, esta nova edição e a quem muito agradecemos. Esta coletânea enquadra-se plenamente nos desígnios avançados pela Ordem e, em particular, pelo seu Instituto de Formação Botto Machado, sendo um marco na consolidação da qualidade das nossas publicações que permite, indubitavelmente, um acréscimo qualitativo à formação inicial e contínua da nossa classe.

Francisco Serra Loureiro Diretor do Instituto de Formação Botto Machado 2º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução



O regime da transparência fiscal nas sociedades de solicitadores e agentes de execução

O regime da transparência fiscal nas sociedades de solicitadores e agentes de execução

Suzana Fernandes da Costa Doutorada em Direito Fiscal Advogada especialista em Direito Fiscal Docente universitária

Sara Luís Dias Doutorada em Direito – ramo empresarial Mestre em Direito Tributário e Fiscal Advogada Docente universitária


Nota introdutória O regime da transparência fiscal foi criado com determinados objetivos como a neutralidade e transparência fiscal, o combate à evasão fiscal e a eliminação da dupla tributação. O instituto em questão tem vindo a receber algumas críticas, por apresenta desvantagens fiscais e económicas para as sociedades que estão sujeitas à sua aplicação. A sujeição de determinadas sociedades, como acontece com as sociedades de solicitadores e agentes de execução, a este regime poderá fazer sentido se nos centrarmos na natureza pessoal das mesmas, no papel relevantes que os sócios, profissionais liberais, desempenham na sua atividade e na criação dos seus rendimentos. Contudo, o seu carácter obrigatório e vinculativo levanta, naturalmente, vários problemas para estes profissionais, principalmente num momento económico que se avizinha difícil com todos os constrangimentos gerados em torno da pandemia declarada por causa da doença Covid-19 e, mais recentemente, decorrentes da invasão da Ucrânia. A tributação na esfera do sócio independentemente de os lucros serem ou não distribuídos e o consequente desincentivo ao investimento e à criação de reservas coloca estas sociedades numa posição mais frágil face ao impacto que a crise económica e social terá nas empresas. Neste breve artigo procuraremos explicar resumidamente o regime da transparência fiscal, os seus objetivos e características, abordando a obrigatoriedade de sujeição das sociedades de solicitadores e agentes de execução e as desvantagens e limitações que a sua aplicação pode gerar na manutenção e funcionamento destas sociedades. I. As sociedades de solicitadores e agentes de execução A profissão de Solicitador1 ou de Agente de Execução2 pode ser exercida em regime de prática individual ou através de sociedade profissional de solicitadores e agentes de execução. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 95.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução3, aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro4, «os solicitadores e os agentes de execução estabelecidos em território nacional 1

Como determina o artigo 136.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução «além dos advogados, apenas os solicitadores com inscrição em vigor na Ordem e os profissionais equiparados a solicitadores em regime de livre prestação de serviços, podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar atos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada», sendo «atos próprios» destes profissionais os estabelecidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto. 2 «O agente de execução é o auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em atos de natureza similar que, ainda que não tenham natureza judicial, a estes podem ser equiparados ou ser dos mesmos instrutórios» (artigo 162.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução). 3 Doravante EOSAE. 4 Este diploma aprovou a transformação da Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e o respetivo Estatuto, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais. Foi recentemente alterado pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.


podem exercer as respetivas profissões, constituindo -se ou ingressando em sociedades profissionais de solicitadores e de agentes de execução, podendo uma mesma sociedade ter ambos os objetos sociais, nos termos do presente Estatuto». Por sua vez determina o n.º 4 do mesmo artigo que «Os membros dos órgãos de administração de sociedades de solicitadores e ou de agentes de execução devem ser profissionais inscritos na respetiva Ordem», referindo-se, no n.º 5, que não são admissíveis quaisquer sociedades multidisciplinares que integrem solicitadores ou agentes de execução, ou seja, não poderão integrar estas sociedades outros profissionais. Nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 deste normativo, à constituição e funcionamento destas sociedades aplica-se o regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais, devendo estas, adotar uma firma que contenha a menção ao regime adotado: «Sociedades de responsabilidade ilimitada, RI» ou «Sociedades de responsabilidade limitada, RL»5. Estas sociedades estão, de acordo com o previsto no n.º 12 desta mesma disposição legal, sujeitas ao regime fiscal previsto para as sociedades constituídas sob a forma comercial6 – formulação que parece abrir a porta à tributação em IRC mas que – na prática – é limitada pela conjugação do EOSAE e o artigo 6.º do CIRC. II. O regime da transparência fiscal O regime da transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas7, assenta na desconsideração da personalidade tributária da pessoa coletiva e tributa os rendimentos desta na esfera dos sócios. É um instituto controverso no nosso sistema tributário que, ainda assim, se mantem no texto da lei há mais de 30 anos, com algumas alterações pontuais, e vai encontrando novas aplicações à medida que o direito das sociedades evolui8. Este regime foi criado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro e assenta na imputação aos sócios/membros, pessoas singulares ou coletivas, da matéria coletável das sociedades que assumam uma das formas previstas no artigo 6.º do CIRC. Assim não se 5

O projeto de contrato de sociedade, acompanhado de certificado de admissibilidade de firma, está sujeito a um controlo de mera legalidade efetuado pela Secção Regional Deontológica e, após a sua extinção, pelo Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Após notificação da aprovação do contrato de sociedade ou caso a associação pública profissional não se pronuncie no prazo de 20 dias úteis, a constituição da sociedade deve ser formalizada através da celebração de documento particular ou escritura pública. Após a formalização da constituição da sociedade, esta deve ser registada definitivamente no RNPC (Registo Nacional de Pessoas Coletivas). É com este registo que a sociedade adquire personalidade jurídica. Posteriormente, a sociedade deve ser inscrita na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, através do envio da documentação necessário para o Conselho Geral. Para maiores informações, vd. https://www.osae.pt/uploads/cms_page_media/1038 /NOV2015_soc.pdf [20/12/2020]. 6 Ou seja, sociedades por quotas, anónimas, em nome coletivo ou em comandita (artigo 1.º do Código das Sociedades Comerciais). 7 Doravante CIRC. 8 Pense-se, por exemplo, na aplicação do regime às sociedades unipessoais por quotas (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 29/9/2016, proc. 00560/12.3BECBR, disponível em www.dgsi.pt).


verifica a tributação aquando da distribuição de lucros aos sócios/membros, já que os resultados fiscais apurados nas referidas sociedades/entidades são-lhes diretamente imputados sem que dependam dessa distribuição. Segundo o artigo 6.º do CIRC, este regime aplica-se obrigatoriamente às «sociedades civis não constituídas sob forma comercial; sociedades de profissionais e sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, direta ou indiretamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público», tendo o legislador desenvolvido estes conceitos e especificado as características destas sociedades abrangidas pelo regime da transparência fiscal. Destaca-se, aqui, a posição e o papel que os sócios desempenham neste tipo de sociedades, desconsiderando-se, para efeitos de tributação em sede de IRC9, a personalidade tributária da pessoa coletiva criada, repercutindo-se na esfera dos sócios/membros a matéria coletável gerada pela sociedade. No entanto, a sujeição a este regime não tem quaisquer outras implicações a nível contabilístico, continuando esta sociedades obrigadas a cumprir outras obrigações contabilísticas e declarativas impostas aos sujeitos passivos de IRC ou na organização e funcionamento das sociedades, não assumindo qualquer caráter sancionatório10. Não obstante encontrarmos, no artigo 12.º do CIRC, a referência a estas sociedades como estando isentas de IRC, a doutrina maioritária11 tem entendido – e em nosso entender, acertadamente – que estamos perante uma situação de não incidência (não sujeição) a este imposto, situando-se o artigo 6.º do CIRC no capítulo relativo à «incidência»12. A isenção é, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, um benefício fiscal, visando, assim, a efetivação de um fim extrafiscal, de interesse público. Ora, na aplicação deste regime, não detetamos qualquer finalidade deste tipo, que justifique a consideração deste regime como uma isenção.

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Excetuam-se as tributações autónomas, previstas no artigo 88.º do CIRC, a que estão sujeitas estas sociedades, nos termos do disposto no artigo 12.º do CIRC. Conforme se esclareceu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2012, processo n.º 0830/11, disponível em www.dgsi.pt: «A alteração introduzida ao art. 12º do CIRC pela Lei nº 109-B/2001 não configura uma lei inovadora, porque de facto nada inovou, tendo-se limitado a explicitar o que já decorria da ordem jurídica e de forma clara por aplicação das regras de interpretação e aplicação da lei, pelo que, se a regra de direito era certa na legislação anterior e a nova lei o vem apenas confirmar de modo expresso, não se vê razão para não considerar esta norma como interpretativa, nada impedindo a sua aplicação desde o início de vigência da norma interpretada». 10 Como refere RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, Almedina, 2008, p. 212, «tais entidades (…) são, juridicamente, as titulares do rendimento (do lucro) tributável. São, pois, parte legítima e necessária em quaisquer procedimentos que digam respeito à quantificação de tal lucro, mesmo que para efeitos tributários». (11) Vd. JOSÉ LUÍS SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., pp. 241 e 242; e JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª ed., pp. 565 a 567. 12 Sustentando o entendimento oposto, JORGE MAGALHÃES CORREIA, “Transparência Fiscal das Sociedades de Profissionais”, in Fisco, n.º 7, p. 5.


À criação deste regime subjazem três grandes finalidades: neutralidade fiscal, combate à evasão fiscal e a eliminação da dupla tributação dos lucros distribuídos aos sócios13. No que toca à neutralidade fiscal, pretende-se tributar os sócios nos mesmos termos em que seriam se exercessem estas atividades em nome individual, ressaltando-se aqui, como referimos, o papel relevante que os sócios (as suas características profissionais e desempenho profissional) desempenham na sociedade e nos seus resultados14. O objetivo do combate à evasão fiscal verifica-se também na medida em que a aplicação deste regime visa obviar a que estas sociedades sejam criadas com o único desiderato de diminuir a carga fiscal, ou seja, a aplicação deste regime desencorajará a criação de uma pessoa coletiva distinta dos sócios com o único intuito de transferir a tributação para a sociedade15/16. Relativamente à eliminação da dupla tributação económica, ao afastar-se da tributação em sede de IRC as sociedades e outras entidades abrangidas por esse regime, obsta-se a que o resultado nestas apurado seja duplamente tributado: na esfera da própria entidade transparente e, posteriormente, na esfera dos respetivos sócios ou membros, em sede de IRS. III. A aplicação do regime da transparência fiscal às sociedades de solicitadores e agentes de execução Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 6.º do CIRC, estão sujeitas a este regime as sociedades de profissionais, que se encontram definidas na alínea a) do n.º 4 da mesma disposição legal como sendo «[a] sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional17 especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade» (n.º 1) ou «[a] sociedade cujos rendimentos provenham, em mais de 75%, do exercício conjunto ou isolado de atividades profissionais especificamente previstas na lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, desde que, cumulativamente, durante mais de 183 dias do período de tributação, o número de sócios não seja superior a cinco, nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público e, pelo menos, 75% do capital social

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Vd. ponto 3 do preâmbulo do CIRC, aprovado pelo DL n.º 442-B/88, de 30/11. Referem a este propósito, RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, cit., p. 205, que o «“valor” da sociedade não resulta fundamentalmente do capital investido, mas das pessoas dos sócios, os quais, em muitos casos, nelas exercem a sua atividade profissional. O lucro dos sócios é, em larga medida, a remuneração do êxito do seu trabalho». 15 No momento da criação deste regime o risco de evasão não se verificava já que a tributação das sociedades era similar à tributação das pessoas singulares. A taxa máxima de IRC, já considerando a incidência da derrama, era de 40,12%, enquanto a taxa progressiva máxima de IRS (Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) era de 40%. 16 Não esquecer, contudo, que com a distribuição de dividendos aos sócios verifica-se uma nova tributação, na sua esfera pessoal, aplicando-se a taxa de tributação autónoma de 28%. 17 Relevando a atividade que é efetivamente exercida pela sociedade, no caso de não haver coincidência com o objeto que consta no contrato de sociedade (artigo 11.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais). 14


seja detido por profissionais que exercem as referidas atividades, total ou parcialmente, através da sociedade» (n.º 2)18. Pela análise da lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, verificamos que a maior parte das profissões aí incluídas são as denominadas profissões liberais, que exigem uma habilitação superior e, na maioria dos casos, inscrição numa Ordem ou numa Câmara Profissional. Incluímos aqui as sociedades de solicitadores e agentes de execução, estando a profissão de solicitador expressamente referida na tabela de atividades do mencionado artigo 151.º do CIRS, com o código 6012. Estão em causa sociedades cuja atividade gira em torno do trabalho e características profissionais dos sócios, profissionais liberais e inscritos numa ordem profissional, a OSAE (Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução), que prestam serviços de natureza jurídica. O elemento «capital» não assume nestas sociedades (como nas demais sociedades de profissionais) grande destaque nos rendimentos gerados por estas sociedades. Cremos, todavia, que a sujeição obrigatória destas sociedades ao regime da transparência fiscal – assim como a impossibilidade de permitir que outras sociedades optem pela aplicação deste regime19 – gera uma situação discriminatória e injusta, já que implica a tributação obrigatória dos sócios mesmo no caso em que os lucros gerados pela sociedade não sejam distribuídos. A transparência fiscal não encontraria tanta resistência se fosse um regime facultativo, pois os sócios teriam liberdade para determinar em que condições a aplicação do regime lhes seria mais vantajosa e menos onerosa. IV. Os benefícios fiscais aplicáveis ao IRC e a sua extensão aos sócios das sociedades transparentes Como já referimos, a transparência fiscal implica a tributação dos lucros na esfera do sócio, pagando a sociedade apenas as tributações autónomas (que se aplicam, por exemplo, às despesas de representação). A aplicação deste regime desestimula o investimento na sociedade pela utilização dos resultados gerados e poder-se-á, até, verificar uma situação de descapitalização, já que, existindo sempre tributação na esfera pessoal dos sócios, desincentiva-se a constituição de reservas na sociedade. Referindo-se especificamente a sociedades de advogados, mas com um raciocínio que a nosso ver também se aplica às sociedades de solicitadores e agentes de execução,

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Este n.º 2 foi introduzido pela Lei n.º 82-C/2014, de 31/12 (aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2015) e ampliou o número de sociedades incluídas neste regime, com o intuito de contrariar a possibilidade que anteriormente se verificava de tornar algumas sociedades multidisciplinares (bastando incluir como sócio um profissional de uma outra atividade) e escapar à sujeição ao regime da transparência fiscal. 19 Neste sentido, RUI DUARTE MORAIS; op. cit., p. 209.


JOÃO ESPANHA refere que «se o regime da transparência fiscal ainda se pode adequar ao funcionamento de algumas sociedades (…), para as sociedades com estrutura e organização empresarial e, sobretudo, para as organizações de maior dimensão, este regime revela-se de um anacronismo que constitui um obstáculo ao seu funcionamento e à sua evolução»20. Para este autor, as principais desvantagens do regime são a tributação da reserva de investimento, a tributação de valores faturados não recebidos e a confusão entre a fiscalidade dos sócios e a das respetivas sociedades21. Problemas que se agravam num momento de crise económica, que naturalmente afeta os profissionais liberais e prestadores de serviços. Por outro lado, com o acentuar das diferenças de taxa entre o IRS e o IRC, cria-se uma desigualdade entre os profissionais que por razões legais podem constituir sociedades tributadas em IRC (como os médicos) e os que se veem impedidos de o fazer. É o que, como vimos, sucede com as sociedades de solicitadores dispondo o n.º 5 do artigo 95.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, que «não são admissíveis quaisquer sociedades multidisciplinares que integrem solicitadores ou agentes de execução». Os sujeitos passivos enquadrados no regime da transparência fiscal não podem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável em sede de IRC, pois, de acordo com o no n.º 1 do artigo 86.ºA do CIRC relativo à aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, o legislador excluiu do seu âmbito de aplicação subjectiva os sujeitos isentos de IRC e abrangidos por um regime especial de tributação, incluindo, assim, todos os sujeitos passivos abrangidos pelo regime de transparência fiscal e os sujeitos passivos a que seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS). Há depois benefícios fiscais aplicáveis em IRC que ficam vedados às sociedades transparentes – pese embora a Autoridade Tributária22 tenha evoluído nesse tema quanto ao CFEI (Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento) e à DLRR (Dedução por Lucros Retidos e Reinvestidos)23. Relativamente ao CFEI I, AT tomou posição na Informação Vinculativa proferida no processo 3058/201324 e veio admitir que as sociedades transparentes possam apurar uma coleta virtual e, depois disso, imputar o benefício respetivo aos sócios na proporção da sua

(20) JOÃO ESPANHA, “Transparência fiscal, anacronismo e concorrência”, in Boletim da Ordem dos Advogados (BOA), Jan./Fev. 2019, p. 32. Por sua vez, António Schwalbach e Guilherme Figueiredo escrevem que “a transparência fiscal obrigatória é um entrave para os Advogados portugueses”. Para os Autores, o regime “é um convite à descapitalização das Sociedades de advogados portuguesas”– ANTÓNIO GASPAR SCHWALBACH e GUILHERME FIGUEIREDO, “As intervenções e propostas da OA”, in BOA, Jan./Fev. 2019, p. 18. (21) JOÃO ESPANHA, “Transparência fiscal, anacronismo e concorrência”, cit., pp. 32-33. 22 Doravante AT. 23 Este benefício encontra-se previsto nos artigos 27.º a 34.º do Código Fiscal ao Investimento anexo ao Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, e foi regulamentado pela Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro. 24 Despacho de 4 de dezembro de 2013.


participação do lucro. Aplicando-se ao CFEI II – aprovado pelo artigo 16º da Lei n.º 27A/2020, de 24 de julho, atualmente em curso – o mesmo raciocínio que para o CFEI I será assim possível que as sociedades de solicitadores e agentes de execução possam aproveitar as despesas de investimento feitas em ativos fixos tangíveis e intangíveis entre junho de 2020 e junho de 2021, e que esse valor possa ser deduzido à coleta de IRS dos sócios respetivos. Cabem neste incentivo as despesas relativas a ativos fixos tangíveis e ativos biológicos que não sejam consumíveis, adquiridos em estado de novo e que entrem em funcionamento ou utilização até ao final do período de tributação que se inicie em/ou após 1 de janeiro de 2021 (por exemplo, computadores). São também elegíveis as despesas de investimento em ativos intangíveis sujeitos a deperecimento, designadamente despesas com projetos de desenvolvimento ou com elementos da propriedade industrial, tais como marcas, adquiridos a título oneroso e cuja utilização exclusiva seja reconhecida por um período limitado de tempo25. Quanto à DLRR esta não é cumulável com o CFEI II para os mesmos bens e assenta na possibilidade de deduzir até 10% dos lucros retidos que sejam reinvestidos, visando promover o investimento e reforçar a estrutura de capital das empresas. A AT também já veio admitir a possibilidade de utilização do benefício pelos sócios no seu IRS. V. Alguns aspetos fiscais e contributivos do regime de transparência fiscal das sociedades de solicitadores e agentes de execução Importa, antes de mais, referir que se tem entendido que a profissão de "agente da execução" integra, por extensão, a profissão de "solicitador", esta especificamente constante da Tabela anexa ao Código do IRS, para efeitos de considerar legal o acesso dos agentes de execução à constituição de sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal consagrado no artigo 6.º do Código do IRC. Tal entendimento foi sufragado pela AT26 e tem vindo a ser acolhido pela jurisprudência27. Uma outra questão interessante e polémica nas sociedades de solicitadores e agentes de execução é a possibilidade de dedução na sociedade das quotas e das contribuições para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS). Num primeiro momento, segundo a Informação Vinculativa proferida no processo 433/2006, relativamente a advogados mas cuja doutrina se aplicava também às sociedades de solicitadores e agentes de execução, «dos montantes despendidos por sociedade civil

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Na proposta de Lei do Orçamento de Estado para 2022 (Proposta de Lei n.º 116/XIV/3.ª), o artigo 238.º prevê a aprovação do regime do Incentivo Fiscal à Recuperação (IFR), que parece menos benéfico que o CFEI II, pois terá um período de aplicação menor, o montante passível de dedução à coleta também será menor e impõe um limite adicional à iniciativa privada, impossibilitando a distribuição de dividendos durante 3 anos. 26 Cfr. Informação Vinculativa proferida no processo n.º 2017001951 com Despacho de 2017.10-12 da Diretora de Serviços, disponível em www.info.portaldasfinancas.gov.pt. 27 Vd., a título de exemplo, referência efetuada na decisão arbitral proferida em 22/11/2021, proferida no processo n.º 109/2021-T, disponível em www.caad.org.pt.


profissional de advogados no pagamento de quotas devidas à Ordem dos Advogados (OA), bem como no pagamento à CPAS, tanto dos seus advogados-sócios, como dos advogadosassociados, apenas são fiscalmente dedutíveis, como custos ou perdas, no seio da sociedade de advogados, nos termos dos artigos 23º e 40º do Código do IRC, as quotas mensais devidas à OA dos seus advogados-sócios e desde que não seja admitido, segundo a forma prevista no nº 4 do artigo 5º Regime Jurídico das Sociedades de Advogados, o exercício da advocacia fora do âmbito da sociedade». A AT permitia assim a dedução na esfera da sociedade das quotas da Ordem apenas dos sócios e desde que os solicitadores ou agentes de execução não exercessem essa atividade fora da sociedade. Quanto à CPAS, a referida Informação Vinculativa não abria essa porta, no entanto essa possibilidade passou a ser admitida por força da jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou no acórdão 0771/03.2BTLRS de 12-02-2020 (em que é relatora Suzana Tavares da Silva)28, sobre a possibilidade de dedução a nível individual e societário tanto das quotas como das contribuições para a CPAS. Pese embora o acórdão se refira a advogados aplica-se o mesmo raciocínio às sociedades de solicitadores e agentes de execução. Segundo o referido acórdão: «Tal como hoje resulta de forma expressa do disposto no n.º 6 do artigo 20.º do CIRS, a imputação a título de rendimento líquido na categoria B das quantias auferidas pelos advogados das sociedades de advogados onde exercem a sua atividade profissional, não prejudica a possibilidade de dedução por estes das contribuições obrigatórias para regimes de proteção social comprovadamente suportadas, nos casos em que os mesmos exerçam a sua atividade profissional através de sociedade sujeita ao regime de transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC, desde que tais quantias não tenham sido objeto de dedução a outro título, designadamente, a título de gastos ou perdas, no seio da sociedade de advogados, i.e., em IRC». Como se diz, a título conclusivo, na mesma decisão «o que se revelaria inadmissível à luz das regras e dos princípios jurídicos seria tanto a dupla dedução (…) como a dupla não dedução». Assim as quantias podem ser deduzidas na esfera da sociedade como gasto fiscal ou deduzidas pelo sócio se não tiverem sido levadas a gasto pela sociedade. Um outro problema do regime da transparência fiscal é o enquadramento em Segurança Social dos sócios das sociedades transparentes, questão que está longe de estar resolvida na reforma operada em 2018 pelo Decreto-Lei n.º 2/2018, de 9/1, que altera o

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Disponível em www.dgsi.pt.


regime contributivo dos trabalhadores independentes29. Neste momento ainda se aguarda por parte da Segurança Social a revisão das ordens internas sobre a aplicação do regime dos Trabalhadores Independentes aos sócios das sociedades transparentes, mas tem merecido muitas críticas a falta de articulação entre o novo regime e este tipo de sociedades30. Estando os solicitadores e agentes de execução ainda abrangidos pelo regime contributivo da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, esta questão não assume, no imediato, grande relevância – embora se esperem alterações nesta matéria, já que recentemente a assembleia geral extraordinária da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução aprovou a possibilidade de os associados poderem escolher entre a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores e a Segurança Social – sendo esperável que haja desenvolvimentos políticos e legislativos sobre o tema nos próximos tempos31. VI. Conclusões O regime da transparência fiscal, criado com o intuito de efetivar o princípio da neutralidade fiscal, combater à evasão fiscal e eliminar a dupla tributação económica, encontra-se regulado no artigo 6.º do CIRC, assumindo um caráter excecional, sujeito ao princípio da tipicidade fechada, já que apenas estarão abrangidas por este regime as sociedades expressamente aí elencadas: profissionais listadas no artigo 151.º do CIRS e as sociedades de simples administração de bens. Este regime tem aplicação obrigatória para estas sociedades, sendo que incluímos aqui as sociedades de solicitadores e agentes de execução, constando a profissão de «solicitador» no artigo 151.º do CIRS e tomando em consideração o papel que estes profissionais desempenham nestas sociedades, nas quais o elemento capital assume menor relevo. Embora se compreenda que é neste tipo de sociedades que mais sentido faz aplicar o regime da transparência fiscal, o seu caráter obrigatório pode gerar algumas situações discriminatórias e de injustiça fiscal, principalmente se pensarmos que há sociedades que, 29

Vd. PAULO MARQUES/SUZANA FERNANDES DA COSTA/CONCEIÇÃO SOARES/CARLOS RIBEIRO, Regime Contributivo dos Trabalhadores Independentes, Manual da OCC – Ordem dos Contabilistas Certificados para a formação eventual EVE0219B, março 2019 e ROCHA, Miguel Marques: «A transparência fiscal no Código Contributivo», Cadernos de Justiça Tributária n.º 7 – janeiro-março 2015. 30 O Código dos Regimes Contributivos da Segurança Social identifica um conjunto de trabalhadores que se consideram abrangidos pelo regime dos TI, e que incluem os sócios ou membros das sociedades de profissionais definidas na alínea a) do n.º 4 do artigo 6.º do CIRC. Nesta matéria a Segurança Social continua a aplicar a orientação técnica de 20.01.2016 que, no entanto, não resolve de forma clara quem fica abrangido pelo regime dos trabalhadores por conta de outrem e a quem se aplica o regime dos TI, sendo certo que no caso dos sócios de sociedades transparentes será em regra pelo lucro da sociedade no ano anterior imputado ao sócio que se determinará o valor a pagar de contribuições (critério diferente do que se aplica aos solicitadores e AE em prática isolada que podem optar entre contabilidade organizada ou declaração trimestral). 31 Sobre a comparação entre o regime da CPAS e o regime dos TI vd CLÁUDIO CARDOSO, «A Segurança Social dos trabalhadores independentes e dos advogados e solicitadores – algumas reflexões», in Segurança Social – Sistema, Proteção, Solidariedade e Sustentabilidade (coord. JORGE CAMPINO/ NUNO MONTEIRO AMARO/SUZANA FERNANDES DA COSTA, AAFDL, 2020, pp.453 ss.


mais facilmente, se conseguem apartar deste regime, tornando-se multidisciplinares. Possibilidade que, por razões estatutárias e deontológicas, não existe para as sociedades de solicitadores e agentes de execução. O regime da transparência fiscal apresenta algumas desvantagens, não só de natureza contabilística e fiscal como a impossibilidade de opção pelo regime simplificado de tributação (que poderia ser benéfico e menos custoso para sociedades de maior dimensão) e a não aplicação de alguns benefícios fiscais destinados a sujeitos passivos de IRC como também de natureza económica e social, já que a imputação dos rendimentos destas sociedades aos sócios e a tributação de tais valores na esfera pessoal dos mesmos, desincentiva a constituição de reservas na sociedade e o investimento societário. Limitações que assumirão maior relevo no contexto atual, em que se espera uma crise económica e social grave, com grande impacto na atividade destes profissionais. Cremos, ainda, que, na realidade, a aplicação deste regime não logrou satisfazer todos os objetivos que motivaram a sua criação. A neutralidade fiscal assume pouco relevo se pensarmos na possibilidade que existe ainda para algumas sociedades de se tornarem multidisciplinares e assim “fugir” a este regime especial e, no que diz respeito à evasão fiscal, em face da “pesada” carga fiscal que incide atualmente sobre as pessoas singulares com rendimentos mais elevados, não nos parece que a opção por este regime desincentive a adoção de estratégias que procuraram essencialmente reduzir a tributação, também na esfera pessoal dos sócios. Importa, pois, ponderar se faz ou não sentido, do ponto de vista da igualdade e justiça na tributação, manter este regime obrigatório para estas sociedades, sujeitandoas, necessariamente, a todos os constrangimentos descritos e colocando em causa a sua manutenção e subsistência. Referências bibliográficas CARDOSO, Cláudio, «A Segurança Social dos trabalhadores independentes e dos advogados e solicitadores – algumas reflexões» in Segurança Social – Sistema, Proteção, Solidariedade e Sustentabilidade, JORGE CAMPINO/ NUNO MONTEIRO AMARO,/SUZANA FERNANDES DA COSTA (coord), AAFDL, 2020 CORREIA, Jorge Magalhães, «Transparência Fiscal das Sociedades de Profissionais», in Fisco, n.º 7, 1989; ESPANHA, João, «Transparência fiscal, anacronismo e concorrência», in Boletim da Ordem dos Advogados, Jan./Fev. 2019; LOPES, Micaela Andreia Monteiro, «A Transparência Fiscal – contributo para a compreensão do artigo 6.º do CIRC», in Vida Económica, 2018;


MARQUES, Paulo, COSTA, Suzana Fernandes da, SOARES, Conceição e RIBEIRO, Carlos, Regime Contributivo dos Trabalhadores Independentes, Manual da OCC – Ordem dos Contabilistas Certificados para a formação eventual EVE0219B, março 2019; MORAIS, Rui Duarte, Sobre o IRS, Almedina, Coimbra, 2008; NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010; ROCHA, Miguel Marques: «A transparência fiscal no Código Contributivo», Cadernos de Justiça Tributária n.º 7 – janeiro-março 2015. SANCHES, José Luís Saldanha, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2002; -, «Sociedades Transparentes: Alguns Problemas no seu regime», in Fisco n.º 17, 1990; SCHWALBACH, António Gaspar e FIGUEIREDO, Guilherme, As intervenções e propostas da OA”, in Boletim da Ordem dos Advogados, Jan./Fev. 2019.


A conversão da penhora em hipoteca: tratamento processual, fiscal e registral A conversão da penhora em hipoteca: tratamento processual, fiscal e registral

SUSANA PATRÍCIA MARTINS PEREIRA Solicitadora Licenciada em Solicitadoria e em Direito Mestranda em Solicitadoria na ESTG/P. Porto

PATRÍCIA VELOSO Prof. Adjunta Convidada na ESTG/P. Porto

VIRGÍLIO FÉLIX MACHADO Prof. Adjunto Convidado na ESTG/P. Porto


RESUMO A conversão da penhora em hipoteca, na sequência da celebração de acordo de pagamento em prestações entre as partes na ação executiva, é uma novidade introduzida no nosso ordenamento jurídico através da Lei nº 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o Novo Código de Processo Civil. Ao consagrar-se o pagamento em prestações como causa extintiva da ação executiva importava garantir a salvaguarda dos direitos do exequente, e para tanto atribuiu-se àquele a faculdade de não prescindir da garantia dada pela penhora realizada nos autos, convertendo-se a mesma em hipoteca (no caso de imóveis); aplicando-se a esta, desde então, o regime legalmente previsto no nosso ordenamento jurídico para tal garantia real, designadamente no que respeita aos seus efeitos e vicissitudes. Todavia, sem que se retire o mérito a esta inovação, a verdade é que inúmeras questões, eminentemente práticas mas não só, ficaram sem regulamentação/resposta. Palavras-chave: conversão da penhora em hipoteca; responsabilidade tributária; reconversão; natureza da garantia; falta de personalidade jurídica. Introdução A extinção da ação executiva, como consequência da celebração de um acordo de pagamento em prestações entre as partes, é uma inovação do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho. Desde a reforma de 1995 até então, a celebração de acordo de pagamento em prestações determinava a suspensão da instância até integral cumprimento do acordo. Sucede que, a pendência de ações em tribunal foi fortemente criticada pela Troika, aquando da sua intervenção no nosso país. O que levou a que o nosso legislador revisse o regime da ação executiva, e incluísse o pagamento em prestações como causa extintiva da instância. Acontece, porém, que o nosso legislador não ignorou que tal alteração legislativa teria de ser acompanhada de uma medida que acautelasse os interesses dos credores/exequentes, em particular na possibilidade de incumprimento do acordo por parte do executado. Ora, foi por essa razão, para garantia dos direitos do credor/exequente, que o nosso legislador, particularmente inovador, previu a possibilidade de o exequente poder declarar que não prescinde da garantia que lhe é dada pela penhora realizada nos autos e, consequentemente procede-se à conversão da penhora em hipoteca (no caso dos imóveis ou equiparados) ou em penhor (no caso dos bens móveis). Note-se, o regime foi simplificado (aparentemente) a este ponto: o exequente declara que não prescinde da garantia que a penhora lhe dá, de ser ressarcido pelo produto de determinado bem com prioridade face aos demais credores, e o agente de execução procede à conversão da penhora em hipoteca.


Se nos ficássemos por aqui poder-se-ia simplesmente aplaudir o mérito da inovação legislativa. A questão é que, volvidos aproximadamente oito anos após a entrada em vigor do novo regime, e daí a oportunidade da análise do tema, questões de vária ordem se levantaram e se levantam, dado que o regime foi criado sem a devida maturação, mantendo-se inalterado. Veja-se por exemplo a problemática processual e registral que se levanta no cenário de incumprimento do acordo de pagamento em prestações por parte do executado, e em que se vê o exequente obrigado a requerer a renovação da instância para pagamento do remanescente do crédito. Recorde-se que se criou a conversão da penhora em hipoteca precisamente

pensando-se

nestes

casos,

para

salvaguarda

dos

interesses

do

credor/exequente. Pois bem, será que poderá dar-se uma “reconversão” da hipoteca em penhora, para prosseguimento dos autos com as diligências de venda do bem? Não existe norma habilitante. Então como se soluciona a questão? Como se verifica, trata-se de um tema atual, inovador, e cujo regime merece ser analisado nas suas diferentes dimensões. Sendo os principais objetivos do presente trabalho trazer à discussão as problemáticas que a aplicação deste novo regime legal trouxe, e continua a trazer diariamente, em particular aos agentes de execução e credores/exequentes. Para tanto irá analisar-se o regime no seu todo, isto é, na sua aplicação do ponto de vista processual, fiscal e registral, apresentando- se os principais problemas e propondo-se, sempre que possível, soluções. A Problemática O nosso direito processual civil, enquanto “conjunto das regras e dos comandos normativos que acompanham a vida de uma acção em tribunal, desde que ela é instaurada até ser proferida a decisão que lhe ponha termo1”, distingue as ações, consoante o seu fim, atento ao disposto no nº1 do art. 10º do Código de Processo Civil (doravante designado por CPC), em declarativas ou executivas. Sendo que, nas ações declarativas o autor pretende que o tribunal declare a solução para um dado litígio, proferindo o tribunal uma decisão, fundamentada no direito civil aplicável, que declare, no caso em concreto, a existência ou inexistência do direito invocado por cada uma das partes; ao passo que, nas ações executivas o credor obtém a realização coativa da prestação não cumprida2. No que respeita às ações executivas, estas podem distinguir-se entre ações executivas para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto (positivo ou 1

2

Montalvão Machado, A., & Pimenta, P. (2009). O Novo Processo Civil. Coimbra, Almedina, pág. 11

Nas palavras de Jorge Augusto Pais do Amaral (Direito Processual Civil. (10ª Edição). Coimbra, Almedina, pág. 19), “a distinção entre acções declarativas e acções executivas equivale à diferença entre o simples declarar e o executar, entre o dizer e o fazer. No processo declarativo é declarada a vontade concreta da lei, visando o executivo a execução dessa vontade”.


negativo), conforme dispõe o nº6 do referido preceito. Nesta sede centraremos as nossas atenções na ação executiva para pagamento de quantia certa, cujo regime legal está previsto no título III do CPC (artigos 724º a 858º), nas quais estamos perante um incumprimento por parte do devedor, no pagamento ao credor de uma determinada dívida. Em face de tal tem o credor (que na ação figurará como exequente) a possibilidade de intentar uma ação executiva, desde que se encontre munido de um qualquer título executivo dos elencados no artigo 703º, nº 1 do CPC, contra o devedor (que na ação figurará como executado), a fim de ver o seu crédito ressarcido através do produto da venda de bens que integrem o património do devedor (conforme princípio geral previsto no art. 817º Código Civil (doravante designado por CC)), que se mostrem suscetíveis de penhora3 e suficientes para fazer face ao pagamento da dívida. Sucede que, uma vez intentada a ação, e penhorados ou não bens do devedor, poderá ser alcançado entre as partes um acordo de pagamento em prestações4, como alternativa à penhora e/ou venda de bens que integram o património do executado. Até à entrada em vigor do novo CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho e que entrou em vigor em setembro daquele ano, a celebração de acordo de pagamento em prestações entre exequente e executado ditava a suspensão da instância executiva5. Deste modo, salvo convenção em contrário e sem prejuízo de constituição de outras garantias, a penhora realizada nos autos mantinha-se até integral cumprimento do acordo (art. 883º do antigo CPC). Com a intervenção da Troika6 no nosso país, entre os anos de 2011 e 2014, um dos grandes problemas com que se depararam foi a elevada pendência de ações executivas em tribunal. Aliás, a ação executiva foi considerada nessa fase como o “cancro” da Justiça portuguesa, atento ao número elevado de processos pendentes, de crédito mal parado, e dos prejuízos daí decorrentes. Era, por isso, urgente reformular a ação executiva, tornando-a (ainda mais) célere, eficaz, evitando-se a pendência de ações nas quais não são realizados quaisquer atos por longos períodos de tempo, entre outros aspetos. 3

A penhora, conforme nos ensina o professor Lebre de Freitas (A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013. (7ª Edição). Coimbra, Gestlegal, pág. 234), “é … o ato judicial fundamental do processo de execução para pagamento de quantia certa”, e traduz-se na apreensão judicial de bens do executado. 4

Esta faculdade tornou-se possível com a revisão do CPC operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que veio permitir o pagamento em prestações da dívida exequenda fora do esquema da transação. 5

Tal possibilidade resultava do art. 882º CPC, cuja redação dada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro era a seguinte “Artigo 882º - Requerimento para pagamento em prestações: 1 - É admitido o pagamento em prestações da dívida exequenda, se exequente e executado, de comum acordo, requererem a suspensão da instância executiva. 2 - O requerimento para pagamento em prestações é subscrito por exequente e executado, devendo conter o plano de pagamento acordado, e pode ser apresentado até à notificação do despacho que ordena a realização da venda ou das outras diligências para pagamento”. 6

Troika é a designação atribuída à equipa composta pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia, responsável pela negociação com os países que solicitam um pedido de resgate financeiro, de forma a consolidar as suas contas públicas.


É movido por este ímpeto que o nosso legislador concebe o novo CPC. O qual, para o que nesta sede releva, prevê, no seu art. 806º, que o acordo de pagamento em prestações celebrado entre exequente e executado acarreta a extinção (e já não a suspensão) da instância executiva. Aqui o nosso legislador inovou, e resolveu uma parte do “cancro” das ações executivas à data, que era causado pela pendência de ações em tribunal que apenas aguardavam pelo cumprimento integral do acordo celebrado entre as partes, nas quais não era praticado qualquer ato na vigência do acordo. E verdade seja dita, entende-se esta solução apresentada pelo nosso legislador. Todavia, a inovação não se ficou por aqui. Consciente de que a extinção da instância, nestes casos, não seria bem acolhida se não fosse acompanhada de uma garantia para o exequente, em caso de posterior incumprimento do acordo por parte do executado, de que os bens já penhorados nos autos serviriam para pagamento do remanescente, mantendo assim o exequente a sua prioridade face a possíveis outras penhoras ou negócios realizados sobre o imóvel pelo executado; o nosso legislador foi mais longe e previu, no nº 1 do art. 807º do CPC, a faculdade do exequente declarar que não prescinde da garantia7 dada pela penhora já realizada nos autos, e deste modo aquela converter-se-á, automaticamente na letra da lei, em hipoteca ou penhor (conforme estejamos perante bens imóveis ou móveis), beneficiando esta da prioridade que a penhora tinha. Após a conversão da penhora em hipoteca o exequente dispõe de uma garantia real sobre determinado imóvel8, ao passo que até então apenas dispunha do direito de ser pago pelo produto da venda daquele bem com preferência em relação a qualquer outro credor que não tivesse garantia real anterior, nos termos do n.º 1 do artigo 822º do CC. Donde, após a conversão deverá passar-se a aplicar à hipoteca, resultante da conversão da penhora, o seu regime substantivo, tal como previsto no CC. Como se referiu, o regime em questão foi criado em 2013 e mantém-se inalterado até aos dias de hoje, volvidos que são quase oito anos. Não se retira mérito à solução introduzida pelo nosso legislador, não se mostra inatingível qual o propósito que esteve na sua base; contudo, não será exagerado admitir-se que a solução foi pensada sem uma visão ou conhecimento aprofundado do que se passa na prática, na vida real, no dia-a-dia da ação executiva, seja na ótica dos exequentes seja, em particular, na ótica do agente de execução.

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A letra da lei não é “feliz” quanto a esta questão. A lei refere “se o exequente declarar que não prescinde da penhora…”. Ora, se a execução se extingue, a penhora extinguir-se-á obrigatoriamente. O que o legislador não disse, mas queria dizer a nosso ver, era “se o exequente declarar que não prescinde da garantia dada pela penhora…”. 8

Conforme refere Menezes Leitão, (Garantias das Obrigações. (2012). Coimbra, Almedina, pág. 182) “a hipoteca constitui um direito real de garantia que se caracteriza por…não estabelecer a preferência em atenção à causa do crédito, vigorando antes o princípio da prioridade na constituição”.


Desde logo, e aqui do ponto de vista processual, para que o acordo celebrado entre as partes possa ser processualmente valorado para efeitos de extinção da instância deverá, nos termos previstos na segunda parte do nº 1 do art. 806º do CPC, conter um plano de pagamentos definido. Ou seja, nesta sede o legislador, por razões de segurança jurídica, tal como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo9, vem impor que as partes não se limitem a declarar que chegaram a um acordo de pagamentos, mas sim, que façam constar do acordo subscrito o plano de pagamento definido, com valor total a pagar, número de prestações, valor de cada uma delas e data do respetivo vencimento. Celebrado o acordo nestes termos, deverá o mesmo ser comunicado ao agente de execução nomeado nos autos, dado que a este caberá proceder aos atos tendentes à extinção da instância. Se a pretensão do exequente for não prescindir da garantia dada pela penhora já realizada nos autos, mormente sobre um imóvel, terá este de declarar expressamente essa pretensão ao agente de execução, nos termos do nº1 do art. 807º do CPC, a fim de este proceder à conversão da penhora em hipoteca nos termos do nº4 do referido preceito. Note-se que, a lei não exige que tal pretensão conste expressa no acordo. Admite-se que possa não ser feita expressa referência no acordo subscrito pelas partes e junto aos autos, sendo apenas tal pretensão declarada pelo exequente aquando da comunicação ao agente de execução da celebração do acordo. Quer fique, ou não, expressamente a constar do acordo, certo é que esta questão será sempre negociada entre as partes nas negociações tendentes à celebração do acordo. Tanto mais que, desta conversão da penhora em hipoteca resulta a obrigação de pagamento de Imposto do Selo (doravante designado por IS), cujo valor a pagar será necessariamente imputado ao executado. Avançando-se para a dimensão registral, comunicando-se o acordo ao agente de execução e declarando-se que não se prescinde da garantia dada pela penhora, este procede à sua conversão em hipoteca junto da conservatória do registo predial. Esta conversão acarreta custos emolumentares. Custos esses que serão, a final, imputados ao executado no valor acordado para pagamento, mas de início será o seu pagamento exigido ao exequente pelo agente de execução, dado que é àquele que cabe o seu pagamento nos termos do art. 721º do CPC. Assim, independentemente dos moldes do acordo de pagamento celebrado entre as partes, o Agente de execução previamente notifica o exequente para pagamento das despesas referentes à conversão da penhora em hipoteca, a fim de oportunamente o proceder à apresentação do pedido de registo de conversão. Em sede de registo predial, a conversão da penhora em hipoteca, prevista no art. 48º-B do Código de Registo Predial (doravante designado por CRPredial), ingressa no registo mediante averbamento à inscrição de penhora, nos termos do art. 101º, nº 2, alínea b) do CRPredial.

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Costa Ribeiro, V. da. & Rebelo, S. (2017). A Ação Executiva Anotada e Comentada. (2ª Edição). Coimbra, Almedina.


Significa assim que, o que em bom rigor é feito no registo é uma atualização da inscrição de penhora, atualizando-se a mesma com a menção de que aquela penhora “transformouse” em hipoteca, valendo como data da mesma a data inicial da penhora. Assim se garante a prioridade do exequente. Sendo certo que, a posteriori, após cumprimento integral do acordo, deverá o exequente disso informar o agente de execução, para que este promova o competente cancelamento da hipoteca10, nos termos da parte final do nº4 do art. 807º CPC. Note-se, é convertida a penhora em hipoteca e a execução extinta. Após cumprimento integral do acordo pelo executado, que poderá demorar anos, o exequente informa o agente de execução desse cumprimento para que este promova o cancelamento da hipoteca. Entende-se que o legislador não acautelou devidamente esta questão. A nosso ver fará mais sentido que possa o exequente, após cumprimento integral do acordo, emitir um distrate/autorização de cancelamento da hipoteca para efeitos de registo, tal como são emitidos, por exemplo, pelas entidades bancárias aquando do pagamento do crédito habitação. Contudo, e como supra se refere, apesar de extinta a ação executiva poderá esta ser renovada em consequência do incumprimento do acordo por parte do executado, conforme prevê o nº 1 do art. 808º CPC. Temos assim que, a falta de pagamento de uma prestação do acordo celebrado implica o imediato vencimento das restantes prestações11 e permite ao exequente requerer a renovação da instância, para prosseguimento das diligências de penhora e venda para ressarcimento do remanescente em dívida. Ao renovar-se a execução, esta inicia necessariamente pelo bem sobre o qual foi constituída a hipoteca, nos termos do nº2 do art. 808º do CPC. Porém, não se mostra admissível uma “reconversão da hipoteca em penhora”. Se tal fosse possível mantinha o exequente, sem necessidade de novos custos, a penhora inicialmente registada nos autos. Mas tal não sucede, visto que a hipoteca não consta de inscrição autónoma, mas antes de um averbamento à penhora originariamente efetuada. Nestes casos impõem-se ao exequente a obrigatoriedade de requerer o registo de uma nova penhora, desde logo com os custos que daí decorrem. É certo que o exequente não se vê prejudicado no que à prioridade respeita, dado que mantém a que lhe foi dada pelo registo da primeira penhora. Todavia, é necessário realizarse uma segunda penhora. Podendo dar-se o caso, note-se, de entre a primeira (convertida

10

Sobre esta questão existe uma referência que importa fazer-se, relativa à especificidade do pedido de cancelamento da hipoteca. Como se refere, a conversão da penhora em hipoteca ingressa no registo/no prédio mediante averbamento à inscrição de penhora, valendo como data da mesma a data inicial do registo de penhora. Ora, aquando do requerimento de cancelamento da hipoteca deverá o requerente (agente de execução ou o próprio executado, neste caso munido de distrate emitido pelo exequente) indicar como inscrição a cancelar a que correspondia ao registo de penhora (e que foi convertido em registo de hipoteca). 11

Conforme ressalta o autor Fernando Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução. (2010). Coimbra, Almedina, pág. 364) trata-se de um regime em tudo semelhante ao previsto no art. 781º CC, “onde se determina que, nas dívidas liquidáveis em prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas, por quebra da confiança em que se baseava o plano de pagamento escalonado no tempo”.


em hipoteca) e a segunda penhora do exequente serem registadas outras penhoras no âmbito de outros processos. Temos assim que, o sistema que pretendia trazer um certo facilitismo e transparência, veio, afinal, trazer terrenos nebulosos, duplicar, em certa medida, atos processuais, e obrigar os intervenientes processuais a encontrar soluções ad hoc. Também aqui se denota que este quadro legal foi criado sem a devida maturação das suas consequências. Acresce ainda que, com este regime legal, quer-se tenha ou não equacionado a questão, também os nossos cofres de Estado ficaram a ganhar, dado que a constituição de hipoteca, enquanto garantia real, encontra-se sujeita a IS12, nos termos da verba 10 da tabela geral de IS. Assim, em função do prazo pelo qual é constituída, que no caso corresponderá ao prazo estabelecido para o plano de pagamentos, haverá lugar ao pagamento ao Estado de 0,04%, 0,5% ou 0,6% do valor do acordo. Como atrás se refere, o montante devido em sede de IS será, a final, imputado ao executado, incluindo-se no valor total a pagar. Todavia, é sobre o agente de execução que pende a obrigação de liquidação e pagamento aos cofres do imposto13, enquanto sujeito passivo do imposto, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 2º do Código do IS (doravante designado por CIS). Até aqui, tivemos o particular interesse de analisar a problemática de um ponto de vista mais prático. Todavia, existem duas questões, relativamente às quais importa pensar, que têm repercussões práticas, mas que assentam numa dimensão mais dogmática – referimonos, por um lado, à discussão em torno da natureza jurídica da hipoteca resultante da conversão da penhora14, e, por outro lado, à problemática da impossibilidade de conversão da penhora em hipoteca por parte de entidades desprovidas de personalidade jurídica (como é o caso dos condomínios)15.

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Veja-se Informação Vinculativa da Autoridade Tributária nº 6579, Processo 2014000518

13

Para mais desenvolvimentos ver artigo “O Imposto do Selo na conversão da penhora em hipoteca ou penhora e a responsabilidade, perante a AT, do agente de execução”, de Florbela Teixeira e Patrícia Anjos Azevedo 14

O art. 703º do CC estabelece a distinção entre hipotecas legais (que resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes), hipotecas judiciais (constituídas na sequência e por causa do incumprimento de uma obrigação fixada por sentença), e hipotecas voluntárias (que resultam de contrato ou declaração unilateral). No que respeita à natureza da hipoteca resultante da conversão da penhora, há uma corrente que defende que estamos perante uma hipoteca legal, seguida, por exemplo, por Delgado de Carvalho (a este propósito veja-se Temas de Processo Civil – A Prática da Teoria. (2019). Lisboa, Quid Juris, pág. 233), que entende que “não obstante existir um processo negocial…a posição do executado é neutra”, e Henrique de Carvalho; e uma outra que defende que estamos perante uma hipoteca voluntária, seguida, por exemplo, por Madalena Teixeira, relatora no Proc.:C.P.5/2014 STJ-CC, e por Virgílio Félix Machado, coorientador neste trabalho, que na I Conferência Ibérica em Registos e Notariado, realizada em 2016, referiu que “esta hipoteca resulta de direito negocial, na medida em que a sua razão de ser não assenta…em imperativos de ordem pública e porque a disciplina jurídica correspondente entra em vigor com a celebração do acordo para pagamento das prestações”. 15

Sobre esta questão veja-se, designadamente, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo nº 1167/15.9T8PVZ.P1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf//5C516C76813F1DC980257F3700557FBA


Conclusões Com a grande reforma do processo civil em 2013, o nosso legislador veio, entre outros, determinar como causa extintiva da instância executiva a celebração entre as partes de um acordo de pagamento em prestações, rompendo com o regime que vigorava até então, que determinava naqueles casos a suspensão da instância até efetivo e integral pagamento. Acresce que, consciente de que os exequentes, com bens penhorados nos autos (em particular no caso dos imóveis), não veriam com bons olhos a extinção da execução sem salvaguarda da garantia, o nosso legislador veio conceder a faculdade de o exequente poder declarar que não prescinde da garantia dada pela penhora concretizada nos autos e, desse modo, procede-se à conversão da penhora em hipoteca (no caso dos imóveis). É inegável que esta inovação da extinção veio, de per si, pôr fim a um elevado número de ações que se mantinham em ativo no sistema judicial, traduzindo uma ideia errada do número de ações ativas, dado que, no regime anterior, ficavam num limbo, sem a prática de qualquer ato processual entre a celebração do acordo e o término do seu cumprimento. Porém, uma vez analisado o regime atualmente em vigor, a sua aplicação prática nas suas diferentes vertentes, processual, fiscal e registral, somos levados a concluir que o regime foi como que criado “do pé para a mão”, como é usual dizer-se. Esta foi a mesma conclusão a que chegaram Ana Luísa Gomes Loureiro, Nuno de Lemos Jorge e Paulo Ramos de Faria16, juízes de direito, conforme missiva remetida ao deputado Fernando Negrão, e na qual ressaltam a falta de discussão da alteração. A sensação com que se fica, quando equacionadas as problemáticas que este regime levanta, é que o legislador teve somente a preocupação de acabar com parte da pendência da ação executiva em tribunal, e, sem descurar a salvaguarda da garantia dos credores, replicou o funcionamento do mecanismo da conversão do arresto em penhora (art. 762º do CPC). Atribuiu ao exequente uma garantia forte, de natureza real, que lhe permite, designadamente, em caso de incumprimento do acordo perseguir o imóvel sobre o qual tem a hipoteca mesmo que se encontre na posse de terceiro (direito de sequela); mas deixou por dar resposta a uma conjunto de questões que, na prática, na tramitação do processo, levantam graves problemas. Certo é que, (in)conscientemente veio criar-se uma nova fonte de receita para os cofres de Estado, no que respeita ao IS pago pela constituição da garantia e ao emolumento registral cujo registo impõe; e onerar o agente de execução com a obrigação de, apesar de mero intermediário, proceder à liquidação e pagamento do imposto, com as

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Nas suas palavras, “a crítica mais importante…é a de que a solução consagrada não foi suficientemente debatida, não tendo sido abordada pela Comissão da Reforma do Processo Civil ou sujeita a discussão pública. Quer pela sua absoluta novidade, quer pela complexidade da solução proposta – o que comporta um elevado grau de imprevisibilidade das suas repercussões práticas –, entendemos que o seu sucesso só poderá ser garantido se o regime previsto for simples e absolutamente coerente (e consequente) ”.


consequências que daí decorrem em caso de incumprimento da obrigação. Porém, deixaram-se à margem desta novidade da conversão da penhora em hipoteca as entidades que dispõem de personalidade judiciária mas não de personalidade jurídica. Em jeito de síntese, é de atribuir-se mérito ao regime, ao propósito do legislador, mas impunham-se alterações que dessem resposta aos problemas levantados. Referências (bibliografia e webgrafia) Amâncio Ferreira, F. (2010). Curso de Processo de Execução. (13ª Edição). Coimbra, Almedina; Delgado de Carvalho, J.H. (2019). Temas de Processo Civil – A Prática da Teoria. Lisboa, Quid Juris; Ribeiro, V. da. C. & Rebelo, S. (2017). A Ação Executiva Anotada e Comentada.(2ª Edição). Coimbra, Almedina; Lebre de Freitas, J. (2017). A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013. (7ª Edição). Coimbra, Gestlegal; Menezes Leitão, L. M. T. de. (2012). Garantia das Obrigações. (4ª Edição). Coimbra, Almedina; Montalvão Machado, A., & Pimenta, P. (2009). O Novo Processo Civil. Coimbra, Almedina; Pais do Amaral, J.A. (2011). Direito Processual Civil. (10ª Edição). Coimbra, Almedina; Autoridade Tributária, Informação Vinculativa nº 6579, Processo 2014000518, disponível em: https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/pa trimonio/ selo/Documents/IS_IVE_6579_PROC_2014_000518.pdf Carvalho, H., texto de apoio da intervenção efetuada pelo próprio na tertúlia subordinada ao tema: “A Ação Executiva no Novo Código de Processo Civil: Questões Práticas e Direito Transitório”,

em

24/10/2013,

Ovar,

disponível

em:

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/fichpdf/A_Acao_Executiva_no_Novo_Codigo_de_Processo_Civil.pdf Faria, P. R. de, Loureiro, A. L. G. & Jorge, N. de L., Parecer elaborado no âmbito da apreciação na especialidade da Proposta de Lei nº 113/XII/2ª (GOV) – “Aprova o Código de Processo Civil”, disponível em: https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d 56304c


334e706447567a4c31684a5355786c5a793944543030764d554e425130524d5279394856454e5 1 5179394562324e31625756756447397a51574e3061585a705a47466b5a554e7662576c7a63324 6 764c32466d4e6d566d4f574d324c57466c596d49744e44417a4e4331684f5441354c54466d593 2 51794e546c684d7a63775a4335775a47593d&fich=af6ef9c6-aebb-4034-a9091fcd259a370d.pdf&Inline=true Machado, V. F. (2016), A Conversão da Penhora em Hipoteca ou Penhor. Atas da I Conferência Ibérica em Registos e Notariado, disponível em: https://www.estg.ipp.pt/investigacao/ciicesi/ciren/AtasICIReN_Template%20A4_versao% 20fin al_2016_05_10.pdf/view?set_language=pt Teixeira, Fl. & Anjos Azevedo, P. (2019). O Imposto do Selo na conversão da penhora em hipoteca ou penhor e a responsabilidade, perante a AT, do agente de execução. Revista Portuguesa de Contabilidade, disponível em: https://rpc.informador.pt/materia/E02A.0106/Fiscalidade Teixeira, Maria Madalena Rodrigues (2014). Hipoteca resultante da conversão da penhora – sua natureza jurídica - título para registo – trato sucessivo. Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado, disponível em: https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/32-cc-2014-c-p-62014/downloadFile/file/32_CP 6-2014_STJ-CC.pdf?nocache=1404823714.34


A venda conjunta entre processo executivo e processo de insolvência

A venda conjunta entre Processo Executivo e Processo de Insolvência

Susana Patrícia Martins Pereira Solicitadora Licenciada em Solicitadoria e em Direito Mestranda em Solicitadoria na ESTG/P. Porto


1. RESUMO O legislador regulou o regime aplicável à venda judicial de bens no âmbito do processo executivo, bem como o regime aplicável à liquidação de bens no âmbito do processo de insolvência. Criou o seu regime legal de uma forma estanque, isolada, pensado para cada um dos processos, como de outro modo não deveria/poderia ser, na verdade. Porém, na prática, não raras vezes há a necessidade de conciliar estes dois regimes legais, procedendo à venda conjunta de bens/parte deles que se encontram, em simultâneo, penhorados à ordem de um dado processo executivo e apreendidos a favor da massa insolvente num dado processo de insolvência. É, precisamente, sobre estas questões, e sobre esta conciliação de regimes legais, que pretende versar o presente trabalho.

2. A VENDA EM PROCESSO EXECUTIVO Com a entrada da ação executiva pretende o exequente ver o seu crédito pago, através da penhora e posterior venda (designadamente no caso dos imóveis, que é o bem penhorado que tomaremos por referência neste trabalho) dos bens penhorados. Ou seja, é através do produto da venda dos bens penhorados que o exequente se mostra ressarcido, na falta, designadamente, do pagamento voluntário por parte do executado/devedor. A venda no âmbito do processo executivo encontra-se regulada no Livro IV do Código de Processo Civil (doravante designado por CPC) - do processo de execução, mais concretamente no seu título III – da execução para pagamento de quantia certa, capítulo I – do processo ordinário, secção V – pagamento, subsecção V – venda, artigos 811º e seguintes do CPC. Em termos gerais, uma vez chegada a fase da venda no âmbito do processo executivo caberá ao Agente de Execução, nos termos do nº 1 do artigo 812º do CPC, ouvidos exequente, executado e credores com garantia sobre os bens a vender, lavrar a competente decisão de venda. Decisão essa que deverá conter, nos termos do nº 2 do artigo 812º do CPC, a modalidade de venda (de entre as previstas no nº 1 do artigo 811º do CPC); o valor base dos bens a vender 1e a eventual formação de lotes. Atualmente, nos termos do nº 1 do artigo 837º do CPC, a venda decorrerá preferencialmente mediante leilão eletrónico. Em face de tal, e porque não releva nesta sede analisar o regime jurídico de todas as modalidades de venda, vai tomar-se por referência o regime da venda mediante leilão eletrónico de um imóvel penhorado.

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Nos termos do nº3 do artigo 812º do CPC, o valor base dos bens a vender corresponderá ao maior dos seguintes valores: valor patrimonial tributário, apurado há menos de seis anos, ou valor de mercado.


Assim, uma vez lavrada a competente decisão de venda pelo Agente de Execução, e notificada esta às partes, nos termos do nº 6 do artigo 812º do CPC, decorrido o prazo de que as partes dispõem para reclamação, e na falta desta, será publicado o competente leilão eletrónico para venda dos bens penhorados. À venda mediante leilão eletrónico aplicam-se, com as devidas adaptações e nos termos do nº 2 do artigo 837º do CPC, as regras previstas para a venda mediante abertura de propostas em carta fechada. De tal forma que, sendo designado, pela própria plataforma informática o dia e hora da venda, o Agente de Execução notifica as partes, os credores com garantia e os preferentes do dia e hora designados para venda. Publicita a venda nos termos do nº 1 do artigo 817º do CPC, em particular com a afixação do edital de venda no imóvel penhorado. Uma vez realizado o leilão eletrónico, e culminando este com a existência de uma proposta válida para aceitação, é lavrada a competente decisão de adjudicação2 e desta, que contempla a certidão do leilão remetida ao Agente de Execução pela própria plataforma do E-Leilões, são notificadas as partes, os credores com garantia, os preferentes, bem como o proponente para efeitos de depósito do preço e cumprimento das obrigações fiscais. Uma vez cumpridas as obrigações fiscais e efetuado o depósito do preço por parte do proponente, nada mais resta ao Agente de Execução do que proceder à emissão do competente título de transmissão, nos termos do nº 1 do artigo 827º do CPC, e, nos termos do nº 2 do referido preceito legal, comunicação da venda ao serviço de registo para efeitos de inscrição da aquisição do imóvel a favor do proponente e consequente cancelamento das inscrições que hajam caducado nos termos do disposto no nº 2 do artigo 824º do Código Civil. Temos assim, em termos simples, o quadro legal da venda de um bem imóvel no âmbito do processo executivo. A VENDA EM PROCESSO DE INSOLVÊNCIA No processo de insolvência é, tal qual no processo executivo, a satisfação dos credores que se visa obter. Porém, neste caso, estamos perante um processo concursal, na medida em que todos os credores são chamados a intervir no processo. Nesta sede irá liquidar-se todo o património do devedor para satisfação de todos os credores (na medida do possível, e com observâncias da respetiva graduação dos créditos). Ao passo que na ação executiva visa-se pagar o crédito de determinado credor,

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Importa notar que, na vida prática, não é consensual entre todos os Agentes de Execução o cumprimento dos atos indicados na referida sequência. Por exemplo: existem Agentes de Execução que, após o leilão, notificam as referidas partes da certidão de encerramento do leilão eletrónico e apenas lavram a decisão de adjudicação após decurso do prazo para exercício de um eventual direito de preferência ou remissão. A Lei não é totalmente clara, importa é que todos os interesses sejam acautelados, que se garanta a celeridade, eficácia e acima de tudo legalidade processual.


mediante certos bens (não sendo visada a liquidação de todo o património, mas apenas daquele que se revele necessário e proporcional ao crédito). Porque se fala em liquidação do património, no processo de insolvência a fase equivalente à fase de venda no processo de execução é designada, precisamente, por liquidação. Assim, a liquidação destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente3 numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores, havendo, para tanto, que proceder-se à cobrança dos créditos e à venda dos bens da massa insolvente. Assim, o regime da venda dos bens que integram a massa insolvente encontra-se, ainda que de forma superficial, previsto no artigo 164º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante designado por CIRE), o qual se insere na secção I – regime aplicável, do capítulo III – liquidação, do título VI – administração e liquidação da massa insolvente do referido diploma legal. A liquidação é da competência do Administrador der Insolvência, nos termos do artigo 55º, nº 1, alínea a) do CIRE, e corre por apenso ao processo principal de insolvência. À semelhança do que sucede no processo executivo, a modalidade de venda preferencial é a venda mediante leilão eletrónico, nos termos do nº 1 do artigo 164º do CIRE. E, como tal, decorrerá em modos semelhante aos referidos supra. Importa notar que, nos termos do nº 2 do artigo 14º do CIRE, na venda de bem com garantia real é sempre ouvido o credor sobre a modalidade de venda, e informado este do valor base fixado para venda pelo Administrador de Insolvência. Parece-nos curioso frisar o seguinte aspeto: relativamente ao processo executivo foi referido supra que, decorrendo a venda do imóvel mediante leilão eletrónico, é ao Agente de Execução que cabe a emissão do título de transmissão, o qual é título bastante para efeitos de apresentação a registo da aquisição. Chegamos a tal solução pela aplicação subsidiária à venda mediante leilão eletrónico das regras relativas à venda mediante abertura de propostas em carta fechada. Ora, nos termos do disposto no artigo 17º do CIRE, são subsidiariamente aplicáveis ao processo de insolvência as regras previstas no CPC, em tudo que não contrarie as regras do CIRE. Assim, poder-se-ia pensar, e porque não existe norma que regule expressamente tal questão no CIRE, que na venda mediante leilão eletrónico no processo de insolvência seria competência do Administrador de Insolvência emitir o respetivo título de transmissão e proceder à apresentação a registo da aquisição. Porém, salvo alguma exceção que é por nós desconhecida, é prática dos Administradores de Insolvência, uma vez encerrado o leilão eletrónico, tal qual sucede no processo executivo, notificar o proponente para efeitos de depósito do preço à ordem da administração da massa insolvente e, posteriormente, é agendada escritura pública

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Corresponde ao conjunto de bens que integram o património do devedor, cuja liquidação irá realizar-se para satisfação dos créditos dos credores.


ou documento particular autenticado para efeitos de transmissão do imóvel. Sendo competente para apresentação a registo o respetivo notário ou titulador. Ou seja, os Administradores de Insolvência não emitem o título de transmissão do imóvel. Sujeitam essa transmissão às regras regais do regime da compra e venda, e dão cumprimento à forma legal para o contrato prevista no artigo 875º do Código Civil (doravante designado por CC). Este é, em termos simples, o quadro legal da venda de um bem imóvel no âmbito do processo de insolvência. A APREENSÃO DE BENS EM AMBOS OS PROCESSOS Preconizando tudo quanto supra se expõe verifica-se que, quer no âmbito do processo de execução, quer no âmbito do processo de insolvência, a satisfação do(s) credor(es) é conseguida através do património do executado/insolvente. No que ao processo executivo respeita, a apreensão dos bens necessários à satisfação do crédito reclamado realiza-se por intermédio da penhora. “A penhora, …, apresenta-se assim como uma apreensão de bens, um desapossamento de bens do devedor, um ato que retira da disponibilidade material do devedor e subtrai relativamente à sua disponibilidade jurídica bens do seu património”4. Nos termos do artigo 735º, nº 1 do CPC, “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”. Por sua vez, o nº 2 do referido preceito alude à possibilidade de serem penhorados bens de terceiros, nos casos especialmente previstos na Lei, desde que a execução haja sido movida igualmente contra eles. Seguindo-se, no nº 3 do mesmo preceito, a previsão de uma regra de adequação/proporcionalidade no que à penhora respeita, isto é, a penhora deverá limitar-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda acrescida das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem nas percentagens aí fixadas variando conforme o valor da execução. Temos assim que, a lei adjetiva/processual atribui à lei substantiva a definição do âmbito dos bens sobre que pode recair a penhora/execução. Assim, como princípio geral, decorre do artigo 601º do CC que respondem pelo cumprimento da obrigação todos os bens do devedor. Porém, existem duas limitações: a de os bens serem insuscetíveis de penhora e a da autonomia patrimonial resultante da separação de patrimónios. Relativamente à primeira exceção temos de regressar à lei adjetiva/processual, e iremos verificar que se construiu a impenhorabilidade sobre uma tripla modalidade: temos bens absoluta ou totalmente impenhoráveis (artigo 736º do CPC); bens

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Cf. Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 13ª Edição, 2010, pág. 197


relativamente impenhoráveis (artigo 737º do CPC) e bens parcialmente penhoráveis (artigo 738º do CPC). No que respeita à segunda exceção, a lei exclui do objeto da garantia geral certas massas patrimoniais, que por sua vez se mostram afetas à satisfação de certas dívidas – é o que ocorre com a herança (artigos 2070º e 2071º ambos do CC) e com os bens comuns do casal (artigo 1695º do CC). Em suma, todo o património do devedor que se mostre suscetível de penhora constitui o objeto da execução, observadas as regras relativas aos limites de penhorabilidade previstas nos artigos 736º a 738º do CPC. E no âmbito do processo de insolvência? No âmbito do processo de insolvência existe, igualmente, a necessidade de delimitar o património que irá servir para a satisfação dos créditos de todos os credores. Se, no âmbito do processos executivo, temos, por regra e a titulo de exemplo, um credor/exequente que quer ver o seu crédito ressarcido e, por isso, irá, no âmbito da ação judicial, penhorar o(s) bem(ns) que se mostrem adequados e proporcionais ao seu crédito para através dele(s) obter a sua satisfação – temos um processo como que individualizado; no processo de insolvência o processo é exatamente o oposto. No processo de insolvência vai aglomerar-se um conjunto de bens, que corresponderá (em termos gerais) a todo o património do devedor, através dos quais se logrará a satisfação de todos os credores – temos um processo concursal. Ora, o referido aglomerado de bens, em termos jurídico-rigorosos, é denominado massa insolvente. A massa insolvente, definida no artigo 46º do CIRE, “corresponde ao conjunto de bens atuais e futuros do devedor, os quais, a partir da declaração de insolvência, formam um património separado; adstrito à satisfação dos interesses dos credores5”. Para identificação dos bens que integram a massa insolvente socorremo-nos de três preceitos fundamentais, a saber: o artigo 601º do CC, o artigo 46º, nº 2 do CIRE e o artigo 735º do CPC, que traduzem a mesma ideia. Parece que vamos “beber” aos ensinamentos supra expostos. Assim, e em primeira linha, integrarão a massa insolvente do devedor todos os bens daquele suscetíveis de penhora. Sucede que, o legislador previu no próprio CIRE a possibilidade de o devedor, voluntariamente, apresentar à integração na massa insolvente bens isentos de penhora, e desde que não se trate de situações de impenhorabilidade absoluta. Por fim, e por força da regra prevista no artigo 735º, n º1 do CPC de que todo o património do devedor responde pelas dívidas, são penhoráveis/integram a massa insolvente os bens imóveis, os bens móveis e os direitos,

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Cf. Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª Edição, 2019, pág. 302


com os limites de penhorabilidade previstos nos artigos 736º a 738º do CPC. Temos assim que, observando-se as regras supra referidas mostra-se possível delimitar os bens de que o insolvente não pode dispor e que não pode administrar, os quais são apreendidos pelo administrador de insolvência, por forma a constituir um património autónomo – a massa insolvente. Sendo através dos bens que integram a referida massa, pelo produto (por regra) da venda destes que far-se-á o pagamento aos credores. Fazendo um ponto de situação, temos que: encontram-se devidamente previstas as regras a observar para efeitos de apuramento dos bens suscetíveis de penhora, no caso do processo executivo, e dos bens que integram a massa insolvente, no âmbito do processo de insolvência. Sendo que, o quadro legal do processo de insolvência socorre-se do quadro legal do processo de execução. A PROBLEMÁTICA DOS BENS COMUNS DO CASAL Até aqui, e porque assim se impõe, por uma questão de congruência de exposição, tem-se analisado a questão da execução ou da insolvência do posto de vista de um único devedor. Sucede que, casos há em que o executado/insolvente é casado, designadamente com regime de comunhão de bens. Ora, importa atentar em particular ao que sucede em tais casos no que respeita aos bens comuns do casal. Por facilidade de compreensão, e porque efetivamente aí os problemas não se põem, vamos, em primeiro lugar, versar sobre execução movida contra ambos os cônjuges e declaração de insolvência de ambos os cônjuges. Conforme é sabido um dos pressupostos processuais6 no âmbito do direito processual, em particular, para o que nesta sede releva, no processo executivo, é a legitimidade das partes7. Assim, em particular atento ao disposto no artigo 34º do CPC, temos ações executivas que têm de ser propostas por ou contra ambos os cônjuges. Vejamos a título de exemplo: A e B, no estado de casados, celebraram mútuo com o banco X, tendo vindo a incumprir com o referido contrato. Ora, neste caso, a ação a intentar pelo banco X tem de ser proposta contra ambos os cônjuges, estando perante um caso de litisconsórcio necessário8 e uma dívida comum do casal. 6

“Os pressupostos processuais são os requisitos necessários aos regular desenvolvimento da instância…”, cf. António Montalvão Machado e Paulo Pimenta, “O Novo Processo Civil”, 11ª Edição, 2009, pág. 69. 7

A legitimidade das partes é um dos pressupostos processuais, positivos, relativo às partes. No que ao processo executivo respeita, nenhuma questão se levantará quanto à legitimidade das partes se a ação for proposta por quem tenha nela interesse, designadamente pelo credor que figure como tal no título executivo, e contra quem figura no título como devedor. Exemplo: A e B celebraram um contrato de mútuo com o banco X. Em caso de incumprimento, o banco X é parte legitima na posição de exequente e A e B são partes legítimas na posição de executados. 8

O litisconsórcio é, a par da coligação, uma das figuras da pluralidade de partes. “O litisconsórcio ocorre quando se discute em juízo uma determinada relação jurídica que envolve diversos sujeitos, os quais, por isso, são partes na ação. Quer dizer, à unicidade da relação controvertida corresponde uma pluralidade de partes”, cf. António Montalvão Machado e Paulo Pimenta, “O Novo Processo Civil”, 11ª Edição, 2009, pág. 78. Acresce que, o litisconsórcio


Assim, e mantendo como base o exemplo referido, no âmbito de execução proposta pelo banco X contra A e B, em que é penhorado o imóvel sobre o qual versa a garantia real do exequente (hipoteca) nenhum problema se levanta. As partes são legítimas, o crédito encontra-se garantido por garantia real e, nesse caso, a penhora inicia-se, nos termos do nº 1 do artigo 752º do CPC, sobre o bem sobre o qual incide a garantia. Uma vez apresentado a registo, pelo Agente de Execução, o pedido de penhora, nos termos do nº 1 do artigo 755º do CPC, nenhum outro entendimento poderá adotar o conservador, pelos elementos que se indicam, que não seja o da feitura da inscrição de penhora9 sobre o imóvel a título definitivo10. Já no que ao processo de insolvência respeita, também aqui podemos ter a insolvência de ambos os cônjuges, prevista e regulada nos artigos 264º a 266º do CIRE. Neste caso, trata-se de um mecanismo processual de coligação11 (ativa ou passiva, consoante estejamos perante a apresentação de ambos os cônjuges à insolvência ou de contra eles ser instaurado um processo de insolvência). Assim, também aqui não suscitará grandes dúvidas a apreensão, por exemplo, de um imóvel comum a favor da massa insolvente. Temos a declaração de insolvência de ambos os cônjuges, num mesmo processo, logo o imóvel será apreendido na sua totalidade à ordem da massa insolvente. Os problemas (maiores) surgem quando se pretende, no âmbito da execução, a penhora de bens comuns do casal ou da meação do executado nesses mesmos bens ou a apreensão a favor da massa insolvente, no processo de insolvência, de bens comuns do casal. “Os bens comuns do casal, no regime de comunhão, ou do ex-casal previamente à partilha decorrente da dissolução do vínculo conjugal, integram um património coletivo,

pode ser voluntário (ou facultativo) e necessário (ou forçoso). Como o próprio nome parece indicar, no primeiro caso a pluralidade de partes resulta da vontade do ou dos interessados; enquanto no segundo caso a pluralidade de partes é obrigatória, sendo que esta obrigatoriedade pode resultar da lei (litisconsórcio necessário legal), do negócio (litisconsórcio necessário convencional) ou até da natureza da relação controvertida (litisconsórcio necessário natural). 9

Os factos sujeitos a registo são os que constam dos artigos 2º e 3º do Código de Registo Predial ou em qualquer lei avulsa. Ora a alínea n) do n.º 1 do sobredito artigo 2º sujeita a registo a penhora. 10

Seguindo-se, nos termos previstos no CPC, a elaboração do auto de penhora pelo Agente de Execução, a citação após penhora dos executados, e a afixação do edital de imóvel penhorado pelo Agente de Execução, ato este que, na prática, consubstancia a apreensão do imóvel penhorado. 11

A coligação, como se adiantou, é a outra espécie, para lá do litisconsórcio, de pluralidade de partes. A distinção face ao litisconsórcio reside no seguinte: na coligação, há pluralidade de partes e pluralidade correspondente de relações materiais controvertidas, ao passo que, como vimos, no litisconsórcio há uma unicidade da relação controvertida.


cabendo a cada cônjuge um único direito sobre o mesmo o qual não poderá ser, ainda que idealmente, dividido”12. É aqui que reside a grande questão. Como anteriormente se adiantou, os bens comuns do casal estão, nos termos do disposto no artigo 1695º do CC, especialmente afetos à satisfação das dívidas comuns do casal. Sendo que, nos termos do art. 1696º do CC, a meação nos bens comuns apenas responde, subsidiariamente, isto é, caso os bens próprios do devedor não se mostrem suficientes para fazer face à dívida de sua exclusiva responsabilidade. Além de que, apesar de dizermos que a meação do imóvel, de que cada cônjuge é titular, corresponde a um meio do mesmo, é impossível dividir o imóvel. Ou seja, cada cônjuge tem direito a uma metade ideal do imóvel, a qual não é identificável, autonomizável, dissociável do imóvel no seu todo. Em face de tal importa aferir, processualmente, como decorre a apreensão no âmbito do processo executivo e no âmbito do processo de insolvência. No âmbito do processo executivo, em execução movida apenas contra um dos cônjuges, por dívida própria deste, e na falta de bens próprios suficientes do executado, o exequente poderá requerer a penhora do imóvel no seu todo, enquanto bem comum do casal. Por seu turno, nos casos em que se mostra dissolvida a comunhão conjugal mas em que ainda não ocorreu a partilha do património conjugal, o exequente poderá optar entre a penhora do imóvel no seu todo como bem comum do casal ou a penhora da meação no património comum. Assim, optando o exequente pela penhora do imóvel no seu todo observar-se-á disposto no artigo 740º do CPC. Isto é, o Agente de Execução efetuará a penhora nos termos do nº 1 do artigo 755º do CPC, fazendo a expressa referência que o imóvel é penhorado no seu todo, por se tratar de bem comum e não existirem bens próprios suficientes do executado; lavrará o competente auto de penhora e, para além da citação/notificação após penhora do executado irá citar o cônjuge para que este, no prazo de 20 dias, possa requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já haja sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre o bem no seu todo e adquirindo o cônjuge a qualidade processual de executado. Por seu turno, a penhora do “direito à meação” no património comum do casal realiza-se pela notificação do facto ao cônjuge, sem que a sua oponibilidade a terceiros se encontre dependente de registo (ainda que dele façam parte imóveis ou móveis

12

Cf. Acórdão TRP de 15/01/2019, Relator José Igreja Matos, Processo nº 1650/16.9T8STS-E.P1, disponível em DGSI


sujeitos a registo)13. Temos assim que, quando em causa esteja, no processo executivo, a penhora do direito à meação do executado no património conjugal, ainda que do referido património façam partes bens imóveis, a mesma é realizada com observância do disposto no artigo 781º do CPC, ou seja, unicamente através de notificação do facto ao outro cônjuge. Não há, sequer, a obrigatoriedade de sujeitar tal penhora a registo, sendo a mesma oponível a terceiros independentemente do registo. Os factos sujeitos a registo são os que constam dos artigos 2º e 3º do CRPredial ou em qualquer lei avulsa. Ora a alínea n) do nº 1 do sobredito artigo 2º sujeita a registo a penhora e a declaração de insolvência e a alínea o) do mesmo número sujeita a registo, o penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento de créditos garantidos por hipoteca. O artigo 2º não sujeita a registo a penhora sobre quinhão em património autónomo. Por isso, à primeira vista, temos de concluir que não se podem registar estas penhoras, porque a lei não prevê o seu registo. Alguma jurisprudência defende, aliás, que estas penhoras não são registáveis. No entanto, o artigo 101º, nº 1, alínea e) do CRPredial dispõe que são registados por averbamento às respetivas inscrições “a transmissão, o usufruto e a penhora do direito de algum ou de alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa …”. É este o fundamento legal pelo qual se admite o registo destas penhoras. Porém, não constituem factos sujeitos a registo obrigatório, por duas ordens de razão: 1) como a sujeição a registo não consta do artigo 2º do CRPredial não lhes é aplicável o artigo 8ºA que contém os factos sujeitos a registo obrigatório; 2) estes factos (penhoras) produzem efeitos contra terceiros independentemente de registo, porque são uma exceção ao princípio da oponibilidade, como já referimos. Em suma, no processo de execução, movido apenas contra um dos cônjuges, prosseguindo-se com a penhora de imóvel comum procede-se à penhora e à citação do cônjuge para, querendo, requerer a separação de bens; prosseguindo-se, antes, pela penhora do direito à meação, nos casos de dissolução da comunhão conjugal, a mesma obtém-se apenas mediante a notificação de tal facto ao cônjuge (sem obrigatoriedade de registo).14

13

Cf. Acórdão TRC de 28/06/2017, Relator Maria João Areias, Processo nº 947/15.0T8CBR-B.C1, disponível em DGSI, e Parecer do IRN, Pº nº R.P. 52/2010 SJC-CT

14

Importa reforçar que, mesmo nos cassos de dissolução da comunhão conjugal, mostra-se possível ao exequente requerer a penhora do imóvel no seu todo. Bastará que expressamente se declare, no título para registo, que os bens ou direitos ainda não foram partilhados e que os mesmos são penhorados como bens comuns do casal. Esta declaração deve ser feita pelo Agente de Execução e deve conter a indicação precisa de que não houve lugar à partilha e de que, portanto, o bem ou direito é penhorado como bem comum do casal, seguindo-se o disposto no artigo 740º do CPC, através do qual se assegura a intervenção do cônjuge, titular inscrito, nomeadamente para efeitos do artigo 34º do CRPredial


Vejamos agora o que sucede no âmbito do processo de insolvência. “Em processo de insolvência de um dos cônjuges casado em regime de comunhão de bens (ou, sendo divorciado, sem que tenha havido partilha dos bens comuns do casal), haverá lugar à apreensão de todos os bens do insolvente, incluindo os seus bens próprios e os comuns do casal”15. Assim, irá aplicar-se, com as devidas adaptações o regime supra referido a propósito da penhora de bens comuns do casal em execução movida quanto a um dos cônjuges. De acordo com o artigo 149º do CIRE, proferida a sentença declaratória da insolvência procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos. A massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artigo 46, nº 1 do CIRE). Sem prejuízo do estabelecido no artigo 150º do CIRE quanto à apreensão e entrega dos bens, serão aplicáveis as disposições do CPC previstas para o processo executivo, nomeadamente o regime da penhora. Tal significa que estando em causa a insolvência de um dos cônjuges casado no regime de comunhão de bens (ou se, sendo divorciado, não tiver sido realizada a partilha dos bens comuns do casal), haverá lugar à apreensão de todos os bens do insolvente, incluindo os seus bens próprios e os comuns do casal. Nesse caso, a apreensão dos bens comuns que tenha lugar na insolvência de um só dos cônjuges, embora lícita, deve no entanto ser seguida da citação do cônjuge que não seja parte no processo para que este venha requerer a separação dos bens, em conformidade com o disposto no atual artigo 740º do CPC, disposição que se entende subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 17º do CIRE16 17. 15

Cf. Acórdão TRL de 19/02/2019 Relator Maria da Conceição Saavedra, Processo nº 17/14.8TJLSB-E.L1-7, disponível em DGSI

16

17

Cf. Parecer N.º 34/CC /2014 do IRN, PROC.: C. P. 20/2014 STJ-CC, disponível no site do IRN

Existem duas correntes no que respeita à necessidade de citação do cônjuge do insolvente aquando da apreensão de bens comuns. Além desta que defende o dever de citação, por aplicação subsidiária do regime do CPC, temos uma outra, “assumidamente tributária, quanto à matéria, da ideia da autossuficiência do sistema interno do direito da insolvência, a questão dilucida se por apelo às soluções que decorrem da exclusiva aplicação das normas que no CIRE definem o regime da restituição e separação de bens da massa insolvente, maxime o disposto no art. 141.º. Aí se estabelece, na verdade (cfr. n.º 1, al. c), que, dentre outras situações, à reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns se aplicam as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos (cfr. arts. 128.º e ss.). Decorrentemente, para os seguidores desta doutrina, terá que ser o cônjuge não insolvente, uma vez realizada a apreensão, a deduzir no processo, por sua própria iniciativa, a reclamação tendente a operar a referida separação, mediante a apresentação de requerimento endereçado ao administrador da insolvência. Quer dizer: nem ao administrador da insolvência, nem ao juiz do processo, nesta perspetiva, sentido), adotando ou ordenando as diligências para tanto adequadas (promovendo, nomeadamente, a citação respetiva, a fim de vir requerer a separação dos bens comuns), que ao consorte do insolvente, conquanto reconhecidamente afetado pela apreensão, seja dada oportunidade de intervir no processo”, cf. Parecer do IRN supra referido.


Note-se que, em sede de registo predial, neste caso, só poderá registar-se definitivamente visto que só isso permite dar por verificada aquela intervenção do contitular inscrito cujo respeito pela regra do trato sucessivo reclama contanto que se comprove, ou bem que do cônjuge se promoveu a citação nos indicados termos, ou que, não o tendo sido, ou bem que a separação dos bens foi pelo juiz ordenada (artigo 141º, nº 3 CIRE), ou bem que o cônjuge do insolvente por sua iniciativa deduziu a reclamação visando a separação (artigo 141º, nº 1, b) CIRE). A falta da comprovação de uma qualquer dessas vicissitudes (ou formas de intervenção) determinará, por conseguinte, que o registo da declaração de insolvência, dentro do apontado condicionalismo subjetivo e objetivo, se tenha que fazer como provisório por dúvidas Em suma, no âmbito de processo de insolvência relativo a apenas um dos cônjuges, casado em regime de comunhão de bens ou, sendo divorciado, sem que tenha havido partilha dos bens comuns do casal, a apreensão de um dado imóvel em processo de insolvência deve englobar a totalidade desse imóvel operando depois, aquando da venda, a repartição do produto da venda do imóvel apreendido em função da meação conjugal que não poderá ser ignorada.

VENDA CONJUNTA ENTRE EXECUÇÃO E INSOLVÊNCIA Só após percebermos, nos termos supra referidos, o regime processual da venda em cada um dos processos em separado é que estaremos habilitados a conjugar as duas realidades. Parece confuso? Vejamos exemplos:

Exemplo 1

Exemplo 2

Exemplo 3

Determinado prédio encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial com registo de aquisição a favor de A e B, casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos. Para além do registo de aquisição incidem sobre o prédio, pela ordem cronológica a seguir identificada: o registo de hipoteca a favor do banco X, o registo de penhora sobre o prédio a favor do referido banco x, e o registo de declaração de insolvência de A (proprietário do imóvel).

Determinado prédio encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial com registo de aquisição a favor de A e B, casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos. Para além do registo de aquisição incidem sobre o prédio, pela ordem cronológica a seguir identificada: o registo de hipoteca a favor do banco X, o registo de declaração de insolvência de B (proprietária do imóvel), e o registo de penhora sobre o prédio (ou sobre o direito à meação de A) a favor do banco X.

Determinado prédio encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial com registo de aquisição a favor de A e B, solteiros, maiores. Para além do registo de aquisição incide sobre o prédio: o registo de penhora sobre o prédio a favor do condomínio e o registo de declaração de insolvência de A (comproprietário do imóvel).

Em todas estas situações, independentemente se os titulares do direito de propriedade do prédio serem ou não casados entre si, de existir ou não garantia real a favor de terceiro, de a execução ter na sua base o incumprimento do mútuo bancário ou derivar de um outro crédito, a verdade é que temos o confronto das regras do processo executivo com as regras do processo de insolvência, tenha a penhora sido registada antes ou depois da declaração de insolvência.


Assim, o primeiro ponto assente, e de fácil apreensão, é o de que, falaremos em venda conjunta e repartição do produto da venda sempre que o bem em causa, mormente o imóvel, seja propriedade de mais do que uma pessoa. Se assim não fosse, no limite, poderia suceder que a execução fosse suspensa em virtude da declaração de insolvência, e aí dúvidas não se colocariam quanto à legitimidade na transmissão do imóvel, dado que a sua venda ocorreria à ordem do processo de insolvência. A questão surge quando tem de haver repartição do produto da venda; quando temos a venda de metade do imóvel ou do direito à meação de um dos cônjuges à ordem de um processo (execução), e da outra metade ou do direito à meação do outro cônjuge à ordem de um outro processo (insolvência)18. Curioso é notar que, a lei não se refere a esta questão. Pelo menos não expressamente19. Então, como poderemos resolver a questão? Será que a solução literal é a mais benéfica para ambos os processos? Utilizando a expressão “o que é seu a seu dono”, será que a melhor solução é aplicar a lei, sem mais, e por conseguinte vender-se à ordem do processo de execução a parte que lhe respeita do imóvel e à ordem do processo de insolvência a outra parte? Pergunta-se: a ser assim, quem deverá tomar posse do imóvel e ser constituído fiel depositário? O Agente de Execução ou o Administrador de Insolvência? Será pela prioridade do registo de penhora ou da declaração de insolvência que resolvemos o problema? Claramente que a resposta àquela questão tem de ser negativa. Não seria exequível. A solução que melhor garante, por um lado, os interesses visados em ambos os processos

judiciais

e,

por

outro

lado,

os

próprios

interesses

dos

devedores/executados/insolventes é, sem margem de dúvidas, a venda conjunta do imóvel entre ambos os processos – na prática traduz-se no cenário de o imóvel ser vendido na totalidade à ordem de um dos processos, com a posterior entrega à ordem do outro processo do produto da venda correspondente. É, aliás, esta a solução que é adotada na prática. Tendo sido esta solução alcançada através da prática, da aplicação do direito adjetivo no caso concreto.20

18

Em jeito de simples referência, pois extravasa o tema do presente estudo, importa não deixar de referir que poderá igualmente falar-se em venda conjunta entre dois processos de execução (vamos imaginar, por exemplo, numa situação de compropriedade em que metade do imóvel é penhorado à ordem de um processo de execução e a outra metade à ordem de um outro processo de execução). 19

É, apenas, referida no nº4 do artigo 781º do CPC a possibilidade de se vender à ordem do processo de execução a totalidade do património ou do bem nos casos em que todos os contitulares do quinhão autónomo ou direito a bem indiviso declaram que pretendem a venda naqueles termos. 20

Porque é muitas vezes este tipo de problemas que se levantam na vida prática. Surgem os problemas e torna-se necessário arranjar para eles a melhor solução. Os Agentes de Execução e os Administradores de Insolvência, em particular, foram chamados a solucionar o problema e, com razoabilidade, a solução foi alcançada. Bastou pensar-


Esta possibilidade de venda conjunta assegura, quer o princípio da legalidade, pois não viola ou contraria qualquer norma imperativa relativa à temática, quer o princípio da celeridade e eficácia processual. Princípios basilares que norteiam ambos os processos (processo de execução e processo de insolvência). A venda em separado seria bastante prejudicial. Desde logo, estaria a dificultarse, em larga medida, a própria venda, pois a aquisição de metades em separado seria menos atrativa para o mercado/para os investidores. Gerando dúvidas e incertezas quanto à garantia de aquisição da totalidade do imóvel a qualquer interessado. Note-se: ao adquirir, por hipótese, metade do imóvel no âmbito de leilão eletrónico em processo de insolvência poderia não adquirir a outra metade do imóvel posteriormente na ação executiva. Parece difícil? Não é tanto assim, é até bem provável que tal sucedesse diz-nos a experiência em leilões eletrónicos, dada a licitação, por vezes, irresponsável que é praticada. Assim, esta venda conjunta vai obrigar a uma articulação entre ambos os processos, e em particular entre o Agente de Execução e o Administrador de Insolvência para conformação dos processos às diligências de venda. A regra mais importante é a de que: a venda só poderá ocorrer quando ambos os processos estiverem chegado a essa fase processual – no processo de execução quando tiver chegado à fase da venda e no processo de insolvência à fase da liquidação. O que a prática nos diz é que haverá, na esmagadora maioria das vezes, um primeiro impulso processual nesse sentido por parte do Agente de Execução, uma vez conhecida a declaração de insolvência, designadamente após cumprimento por parte do Administrador de Insolvência da comunicação prevista no nº 4 do artigo 88º do CIRE. O Agente de Execução, ao ser conhecida a declaração de insolvência de um dos proprietários do imóvel, terá de, nos termos do nº 1 do artigo 88º do CIRE, suspender a execução quanto ao insolvente (apenas e só quanto a este). O que vale por dizer que o Agente de Execução, nesse momento, ao efetuar a suspensão da instância quanto ao executado insolvente, irá, entre outros atos, dirigir uma notificação ao Administrador de Insolvência, informando-o que se encontra penhorado à ordem dos autos o imóvel de que o insolvente é proprietário (de metade ou do direito à meação) e que, em face da declaração de insolvência, se suspendem as diligências quanto ao referido executado. E, não raras vezes, questiona logo ali, por uma questão de cordialidade, se quiserem, sobre a disponibilidade do Administrador de Insolvência em promover-se a venda conjunta do imóvel. Certamente que aquela informação será junta aos autos de insolvência e colocada se na prática, naquilo que, com salvaguarda da legalidade, importa alcançar. Pensando-se assim, foi fácil chegar à solução/caminho.


à consideração dos credores, não havendo por regra qualquer oposição por partes destes, do próprio Administrador de Insolvência ou do juiz de insolvência. Uma vez aceite tal possibilidade irá o Administrador de Insolvência comunicar tal facto ao Agente de Execução. Então, de seguida, e tendo presente que a venda só se realiza quando tal se mostrar processualmente possível em ambos os processos, coloca-se a questão de à ordem de qual dos processos se fará a venda. E, quanto a esta questão, o entendimento varia um pouco de acordo com cada Administrador de Insolvência (segundo nos diz a experiência, os Agentes de Execução, nestes aspeto, costumam “acatar” a vontade do Administrador de Insolvência, dado que, sendo a venda preferencialmente realizada, atualmente, por via eletrónica não existe grande diferença que seja feita à ordem de um ou de outro processo). Há aqueles que desde logo indicam que preferem que a venda se realize à ordem dos autos de insolvência, e aqueles que indicam exatamente o contrário. Esta questão é relevante para efeitos de decisão de venda a lavrar em ambos os processos. Conforme referido anteriormente, no âmbito do processo executivo, chegada à fase de venda, são as partes notificadas para efeitos de pronúncia quanto ao valor de modalidade de venda, nos termos do nº 1 do artigo 812º do CPC. Sendo competência do Agente de Execução lavrar a decisão de venda. Ora, neste cenário de venda conjunta, terá a decisão de venda de conter essa expressa referência21, decorra a venda à ordem de um ou de outro processo. A decisão terá de ser clara quanto ao valor, modalidade de venda, situação de venda conjunta com repartição do produto da venda e referência à ordem de qual dos processos decorrerá a venda. No âmbito do processo de insolvência haverá sempre, pelo menos, a audição do credor com garantia real, nos termos do nº 2 do artigo 164º do CIRE. Sendo certo que, por regra é esta possibilidade colocada à consideração dos demais credores. Aqui chegados, se não houver, designadamente, oposição por qualquer dos interessados/partes no âmbito dos processos é realizada a venda mediante leilão eletrónico, à ordem do processo fixado e pelos valores base fixados. 21

Será referido algo nestes moldes: Decide a Agente de Execução que será promovida nos presentes autos, com a posterior reversão para os autos de insolvência da metade do produto da venda respeitante ao proprietário/insolvente Bruno Miguel da Silva Campos Nova (ou vice versa), a venda Fração autónoma designada pelas letras AJ, correspondente a habitação no primeiro andar, com lugar de garagem n.º 101 e arrumo n.º 108 na subcave, sito na Avenida das Ribeiras, n.º 637, Hab. 218, na freguesia de Perafita, concelho de Matosinhos, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número 394 Fração AJ e inscrito na respetiva matriz predial da união das freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo sob o artigo 10628 Fração AJ. No que ao valor de venda respeita, serão aceites propostas/licitações iguais ou superiores a 85% de 77.647,06Euros, ou seja, 66.000,00Euros, designando-se como modalidade de venda a venda mediante leilão eletrónico, nos termos do nº 1 do art. 837º do CPC. Mesmo que a venda ocorra no processo de insolvência, o Agente de Execução terá de lavrar decisão de venda, nesses termos, no processo de execução.


Uma vez realizado o leilão eletrónico, dois cenários se mostram possíveis: é vendido o imóvel, por ser apresentada proposta de valor igual ou superior ao preço base fixado; ou, por outro lado, não é lograda a venda do imóvel, por não ser apresentada proposta de valor igual ou superior ao valor base fixado. Pois bem, logrando-se a venda do imóvel, seja a venda realizada à ordem de um ou de outro processo, será previamente notificado o proponente para efeitos de depósito do preço e cumprimento das obrigações fiscais inerentes à aquisição, seguindo-se o agendamento de escritura pública ou documento particular autenticado para efeitos de transmissão do imóvel. Note-se que, como a venda é realizada à ordem de um dos processos mas com a repartição do produto da venda entre ambos os processos, não tem legitimidade para proceder à emissão do título de transmissão o Agente de Execução ou o Administrador de Insolvência, consoante a venda decorra à ordem do processo de execução ou do processo de insolvência, isoladamente. Terão ambos de intervir no título de transmissão (na esmagadora maioria das vezes é outorgada escritura pública), e declarando-se qual o valor do produto da venda que reverte para cada um dos processos. Caso não se logre, de imediato, a venda do imóvel, então manter-se-ão em curso as diligências para tentativa de venda do imóvel, designadamente por venda mediante negociação particular, até que seja lograda proposta que, sendo admissível que seja inferior ao valor base fixado, seja aceite por todos. Uma vez aceite seguem-se os passos referidos anteriormente, respeitantes ao depósito do preço e realização de escritura pública ou documento particular autenticado para transmissão do imóvel. Uma vez adjudicado o imóvel, e repartido o produto da venda, será o imóvel entregue ao adquirente pelo fiel depositário, que por regra será ou o Agente de Execução ou o Administrador de Insolvência, consoante o processo à ordem do qual foi decidida a venda na totalidade. Contudo, importa não deixar de referir que, até à venda do imóvel pode o executado/proprietário manter-se no imóvel, ficando assim constituído na qualidade de fiel depositário do mesmo, estando apenas obrigado, sob pena de ser removido do cargo, a facultar o acesso ao imóvel sempre que necessário, designadamente para efeitos de visitas a interessados. Neste cenário, e caso não seja o imóvel

entregue

voluntariamente

pelo

executado/devedor,

proceder-se-á

ao

requerimento de autorização judicial para que seja tomada a posse do imóvel pelo adquirente com recurso à força pública. CONCLUSÕES Era nossa pretensão com o presente trabalho, como ab initio se adiantou, levantar o problema da venda conjunta entre processos de execução e processos de insolvência, que surge, designadamente, quando um imóvel é propriedade de mais do que um titular


e cada um vê a sua “parte no imóvel” apreendida à ordem de um dos processos. O legislador, como de outro modo não poderia ser, criou, por um lado, o regime da ação executiva, em particular da sua fase de venda, e, por outro lado, o regime do processo de insolvência, em particular da fase da liquidação do património. Ora, quando isoladamente considerado um e outro regime vislumbra-se simples a tarefa do Agente de Execução ou Administrador de Insolvência, e dos demais intervenientes processuais, na tramitação/desenrolar do processo, mormente na fase da venda/liquidação. As questões surgem quando existe a necessidade de conjugar os dois processos, quando a situação jurídica implica o confronto dos dois regimes processuais. E, aí, e porque o nosso legislador ainda não regulou a questão, há que sermos audazes, facilitadores da justiça, e adotar o regime que melhor garanta os interesses legítimos em confronto, com salvaguarda do princípio da legalidade, dado que o legislador não regulou expressamente esta questão. Fundamento pelo qual, para a maioria dos intervenientes processuais, bem como para a nossa jurisprudência, se entende como benéfica, legalmente válida e totalmente operacional, a venda conjunta entre os processos – que se traduz na venda, por inteiro, do bem à ordem de um dos processos com a repartição do produto da venda entre ambos. O cenário oposto, ou seja, da venda fracionada entre os processos, além de dificultar, desde logo, a própria venda, não é a solução que melhor satisfaça os interesses envolvidos, acarretando, do ponto de vista prático, inúmeros constrangimentos que se poderão traduzir em suspeições no âmbito dos processos. Sendo que, o que se busca, é transparência, certeza e segurança jurídica. Em síntese, e após serem equacionadas as várias situações onde este problema pode surgir, conclui-se que a venda conjunta se revela, efetivamente, a melhor solução processual. Assim sendo, entende-se que se impunha a regulação desta questão pelo nosso legislador, para que não fosse deixada a tomada de posição ao livre arbítrio de cada Agente de Execução ou Administrador de Insolvência, dando lugar a soluções totalmente distintas em processos em igualdade de circunstâncias. É certo que, a independência dos processos não permite, pelo menos nos moldes que hoje temos, que seja proferido pelo juiz de um dos processos um despacho que produza efeitos no outro processo – o que poderia ser uma solução à primeira vista. Em face deste quadro legal, e salvo o devido respeito por entendimento em sentido distinto, em nosso modesto entender, a solução poderá passar por uma alteração do disposto no artigo 88º do CIRE, cuja epígrafe é “Ações Executivas”, e que regula o regime de ação executiva pendente contra devedor/executado após a respetiva declaração de insolvência, com a introdução de um novo número, que precederia o atual número dois do referido preceito, passando o mesmo a dispor o seguinte: “2 – Nos casos previstos na parte final do número anterior, e caso os bens relativamente aos quais prossiga a execução integrem igualmente, na proporção do respetivo direito, a massa insolvente


do devedor, deverão as diligências de venda ocorrer relativamente à totalidade do bem à ordem do processo de execução, com a posterior repartição do produto da venda entre ambos os processos”. Dado este mote, para uma possível alteração legislativa que ditaria a solução da querela existente, torna- se importante justificar o porquê de se optar pela venda no âmbito do processo de execução, e não no âmbito da insolvência. De referir que, se, para solucionar o problema, se continuar a deixar a opção entre os processos no livre arbítrio dos aplicadores da lei, então continuaremos a ter processos em que se procederá de um ou de outro modo conforme a posição de cada Agente de Execução e de cada Administrador de Insolvência – o que for mais benevolente vai aceitar, sem grandes problemas, que a venda decorra à ordem do outro processo. E, aí, não podemos dizer que o problema se mostre inteiramente resolvido. Para tanto é necessário que se fixe à ordem de que processo a venda decorrerá. Nesta linha de pensamento, se defendemos que a venda conjunta, a ocorrer, obriga a que ambos os processos se encontrem nessa fase processual – venda/liquidação -, então, cai por terra um eventual argumento de que a venda na insolvência poderia representar alguma celeridade processual por ser um processo urgente. Como tal, e dado que o processo de insolvência apenas tem, por regra, a efetiva intervenção do insolvente e dos seus credores, ao passo que no processo de execução já teremos a intervenção do executado/insolvente e dos demais executados/titulares do direito sobre o bem a vender, parece-nos que poderá, com este argumento, conceberse que a venda possa realizar-se à ordem do processo de execução. Mas note-se, a opção por um ou outro processo, em termos prático - processuais, poderá considerar-se indiferente, dado que a venda decorrerá e, após a mesma, haverá sempre a intervenção de ambos na transmissão do imóvel mediante a outorga de escritura pública ou documento particular autenticado. Não se alcança qualquer relação benefício vs prejuízo na opção por um ou outro processo. Importante é, a nosso ver, que seja determinado à ordem de que processo se realiza a venda ou, pelo menos, critérios precisos para a sua determinação, não deixando (ou, deixando pouca) margem para o livre arbítrio. E, agora sim, em conclusão, de referir uma vez mais que esta solução é perfeitamente passível de discussão, e certamente que não é a única possível. Contudo, entendemos que poderá ser uma solução possível e que se justifica o seu estudo/análise pelo nosso legislador.


Insolvência e Covid-19: o Insolvência e Covid-19: O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas Processo Extraordinário de (PEVE) e o Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento Viabilização de Empresas (SISPACSE) (PEVE) e o Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE) Andreia Madalena Magalhães Jesus Estudante do mestrado em Solicitadoria da ESTG/P.PORTO

Fábio André Coelho da Silva Estudantes do mestrado em Solicitadoria da ESTG/P.PORTO

Maria João Machado Docente e membro do CIICESI da ESTG/P.PORTO


Resumo: Para fazer face à situação pandémica causada pela doença Covid-19, as respostas do Direito da Insolvência português foram diversas, desde a criação de novos regimes jurídicos ao fortalecimento doutros já implementados. Face à necessidade de prestar apoio a empresas e a famílias com sérias dificuldades no cumprimento das obrigações assumidas, foram criados dois mecanismos recuperatórios: o Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE), exclusivamente dirigido às empresas, e o Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE), unicamente aplicável a pessoas singulares. Palavras-chave: PEVE; SISPACSE; Economia; Reequilíbrio Financeiro; Covid-19. Abstract: To face the pandemic situation of the Covid-19 disease, the responses of Portuguese Insolvency Law have been diverse, from the creation of new legal regimes to the strengthening of already implemented regimes. Given the need to provide support to companies and families strangled by the difficulties in fulfilling their obligations, two recovery mechanisms were created, among others: The Extraordinary Process for Business Feasibility (PEVE), only applicable to companies, and the Public Support System for Conciliation in Over-Indebtedness (SISPACSE), applicable exclusively to individuals. Keywords: PEVE; SISPACSE; Economy; Financial Rebalancing; Covid-19. Sumário: 1. O Programa de Estabilização Económica e Social. 2. O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE); 2.1 Entidades que podem aderir ao PEVE; 2.2 Entidades excluídas do PEVE; 2.3 Características do PEVE; 2.4 Efeitos do PEVE; 2.5 Créditos tributários e créditos da Segurança Social; 2.6 Tramitação do processo; 2.7 Credores que não constam na relação de credores – fase da adesão. 3. Breve comparação entre o PEVE e o PER. 4. O Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE); 4.1 Natureza e finalidade do SISPACSE; 4.2 Procedimento de intervenção do SISPACSE; 4.3 O papel do conciliador; 4.4 Custos e pagamentos. Considerações finais 1. O Programa de Estabilização Económica e Social A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, “para além de consistir numa grave emergência de saúde pública a que foi necessário dar resposta no plano sanitário, provocou inúmeras consequências de ordem económica e social, que igualmente têm motivado a adoção de um vasto leque de medidas excecionais”1. É o reconhecimento deste muito grave contexto que conduz à aprovação da Resolução do Conselho de Ministros nº 41/2020, que, com data de 6 de junho, lançou o Programa de Estabilização Económica e Social. São seus objetivos principais apoiar as empresas e os trabalhadores num momento de paralisação da sua atividade; incentivar o regresso da atividade profissional; compensar a quebra de rendimentos entretanto ocorrida; no que diz respeito diretamente às empresas, são criados diversos mecanismos de apoio quer à 1

Preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros nº 41/2020, de 6 de junho de 2021.


liquidez, quer à capitalização; simplificar e agilizar a atuação da Administração Pública e dos tribunais em tudo o que seja necessário para debelar os efeitos da pandemia e acelerar a retoma económica. A Resolução assenta, assim, em quatro eixos: “um primeiro eixo incidente sobre temas de cariz social e apoios ao rendimento das pessoas, sobretudo aquelas que foram mais afetadas pelas consequências económicas da pandemia; um segundo eixo relacionado com a manutenção do emprego e a retoma progressiva da atividade económica; um terceiro eixo centrado no apoio às empresas; e, por um fim, um eixo de matriz institucional”2. Entre outras medidas, estabeleceu como objetivos a “criação de um novo processo extraordinário de viabilização de empresa (PEVE), de caráter excecional e temporário, que pode ser utilizado por qualquer empresa que, não tendo pendente um processo especial de revitalização, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente ou atual em decorrência da crise económica provocada pela pandemia da doença COVID-19, desde que a empresa demonstre que ainda é suscetível de viabilização”3 e a “criação de procedimento de resolução alternativa de litígios aberto a pessoas singulares, que se encontrem em situação de dificuldade séria no cumprimento de obrigações pecuniárias assumidas”4. 2. O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE) O PEVE, segundo o artigo 1.º, al. d) da Lei nº 75/2020, de 27 de novembro, que o aprovou, foi concebido para viabilizar empresas afetadas pela crise económica decorrente da pandemia da doença COVID-19. Destina-se, portanto, às empresas que, comprovadamente, se encontrem em situação económica difícil5 ou em situação de insolvência iminente6 ou atual em virtude da pandemia da doença COVID-19, mas que ainda sejam suscetíveis de viabilização. Assim é caracterizado o âmbito objetivo de aplicação do PEVE (artigo 6º, nº 1). O processo tem caráter urgente, assumindo prioridade sobre a tramitação e julgamento de processos de natureza congénere”7 (artigo 6º nº 6). O seu termo impede a empresa de a ele recorrer novamente (Artigo 9º, nº 15). Este mecanismo está à disposição dos interessados desde 28 de novembro de 2020, teve o seu termo inicialmente previsto para 31 de dezembro de 2021, mas, “prevenindo um

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Idem, ibidem. Idem, ibidem. 4 Idem, ibidem. 5 Podemos definir a “situação económica difícil” recorrendo artigo 17º-B do CIRE, previsto para o processo especial de revitalização (PER): “encontra-se em situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.” 6 No CIRE não existe definição para “insolvência iminente”, muito embora a mesma esteja prevista no nº 4 do artigo 3º do CIRE quando se equipara à situação de insolvência atual (a situação do “devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”) a que seja meramente iminente. A jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes em considerar como tal a situação em que seja previsível a possibilidade de a insolvência ocorrer a curto prazo. 7 Resolução do Conselho de Ministros nº 41/2020, de 6 de junho de 2021. 3


aumento inevitável do recurso à tutela jurisdicional” consequente à cessação das medidas de apoio, a sua vigência foi prorrogada pelo DL 92/2021, de 8 de novembro, até 30 de junho de 2023. 2.1 Entidades que podem aderir ao PEVE Quanto ao âmbito subjetivo, podem aderir ao PEVE as empresas8 que cumpram os pressupostos identificados no ponto anterior. Temos que como tal considerar, desde logo, as sociedades comerciais, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou o empresário em nome individual. Estes sujeitos, recorda-se, têm que se encontrar em situação económica difícil ou de insolvência, iminente ou atual, em virtude da COVID-19, além de que, à data da apresentação do requerimento, não devem ter pendente processo especial de revitalização ou processo especial para acordo de pagamento e devem reunir (a) as condições necessárias para a sua viabilização; e (b) de acordo com a escrituração legal obrigatória, demonstrar ter, em 31 de dezembro de 2019, um ativo superior ao passivo. Apesar da exigência formulada de uma situação patrimonial positiva, são significativas as exceções permitidas. Assim, qualquer micro ou pequena empresa que não tenha, em 31 de dezembro de 2019, um ativo superior ao passivo, também pode recorrer ao PEVE desde que: a) Não tenha pendente processo de insolvência, processo especial de revitalização ou processo especial para acordo de pagamento à data da apresentação do requerimento inicial; b) Tenha recebido um auxílio de emergência no âmbito do quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto da pandemia da doença COVID-19 e o mesmo não tenha sido reembolsado nos termos legais; ou c) Esteja abrangida por um plano de reestruturação ao abrigo das regras em matéria de auxílios estatais. O mesmo sucede com empresas que, não tendo em 31 de dezembro de 2019 um ativo superior ao passivo, “tenham logrado regularizar a sua situação com recurso à disposição transitória prevista no nº 1 do artigo 35º do RERE e desde que tenham procedido ao depósito tempestivo do acordo de reestruturação”. 2.2 Entidades excluídas do PEVE Ainda quanto ao âmbito subjetivo, não têm acesso ao PEVE os devedores não empresas e, de acordo com o artigo 6º, nº 8 da Lei 75/2020, de 27 de novembro, as entidades excluídas do âmbito de aplicação do CIRE, nos termos do nº 2 do seu artigo 2º: “as pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais”; “as empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e os organismos de 8

Para efeitos da presente lei, é considerada «empresa» toda a organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica, independentemente da natureza jurídica do seu titular (art. 6º, nº 2 da Lei nº 75/2020, de 27 de novembro).


investimento coletivo, na medida em que a sujeição a processo de insolvência seja incompatível com os regimes especiais previstos para tais entidades”. 2.3 Características do PEVE Podemos extrair da Lei 75/2020 as seguintes características principais do PEVE: processo extraordinário e temporário, criado para fazer face à situação causada pela pandemia e com período de vigência delimitado (art. 6º, nº 1); destina-se a reestruturar o passivo das empresas, funcionando como um mecanismo alternativo à insolvência de empresas; processo de utilização única: não pode haver pendência de PER ou PEAP à data da apresentação do requerimento (art. 6º, nº 3); processo com carácter urgente, inclusive nas fases de recurso, caso existam, assumindo prioridade sobre a tramitação e julgamento de processo de insolvência, de processo especial de revitalização e de processo especial para acordo de pagamento (art. 6º, nº 6); aplicação do CIRE em tudo que não seja incompatível com a sua natureza e, subsidiariamente, o Código do Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições da lei 75/2020 (art. 6º, nº 7); no PEVE não existe uma fase de reclamação de créditos; goza de prioridade sobre a tramitação e julgamento de processos da mesma natureza; a homologação do acordo de viabilização confere às partes subscritoras benefícios fiscais (art. 14º) e isenção de custas processuais (art. 15º). 2.4 Efeitos do PEVE Após a nomeação do Administrador Judicial Provisório, são vários os efeitos a considerar: não podem ser instauradas quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa; até ao trânsito em julgado da sentença de homologação ou não homologação, ficam suspensas, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja homologado o acordo de viabilização, salvo quando este preveja a sua continuação ou quando os créditos em causa naquelas ações não estejam abrangidos pelo acordo; a empresa fica impedida de praticar atos patrimoniais de especial relevo sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório; os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência da empresa suspendem-se na data de publicação do mencionado despacho desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja homologado o acordo de viabilização; os processos de insolvência em que seja requerida a insolvência da empresa entrados depois da publicação do despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório suspendemse; ficam também suspensos todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa até à prolação da sentença de homologação ou de não homologação. Até à prolação da sentença de homologação ou de não homologação, não pode ser suspensa a prestação dos seguintes serviços públicos essenciais (Artigo 8º, nº 8): água, energia


elétrica, gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados, comunicações eletrónicas, serviços postais, recolha e tratamento de águas residuais e gestão de resíduos sólidos urbanos. 2.5 Créditos tributários e créditos da Segurança Social O PEVE apresenta, em comparação com outros regimes semelhantes, um regime vantajoso no que respeita aos créditos tributários e da Segurança Social. Embora não sejam permitidas reduções por via do PEVE aos créditos tributários e da segurança social, admitese a redução da taxa de juros moratórios; os créditos podem ser pagos em prestações mensais e iguais, até ao limite máximo de 150 prestações (art. 13º, nº 1 da Lei 75/2020 e 196º do CPPT9); o valor da prestação mensal não pode ser inferior a 102€ (1 UC), ou, caso a dívida seja superior a 51.000,00€, a prestação mensal não pode ser inferior a 1020€ (10 UCs); redução da taxa de juros de mora, no âmbito de acordo homologado conducente à consolidação financeira da empresa (art. 13º, nº 2). Em relação a taxa de juros de mora, não são cumuláveis com as demais reduções previstas noutros diplomas, e traduzem-se nos seguintes montantes (art. 13º, nº 3): a) 25 % em planos prestacionais de 73 até 150 prestações mensais; b) 50 % em planos prestacionais de 37 até 72 prestações mensais; c) 75 % em planos prestacionais até 36 prestações mensais; d) Totalidade de juros de mora vencidos, desde que a dívida se mostre paga nos 30 dias seguintes à homologação do acordo. 2.6 Tramitação do processo O processo inicia-se com a apresentação de requerimento no Tribunal competente para declarar a sua insolvência, com os seguintes documentos (art. 7º, nº 1): Declaração escrita e assinada pelo órgão de administração da empresa que ateste que a situação em que se encontra é devida à pandemia da doença COVID -19 e que reúne as condições necessárias para a sua viabilização; cópia dos documentos a que aludem as alíneas b) a i) do nº 1 do artigo 24º do CIRE10; relação por ordem alfabética de todos os credores, incluindo condicionais, com indicação dos respetivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, subscrita e datada, há não mais de 30 dias, pelo órgão de administração da empresa e por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida; acordo de viabilização, assinado pela empresa e por credores que representem pelo menos as maiorias de votos previstas no nº 5 do artigo 17º-F do CIRE.

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Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL nº 433/99, de 26 de outubro.

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Alíneas b) a j) do n.º1 do artigo 24.º do CIRE, fruto da alteração aprovada pelo artigo 2.º da Lei 9/2022, de 11 de janeiro.


Recebidos os documentos, o juiz nomeia de imediato, por despacho, o administrador judicial provisório (art. 7º, nº 3) e procede à publicação, na Área de Serviços Digitais dos Tribunais (https://tribunais.org.pt), da relação de credores e do acordo de viabilização (art. 7º, nº 3). Decorre então o prazo de 15 dias para impugnar a relação de credores e/ou requerer a não homologação do acordo (art. 9º, nº 1). No mesmo prazo, o administrador judicial provisório emite parecer sobre se o acordo oferece perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa (art. 9º, nº 3). O juiz dispõe, então, do prazo de 10 dias para decidir sobre as impugnações formuladas (caso existam) e analisar o acordo, considerando as pronúncias dos credores e o parecer do administrador judicial provisório. Deve homologar o acordo, por sentença, se este, cumulativamente: i) respeitar as maiorias previstas no nº 5 do artigo 17º -F do CIRE; ii) apresentar perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa; iii) não subsistir alguma das circunstâncias previstas nos artigos 215º e 216º do CIRE. A decisão de homologação vincula a empresa, os credores subscritores do acordo e os credores constantes da relação de credores, mesmo que não hajam participado na negociação extrajudicial (art. 9º, nº 9). A não homologação acarreta o encerramento do processo de viabilização e a extinção de todos os seus efeitos (art. 9º, nº 11). Existe nesta fase, e apenas nesta, a possibilidade de recurso da decisão de homologação ou não homologação (art. 9º, nº 10). Para efeitos processuais, o valor da causa é de 30.000,01€, o que significa que as partes deverão ser sempre representadas por advogado. 2.7 Credores que não constam na relação de credores – fase da adesão Os credores que não constem na relação de credores possuem o prazo de 30 dias, contados da publicitação da decisão de homologação do acordo de viabilização, para, por mera declaração, manifestarem no processo a sua intenção de aderir ao acordo homologado. A empresa é notificada das declarações dos credores, devendo, no prazo de cinco dias, informar se aceita a adesão destes ao acordo. O silêncio da empresa equivale à recusa da adesão dos credores. 3. Breve comparação entre o PEVE e o PER O PEVE e o PER têm características muito semelhantes e são poucas as diferenças que podemos encontrar entre ambos os regimes. Há até quem ache o PEVE desnecessário e mal formulado11. 11

“A verdade é que também resulta estranha a sistematização. O art. 9º, subordinado à epígrafe “[t]ramitação” e com os seus quinze números, é ilustrativo. Se ainda é possível conceder que umas se relacionam, pelo menos remotamente, com a tramitação, como as que versam recursos (cfr. art. 9º, nºs 5 e 10) ou os efeitos do acordo de viabilização (cfr. art. 9º, nº 9), outras estão claramente fora de sítio, como as que incidem sobre a remuneração do administrador judicial provisório (cfr. art. 9º, nº 12), o valor da causa (cfr. art. 9º, nº 13) e o incumprimento do acordo de viabilização (cfr.


De forma geral, podemos apontar as seguintes diferenças: - O PEVE destina-se exclusivamente a empresas em situação de crise provocada pela pandemia, enquanto o PER se aplica independentemente da causa da crise; - O PEVE tem caráter temporário e natureza extraordinária, enquanto o PER tem caráter permanente; - Em ambos os prazos são curtos e os procedimentos são simples, mas no PEVE os prazos são ainda mais curtos e os procedimentos são mais simples; - O PEVE tem prioridade sobre outros processos urgentes, processo de insolvência, PER e PEAP; - Existe isenção de custas processuais no PEVE, enquanto no PER há lugar ao seu pagamento (art. 17º-F, nº 12 do CIRE); - No PEVE não existe fase de reclamação de créditos, ao passo que no PER os credores têm 20 dias para reclamar créditos (art. 17º-D, nº 2 do CIRE). - O termo do PEVE impede a empresa de voltar a recorrer ao mesmo, enquanto no caso do PER a mesma proibição só impende sobre a empresa por dois anos (art. 17º-G, nº 8 do CIRE). 4. O Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE) O SISPACSE, aprovado pelo DL nº 105/2020, de 23 de dezembro e regulamentado pela Portaria nº 86/2021, de 16 de abril, é um mecanismo extrajudicial que visa promover a resolução alternativa de litígios12 entre o devedor e os seus credores. O SISPACSE constrói-se como instrumento complementar, mas não substitutivo, do Plano de Ação para o Risco de Incumprimento e do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, previstos no DL nº 227/2012, de 25 de outubro13. Podem recorrer ao SISPACSE, tal como determina o artigo 2º, nº 1 do DL nº 105/2020, de 23 de dezembro, os “devedores, residentes em território nacional, que se encontrem numa situação de mora, na sua iminência, ou de não cumprimento definitivo de obrigações de natureza pecuniária”. O SISPACSE apresenta uma particularidade quando comparado com a maioria dos instrumentos jurídicos do foro da insolvência: aplica-se, única e exclusivamente, a pessoas singulares, independentemente de atuarem na qualidade de consumidores.

art. 9º, nº 14). Transmitem ainda a ideia de alguma pressa na disposição do articulado as referências ao PEAP ou às normas do PEAP [cfr., respetivamente, art. 6º, nº 3 e nº 4, al. a), e art. 9º, nº 11], que estão, evidentemente, deslocadas, dado que o PEVE é exclusivamente aplicável a empresas. Feita uma leitura atenta da disciplina, descobrese que, afinal, o PEVE não é muito mais do que uma seleção de providências já conhecidas, originárias da disciplina do PER, mais precisamente do processo de homologação de acordos extrajudiciais de recuperação da empresa, regulado no art. 17º-I do CIRE (PER abreviado)”. - SERRA, Catarina; O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE) e outras medidas da Lei nº 75/2020; Revista de Direito Comercial; páginas 7 e 8. 12 13

Preâmbulo do DL nº 105/2020, de 23 de dezembro. Idem ibidem.


Apesar de definidos os requisitos gerais de aplicação deste mecanismo legal, importa analisar uma outra vertente, uma vez que o âmbito de aplicação do SISPACSE é limitado. Assim, e em conformidade com o nº seguinte do preceito legal anteriormente referido, não podem recorrer ao SISPACSE: os devedores que tenham pendentes um processo de insolvência, aquando da apresentação do requerimento; que tenham pendente um processo especial para acordo de pagamento; ou um processo especial de revitalização. Além disso, estabelece o nº 3 do mesmo preceito legal que o SISPACSE não se aplica aos créditos tributários e créditos da segurança social, bem como aos negócios jurídicos abrangidos pelo Plano de Ação para o Risco de Incumprimento e pelo Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, previstos no DL nº 227/2012, de 25 de outubro. Sobre o reduzido âmbito de aplicação, importa fazer uma reflexão e uma apreciação crítica, pelo que voltaremos a esta temática no momento próprio. 4.1 Natureza e finalidade do SISPACSE O SISPACSE, tal como já foi referido, é um sistema público de resolução alternativa de litígios, que permite ao devedor e aos seus credores negociar, a fim de obter uma solução adequada aos termos do litígio. Além do referido, o SISPACSE é de adesão voluntária e promove a adoção de soluções puramente conciliatórias sem a intervenção do tribunal. A gestão do SISPACSE compete à Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ). A DGPJ deve, de modo a gerir eficazmente este sistema público, organizar listas públicas de conciliadores, que se encontram vinculados ao dever de confidencialidade relativamente a toda a informação de que tomem conhecimento por força do exercício das suas funções. 4.2 Procedimento de intervenção do SISPACSE O SISPACSE é um processo célere, mas exigente face a alguns trâmites necessários. De modo a haver a intervenção do SISPACSE, o devedor que preencha os requisitos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 2º do DL nº 105/2020, de 23 de dezembro pode requer, junto da DGPJ, a intervenção deste sistema. Importa referir que o sujeito passivo deve requerer a intervenção do sistema público relativamente ao cumprimento de obrigações unicamente de natureza pecuniária. Por sua vez, este requerimento deve ser feito através de um formulário próprio disponibilizado no sítio da internet da DGPJ. No referido formulário, o devedor deve indicar o nome completo e os dados de contacto dos seus credores. Além disso, deve fazer referência ao valor e à data de vencimento dos créditos, bem como os respetivos garantes, se for o caso. Apresentado o formulário, e em conformidade com o artigo 4º, nº 1 do referido DL, é nomeado, pela DGPJ, no prazo de dois dias úteis, um conciliador que acompanha todo o processo.


O processo tem início com uma sessão informativa obrigatória, que tem como finalidade esclarecer o devedor e os seus credores sobre os objetivos a alcançar através do SISPACSE. Além disso, as partes são elucidadas sobre quais as técnicas a utilizar, bem como qual a eficácia jurídica dos acordos concluídos. Por forma a agendar a sessão obrigatória, o conciliador notifica o devedor e os credores identificados no formulário para comparecer. Esta sessão realiza-se no prazo de cinco dias. Como se pode verificar, desde a nomeação do conciliador até à realização da sessão informativa existe um lapso temporal de sete dias. Assim, facilmente se pode concluir que o SISPACSE é um processo célere e dotado de meios capazes de solucionar alguns problemas ao devedor. A não comparência injustificada do credor na sessão informativa determina, tal como refere o artigo 6º, nº 3, o agravamento em 75% das taxas de justiça devidas pela propositura, por este, de ações judiciais para a cobrança dos créditos cuja negociação seja requerida no SISPACSE, incluindo o procedimento de injunção. A pandemia promoveu, de forma acentuada, novas formas de comunicação, pelo que também neste contexto houve o cuidado de permitir que a sessão informativa se realize, para além do formato presencial, através de meio tecnológico que permita a sua realização à distância com transmissão em tempo real de som e vídeo, tal como determina o artigo 5º, nº 4 do DL em estudo. Esta sessão tem um papel preponderante para o processo, uma vez que é neste momento que o credor deve declarar se aceita, ou não, negociar com o devedor no âmbito do SISPACSE. Realizada a sessão, o resultado da mesma é obrigatoriamente reduzido a escrito e deve ser subscrito por todos os intervenientes quando a sessão se realize presencialmente. Se a sessão decorreu através de meio tecnológico, então deve ser acompanhado de registo de som e vídeo das manifestações de vontades dos envolvidos. O objetivo desta subscrição, ou, por outro lado, manifestação de vontade, serve como atestado para aferir se o procedimento segue para negociações. Importa referir que, caso o devedor seja declarado insolvente ou se apresente à insolvência, nos termos do disposto no artigo 28º do CIRE, a processo especial de revitalização ou a processo especial para acordo de pagamento, o procedimento cessa de imediato, tal como determina o artigo 4º, nº 5. 4.3 O Papel do conciliador O conciliador é um profissional habilitado a usar técnicas que promovam a contratualização de soluções justas e equilibradas. O conciliador nomeado no âmbito do SISPACSE para acompanhar o devedor promove as diligências necessárias junto dos credores no sentido de ser alcançado acordo que satisfaça


os interesses de todas as partes envolvidas. Ademais, o conciliador deve atuar de modo imparcial, mas sem deixar de propor as soluções que julgue mais adequadas para a justa composição do litígio. Perante isto, e em conformidade com o artigo 7º, nº 2, é da competência do conciliador informar o devedor dos seus direitos, deveres e, além disso, acompanhá-lo nas negociações com os credores. Por outro lado, cabe também na esfera de competências do conciliador notificar os credores da existência do procedimento do SISPACSE, bem como realizar a sessão informativa. Além disso, cabe também ao conciliador auxiliar os intervenientes, dirigir as negociações com a devida imparcialidade e, bem assim, propor soluções que se afigurem adequadas tendo em vista o alcance de um acordo, salvaguardando os interesses de todos os envolvidos. Por sua vez, e quando não é possível alcançar um acordo, cabe ao conciliador informar a DGPJ da quebra das negociações. Como já se referiu anteriormente, é possível concluir que o conciliador tem um papel preponderante neste mecanismo jurídico, mas, ao mesmo tempo, difícil. Apesar de estar a acompanhar o devedor nas negociações junto do credor, o conciliador deve manter a urbanidade e a imparcialidade, a fim de levar as negociações a bom porto. Importa agora referir quem pode exercer a atividade de conciliador. Em conformidade com o artigo 9º, os mediadores dos sistemas públicos de mediação geridos pela DGPJ; os mediadores inscritos nas listas de mediadores dos julgados de paz; os mediadores que se encontram inscritos na lista a que se refere a alínea e) do nº 1 do artigo 9º da Lei nº 29/2013, de 19 de abril14; os advogados; os solicitadores; as entidades reconhecidas para prestar apoio no âmbito do sobre-endividamento, ao abrigo do nº2 do artigo 16º-C do Decreto-Lei nº 201/2003, de 10 de setembro, na sua redação atual. Os interessados em participar como conciliadores no âmbito do SISPACSE devem manifestar a sua disponibilidade para tal junto da DGPJ. Esta é mais uma atividade solicitada aos solicitadores, permitindo que integrem as listas de conciliadores, a fim de promover, com urbanidade, as devidas negociações. Aliás, tal como determina o artigo 11º do diploma legal em estudo, os conciliadores que integram o SISPACSE devem assegurar, ao longo de todo o procedimento, o respeito pelos princípios da celeridade, independência, imparcialidade, legalidade e transparência. Desta forma se pretende facultar ao devedor um balão de oxigénio, uma vez que este se encontra numa situação financeira debilitada e com dificuldade em cumprir com as suas obrigações. 4.4 Custos e pagamentos O acesso à sessão informativa do SISPACSE é isento de encargos para devedores e credores, tal como determina o artigo 10º, nº 1. Contudo, o início da fase de negociações tem o custo

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Segundo o referido preceito legal, “em que tenha participado mediador de conflitos inscrito na lista de mediadores de conflitos organizada pelo Ministério da Justiça.”


único de 30 euros, sendo este custo suportado pelo devedor. O referido montante deve ser pago por documento único de cobrança, em conformidade com o referido nº 3 do mesmo artigo. Por sua vez, os honorários a pagar aos conciliadores que intervenham no âmbito do SISPACSE são suportados pela DGPJ, não onerando, assim, o devedor. Considerações finais Relativamente ao PEVE há a opinião geral de que a sua criação se mostrou desnecessária face à existência do PER. Podemos, no entanto, assinalar duas vantagens em recorrer ao PEVE que se prendem, uma com a isenção de custas e outra com a possibilidade de pagamento em prestações e a redução de taxas de juro. Contudo, este benefício é quase irrelevante, já que em outras situações de crise empresarial as empresas já podem fazer o pedido de pagamento em prestações das dívidas tributárias e das dívidas da segurança social. No âmbito da recolha de informação para esta análise ficou clara a falta de adesão ao PEVE, sendo disto justificativo o facto de o PER já ser um regime bastante conhecido e utilizado com regularidade e o PEVE não apresentar vantagens significativas ao ponto de o tornar uma opção, ou seja, apesar de apresentar algumas características interessantes, as mesmas não são suficientes na hora de escolher entre um regime e o outro. Relativamente ao SISPACSE, este apresenta algumas vantagens, mas, em contrapartida, também apresenta desvantagens. Relativamente às vantagens, importa destacar que, quanto aos credores, estes só negoceiam se quiserem e apenas subscrevem o acordo se assim o pretenderem. Além disso, o SISPACSE e o acordo estabelecido entre as partes habilitam o credor, de forma rápida e económica, a um título executivo. No que concerne ao devedor, o SISPACSE permite, tal como já foi referido, superar uma situação de risco de incumprimento, de incumprimento temporário ou incumprimento definitivo de obrigações pecuniárias, prevenindo ou regularizando uma situação de sobre-endividamento. Por outro lado, o SISPACSE apresenta algumas fragilidades. Em primeiro lugar, como se pôde verificar através da análise do DL nº 105/2020, de 23 de dezembro, o conciliador acompanha o devedor, mas, ao mesmo tempo, deve ter o dom da imparcialidade. Acresce a esta situação o facto de o processo ser desencadeado unilateralmente pelo devedor e obrigar os credores a assistirem a uma sessão informativa ministrada pelo conciliador. Estes dois fatores podem provocar alguma resistência dos credores, impedindo o SISPACSE de ter a aplicação desejada. Por outro lado, e em segundo lugar, o âmbito de aplicação do SISPACSE é reduzido, uma vez que estão excluídos os débitos pecuniários mais relevantes: dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social. Ora, dada a importância e o peso que estas dívidas têm sobre as famílias portuguesas, defendemos que o âmbito de aplicação deveria ser alargado,


permitindo que os devedores se reequilibrem financeiramente através da via negocial. Aliás, não faz sentido que as referidas dívidas estejam fora do âmbito de aplicação do SISPACSE, quando, na verdade, o credor apenas negoceia com o devedor e subscreve o acordo se assim o entender. Assim, a inclusão das dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social no âmbito deste mecanismo não vincula, de forma alguma, o credor. Tendo em consideração que o SISPACSE não é um mecanismo jurídico temporário – ao contrário, por exemplo, do processo extraordinário de viabilização de empresas -, entendemos que deve ser repensado e aprimorado, por forma a ter a devida aplicação e, consequentemente, cumprir o objetivo para o qual foi concebido: reequilibrar financeiramente o devedor, através da conciliação, de forma célere e de baixo custo. Bibliografia ALVES, Ana Rocha. O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE): necessário

ou

redundante?

15

de

dezembro

de

2020.

In

https://novalegal.pt/2020/12/15/o-processo-extraordinario-de-viabilizacao-deempresas-peve-necessario-ou-redundante/ COSTA, João Mota da. SISPACSE – Conciliação no Sobre-Endividamento. In https://vfadvogados.pt/author/joaocosta/ EPIFÂNIO, Maria do Rosário. A pandemia da COVID-19 e o Direito da Insolvência. Coimbra: Almedina. In https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/02/17/a-pandemia-dacovid-19-e-o-direito-da-insolvencia/ MOUTA, Fátima Pereira. Processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE). In https://www.advogadosinsolvencia.pt/programa-revitalizar/processo-extraordinario-deviabilizacao-de-empresas-peve RIBEIRO, Maria de Fátima. A pandemia Covid-19 e o Direito da Insolvência. Observador, 8 de maio de 2020. In https://observador.pt/opiniao/a-pandemia-covid-19-e-o-direitodainsolvencia/ SERRA, Catarina. O Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE) e outras medidas da Lei nº 75/2020. In https://www.revistadedireitocomercial.com/o-processoextraordinario-de-viabilizacao-de-empresas-peve-e-outras-medidas-da-lei-n-75/2020 Documentos Direção-Geral da Política da Justiça (DGPJ). Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento – SISPACSE. In https://dgpj.justica.gov.pt/sispacse [Consultado em 31 de maio de 2021]. Portal

do

Governo.

Perguntas

e

Respostas

sobre

o

PEVE.

In

https://www.portugal.gov.pt/downloadficheiros/ficheiro.aspx?v=%3D%3DBQAAAB%2BLCAAAAAAABAAzNDAyMAUApF1SBAUAAAA%3 D


Informações e práticas pré-contratuais no novo regime do crédito hipotecário

Informações e práticas pré-contratuais no novo regime do crédito hipotecário

Paulo Alexandre Ferreira João Licenciado em Solicitadoria e Administração pelo ISCAC de Coimbra Mestre em Solicitadora de Empresa pela ESTG de Leiria Funcionário de instituição bancária (Gestor de Clientes Empresa)


1. Introdução O presente trabalho insere-se no âmbito do Direito do Consumo e do Direito Bancário, mais concretamente propõe-se atentar as informações e práticas pré-contratuais no novo regime do crédito hipotecário, sobretudo na proteção que estas conferem ao consumidor na celebração de contratos de crédito hipotecário, o que nos conduz ao diploma central do nosso estudo, o DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho, alterado pela Lei n.º 32/2018, de 18 de julho, pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, e ainda pela Lei n.º 57/2020, de 28 de agosto1. Esta temática é sobejamente atual, não só pela novidade do diploma, como pelo facto de a problemática do sobre-endividamento caraterizar as sociedades modernas e, por conseguinte, existir a necessidade de respostas do ordenamento jurídico para conceder proteção ao consumidor (contraente mais “fraco”). A crise mundial vivida recentemente deixou marcas de desconfiança nos mercados e no sistema financeiro, sobretudo nos consumidores, pelas consequências sociais e económicas que daí advieram. Esta desconfiança foi manifestamente agravada pelo comportamento irresponsável de alguns participantes do sistema financeiro, com a concessão de crédito de forma irresponsável. Assim, o legislador comunitário decidiu intervir, na tentativa de inverter esta realidade, em especial no mercado de crédito hipotecário, pela sua importância no sistema financeiro. Nesta senda, foi emanada a Diretiva 2014/17/UE, de 4 de fevereiro, com vista a implementar um novo paradigma de concessão de crédito “responsável”, para reforço da confiança dos consumidores no mercado de crédito. Como nos propomos demonstrar, o quadro normativo visa dar resposta a duas preocupações em vertentes distintas, mas complementares, que são, por um lado, a vertente do reforço da proteção do consumidor e, por outro lado, a vertente da prevenção do incumprimento. A Diretiva 2014/17/UE, de 4 de fevereiro de 2014, “relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação e que altera as Diretivas 2008/48/CE e 2013/36/UE e o Regulamento (UE) n.º 1093/2010”2, veio dar corpo legislativo ao Livro Branco3 que identifica a necessidade do aumento da confiança dos consumidores no mercado de crédito hipotecário, sendo este um mercado muito importante na UE, não só pelo peso económico que representa no total do crédito concedido a consumidores, como por a maioria das vezes representar o maior investimento financeiro que o consumidor faz na sua vida. Concluiu a Comissão das Comunidades Europeias – atual Comissão Europeia – no referido Livro Branco que, “não pode existir um mercado eficiente sem consumidores confiantes e

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Daqui em diante iremos referir-nos a este diploma apenas como DL n.º 74-A/2017. Daqui em diante iremos referir-nos a esta diretiva apenas como Diretiva 2014/17/UE O Livro Branco foi elaborado pela Comissão Europeia (CE), em dezembro de 2007, sobre os potenciais benefícios para a economia europeia com uma maior integração dos mercados de crédito hipotecário na UE, pode ser consultado em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52007DC0807&qid=1540113147758&from=PT 2 3


bem informados, capazes de procurar e escolher o produto hipotecário que mais convém às suas necessidades” (CE, 2007, p. 5). Para aumentar a confiança dos consumidores no mercado de crédito hipotecário, e até mesmo no sistema financeiro em geral, é necessário inverter o paradigma da concessão de crédito irresponsável e “de forma autenticamente selvagem” (Frota, 2017, p. 239), para a contratação de crédito “responsável”, de acordo com a adjetivação utilizada no considerando 5 da Diretiva 2014/17/UE, e no preâmbulo do DL n.º 74-A/2017, de 23 de junho. 2. Quadro normativo atual do crédito hipotecário Concordamos com Rui Pinto Duarte quando refere que “fazer a apresentação do [novo] Regime [de crédito hipotecário a consumidores] sem ter presente a diretiva 2014/17/UE, (…), seria errado pois a interpretação do regime tem de levar em conta a Diretiva” (Duarte R. P., 2018, p. 10). No entanto, considerando que não é nosso intuito proceder a uma análise exaustiva da Diretiva 2014/17/UE, entendemos apenas relevante realçar que esta é uma diretiva de harmonização mínima, permitindo que os Estados-Membros mantenham ou introduzam disposições mais restritivas para a proteção dos consumidores. A Diretiva impõe apenas uma harmonização máxima em alguns preceitos, mais concretamente, na transposição integral e obrigatória, para o direito interno dos Estados-Membros, das disposições respeitantes à FINE e ao cálculo da TAEG. Adicionalmente, será de referir que a Diretiva 2014/17/UE estabeleceu um quadro comum comunitário aplicável em matéria de contratos de crédito aos consumidores garantidos por hipoteca ou outro direito para imóveis de habitação4. Mas, esta confere liberdade aos Estados-Membros para uma aplicação extensiva a outros contratos de crédito, nomeadamente a contratos com garantia de hipoteca sobre outros imóveis, de modo a conferir uma maior proteção aos consumidores5. Foi esta prerrogativa que o nosso legislador seguiu aquando da aprovação do DL n.º 74-A/2017, que transpôs a Diretiva 2014/17/UE (Duarte R. P., 2018, pp. 11-12), que apresenta maior abrangência no seu âmbito, incluindo todos os contratos de crédito concedidos a consumidores que sejam garantidos por hipoteca de imóvel ou outro direito relativo a imóveis, independentemente da sua finalidade. No entanto, este diploma apenas realizou uma transposição parcial da Diretiva 2014/17/UE, complementada com a aprovação do regime jurídico que estabelece os requisitos de acesso e de exercício da atividade de intermediário de crédito e da prestação

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cfr. artigo 1º da Diretiva 2014/17/UE. Considerando (13) da Diretiva 2014/17/UE.


de serviços de consultoria através do DL n.º 81-C/2017, de 07 de julho, alterado pelo DL n.º 122/2018, de 28 de dezembro. O legislador utilizou este diploma para sistematizar e agregar muitas disposições relativas ao crédito hipotecário, que se encontravam dispersas na nossa legislação, conforme se verifica pelo alargado número de revogações que determina. Desta forma, poderemos dizer que partilhamos parcialmente da opinião de Jorge Morais Carvalho, que considera que este é o primeiro diploma em Portugal que regula “de forma organizada e sistemática, os principais aspetos relacionados com o contrato de crédito habitação” (Carvalho, 2018, p. 297). E dizemos “parcialmente”, porque este regime não organiza apenas os principais aspetos do crédito habitação, mas diríamos, antes, que organiza e sistematiza os principais aspetos do crédito hipotecário, que engloba o crédito habitação, os créditos com garantia de hipoteca ou de outros direitos reais sobre imóveis (independentemente da finalidade), bem como, os contratos de locação financeira6 de bens imóveis para habitação própria permanente, quando concedidos a consumidores. Com a aprovação do DL n.º 74-A/2017, foram revogadas algumas normas do DL n.º 349/98, diploma que regula particularmente a concessão do crédito habitação, nomeadamente, as normas que se referem ao regime geral do crédito habitação, mantendo-se em vigor no que concerne ao crédito habitação bonificado, pois, apesar de já não ser possível a celebração de novos contratos ao abrigo deste regime, existem ainda contratos em execução7. Adicionalmente, regula os contratos de crédito habitação concedidos pelos empregadores aos seus trabalhadores, enquanto benefício associado, sem juros ou com TAEG inferiores às propostas ao público em geral, conforme se retira dos contratos excluídos do DL n.º 74-A/2017 (artigo 3º, als. c) e d)). Pese embora podermos considerar que atualmente a regulação do regime jurídico do crédito hipotecário esteja centralizada no DL n.º 74-A/2017, o diploma refere a necessidade de ser emanado normativo complementar pelo BdP, para definir elementos normativos, procedimentos e regras uniformes para todas as IC do sistema financeiro interno. Nesse sentido, o BdP publicou um conjunto de avisos, instruções e recomendações, cumprindo o dever regulamentar que lhe foi atribuído pelo DL n.º 74-A/2017. O Aviso do BdP n.º 4/2017, de 20 de setembro de 2017, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 184, de 22 de setembro de 2017, vem concretizar os procedimentos e critérios

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A noção de locação financeira que consta do regime jurídico do contrato de locação financeira (cfr. artigo 1º do DL n.º 149/95, de 24 de junho, e respetivas alterações), é que a locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados. Para melhor entendimento sobre este tipo de contrato, que habitualmente também é conhecido como leasing, recomendamos (Antunes J. E., 2017, pp. 516-520), (Duarte R. P., 2012, pp. 71-132) ou (Morais, 2006), entre muita outra literatura existente. 7 O regime de crédito habitação bonificado (geral e jovem) encontra-se ainda regulado pelo DL n.º 349/98, mas apenas para os contratos em vigor, por ter sido vedada a celebração de novos contratos ao abrigo deste regime desde a alteração do OE de 2002, realizada pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de maio, que alterou o OE de 2002, continuando vedada a sua celebração pelo OE de 2003, aprovado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro. Este regime foi definitivamente revogado com a aprovação do DL n.º 305/2003, de 09 de dezembro.


a observar pelos mutuantes na avaliação da solvabilidade dos consumidores8, verificandose uma maior abrangência no âmbito de aplicação deste aviso, que regula não só o crédito hipotecário, como os contratos de crédito aos consumidores celebrados ao abrigo do DL n.º 133/2009, de 02 de junho. Simultaneamente, o BdP publicou também o Aviso n.º 5/2017, em 20 de setembro de 2017, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 184, de 22 de setembro de 2017, em concretização do disposto nos artigos 5º, 14º e, bem assim, no n.º 3 do artigo 22º, todos do DL n.º 74-A/2017, onde veio definir um conjunto de regras e deveres a observar pelos mutuantes nos contratos celebrados sob a égide deste DL n.º 74-A/2017, nomeadamente, no âmbito da definição e implementação de políticas e práticas de remuneração dos trabalhadores, bem como no que respeita à concretização dos deveres de assistência e de informação ao consumidor que têm de ser cumpridos, tanto na negociação e celebração dos contratos, como durante a sua vigência. Complementarmente à implementação de políticas e práticas de remuneração dos trabalhadores, com o intuito de assegurar o cumprimento rigoroso das regras do dever de assistência ao consumidor, o artigo 6º do DL n.º 74-A/2017 prevê que as entidades mutuantes devem garantir que os seus trabalhadores possuem e mantêm um nível adequado de conhecimentos e competências, no que se refere à elaboração, comercialização e celebração de contratos abrangidos pelo referido diploma. Desta forma, em concretização do previsto no n.º 5 do artigo 6º do DL n.º 74-A/2017, a Portaria n.º 385-C/2017, de 29 de dezembro, veio estabelecer os conteúdos mínimos de formação e de conhecimento que os trabalhadores devem possuir e manter, bem como os requisitos para a formação profissional prevista na al. a) do n.º 3, do artigo 6º do DL n.º 74-A/2017. A Instrução do BdP n.º 19/2017, publicada em 15 de dezembro de 2017, tem como objetivo assegurar a harmonização e facilitar a comparabilidade da FINE. Concluindo o elencar do quadro normativo do crédito hipotecário a consumidores, é relevante referir a Instrução do BdP n.º 3/20189, publicada em 01 de fevereiro de 2018, em consonância com a emissão pelo BdP de recomendação macroprudencial no âmbito da concessão de crédito a consumidores em 26 de janeiro de 2018, ambas de âmbito de aplicação mais alargado ao crédito concedido a consumidores, onde se inclui o crédito hipotecário a consumidores. A referida recomendação macroprudencial introduz critérios de cálculo, bem como, limites concretos e mensuráveis de alguns indicadores que as IC devem observar na avaliação de

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O dever de avaliação da solvabilidade do consumidor pela IC mutuante está prevista no artigo 16º do DL n.º 74-A/2017 e no artigo 10º do DL nº 133/2009. 9 Instrução n.º 3/2018, de 01 de fevereiro de 2018, revogou a anterior Instrução n.º 15/2017, de 22 de setembro de 2017.


solvabilidade dos consumidores, nomeadamente o LTV, o DSTI, a maturidade máxima dos novos contratos e requisitos de pagamentos regulares. Complementarmente, a mencionada Instrução n.º 3/2018 veio definir os critérios de ponderação do impacto do aumento dos indexantes aplicados aos contratos de crédito com taxa variável ou taxa de juro mista10. 3. Informações e práticas pré-contratuais 3.1 Publicidade Os direitos dos consumidores estão consagrados constitucionalmente, nomeadamente no artigo 60º da CRP. Um dos direitos elencados nesta norma fundamental, mormente no seu n.º 1, é o direito à informação, e, no seu n.º 2, encontra-se consagrada a proibição de todas as formas de publicidade oculta, indireta e dolosa. Partilhamos a opinião de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que consideram que é compreensível que o texto constitucional defina uma articulação entre os direitos dos consumidores e a publicidade, por esta ser “um meio potente de promover o consumo e influenciar o consumidor” (Canotilho & Moreira, 2014, p. 783).

Determina que a

publicidade é disciplinada por lei, mas impõe diretamente uma proibição a determinadas formas de publicidade, para que esta respeite os princípios da identificabilidade e da veracidade (Canotilho & Moreira, 2014, pp. 783-784). No entanto, não podemos esquecer que a publicidade assume um papel relevante como mecanismo de divulgação de informação aos consumidores, de modo a que o consumidor esteja informado das várias propostas que o mercado oferece, promovendo desta forma a sua liberdade de escolha (Canotilho & Moreira, 2014, p. 784). Mas, devem ser estabelecidas regras para limitar a sua margem de atuação, de modo a assegurar uma devida proteção do consumidor, prevenindo a publicidade enganosa, bem como as práticas comerciais enganosas e agressivas11. O novo regime do crédito hipotecário visa um reforço da tutela dos interesses dos consumidores, onde é determinante que estes tomem a decisão da contratação do crédito de forma consciente e devidamente informada. A publicidade e a informação pré-contratual de caráter geral assumem um papel relevante na divulgação da oferta existente no mercado. E, desse modo, o DL n.º 74-A/2017 regula

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A Instrução n.º 3/2018 determina que, se estiver em causa a celebração de contratos com taxa de juro variável, o montante dos encargos do novo crédito devem ser calculados considerando um aumento do indexante de acordo com os seguintes critérios: 1 ponto percentual, se o prazo do contrato de crédito for igual ou inferior a 5 anos; 2 pontos percentuais, se o prazo do contrato de crédito for superior a 5 anos e igual ou inferior a 10 anos; e 3 pontos percentuais, se o prazo do contrato de crédito for superior a 10 anos. No caso de estar em causa a celebração de contratos com taxa de juro mista, aplica-se o mesmo critério da taxa de juro variável para o período após o termo da taxa fixa, de acordo com o prazo do contrato, ou, o montante dos encargos durante o período da taxa fixa, se este for superior. 11 Relativamente à informação e publicidade, com especial relevo relativamente à publicidade de produtos financeiros, ver Madaleno, 2012, pp. 61-101.


de forma concreta a informação mínima a incluir, quer na publicidade (artigo 10º), como na informação pré-contratual de caráter geral (artigo 12º). Dessa forma, para que a publicidade e todas as comunicações comerciais relativas a contratos de crédito hipotecário cumpram o seu principal desígnio de informar, com vista a permitir uma escolha informada pelo consumidor, as IC, para além de terem de cumprir as normas que a atividade publicitária em geral está sujeita12, devem ser leais, claras e não enganosas, e estão proibidas de criar falsas expetativas aos consumidores relativamente à disponibilização ou custo de um crédito (artigo 9º do DL n.º 74-A/2017)13. Na opinião de Cláudia Castro e com a qual concordamos, no que concerne à publicidade de crédito a consumidores, a tutela oferecida aos consumidores pelo legislador comunitário, seguida pelo legislador nacional, assume duas vertentes: uma proibitiva, para evitar “comportamentos artificiosos por parte das instituições de crédito”; e outra construtiva, para que o consumidor seja adequadamente informado, com vista à tomada de decisão “livre e esclarecida” (Castro, 2017, p. 25). O artigo 10º do DL n.º 74-A/2017 normaliza um conjunto de informações que obrigatoriamente têm de ser incluídas na publicidade dos créditos hipotecários, para além das normas gerais da atividade publicitária e dos princípios a que a publicidade se encontra sujeita. O seu n.º 6 determina que deve ser utilizado um exemplo concreto representativo para apresentar a generalidade dessas informações, nomeadamente: a TAEG de forma destacada14; a TAN, com indicação se é fixa ou variável; se a TAN for variável, referência ao indexante utilizado15; montante total do crédito; duração do contrato; o montante total imputado ao consumidor; o montante e o número das prestações previstas no caso concreto. No entanto, os deveres de informação e transparência das IC na publicidade de serviços financeiros não são novidade, pois estas já estavam obrigadas a cumprir todos os requisitos e regras que constam do Aviso BdP n.º 10/2008, de 22 de dezembro, relativamente a esta matéria. O Aviso BdP n.º 10/2008 foi alterado pelo Aviso BdP n.º 5/2017, que procedeu à alteração, em particular, do seu artigo 14º, inserido no capítulo das disposições específicas por produto, que passou a ser designado de “Crédito relativo a imóveis”, em substituição da anterior designação de “Crédito à habitação”, com menção a que estão abrangidos por estas regras os créditos regulados pelo DL n.º 74-A/2017.

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DL n.º 57/2008, de 26 de março, alterado pelos DL n.º 205/2015, de 23 de setembro, e DL n.º 9/2021, de 29 de janeiro, que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores e, bem assim, o Código da Publicidade, aprovado pelo DL n.º 330/90, de 23 de outubro, com as sucessivas alterações. Para melhor aprofundamento do tema das práticas comerciais desleais existe variada bibliografia, que destacamos, entre outros, Antunes J. E. (2017, pp. 216-220), ou, Martins (2011, pp. 569-585). Sobre o regime jurídico da publicidade, consulte-se Amorim (2018), e, Chaves (2005). 13 Disposição que segue a determinação comunitária que consta do artigo 10º da Diretiva 2014/17/UE. 14 O tratamento gráfico ou audiovisual da TAEG, bem como da restante informação, deve permitir que esta seja legível e claramente percetível pelo consumidor (artigo 10º, n.º 3 e n.º 8, do DL n.º 74-A/2017). 15 A al. d) do n.º 5 do artigo 10º do DL n.º 74-A/2017, que impõe a indicação do indexante utilizado, é uma disposição que foi acrescentada pelo legislador nacional face ao que prevê o artigo 11º da Diretiva 2014/17/UE.


As alterações introduzidas não são substanciais. Para além da referência aos créditos abrangidos e da necessidade de cumprir os requisitos do artigo 10º do DL n.º 74-A/2017, reforça a necessidade de destaque da TAEG16, através de um exemplo representativo, onde devem ser anunciadas algumas premissas do seu cálculo, nomeadamente, o valor do indexante e do spread da taxa de juro, bem como, a menção a eventual período de carência ou capital diferido, caso exista. Manteve ainda a obrigação que, caso exista publicidade a uma prestação de crédito hipotecário, as IC devem indicar com destaque similar o prazo de reembolso subjacente, bem como incluir a indicação do montante total do crédito associado à prestação publicitada, sendo esta última indicação do montante uma nova premissa introduzida pelo Aviso BdP n.º 5/2017. 3.2 Informação pré-contratual de caráter geral No que concerne à informação pré-contratual, quer esta seja genérica ou específica, tem sido objeto de uma crescente intervenção legislativa comunitária, e, consequentemente, interna. Esta proliferação de deveres de informação pré-contratual visa atenuar a profunda assimetria de informação existente entre as contrapartes, especialmente se estivermos perante um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, impondo-se a necessidade de uma “transparência negocial”17 (Antunes J. E., 2017, p. 110). Desta forma, a informação pré-contratual de caráter geral (genérica) do crédito hipotecário encontra-se regulada no artigo 12º do DL n.º 74-A/2017. Esta disposição também não se pode considerar como uma total novidade deste diploma, se tivermos em consideração a Instrução do BdP n.º 17/2003, de 17 de novembro18 (revogada pelo Aviso do BdP n.º 2/2010, publicado em 16 de abril, posteriormente alterado pelo Aviso do BdP n.º 16/2012, publicado em 17 de dezembro19). Desta forma, quando atentamos aos princípios da informação pré-contratual de caráter geral que constam do n.º 1 do artigo 12º do DL n.º 74-A/2017, que determina que os mutuantes devem prestar informação geral clara, verdadeira, completa, compreensível e legível, verificamos que estão muito próximos dos requisitos que se encontram mencionados no Aviso do BdP n.º 2/2010. No entanto, as várias alíneas do n.º 3 do referido artigo 12º complementam os mencionados requisitos e concretizam um conjunto mínimo de elementos a constar da informação pré-

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Na anterior redação era designada de TAE, calculada de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do DL n.º 51/2007, de 7 de março. 17 Sobre o princípio da transparência enquanto tutela de proteção da contraparte, com especial incidência na proteção do consumidor ver Ribeiro, Joaquim S., 2007, pp. 75-100. 18 Instrução elaborada pelo BdP em consonância com Recomendação da Comissão n.º 2001/193/CE, publicada a 10 de março de 2001, sobre as informações a prestar pelas instituições mutuantes antes da celebração de contratos de empréstimo à habitação. 19 Alterações introduzidas pelo Aviso do BdP n.º 16/2012 e que foram motivadas pela publicação do DL n.º 226/2012, de 18 de outubro, que veio estender o âmbito de aplicação do regime do crédito à habitação regulado pelo DL nº 51/2007, de 7 de março, e no DL nº 171/2008, de 26 de agosto, aos contratos de crédito garantidos por hipoteca ou por outro direito sobre coisa imóvel celebrados por consumidores, com a equiparação destes contratos aos de crédito habitação e conexos.


contratual de caráter geral a disponibilizar pelos mutuantes e pelos intermediários de crédito vinculados, se for o caso. Os elementos elencados no referido artigo 12º do DL n.º 74-A/2017 são uma transposição direta relativamente aos que constam do n.º 1 do artigo 13º da Diretiva 2014/17/UE. Além disso, o legislador nacional reforçou a informação exigida que se encontra prevista na Diretiva, com uma advertência ao consumidor incluída pela alínea n), na qual o consumidor deve prestar atempadamente, de forma correta e completa, a informação solicitada pelo mutuante para efeitos de avaliação de solvabilidade, sob pena de o crédito poder não ser concedido. Adicionalmente, o mesmo n.º 1 do artigo 12º do DL n.º 74-A/2017 vem impor regras na disponibilização e acessibilidade da informação pré-contratual de caráter geral, a qual deve constar permanentemente dos sítios da Internet dos mutuantes, e dos intermediários de crédito vinculados, se for o caso. Assim como, caso os consumidores o solicitem aos balcões dos mutuantes, e, se for o caso, dos intermediários de crédito vinculados, deve ser disponibilizada essa informação em suporte papel ou outro suporte duradouro. Concordamos com Cláudia Castro, quando afirma que as informações pré-contratuais de caráter geral estatuídas na Diretiva 2014/17/UE (que como vimos foram integralmente transpostas para o DL n.º 74-A/2017) “consubstanciam, verdadeiramente, um convite a contratar, já que evidenciam a disponibilidade dos mutuantes para iniciar um diálogo dirigido à formação de um futuro contrato de crédito” (Castro, 2017, p. 29). No entanto, devemos ter em consideração que esta informação pré-contratual de caráter geral, apesar de configurar um convite a contratar, está bastante afastada do que será uma proposta contratual, assumindo um papel que poderíamos definir como uma ficha genérica do produto de crédito hipotecário da IC20. 3.3 Informação pré-contratual personalizada A informação pré-contratual personalizada (específica) encontra-se regulada pelo artigo 13º do DL n.º 74-A/2017, que decorre do artigo 14º da Diretiva 2014/17/CE, onde está inserida uma das matérias de harmonização imperativa, nomeadamente, a informação précontratual personalizada, deve ser prestada através da FINE, cujo modelo se encontra normalizado no seu Anexo II (artigo 14º, n.º 2). No entanto, o mesmo artigo 14º da Diretiva 2014/17/CE também prevê matérias nas quais cada Estado Membro deve definir as suas próprias opções legislativas, como é o caso da determinação de um período de reflexão, de um período para o exercício do direito de resolução ou uma conjugação de ambos (n.º 4). Neste âmbito, o legislador nacional optou por impor exclusivamente um período mínimo de reflexão (artigo 13º, n.º 5, DL n.º 74A/2017), como mais adiante analisaremos. 20

Relativamente ao conceito de convite a contratar ver Almeida, 2017, pp. 121-122; e Carvalho, 2012, pp. 130-132.


A informação pré-contratual personalizada deve ser elaborada e disponibilizada ao consumidor através da FINE, em papel ou noutro suporte duradouro21, e ocorre em dois momentos distintos. Num primeiro momento, podemos designá-la como a FINE simulação, e posteriormente, num outro momento, a FINE de aprovação, respeitando em ambos o mesmo modelo normalizado referido. A FINE simulação é elaborada com base na informação que o consumidor apresenta, e pode ser realizada aos balcões das IC ou do intermediário de crédito, através dos sítios na internet ou qualquer outro meio de comunicação à distância (artigo 13º, n.º 1, DL n.º 74A/2017). Esta FINE simulação continua a consubstanciar um convite a contratar, pois a simples aceitação do consumidor não vincula para contratação. No entanto, este convite a contratar é muito próximo do que poderá ser uma proposta contratual, caso se venham a verificar as informações apresentadas. Assim, estamos perante um convite a contratar com efeitos jurídicos alargados ou reforçados, quer em matéria de responsabilidade pré-contratual, como em matéria de interpretação de um futuro contrato, pois podemos considerar que a FINE simulação é completa, precisa, firme e formalmente adequada22, mas ainda não é uma proposta contratual. Importa ressalvar que, considerando que estamos perante um contrato celebrado intuitu personae23(Carvalho, 2018, pp. 320-321), a IC não está (nem poderá estar) vinculada a formalizar contrato com a aceitação do consumidor das condições da FINE simulação, mesmo que se verifiquem as informações apresentadas pelo consumidor no momento da sua elaboração. Com efeito, a IC está obrigada a realizar a avaliação de solvabilidade do consumidor, para aferir da previsibilidade do consumidor solver com as responsabilidades que se propõe a contratar, sustentada em critérios e informações que vão para além das prestadas no momento da simulação (matéria que aprofundaremos mais adiante). Em nossa opinião, a IC já estará vinculada à FINE simulação quando o consumidor aceitar as condições que dela constam, caso as informações apresentadas pelo consumidor no momento da sua elaboração se confirmarem e a avaliação de solvabilidade da IC for positiva. Desta forma, a proposta contratual (FINE de aprovação) deverá respeitar, globalmente, as informações prestadas pela FINE simulação ao consumidor. Concomitantemente à comunicação da aprovação do contrato de crédito ao consumidor deve ser entregue uma FINE (FINE de aprovação), que incorpora as condições do contrato

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Cfr. artigo 13º, n.º 3, DL n.º 74-A/2017. Jorge Morais Carvalho refere-se aos efeitos jurídicos do convite a contratar que “podem ser alargados” (Carvalho, 2012, p. 131). Com opinião no mesmo sentido, Carlos Ferreira de Almeida afirma que o “convite a contratar dispõe também de efeitos próprios positivos em matéria de formação complexa das declarações contratuais, de responsabilidade pré-contratual e de interpretação de contrato” (Almeida, 2017, p. 122). 23 Posição já defendida por Jorge Morais de Carvalho a quando da introdução do conceito da avaliação de solvabilidade no regime geral do crédito aos consumidores (Carvalho, 2012, p. 370). 22


de crédito aprovado, acompanhada da minuta do contrato de crédito (artigo 13º, n.º 2, DL n.º 74-A/2017). A entrega da FINE no momento da comunicação da aprovação não é uma novidade do DL n.º 74-A/2017. Assim como, também não é novidade a obrigatoriedade da entrega da minuta do contrato de crédito no momento de comunicação da aprovação. O artigo 5º do Aviso do BdP n.º 2/2010 já determinava essa obrigatoriedade e o seu artigo 6º elencava a informação personalizada a constar dessa minuta do contrato de crédito a entregar ao consumidor. Com a publicação do DL n.º 74-A/2017, a entidade reguladora nacional publicou o Aviso do BdP n.º 5/2017, de 20 de setembro, que revogou o referido Aviso do BdP n.º 2/2010, onde – em particular no seu artigo 11º – consta uma (extensa) lista de elementos a especificar no contrato de crédito hipotecário, que são os mesmos a constar da minuta do contrato (cfr. artigo 10º, Aviso do BdP n.º 5/2017). Adicionalmente, de modo a permitir que o consumidor tome uma decisão consciente e informada, o legislador entendeu que este deve ter tempo suficiente para realizar uma comparação das propostas e conseguir avaliar as implicações que a contratação do crédito em apreciação representará na sua situação futura. Deste modo, a IC permanece vinculada à proposta contratual dirigida ao consumidor, durante um prazo mínimo de trinta dias (artigo 13º, n.º 4, DL n.º 74-A/2017). Assim como, impõe um período mínimo de reflexão de sete dias (artigo 13º, n.º 5, DL n.º 74-A/2017), ao qual Jorge Morais Carvalho designa de “período de reflexão obrigatório” (Carvalho, 2018, p. 320), designação que vamos seguir, e no decurso do qual o consumidor não pode aceitar a proposta contratual24. Quer a informação do período de reflexão obrigatório como a validade da proposta contratual devem ser prestadas através da FINE. Pese embora concordemos com Jorge Morais de Carvalho, que propugna que a formulação do preceito do período de reflexão obrigatório “não é muito feliz”, por se encontrar apenas implícito no dever do mutuante prestar informação da sua existência, e não estar concretamente consagrado de forma autónoma, consideramos que deve ser interpretado como se estivesse “efetivamente consagrado” (Carvalho, 2018, p. 320), e configura um direito irrenunciável do consumidor. No entanto, consideramos que esteve bem o legislador interno ao introduzir o período de reflexão obrigatório de sete dias no regime do crédito hipotecário, que é complementado com a validade mínima de trinta dias da proposta contratual, que confere ao consumidor um “direito potestativo de aceitar a proposta” entre o 8º e o 30º dia (Carvalho, 2018, p. 320), em detrimento de um período para exercício do direito de resolução. Na nossa opinião, esta opção legislativa do período de reflexão obrigatório em detrimento do direito de resolução é justificada, atendendo a que é o mecanismo que permite, para 24

O legislador comunitário ao permitir que os Estados-Membros optem por este mecanismo de proteção, nomeadamente a introdução de um período de reflexão obrigatório, limita a que este prazo não possa exceder dez dias (cfr. artigo 14º, n.º 6, Diretiva 2014/17/UE).


além do consumidor refletir sobre o ato que vai praticar, assegurar a segurança e proteção jurídica da sociedade em geral, à semelhança do que se encontra subjacente nas exigências quanto à forma do contrato25. Desta forma, no caso do crédito hipotecário, se considerarmos que muitos destes contratos de crédito estão subjacentes outros contratos que envolvem terceiros, nomeadamente, nas situações de aquisição de imóvel, a segurança e proteção jurídica apenas se encontram asseguradas com a introdução do mecanismo de um período prévio para reflexão do consumidor. No qual, caso estivesse previsto um período para o exercício de um direito de resolução, iria provocar um sentimento de insegurança jurídica, especialmente nos alienantes. Insegurança essa, que pela relevância e valores muitas vezes envolvidos nos negócios abrangidos, consideramos que não seria admissível26. Em suma, a informação pré-contratual personalizada assume um papel preponderante na proteção do consumidor, permitindo-lhe ficar detentor de toda a informação relevante para tomar uma decisão devidamente sustentada e ajustada ao que considera serem as suas necessidades. 3.4 O dever de assistência ao consumidor Para além da disponibilização ao consumidor de toda a informação pré-contratual exigida, este deve ser adequadamente esclarecido sobre a informação que está na sua posse. Assim, compete ao mutuante, e se for o caso, ao intermediário de crédito, assistir o consumidor de modo a que este consiga avaliar se o contrato de crédito proposto e os eventuais serviços acessórios estão ajustados às suas necessidades, bem como à sua situação financeira. O designado dever de assistência ao consumidor consta do artigo 14º do DL n.º 74-A/2017. O dever de assistência ao consumidor também não é inovador deste diploma do crédito hipotecário, encontrando-se previsto no artigo 7º do DL n.º 133/2009, que regula o crédito aos consumidores. Foi “novidade absoluta” introduzida por este diploma, na transposição do artigo 5º, n.º 6, da Diretiva 2008/48/CE, com a autonomização do preceito do dever de assistência ao consumidor pela sua relevância (Morais, 2009, p. 49). Essa relevância já tinha justificado a alteração aos artigos 77º e 77º-C do RGICSF, através do DL n.º 211A/2008, de 3 de novembro, que impõe às instituições de crédito autorizadas a conceder crédito ao consumo, bem como aos intermediários de crédito, o dever de prestar informações adequadas sobre as condições e custo total do crédito, antes da celebração do contrato, como forma de reforçar a proteção dos direitos do consumidor (Antunes J. E., 2017, pp. 110-111).

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As formalidades impostas para a contratação através de escritura pública ou de documentos particulares autenticados, onde os documentos são lidos e é explicado o seu conteúdo, tem como propósito permitir que os outorgantes reflitam e ponderem sobre o ato que vão praticar (Fernandes, 2010, p. 295). 26 Com opinião contrária, Cláudia Castro ao analisar a Diretiva defende que o legislador interno na sua transposição deveria introduzir o direito de resolução (Castro, 2017, pp. 40-41).


O artigo 14º do DL n.º 74-A/2017 apresenta uma redação similar à do referido artigo 7º do DL n.º 133/2009, mas apresentando algumas especificidades ajustadas à tipologia dos contratos de crédito abrangidos, sustentadas na legislação comunitária, nomeadamente no artigo 16º da Diretiva 2014/17/UE, com epígrafe Explicações adequadas, que no seu n.º 2 confere liberdade aos Estados-Membros para adaptarem a forma e a medida em que essas explicações devem ser prestadas. Nesse sentido, os mutuantes, ou se for o caso, os intermediários de crédito, no âmbito da negociação, celebração ou vigência dos contratos de crédito hipotecário, devem prestar a informação de forma legível, completa, verdadeira, atualizada, clara, objetiva e individualmente adequada aos conhecimentos do consumidor em causa (cfr. artigo 8º, DL n.º 74-A/2017). Toda a informação prestada ao consumidor é efetuada gratuitamente, estando as IC impedidas de cobrar qualquer comissão ou despesa pela sua prestação (cfr. artigo 7º, DL n.º 74-A/2017). Adicionalmente, no sentido de reforçar a proteção do consumidor com o adequado exercício do dever de assistência pelos mutuantes, o n.º 4 do artigo 14º do DL n.º 74-A/2017 determina que o Banco de Portugal, através de aviso, estabelece as regras que se mostrem necessárias para a sua execução. Essas regras estão estabelecidas no já referido Aviso BdP n.º 5/2017, mormente no artigo 9º. No entanto, o cumprimento do dever de assistência ao consumidor é concretizado pelos trabalhadores da entidade mutuante. Na verdade, são eles que, em nome do mutuante, têm a obrigação de prestar as informações adequadas e fornecer os esclarecimentos necessários ao consumidor. Assim, o trabalhador assume o papel de “um conselheiro do consumidor” (Carvalho, 2012, p. 367)27. Para assegurar que o trabalhador exerce de forma adequada esse dever de assistência ao consumidor, foram estatuídas condições de funcionamento dos mutuantes, com natural impacto nos seus trabalhadores, para impedir comportamentos que conduzam à concessão de crédito irresponsável28. Destacamos duas dessas condições29: por um lado, a definição de regras para a política e práticas de remuneração dos seus trabalhadores30 e, por outro,

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Conceito do mutuante/trabalhador como “um conselheiro do consumidor” seguida por Castro, 2017, p. 31. Conceito este muito semelhante ao preconizado no dever especial de esclarecimento do artigo 22º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, regulado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril, alterado pela Lei n.º 147/2015, de 09 de setembro. 28 A expressão de crédito irresponsável é utilizada nas considerações da Diretiva 2014//17/UE, como umas das razões que motivaram a intervenção legislativa no crédito hipotecário a consumidores, que Mário Frota refere como uma “referência elucidativa a propósito do crédito selvagem, irresponsável” (Frota, 2015, pp. 39-41). 29 Rui Pinto Duarte divide as regras de funcionamento impostas aos mutuantes, no âmbito do crédito hipotecário, em quatro núcleos, que são: política de remuneração, requisitos de conhecimento e competência, deveres de informação ao BdP aplicáveis quando existe prestação de serviços de intermediação de crédito ou consultoria, acesso a bases de dados de mutuantes que atuem noutros Estados-Membros (Duarte R. P., 2018, pp. 63-72). 30 O legislador remete para aviso do BdP a estatuição de regras que se mostrem necessárias à sua execução (cfr. artigo 5º, n.º 2, DL n.º 74-A/2017), que estão determinadas no Aviso do BdP n.º 5/2017, artigos 3º a 8º.


os requisitos de conhecimento e competência que os seus trabalhadores devem possuir e manter31. 3.5 O dever de prestar informação ao fiador No que concerne à prestação de informação pré-contratual personalizada e ao dever de assistência pelo mutuante, o legislador nacional entende que a frequência com que o mercado hipotecário nacional recorre à garantia de fiança32, bem como, a relevância das transações justificam o alargamento da proteção do diploma ao fiador, também ele consumidor (cfr. preâmbulo do DL n.º 74-A/2017). A proteção do fiador não se encontra prevista na Diretiva 2014/17/UE. No entanto, consideramos que esteve bem o legislador nacional na sua introdução, sendo determinante a prestação de informação pré-contratual, completa e adequada, ao fiador. Assim entendemos, sobretudo, porque o fiador também assume um compromisso financeiro, mais especificamente, assume o risco em poder vir a incorrer num compromisso financeiro e “a experiência mostra que é vulgar a prestação de fianças sem ponderação adequada” (Duarte R. P., 2018, p. 32). O artigo 13º, n.º 6, do DL n.º 74-A/2017 determina que caso a proposta contratual a apresentar ao consumidor (mutuário) preveja que o crédito deva ser garantido por fiança, o mutuante tem de entregar ao fiador a cópia da FINE de aprovação e a minuta do contrato. Por outro lado, deve prestar-lhe as informações adequadas e conceder-lhe um período de reflexão mínimo de sete dias, antes da celebração do contrato de crédito, aplicando-se desta forma ao fiador o previsto para o mutuário no artigo 13º, n.º 5. O diploma prevê ainda um reforço na proteção do consumidor fiador, no qual estatui que o mutuante incorre em sanção contraordenacional ao abrigo do artigo 29º do DL n.º 74A/2017, caso desrespeite o dever de prestação da informação pré-contratual, quer seja ao mutuário33, como ao fiador34. Por outra via, à semelhança do mutuário ou das associações representativas dos consumidores, também o fiador tem o direito de apresentar reclamação diretamente ao BdP, pela violação das normas do crédito hipotecário por parte dos mutuantes, ou dos intermediários de crédito (cfr. artigo 41º, n.º 1, DL n.º 74-A/2017).

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Os trabalhadores têm de possuir habilitação académica ou certificação profissional, que comprovadamente tenha os conteúdos mínimos determinados na Portaria n.º 385-C/2017, de 29 de setembro, publicada ao abrigo do artigo 6º, n.º 5, do DL n.º 74-A/2017. 32 Sobre a fiança, como garantia especial das obrigações estatuída nos artigos 627º e ss. do CC, ver Prata et al., 2017, pp. 810-833, ou, Vasconcelos, 2019, pp. 85-136. 33 cfr. artigo 29º, als. k) a p), do DL n.º 74-A/2017. 34 cfr. artigo 29º, al. q), do DL n.º 74-A/2017.


3.6 Limitação às vendas associadas obrigatórias e facultativas No contexto das práticas pré-contratuais e na proteção que estas conferem ao consumidor, consideramos pertinente uma breve abordagem à limitação estabelecida pelo diploma relativamente às vendas associadas, quer estas sejam obrigatórias ou facultativas. Atendendo à prática generalizada da oferta aos consumidores de produtos e serviços a serem adquiridos em conjugação com o crédito hipotecário, é determinante que sejam estabelecidos limites nesta prática, limites esses previstos pelo legislador comunitário, no artigo 12º da Diretiva 2014/17/UE (Frota, 2015, p. 51). O DL n.º 74-A/2017 estabelece uma forte limitação às vendas associadas obrigatórias e facultativas, através do seu artigo 11º. Pese embora já existisse no nosso ordenamento um mecanismo de proteção do consumidor relativamente às vendas associadas no crédito hipotecário, introduzido pelo artigo 9º, do DL n.º 51/2007, de 7 de março, que viu a sua redação alterada pelo DL n.º 192/2009, de 17 de agosto, o novo regime de crédito hipotecário veio alterar substancialmente o que se encontrava estatuído (Duarte R. P., 2018, pp. 35-36). Por princípio, o artigo 11º, n.º 1, do DL n.º 74-A/2017 determina que as IC estão proibidas de fazer depender a celebração ou renegociação de um contrato de crédito hipotecário da realização de vendas associadas obrigatórias35. No entanto, o n.º 2 do referido artigo 11º, estabelece exceções nas quais o mutuante pode exigir a sua contratação pelo consumidor, nomeadamente, a abertura ou manutenção de uma conta de depósito à ordem, pese embora, o mutuante deva aceitar que o consumidor indique uma conta numa instituição que não a sua 36. Assim como, a constituição de um ou mais contratos de seguro adequado, relacionado ao contrato de crédito37. No que concerne às vendas associadas facultativas38, pode ser proposto ao consumidor contratar outros produtos ou serviços com a finalidade de reduzir as comissões ou outros custos aplicáveis ao contrato de crédito hipotecário, nomeadamente o spread da taxa de juro. Para além da sua contratação não ser obrigatória pelo consumidor, nas informações précontratuais a prestar ao consumidor pelo mutuante, este deve apresentar a TAEG que reflita a respetiva redução das comissões e custos. Por outro lado, deve indicar de forma

35

No artigo 4º, n.º 1, al. w), do DL n.º 74-A/2017, consta a definição de “venda associada obrigatória (tying)” para efeitos do diploma, que determina que é a disponibilização ou a proposta do contrato de crédito em conjunto com outros produtos ou serviços financeiros distintos, não sendo o contrato de crédito disponibilizado ao consumidor separadamente. 36 Nos termos da alteração introduzia à al. a), do n.º 2, do artigo 11º, do DL n.º 74-A/2017, realizada pelo artigo 5º, da Lei n.º 57/2020, de 28 de agosto. 37 Habitualmente, seguro de vida e seguro do imóvel objeto do contrato, o mutuante deve aceitar contratos de seguro celebrados por prestador que não seja da sua preferência, desde que estes salvaguardem um nível de garantia equivalente aos contratos que propuseram ao consumidor. 38 Para efeitos do DL n.º 74-A/2017, a definição de “venda associada facultativa (bundling)” é a disponibilização ou a proposta do contrato de crédito em conjunto com outros produtos ou serviços financeiros distintos, sendo o contrato de crédito também disponibilizado ao consumidor separadamente, mas não necessariamente nos mesmos termos e condições em que é proposto quando associado àqueles produtos e serviços financeiros (artigo 4º, n.º 1, al. v), do DL n.º 74-A/2017).


clara e expressa que a sua aplicação se encontra condicionada à contratação dos produtos ou serviços adicionais propostos (cfr. artigo 11º, n.º 3, DL n.º 74-A/2017). 3.7 O dever da avaliação da solvabilidade do consumidor 3.7.1 Conceito de avaliação da solvabilidade do consumidor O conceito de avaliação da solvabilidade do consumidor foi introduzido pela Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, que esteve na origem do atual regime geral dos contratos de crédito a consumidores, regulado no ordenamento nacional através do DL n.º 133/2009, de 02 de junho. No entanto, o comportamento generalizado das entidades mutuantes com “a atribuição irresponsável de empréstimos para a habitação no quadro da celebração de mútuos com hipoteca de forma autenticamente selvagem com gravame sobretudo para a condição dos consumidores” (Frota, 2017, p. 239) justificou um aprofundamento pelo legislador comunitário do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor na Diretiva 2014/17/UE. O legislador comunitário, no contexto da referida Diretiva do crédito hipotecário, concede um relevo significativo ao que Anabela Gonçalves refere como o princípio do crédito responsável. No qual, para se obter a estabilidade da economia, há a necessidade de os mutuantes concederem crédito de forma responsável. E, para isso, é determinante que os mutuantes procedam a uma avaliação cuidadosa da capacidade do consumidor para cumprir com o pagamento das mensalidades, atendendo a que “uma eficaz avaliação da solvabilidade do mutuário permite reduzir o risco do crédito e as situações de incumprimento” (Gonçalves, 2016, pp. 119-120). Desta forma, é de realçar que um dos aspetos mais relevantes regulados pelo DL n.º 74A/2017 é o dever de avaliar a solvabilidade do consumidor pelos mutuantes, com o propósito de robustecer a “noção de concessão de crédito responsável, como uma medida preventiva ao sobre-endividamento” (Carvalho, 2018, p. 321). Esse dever encontra-se reforçado face ao que se verificava no regime geral do crédito aos consumidores39. Assim, perfilhamos a opinião de Jorge Morais de Carvalho, quando considera que os preceitos estatuídos nos artigos do Capítulo IV do DL n.º 74-A/2017, referentes à avaliação de solvabilidade, assumem um conteúdo imperativo, atendendo a que visam a proteção de interesses relevantes que vão para além do interesse do consumidor, porquanto pretendem também proteger o interesse geral (Carvalho, 2018, p. 322). Esses interesses relevantes são, numa primeira vertente, a proteção do interesse do consumidor, claramente a lei assume um papel “paternalista”40, de modo a proteger o

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A Diretiva do Crédito Hipotecário prevê uma obrigação do mutuante em realizar a avaliação da solvabilidade do consumidor, apresentando uma “norma mais completa, mais extensa, mais exigente do que a sua antecessora da Diretiva do Crédito ao Consumo” (Gonçalves, 2016, p. 121). 40 A opinião de Jorge Morais de Carvalho mantém-se face ao que defendeu quanto à avaliação da solvabilidade do crédito ao consumo, na qual considera que a avaliação da solvabilidade tem um conteúdo imperativo, associada à ideia que a lei é paternalista, defendendo o consumidor contra a própria vontade, assim como, assume também uma proteção


consumidor, inclusive contra a sua vontade. Efetivamente, quando este manifesta intenção ou necessidade de recorrer ao crédito, e perante a opção do legislador entre o facilitar o acesso ao crédito ou prevenir uma situação de sobre-endividamento ou insolvência futura, a lei opta claramente pela segunda, por ser a “solução mais favorável a longo prazo”, para o consumidor (Carvalho, 2018, p. 322). Quanto à segunda vertente, aquela que vai para além do interesse do consumidor, que é a proteção do interesse em geral, mais concretamente, o interesse geral que os contratos de crédito sejam cumpridos. Este interesse geral está relacionado com o princípio da concessão de crédito responsável e a necessidade de realizar a avaliação de solvabilidade do consumidor, mais concretamente, com o propósito de prevenir a concessão irresponsável de crédito, que em parte é culpada, ou pelo menos potenciadora, de crises económicas e financeiras. Com efeito, a incidência de incumprimento generalizado de contratos de crédito, concedido a pessoas que poderiam não ter condições para assumir essa responsabilidade, conjugado com uma situação de recessão económica, pode ter efeitos dramáticos no sistema económico (Carvalho, 2018, p. 322). Em suma, estando perante um interesse geral, o que se encontra estatuído para a avaliação de solvabilidade do consumidor no DL n.º 74-A/2017 é, indubitavelmente, de caráter imperativo. Neste sentido, essa obrigação do mutuante não poderá ser afastada pelas partes (Carvalho, 2018, p. 322). Naturalmente, a avaliação da solvabilidade do consumidor ocorre previamente à celebração do contrato, pois, para assegurar o interesse e a proteção do consumidor, assim como o interesse geral, o artigo 16º, n.º 1, do DL n.º 74-A/2017 determina que a avaliação da solvabilidade do consumidor tem de ser realizada pelo mutuante antes da celebração do contrato de crédito. 3.7.2 Regras e procedimentos da avaliação da solvabilidade Conforme acima referido, a entidade mutuante tem o dever de avaliar a solvabilidade do consumidor que se propõe a contratar um crédito, quer este seja um crédito hipotecário ou um crédito ao consumo. Relativamente ao previsto no diploma que regula o crédito hipotecário quanto à avaliação da solvabilidade, entendemos relevante realçar duas regras que consideramos que assumem um papel de pilares caraterizadores e são determinantes na avaliação da solvabilidade do consumidor, mais concretamente, para que esta seja, por um lado, rigorosa e, por outro, realize o seu propósito de proteção dos interesses relevantes. Primeiramente, no n.º 1 do artigo 16º do DL n.º 74-A/2017, encontramos a regra que determina que a avaliação da solvabilidade tem de ser realizada antes da celebração do

do interesse geral (Carvalho, 2012, p. 375). Opinião que é seguida por Cláudia Castro quanto à Diretiva de crédito hipotecário (Castro, 2017, pp. 32-33).


contrato, com base em fatores relevantes que permitam aferir da capacidade e propensão do consumidor cumprir o contrato de crédito a que se propõe. Adicionalmente, o legislador nacional entendeu concretizar alguns desses fatores relevantes para que a avaliação da solvabilidade se consubstancie mais rigorosa, sistematizados em quatro alíneas do referido n.º 1 do artigo 16º do DL n.º 74-A/2017. Em segundo lugar, o n.º 2 do artigo 16º do DL n.º 74-A/2017 estatui aquilo que entendemos como a regra básica da concessão de crédito responsável. Este preceito determina que o mutuante só deve celebrar um contrato de crédito com o consumidor, se o resultado da sua avaliação da solvabilidade indicar que é provável que este consiga cumprir com as obrigações do contrato de crédito, tal como exigido nesse contrato. Dessa forma, o legislador nacional entendeu, e bem na nossa opinião, que deveria ser assegurada uma maior normalização dos procedimentos e critérios a observar pelas entidades mutuantes na avaliação da solvabilidade. O n.º 7 do artigo 16º do DL n.º 74A/2017 atribuiu ao BdP a competência de, através de aviso, definir os elementos informativos e procedimentos a adotar pelos mutuantes na avaliação da solvabilidade do consumidor, para que sejam cumpridas as regras necessárias à execução dos pressupostos definidos. Desta forma, foi publicado em Diário da República, 2ª série, n.º 184 – parte E, de 22 de setembro de 2017 o Aviso do BdP n.º 4/2017, de 20 de setembro41. No entanto, pela importância que a avaliação da solvabilidade do consumidor assume na prossecução dos interesses relevantes na contratação de crédito responsável de uma forma mais abrangente, o âmbito de aplicação do Aviso do BdP n.º 4/2017 vai para além do crédito hipotecário, regulando também a avaliação da solvabilidade do consumidor na concessão de crédito a consumidores no âmbito do DL n.º 133/201942 (Duarte R. P., 2018, p. 40). O n.º 1 do artigo 6º do Aviso do BdP n.º 4/2017 é claro relativamente à principal fonte de informação que as IC devem utilizar para proceder à avaliação da solvabilidade, que é o próprio consumidor. Para além de ser uma obrigação da IC de solicitar essa informação, o n.º 2 do mesmo artigo impõe uma penalização ao consumidor, caso este não colabore, e determina a não concessão de crédito, caso o consumidor não faculte a informação ou documentação solicitada pela IC, assim como, caso a informação prestada, seja desatualizada ou falsa (Frota, 2017, pp. 241-242). Acresce que a IC tem a obrigação de advertir expressamente o consumidor sobre a referida penalização 43.

41

Daqui em diante referido apenas como Aviso do BdP n.º 4/2017. cfr. preâmbulo e artigo 1º, n.º 2, do Aviso BdP n.º 4/2017. Ficaram assim dissipadas as dúvidas se era facultativa ou obrigatória a utilização pelas IC das informações prestadas pelo consumidor na avaliação de solvabilidade, que subsistiam no regime geral do crédito ao consumidor. Com efeito, por um lado, Fernando Gravato Morais afirmava a respeito que “o credor pode ainda socorrer-se, facultativamente, das informações prestadas pelo próprio consumidor” (Morais, 2009, p. 56) e, por outro, Jorge Morais Carvalho considerava sobre o mesmo tema que “o credor deve colocar à contraparte as questões relevantes que entenda adequadas (…) para tentar perceber se esta tem condições para celebrar o contrato” (Carvalho, 2012, p. 374). 42 43


No procedimento da avaliação da solvabilidade é fundamental uma devida determinação do rendimento e das despesas do consumidor, para se apurar da sua real capacidade de assumir as obrigações do contrato proposto. Assim como, devem ter em consideração quaisquer circunstâncias futuras que, previsivelmente, possam ter impacto negativo na avaliação da solvabilidade, quer seja ao nível do seu endividamento global, assim como, que possam afetar a sua capacidade de cumprir com as obrigações a assumir. Ainda no que concerne às circunstâncias futuras com impacto negativo na avaliação da solvabilidade, o n.º 4 do artigo 10º do Aviso do BdP n.º 4/2017 determina que nos casos dos contratos de crédito com taxa de juro variável ou taxa de juro mista (que são a larga da maioria dos contratos celebrados), as entidades mutuantes devem avaliar o impacto de um potencial aumento do indexante aplicável, nos termos definidos por instrução do BdP. Desta forma, a Instrução do BdP n.º 3/2018, de 01 de fevereiro44, define os critérios pelos quais as entidades mutuantes devem avaliar o potencial impacto do aumento do indexante dos contratos de crédito com taxa de juro variável ou mista. Após o procedimento da avaliação da solvabilidade do consumidor, com a apreciação de todas as informações e elementos recolhidos, considerando os rendimentos e despesas regulares do consumidor, deve ser apurado o resultado da avaliação da solvabilidade. O contrato de crédito ou o aumento do montante total de crédito só deve ser celebrado ou atendido, respetivamente, se, em resultado da avaliação da solvabilidade, a entidade mutuante apurar que é provável que o consumidor cumpra com as obrigações que desse contrato advêm45. Caso o mutuante decida não celebrar o contrato de crédito ou aumentar o montante de crédito, deve informar o consumidor, sem demora injustificada (cfr. artigo 11º, n.º 2, do Aviso BdP n.º 4/2017). Por último, de referir que compete às entidades mutuantes fazer prova do cumprimento dos deveres e procedimentos previstos no Aviso do BdP n.º 4/2017, relativos à avaliação da solvabilidade (cfr. art. 4º, n.º 3, do Aviso do BdP n.º 4/2017), mantendo-se o regime da inversão do ónus da prova que impende sobre o crédito hipotecário (cfr. artigo 36º do DL n.º 74-A/2017). 3.7.3 Limites instituídos pela Recomendação Macroprudencial do BdP Pese embora

não seja

macroprudencial,

nosso

propósito

dissecar

consideramos

relevante

realizar

exaustivamente uma

breve

esta medida abordagem

às

recomendações introduzidas, atendendo a que também é um instrumento que visa regulamentar a avaliação da solvabilidade do consumidor.

44 45

Instrução do BdP n.º 3/2018, de 01 de fevereiro, revogou a Instrução do BdP n.º 15/2017, de 01 de setembro. Dever estatuído no artigo 16º, n.º 2, do DL n.º 74-A/2017, reforçado no artigo 11º, n.º 1, do Aviso BdP n.º 4/2017.


No documento de referência do BdP que apresenta esta medida macroprudencial, é referido que se trata de “um instrumento legal não vinculativo” pelo seu caráter inovador e por se revestir de alguma complexidade, mas, caso as entidades mutuantes não respeitem os limites recomendados, devem justificar o seu não cumprimento. O BdP, na qualidade de autoridade macroprudencial nacional46, emitiu a referida medida macroprudencial a 01 de fevereiro de 2018, com início da sua aplicação aos contratos celebrados a partir de 01 de julho de 201847. Tem como propósito regulamentar e introduzir limites a alguns critérios que as entidades devem observar na avaliação da solvabilidade do consumidor e articula-se com o mencionado Aviso do BdP n.º 4/2017, que estabelece procedimentos e critérios que as entidades mutuantes devem observar na avaliação da solvabilidade dos consumidores. No entanto, a medida macroprudencial é inovadora por definir critérios e procedimentos que são objetivamente mensuráveis, porquanto se determina quer a fórmula, quer os critérios do seu cálculo. O âmbito de aplicação da medida macroprudencial, à semelhança do que ocorre com o Aviso do BdP n.º 4/2017, é não só o crédito hipotecário a consumidores, regulado pelo DL n.º 74-A/2017, como também o crédito a consumidores, regulado pelo DL n.º 133/2009. A medida macroprudencial tem como finalidade orientar o sistema financeiro no sentido de adotar critérios de concessão de crédito prudentes, para que este fique mais resiliente e consiga suportar períodos economicamente menos favoráveis. Desta forma, através das quatro recomendações introduzidas, o regulador nacional pretende que seja concedido aos mutuários financiamento mais sustentável, o que se traduzirá numa redução do risco de incumprimento. A recomendação A, que consta do artigo 5º da recomendação macroprudencial, indica que as IC não devem conceder crédito à habitação destinado a financiar habitação própria e permanente quando o LTV48 seja superior a 90%. No caso dos contratos de crédito habitação para outras finalidades, e com garantia hipotecária ou equivalente, destinados a outras finalidades, recomenda-se que o LTV não ultrapasse os 80%. Já quando os contratos de crédito visam financiar a aquisição de imóvel da própria IC, assim como nos contratos de locação financeira imobiliária, é recomendado que o LTV não seja superior a 100%. No que concerne à recomendação B, esta consta do artigo 6º da referida recomendação macroprudencial, que institui limites ao DSTI49. Nesta recomendação, sugere-se, como

46

Competência atribuída pela Lei Orgânica n.º 5/98, de 31 de janeiro, na sua redação atualmente em vigor. O BdP, a 31 de janeiro de 2020, procedeu a uma alteração à medida macroprudencial, que é aplicável a contratos celebrados a partir de 01 de abril de 2020, com pequenos ajustes nas recomendações, sendo esta a versão consolidada da recomendação macroprudencial que consideraremos. Em 31 de janeiro de 2022, o BdP procedeu a nova alteração da referida recomendação macroprudencial, que incide sobre a maturidade máxima das novas operações de crédito hipotecário a contratar a partir de 01 de abril de 2022, que teremos também em consideração. 48 LTV é a sigla que representa a expressão Loan-to-Value, que traduz o rácio entre o montante total dos contratos de crédito garantidos por um determinado imóvel e o menor dos montantes entre o preço de aquisição ou o valor da avaliação do imóvel, calculado de acordo com o definido no artigo 3º da recomendação macroprudencial. 49 DSTI é a sigla que representa a expressão Debt Service-to-Income, que traduz o rácio entre o montante da prestação mensal calculada com todos os empréstimos do mutuário, incluindo o que se propõe a contratar, e os seus rendimentos mensais, calculado de acordo com o definido no artigo 4º da recomendação macroprudencial. 47


regra base, que as entidades mutuantes não devem conceder crédito quando o DSTI calculado for superior a 50%. Encontra-se previsto que as entidades mutuantes podem ultrapassar esta recomendação base dentro de determinados limites, definidos proporcionalmente quanto ao total do crédito concedido semestralmente. No entanto, caso ocorra a contratação de crédito onde excedam os limites de DSTI definidos, quer esteja enquadrado nas exceções previstas na recomendação como outras situações, as entidades mutuantes devem justificar a situação, com elementos adicionais que foram considerados na avaliação da solvabilidade do consumidor. Relativamente à recomendação C, que consta do artigo 7º da referida medida macroprudencial, com epígrafe “limites à maturidade”, recomenda que os novos contratos de crédito hipotecário não excedam o prazo de quarenta anos. Por outro lado, recomenda ainda que, gradualmente, até final de 2022, as entidades mutuantes devem convergir este prazo máximo para trinta anos. Com o intuito de contribuir para a convergência gradual e linear da maturidade média dos novos contratos, em 31 de janeiro de 2022, o BdP procedeu à alteração da medida macroprudencial, nomeadamente no que concerne à recomendação dos limites à maturidade dos contratos de crédito hipotecário, onde recomenda limites máximos concretos para a maturidade dos novos contratos a celebrar a partir de 01 de abril de 2022, definidos de acordo com a idade do mutuário50. Por último, consta do artigo 8º da referida recomendação macroprudencial a recomendação D, que vem recomendar que os contratos de crédito tenham pagamentos regulares de capital e juros, o que permite uma regularidade e estabilidade dos compromissos financeiros do consumidor, facilitando um melhor planeamento e gestão do dia a dia. 3.7.4 Proteção do consumidor em caso de avaliação da solvabilidade incorretamente realizada Pela relevância que a avaliação da solvabilidade do consumidor representa na proteção do interesse geral, assim como pela sua importância na proteção do interesses do consumidor, somos da opinião de Jorge Morais Carvalho quando refere que “não subsistem dúvidas de que o imperativo da norma não pode ser afastado”, estando as partes impossibilitadas de excluir o dever da avaliação da solvabilidade do consumidor (Carvalho, 2018, p. 322). No entanto, é possível que ocorra algum erro de avaliação por parte da entidade mutuante ao realizar a avaliação da solvabilidade do consumidor. Nesse caso, por princípio, é conferida proteção ao consumidor, com o propósito de “impor um certo rigor na avaliação

50

Nos termos da nova redação do artigo 7º da medida macroprudencial, é recomendado que os novos contratos com garantia hipotecária a celebrar a partir de 01 de abril de 2022 não podem exceder: al. a) 40 anos, para mutuários com idade inferior ou igual a 30 anos; al. b) 37 anos, para mutuários com idade superior a 30 anos e inferior ou igual a 35 anos; al. c) 35 anos, para mutuários com idade superior a 35 anos.


de solvabilidade de acordo com o princípio do crédito responsável” (Gonçalves, 2016, p. 128). Mais concretamente, quando as entidades mutuantes venham a verificar em momento posterior à contratação do crédito, que ocorreu uma incorreta realização da avaliação da solvabilidade do consumidor, o artigo 16º, n.º 5, do DL n.º 74-A/2017 determina que as entidades mutuantes estão impedidas de resolver ou alterar as condições do contrato de crédito em prejuízo do consumidor. Esta proteção do consumidor era já preconizada pelo legislador comunitário (cfr. artigo 18º, n.º 4, da Diretiva 2014/17/UE), porquanto determinava que as entidades mutuantes não poderiam resolver os contratos mesmo que verificassem que as informações recolhidas antes da avaliação da solvabilidade se encontravam incompletas (Frota, 2017, pp. 241-242). Mas, é importante ressalvar que a referida proteção do consumidor se extingue caso se comprove que este omitiu ou falsificou as informações disponibilizadas à entidade mutuante, quando esta procedeu à verificação da informação relativa ao consumidor a que está obrigada para a realização da avaliação da solvabilidade nos termos do artigo 17º do DL n.º 74-A/201751. Desta forma, as entidades mutuantes podem resolver os contratos de crédito, mesmo em prejuízo do consumidor, quando se comprovar a não comunicação ou falsificação deliberada de informação pelo consumidor (Frota, 2017, p. 241). 3.8 Direitos e proteção do consumidor na avaliação do imóvel Pese embora as entidades mutuantes estejam impedidas de conceder crédito com base na valorização do imóvel, à luz do princípio da concessão de crédito responsável, com o objetivo da proteção do interesse geral, bem como da proteção do consumidor em particular, é fundamental que seja realizada a avaliação do imóvel previamente. Tal avaliação visa não só que a entidade mutuante percecione se o seu valor é suficiente para salvaguardar os seus créditos, assim como almeja a proteção do consumidor, através da realização do cálculo do LTV, de modo a apurar se o montante de financiamento proposto pelo consumidor respeita a recomendação macroprudencial do BdP, o que permitirá mitigar o risco de uma eventual obrigação residual do consumidor, na eventualidade de um incumprimento no futuro (Frota, 2015, p. 50). Dessa forma, para que a entidade mutuante realize uma prudente e criteriosa apreciação do crédito hipotecário a conceder ao consumidor, é fundamental que ocorra “uma avaliação rigorosa dos imóveis com base em parâmetros fidedignos e nos mais elementos fundantes de mercado ao alcance do avaliador” (Frota, 2017, p. 246). O legislador comunitário, no artigo 19º da Diretiva 2014/17/UE, atribui aos Estados Membros a competência de estes desenvolverem, para os seus territórios, as normas fidedignas para avaliação dos imóveis para efeitos do crédito hipotecário. Assim, o artigo 51

Cfr. artigo 16º, n.º 5, parte final, do DL n.º 74-A/2017.


18º do DL n.º 74-A/2017 vem regular esta matéria, ainda que reproduza em parte o que já se encontrava regulado no artigo 30º-A, do DL n.º 349/98, de 11 de novembro, aditado pela Lei n.º 59/2012, de 09 de novembro, e revogado pelo DL n.º 74-A/2017 (Duarte R. P., 2018, p. 45). Consequentemente, do n.º 1 do artigo 18º do DL n.º 74-A/2017 consta uma norma basilar que visa a proteção do consumidor na avaliação do imóvel. Aqui se determina que a avaliação é realizada por perito avaliador independente. Este perito avaliador tem de estar habilitado através do registo na CMVM, nos termos da legislação aplicável. A lei habilitante é a Lei n.º 153/2015, de 14 de setembro, que regula o acesso e o exercício da atividade dos peritos avaliadores de imóveis que prestem serviços a entidades do sistema financeiro nacional. Para além da determinação dos requisitos para o respetivo registo, este diploma impõe requisitos de políticas e procedimentos para o exercício da atividade, que deve reger-se por elevados padrões de ética, de independência e de qualificação profissional, reforçados por um regime de incompatibilidades (cfr. artigo 17º, n.º 1, als. a) e d), e o artigo 19º da Lei n.º 153/2015, de 14 de setembro). Ainda no que concerne à avaliação do imóvel, o artigo 18º do DL n.º 74-A/2017 confere alguns direitos ao consumidor, que passamos a elencar. O consumidor tem direito a que a entidade mutuante lhe entregue um duplicado do relatório e outros documentos relativos à avaliação, elaborado por perito independente52. Caso a avaliação tenha sido realizada a expensas do consumidor, o relatório e restantes documentos da avaliação devem ser titulados pelo consumidor53. O consumidor tem também direito a apresentar reclamação escrita, dirigida à entidade mutuante, quanto aos resultados e à fundamentação da avaliação, reclamação essa que a entidade mutuante deve responder, dentro da brevidade possível e fundamentadamente54. Adicionalmente, o consumidor pode requerer à entidade mutuante que realize uma segunda avaliação ao imóvel55. Naturalmente, a segunda avaliação a pedido do consumidor terá de ser realizada a expensas deste. Por último, será de referir que as entidades mutuantes estão obrigadas a solicitar periodicamente a reavaliação dos imóveis que se encontram hipotecados a seu favor como garantia de créditos, conforme regulado pelo Aviso do BdP n.º 5/2006, de 02 de outubro. No entanto, está vedado às entidades mutuantes a cobrança de quaisquer encargos ou despesas ao consumidor decorrentes do cumprimento destas normas legais e regulamentares (cfr. artigo 18º, n.º 6, DL n.º 74-A/2017).

52

Cfr. Cfr. 54 Cfr. 55 Cfr. 53

artigo artigo artigo artigo

18º, n.º 18º, n.º 18º, n.º 18º, n.º

2, 3, 4, 5,

DL DL DL DL

n.º n.º n.º n.º

74-A/2017. 74-A/2017. 74-A/2017. 74-A/2017.


4. Considerações finais Constatámos que uma das grandes preocupações do legislador comunitário e interno foi a necessidade de aumentar a confiança dos consumidores no mercado de crédito hipotecário, não só pelo peso económico que representa no mercado total de crédito, assim como pela relevância que este encargo financeiro muitas vezes assume na vida do consumidor, o que levou ao estabelecimento de um quadro normativo, que apresenta, no nosso entender, duas vertentes principais. Por um lado, visa reforçar a tutela dos interesses dos consumidores, para minimizar a desigualdade entre as partes na celebração de contrato de crédito hipotecário a consumidores, de modo a proteger a parte mais “fraca” da relação contratual (consumidor), aumentando a sua confiança no sistema financeiro. A imperatividade deste regime protecionista conduz, desde logo, a que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe estão conferidos neste novo regime de crédito hipotecário e, consequentemente, conduz à nulidade de qualquer convenção que os exclua ou restrinja. Por outro lado, a importância da prevenção do incumprimento, não só para mitigar os riscos do sobre-endividamento dos consumidores, como para fortalecer o sistema financeiro e conferir-lhe maior estabilidade. Assim, foi fulcral instituir um novo paradigma de concessão de crédito responsável por parte das entidades mutuantes, através de um mercado de crédito transparente, eficiente e competitivo, no sentido de aumentar a confiança dos consumidores e tornar o sistema mais resiliente. Verificamos que o legislador delegou poderes no regulador (BdP), para concretizar regras e procedimentos com vista a uma efetiva implementação do regime. No exercício desta competência delegada, o regulador emanou vários Avisos, Instruções e uma medida macroprudencial no âmbito do crédito hipotecário a consumidores. Tendo em consideração que a informação foi um dos vetores determinantes na confiança do consumidor, o regulador interveio na harmonização do preenchimento da informação a prestar e orientações na sua elaboração e procurou realizar a uniformização das regras de elaboração da informação. Concretamente, referimo-nos à FINE, uma das matérias que mereceu harmonização máxima da Diretiva 2014/17/UE. Este documento deve ser disponibilizado ao consumidor no momento da simulação, assim como na comunicação da aprovação, em momento prévio à celebração do contrato, onde constam todas as informações das condições do contrato que a entidade mutuante se propõe a celebrar. O objetivo foi o de facilitar a compreensão das informações pelo consumidor, bem como permitir uma efetiva comparação entre as diferentes ofertas de crédito, para que o consumidor possa tomar uma decisão informada e consciente. Como reforço à entrega obrigatória da informação, há a determinação de deveres de assistência e informação ao consumidor pelas entidades mutuantes. Com efeito, vimos que,


para além do consumidor ficar na posse de toda a informação, esta deve ser-lhe explicada, para que a compreenda e fique ciente dos seus direitos e obrigações. A Diretiva 2014/17/UE determinou harmonização máxima para outra matéria, que foi a TAEG. A TAEG é um valor expresso em percentagem anual, que representa o custo total do contrato de crédito para o consumidor. O cálculo da TAEG é realizado através de fórmula matemática determinada legalmente. A TAEG é um elemento obrigatório a constar da FINE e do contrato, que permite ao consumidor, de forma rápida e fiável, comparar entre ofertas de crédito. Ainda em sede do dever de prestar informação ao consumidor, consideramos que merece destaque

a

novidade

introduzida

pelo

legislador

nacional

consubstanciada

na

obrigatoriedade de prestar informação pré-contratual personalizada ao fiador, também ele consumidor. Vimos igualmente a imposição de o fiador beneficiar da proteção do dever de assistência e informação que é conferida ao mutuante, não só em termos de informação disponibilizada como na prestação de todos os esclarecimentos atinentes ao contrato a celebrar. Esta proteção é determinante para que o fiador possa refletir no contrato onde vai intervir, que implica um risco de assumir um compromisso financeiro futuro. Numa outra vertente, que consideramos determinante na prossecução da mudança para o desejado paradigma da concessão de crédito “responsável”, foi a regulação do relevante instituto da avaliação da solvabilidade do consumidor. Este conceito já existia no âmbito do DL n.º 133/2009, mas que carecia de maior concretização. Desta forma, o BdP veio concretizar procedimentos e critérios a observar pelas entidades mutuantes na avaliação da solvabilidade do consumidor. Estes procedimentos e critérios são de utilização imperativa e abrangem a avaliação da solvabilidade não só para os contratos celebrados ao abrigo do DL n.º 74-A/2017, como também os celebrados no âmbito do DL n.º 133/2009. Vimos que a avaliação da solvabilidade do consumidor tem de ser realizada em momento prévio à celebração do contrato e a entidade mutuante só pode celebrar o contrato de crédito caso o resultado da avaliação determine como provável que o consumidor irá cumprir com as obrigações que se propõe a assumir. Adicionalmente, e como reforço complementar às regras da avaliação da solvabilidade, o BdP determinou limites máximos concretos em determinados rácios da avaliação da proposta. Nesses rácios, as fórmulas de cálculo estão harmonizadas e, caso se verifique a ultrapassagem desses limites, as entidades mutuantes não poderão celebrar o contrato de crédito. Referimo-nos ao DSTI máximo, rácio que determina a capacidade de o consumidor solver com as responsabilidades, atuais e propostas, que terá de ser calculado de forma conservadora, caso seja aplicável uma taxa variável ao contrato, e o LTV máximo, rácio de cobertura da garantia hipotecária face à dívida.


Por último, no âmbito das presentes considerações finais, resta-nos realizar umas breves considerações sobre o que consideramos como a segunda vertente do quadro normativo em apreciação no presente estudo, que é a prevenção do incumprimento. Neste âmbito, ficou claro que a melhor prevenção do incumprimento é a concessão “responsável” de crédito. De facto, o legislador encetou uma proteção do consumidor, mesmo contra vontade deste, ao assumir um papel “paternalista”, só permitindo a concessão de crédito caso o consumidor demonstre capacidade de solver todas as suas responsabilidades e também nesta medida se previne o incumprimento. Em suma, consideramos que as informações e práticas pré-contratuais do novo regime do crédito hipotecário introduziram um importante reforço na proteção do consumidor, tutela essa que foi acentuada com algumas novidades e que veio, por outro lado, unificar a dispersão de algumas previsões protetoras. Neste âmbito, julgamos igualmente que o normativo “prático” emanado pelo BdP teve um papel fundamental. Bibliografia Alabart, Silvia Díaz (2015). La protección del consumidor en los créditos hipotecários (Directiva 2014/17/UE). Madrid: Editorial Reus, S.A. Almeida, Carlos Ferreira de (2005). Direito do consumo. Coimbra: Almedina. Almeida, Carlos Ferreira de (2017). Contratos I : Conceitos, fontes, formação (6ª Edição). Coimbra: Almedina. Amorim, Ana Clara Azevedo (2018). Manual de Direito da Publicidade. Petrony. Antunes, Ana Fipa Morais (2013). Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais: Decreto-Lei n.º 446/85. Coimbra: Coimbra Editora. Antunes, José Engrácia (2017). Direito dos Contratos Comerciais. Coimbra: Almedina. Antunes, José Engrácia (2019). Direito do consumo. Coimbra: Almedina. Campos, Isabel Menéres (2016). Crédito Habitação. Em I Congresso de Direito do Consumo (Coord: Jorge Morais Carvalho) (pp. 159-175). Coimbra: Almedina. Canotilho, J. J., & Moreira, Vital (2014). Constituição da República Portuguesa: anotada, Volume I (4ª Edição revista). Coimbra: Coimbra Editora. Carvalho, Jorge Morais (2012). Os contratos de Consumo - Reflexão sobre autonomia privada no direito do consumo. Coimbra: Almedina. Carvalho, Jorge Morais (2017). Manual de Direito do Consumo (4ª Edição). Coimbra: Almedina. Carvalho, Jorge Morais (2018). Crédito ao Consumo e Crédito à Habitação. Em Estudos de Direito Bancário I (pp. 297-329). Coimbra: Almedina. Carvalho, Jorge Morais, Pinto-Ferreira, João Pedro, & Carvalho, Joana Campos (2017). Manual de resolução alternativa de litígios de consumo. Coimbra: Almedina.


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Obtido

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O arresto marítimo, o conceito de navio, a penhora de embarcações de recreio e os vazios legais

O arresto marítimo, o conceito de navio, a penhora de embarcações de recreio e os vazios legais Marco Antunes Solicitador Pós-graduado em Direito Marítimo


Abstract Considerando que, para a maioria dos juristas, a admissibilidade do arresto de navios e a dificuldade na integração de possíveis lacunas sobre a penhora de embarcações de recreio é pouco familiar, com o presente trabalho oferecem-se algumas clarificações pretendendo-se, simultaneamente, despoletar a discussão sobre a matéria. Prosseguindo tal desiderato, são explicadas as regras aplicáveis ao procedimento de arresto de navios, nos contextos internacional e nacional, feita uma elucidação sobre o conceito de navio no ordenamento jurídico português e discutida a problemática da penhora de navios, concluindo com a recomendação de alterações legislativas necessárias à clarificação do regime aplicável à penhora de embarcações de recreio. Palavras-chave: Actividades marítimas; Arresto; Embarcações; Navio; Penhora I. Introdução Constata-se que o direito marítimo, ao assentar, principalmente, em tratados e convenções internacionais multilaterais e no direito consuetudinário, compreende normas e doutrina pouco difundidas entre a maioria dos juristas. O arresto, e penhora, de navios é uma problemática que merece reflexão e, sobretudo, ser conhecida e discutida pelos vários agentes judiciários, revestindo especial relevância para os mandatários e para os agentes de execução. Em Portugal, a escassez de publicações sobre a matéria pode ser justificada pelo reduzido número de navios registados. No entanto, o aumento que se tem verificado nas frotas nacionais, seja no registo convencional1, seja, mormente, no Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), aliado ao incremento da náutica de recreio, justificam esta análise. Assim, com este trabalho pretende-se contribuir para a discussão sobre o arresto de navios, e a sua penhora, especialmente sobre a penhora de embarcações de recreio. Para tal, serão explicadas as regras aplicáveis, internacionalmente e no ordenamento nacional, ao procedimento de arresto de navios, feita uma elucidação sobre o conceito de navio no ordenamento nacional, discutida a problemática da penhora de navios, apresentado o regime espanhol, concluindo com a recomendação 1

O estatuto legal de um navio é-lhe conferido pelo seu registo num determinado Estado de bandeira, adquirindo assim o direito de arvorar a bandeira desse Estado. O navio fica não só adstrito ao cumprimento das leis desse Estado, como também lhe são reconhecidos os benefícios próprios do mesmo Estado, seja em matéria de segurança, de reconhecimento da formação dos marítimos ou do cumprimento de normas ambientais (veja-se o exemplo do ranking “White, Grey and Black list” do Paris MOU). A embarcação adquire a sua nacionalidade, sendo assim considerada parte integrante do território. Mas porque o registo convencional tem vários custos inerentes, alguns Estados oferecem um segundo registo de Bandeira, normalmente implementado em zonas francas e tendo associados fortes e atrativos benefícios fiscais, atraindo vários stakeholders internacionais.


de alterações legislativas que se entendem necessárias para a clarificação do regime aplicável à penhora de embarcações de recreio. II. O regime do arresto de navios no direito internacional 1. A génese das normas Considerando a transversalidade das actividades marítimas aos vários Estados costeiros e a sua aplicabilidade em todas as águas navegáveis, a maior fonte de direito marítimo são as Convenções Internacionais. Paralelamente, considerando que ao longo dos séculos sempre houve necessidade de dirimir conflitos relacionados com as práticas náuticas, o direito consuetudinário assume o papel basilar na construção dos tratados internacionais, devendo os vários Estados adequar a sua legislação interna às normas dos instrumentos que subscrevem. Surge assim a matéria do arresto de navios regulada internacionalmente pela Convenção de Bruxelas de 1952, conhecida como Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios de Mar2, adiante apenas designada Convenção, transposta para a ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei n.º 41007, de 16/02/1957. Em 1999 teve lugar em Genebra uma conferência diplomática das Nações Unidas/Organização Marítima Internacional na qual foi aprovada a Convenção Internacional sobre Arresto de Navios, 1999. Pese embora a acta final da conferência ter sido assinada pelo representante do Estado português presente na Conferência, a Convenção de Genebra de 1999 ainda não foi ratificada por Portugal. Destarte, em Portugal é aplicado o regime da Convenção de 1952, o que pode condicionar o próprio Estado português na reclamação de alguns tipos de créditos marítimos, como veremos adiante. Considerando que a tradução publicada do texto da Convenção desvirtua, pontualmente, o espírito presente no texto original, neste trabalho preferem-se as transcrições da versão original3. 2. Noção e causas de arresto de navios A Convenção dá-nos a noção de arresto de navio como the detention of a ship by judicial process to secure a maritime claim, but does not include the seizure of a ship in execution or satisfaction of a judgment4, ou seja, arresto é a imobilização de um navio, mediante autorização de autoridade judiciária competente, em garantia

2

International Convention Relating to the Arrest of Sea-Going Ships, concluída em Bruxelas em 10 de Maio de 1952, com início de vigência na ordem internacional em 14/09/1955, assinada por Portugal em 16/10/1956, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 41007, de 16 de Fevereiro de 1957, publicado no Diário do Governo I, n.º 37, de 16/02. 3

Disponível em: https://treaties.un.org/pages/showDetails.aspx?objid=08000002801338ba

4

(2) do artigo 1.º da Convenção


de um crédito marítimo, mas não inclui a apreensão de um navio em execução ou cumprimento de sentença. Por outro lado, a Convenção, ao prever que um navio pode ser arrestado in respect of any maritime claim, but in respect of no other claim define os exactos termos de admissibilidade do arresto, o qual apenas é possível se o crédito for um crédito marítimo e não por qualquer outro crédito, elencando na closed list do n.º 1 do art.º 1.º esses mesmos créditos marítimos: (a) damage caused by any ship either in collision or otherwise (danos causados por qualquer navio em caso de abalroamento ou de outro modo); (b) loss of life or personal injury caused by any ship or occurring in connexion with the operation of any ship (perda de vidas humanas ou lesões corporais causadas por qualquer navio ou directamente relacionadas com a sua exploração); (c) salvage (assistência e salvação); (d) agreement relating to the use or hire of any ship whether by charter-party or otherwise (contratos relativos à utilização ou locação de qualquer navio, por carta-partida ou outro meio); (e) agreement relating to the carriage of goods in any ship whether by charterparty or otherwise (contratos relativos ao transporte de mercadorias em qualquer navio, por carta-partida, conhecimento, afretamento ou outro meio); (f) loss of or damage to goods including baggage carried in any ship (perdas ou danos de mercadorias, incluindo bagagem transportada em qualquer navio); (g) general average (avaria comum); (h) bottomry (empréstimo a risco); (i) towage (reboque); (j)pilotage (pilotagem); (k) goods or materials wherever supplied to a ship for her operation or maintenance


(bens ou materiais, independentemente do local em que sejam fornecidos a um navio para a sua exploração ou manutenção); (1) construction, repair or equipment of any ship or dock charges and dues (construção, reparação, equipamentos do navio, encargos e taxas de estiva ou de docagem); (m) wages of Masters, Officers, or crew (soldadas do capitão, oficiais ou tripulação); (n) Master's disbursements, including disbursements made by shippers, charterers or agents on behalf of a ship or her owner (desembolsos do capitão, incluindo desembolsos feitos por carregadores, afretadores ou agentes por conta de um navio ou do seu proprietário); (o) disputes as to the title to or ownership of any ship (litígios relativos à titularidade ou propriedade de qualquer navio); (p) disputes between co-owners of any ship as to the ownership, possession employment or earnings of that ship (compropriedade, composse ou coexploração contestadas de um navio, ou litígio sobre direitos ao produto da exploração desse navio); (q) the mortgage or hypothecation of any ship (mortgage5 e hipoteca sobre qualquer navio). Sendo esta uma closed list, um navio não pode ser arrestado por créditos diferentes dos enumerados. Como susodito, está excluído do conceito vertido para a Convenção e, logo, da sua aplicabilidade, o arresto executório, id est, o que tem por base uma sentença ou título executivo e como finalidade imediata concretizar uma execução. Da listagem de acontecimentos originários de créditos marítimos, tal como elencados na Convenção, verifica-se a ausência dos prémios de seguro marítimo, assim como da reparação de danos causados no meio ambiente e o ressarcimento dos gastos decorrentes da adopção de medidas para evitar ou minimizar esses danos. Portanto, nos termos da Convenção de 1952 não é possível considerar esses acontecimentos como originários de créditos marítimos e, assim, causa de arresto de navios. As lacunas verificadas foram sanadas pela Convenção de Genebra de 1999, mas, 5

No direito anglo-saxão existem diferenças práticas entre hypothecation e mortgage, as quais decorrem sobretudo da natureza direta ou colateral do bem dado como garantia à operação financeira.


recordando-se que ainda não foi ratificada por Portugal, não é possível requerer em Portugal o arresto de um navio alegando a existência de um crédito dessa natureza. Tal inércia do executivo português coloca o Estado numa posição desfavorável, ex gratia, em situação de alijamento ou derrame de combustíveis ou de cargas hazmat6, ou mesmo lavagens de tanques, nas águas territoriais ou sob jurisdição nacional. O arresto surge assim como um meio de pressão que pode ser legalmente exercido sobre um devedor de um crédito marítimo, o qual se mostra bastante eficaz, considerando os elevados custos inerentes à imobilização de um navio (taxas portuárias, encargos com a tripulação, manutenção, suspensão dos ganhos de exploração, etc.). Atenta a sua eficácia, o arresto é, por isso, o procedimento internacionalmente preferido para garantir o pagamento de créditos marítimos. Grosso modo, as repercussões do arresto sobre o devedor, e extensivamente sobre terceiros, são significativas – o proprietário, se não for o devedor, fica impossibilitado de reaver o navio; os donos da carga terão de encontrar outro transporte e suportar as despesas com armazenamento até ao novo transporte, entre outras. Para além de tudo isso, devem ainda ser consideradas as consequências decorrentes do incumprimento de possíveis contratos de fretamento do navio ou de contratos de transporte de mercadorias por mar. No entanto, apesar de ser um expediente comum, exatamente pelos danos colaterais que podem ocorrer, não deixa de ser o último recurso a que um credor marítimo recorre, tentando primeiramente ressarcir o seu crédito de outros modos. Restando o arresto, verifica-se actualmente uma propensão crescente de o credor optar pela jurisdição que lhe seja mais favorável para arrestar um navio, assumindo a celeridade do aparelho judiciário especial relevância nessa tomada de decisão. Como consequência prática, o credor terá de conhecer a rota praticada pelo navio, os portos onde faz escala e, se possível, depois de preferida a melhor jurisdição para requerer e efetivar o arresto, antecipar-se à sua chegada a um porto. Contrariamente a outros tipos de procedimentos, para os quais se mostra necessária a produção de prova que sustente o alegado, para que haja arresto de um navio, no âmbito da aplicação da Convenção, basta tão-somente alegar a existência de um crédito marítimo. De igual forma, não é fundamental nem alegar nem provar a existência de periculum in mora que justifique o receio de perda da garantia. Importa também realçar que um navio pode ser arrestado por um crédito marítimo sobre um outro navio do mesmo proprietário. O art.º 3.º da Convenção destaca que qualquer credor pode fazer arrestar o navio ao qual o crédito se refere – offending 6

Hazmat é o acrónimo para hazardous materials e refere-se às mercadorias perigosas e poluentes (e.g. hidrocarbonetos, produtos químicos, lixo nuclear, resíduos sólidos, etc.)


ship – bem como qualquer outro pertencente àquele, que na data da constituição do crédito marítimo, fosse proprietário daquele navio – sister ship. No entanto, esta possibilidade encontra-se vedada aos créditos marítimos constantes das alíneas o), p) ou q), situações em que apenas é possível fazer arrestar o próprio navio. Considerando as várias práticas da marinha mercante, nem sempre o proprietário de um navio é o responsável pelos créditos marítimos, porquanto pode a gestão náutica, a gestão comercial, ou as duas em simultâneo, ser exercidas por um terceiro. Para além disso, é prática comum a existência de single-ship companies7, pelo que nem sempre é possível arrestar sister ships atenta a dificuldade em provar a propriedade e gestão comuns das várias entidades. Em caso de afretamento, esclarece o n.º 4 do art.º 3.º que the charterer and not the registered owner is liable in respect of a maritime claim relating to that ship. Assim, existindo transferência de gestão náutica, caso em que apenas o afretador responde pelos créditos marítimos relativos a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o offending ship ou outro pertencente ao afretador, mas nenhum outro navio pertencente ao proprietário (fretador) poderá ser arrestado por tais créditos. O artigo 3.º termina esclarecendo que tal procedimento é aplicável a todos os casos em que o devedor do crédito marítimo é pessoa diversa do proprietário. A existência de “pessoa diversa do proprietário” ocorre nos casos de fretamento8, o que pressupõe a transmissão das responsabilidades inerentes à utilização do navio: há transferência da gestão náutica e da gestão comercial nos casos de contrato de bareboat charter (fretamento de navio em casco nu, sem tripulação); há transferência apenas da gestão comercial no regime de demise charter ou time charter (fretamento a tempo de navio com tripulação). Caso o fretamento seja por viagem, a gestão náutica e comercial mantém-se na esfera do fretador, sendo este o caso do típico contrato de transporte. 3. Aplicação territorial da Convenção No que concerne à aplicação territorial, um navio que arvore bandeira de um Estado Contratante da Convenção pode ser arrestado em território sob jurisdição de qualquer Estado

7

A criação de uma empresa com o fim único de gerir um navio é prática comum entre os armadores mais pequenos, que gerem assim várias empresas cujo único activo é o próprio navio. 8

As normas relativas ao contrato de fretamento constam do Decreto-Lei n.º 191/87, de 29 de Abril.


Contratante9, v.g., um navio português pode ser arrestado em França por bancas10 em alto mar (considerando que quer Portugal quer França são Estados-parte da Convenção). Neste âmbito, merece especial referência o art.º 8.º da Convenção, porquanto estabelece princípios basilares relativos à sua aplicação. Desde logo o (1) que remete as disposições da Convenção para aplicação em qualquer dos Estados Contratantes e a todo o navio que arvore bandeira de um Estado Contratante. O (2) admite a possibilidade de um navio que arvore bandeira de um Estado não contratante poder ser arrestado num dos Estados Contratantes por um dos créditos constantes do artigo 1.º ou por qualquer outro crédito que autorize o arresto segundo a Lei desse Estado. Continuando, o (3) permite que qualquer Estado Contratante possa recusar todas ou partes das vantagens da Convenção a qualquer Estado não contratante ou a qualquer pessoa que à data do arresto não tenha a sua residência habitual ou o seu principal estabelecimento num Estado Contratante. Importa esclarecer que esta recusa não pode ser casuística, mas sim feita com carácter genérico e que Portugal, ao ratificar a Convenção sem declarar reservas, está impedido de usar desta disposição para recusar a sua aplicação a Estados não contratantes. Respeitando a soberania dos Estados Contratantes, o (4) refere que as disposições da Convenção não modificam ou prejudicam a lei interna dos Estados Contratantes no que se refere a arresto de um navio na jurisdição do Estado cuja bandeira ele arvora, por pessoa com residência habitual ou principal estabelecimento nesse Estado. Esclarecendo, se um residente português requerer a um tribunal português o arresto, em Portugal, de um navio português, aplica-se unicamente a lei portuguesa. Este princípio tem aplicação ainda que o credor originário sub-rogue, ceda ou de outra forma transfira o crédito marítimo a terceiro não residente11. Resumindo, a Convenção, enquanto tratado de direito internacional, tem aplicação apenas quando um dos três elementos – requerente, bandeira do navio a arrestar e/ou requerido – for alofilo ao Estado onde é requerido e decretado o arresto. Por norma, o arresto é sempre requerido junto da autoridade judiciária do Estado onde o navio se encontra, mesmo que a acção principal não seja conhecida pelos tribunais desse Estado, elencando, de forma taxativa, o art.º 7.º da Convenção as situações de competência jurisdicional para conhecimento da causa principal. De forma práctica:

9

Art.º 2.º da Convenção: A ship flying the flag of one of the Contracting States may be arrested in the jurisdiction of any of the Contracting States. 10

Bancas marítimas são operações de fornecimento de combustível para uso dos navios, incluindo a operações de logística de bordo (trasfega de combustível e sua distribuição entre os tanques existentes). 11

Cfr (5) do art.º 8.º da Convenção


num arresto requerido em Portugal de um navio com bandeira estrangeira que se encontre num porto nacional, por um requerente estrangeiro ou português aplica-se a Convenção; num arresto em Portugal de um navio com bandeira portuguesa ou estrangeira, se o requerente for estrangeiro aplica-se também a Convenção; num arresto requerido no estrangeiro de um navio português por um requerente português e o navio se encontrar nesse país, aplica-se a Convenção. De igual forma, a Convenção estabelece que as regras do processo reguladoras do arresto de um navio (…) serão as constantes da lei do Estado Contratante onde o arresto for efectuado ou requerido12. Sobre esta norma, importa clarificar que a mesma refere as regras do processo reguladoras, não sendo assim admissível que os tribunais alterem as normas substantivas da Convenção aplicando as nacionais, devendo, outrossim, adaptar o direito formal às normas da Convenção. 4. O regime do arresto no Direito português No direito interno, o arresto de navios é regulado pelas disposições gerais do Código Civil13, do Código de Processo Civil14 (adiante CPC), pela Lei dos Tribunais Marítimos15 e pelo Estatuto Legal do Navio16 (adiante ELN). Desde logo, estabelece o artigo 9.º do ELN que: 1- O navio pode ser arrestado ou penhorado mesmo que se encontre despachado para viagem. 2- O disposto no número anterior é aplicável aos géneros ou mercadorias carregadas em navio que se achar nas circunstâncias previstas no número anterior. Assim, mesmo que o navio já se encontre despachado para viagem pode o mesmo ser arrestado, ou penhorado, bem como a sua carga. Ora, o arresto da carga apenas terá lugar se o seu proprietário for o devedor do crédito marítimo, o que raramente acontece, porquanto a mercadoria é embarcada ao abrigo de um contrato de transporte de mercadorias. O CPC refere-se à penhora de mercadorias carregadas em navio17, estabelecendo que: 12

Art.º 6.º, Ibidem

13

Art.os 619.º a 622.º do Código Civil.

14

Art.º 394.º do Código de Processo Civil.

15

Lei n.º 35/86, de 4 de Setembro.

16

Decreto-Lei n.º 201/98, de 10 de Julho. Código de Processo Civil, Caput do art.º 746.º

17


“ainda que o navio já esteja despachado para viagem, efetuada a penhora de mercadorias carregadas, pode ser autorizada a sua descarga se o credor satisfizer por inteiro o frete em dívida, as despesas de carga, estiva, desarrumação, sobredemora e descarga ou prestar caução ao pagamento dessas despesas”18. De referir que este ressarcimento previsto no CPC reveste a natureza de caução, sobre cuja idoneidade é ouvido o capitão do navio19. Nos termos gerais do art.º 619.º do Código Civil e do art.º 391.º do CPC, que se aplicam também ao arresto de navios, são condições essenciais para requerer o arresto a aparência de existência de um direito de crédito e o justo receio de perder a garantia patrimonial desse crédito. De forma específica, o CPC consagra o art.º 394.º ao arresto de navios, estabelecendo que o requerente tem ainda de demonstrar a admissibilidade da penhora face à natureza do crédito. Quer isto dizer que o arresto apenas é admissível, depois de satisfeitos os demais requisitos gerais, se também for admissível a penhora. Sem estes requisitos não há arresto de navios de acordo com a lei portuguesa. Numa leitura a contrario sensu daquele n.º 1 do art.º 394.º do CPC, se não for admissível o arresto, então também não seria admissível a penhora, e a isto voltaremos mais tarde. No âmbito da aplicação da Convenção, basta a mera alegação do crédito, não sendo exigível a invocação do justo receio de perda da garantia patrimonial para ser decretado o arresto do navio20. Contrariamente, no arresto requerido ao abrigo das normas de direito nacional já terá de ser alegado esse receio. Como vimos, se a Convenção contempla, taxativamente, as situações que originam créditos marítimos, não se encontra na lei civil, ou processual civil, doméstica tal elenco. Assim, a resposta pode ser encontrada no art.º 578.º do Código Comercial: As dívidas que têm privilégio sobre o navio são graduadas pela ordem seguinte: 1.º As custas e despesas judiciais feitas no interesse comum dos credores; 18

Idem, n.º 1 do art.º 746.º

19

Idem, n.º 3 do art.º 746.º

20

Nesse sentido vidé Ac. Relação de Lisboa, de 24/03/1994, Ac Relação de Lisboa de 03/07/2003; Ac. Relação de Lisboa de 13/03/2012.


2.º Os salários devidos por assistência e salvação; 3.º Os créditos garantidos por hipotecas e penhores sobre o navio. 4.º As despesas de pilotagem e reboque da entrada no porto; 5.º Os direitos de tonelagem, faróis, ancoradouro, saúde pública e quaisquer outros de porto; 6.º As despesas com a guarda do navio e com armazenagem dos seus pertences; 7.º As soldadas do capitão e tripulantes; 8.º As despesas de custeio e conserto do navio e dos seus aprestos e aparelhos; 9.º O embolso do preço de fazendas do carregamento, que o capitão precisou vender; 10.º Os prémios do seguro; 11.º O preço em dívida da última aquisição do navio; 12.º As despesas com o conserto do navio e seus aprestos e aparelhos nos últimos três anos anteriores à viagem e a contar do dia em que o conserto terminou; 13.º As dívidas provenientes de contratos para a construção do navio; 14.º Os prémios dos seguros feitos sobre o navio, se todo foi segurado, ou sobre a parte e acessórios que o foram, não compreendidos no n.º 10.º; 15.º A indemnização devida aos carregadores por falta de entrega das fazendas ou por avarias que estas sofressem; §

único. As dívidas mencionadas nos n.os 1.º a 10.º, com excepção das

mencionadas no n.º 3.º, são contraídas durante a última viagem e por motivo dela.21 Sendo que, no direito português, apenas estas dívidas estão acompanhadas de privilégios sobre o navio.

21

Redacção dada pelo art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 8/2009, de 07 de Janeiro


Perante a existência de um crédito marítimo, regressamos ao CPC e às disposições específicas sobre o arresto de navios. Artigo 394.º CPC (art.º 409.º do CPC 1961) Arresto de navios e sua carga 1 - Tratando-se de arresto em navio ou na sua carga, incumbe ao requerente demonstrar, para além do preenchimento dos requisitos gerais, que a penhora é admissível, atenta a natureza do crédito. 2 - No caso previsto no número anterior, a apreensão não se realiza se o devedor oferecer logo caução que o credor aceite ou que o juiz, dentro de dois dias, julgue idónea, ficando sustada a saída do navio até à prestação da caução. Artigo 769.º Modo de fazer navegar o navio penhorado 1 - O depositário de navio penhorado pode fazê-lo navegar se o executado e o exequente estiverem de acordo e preceder autorização judicial. 2 - Requerida a autorização, são notificados aqueles interessados, se ainda não tiverem dado o seu assentimento, para responderem em cinco dias. 3 - Se for concedida a autorização, avisa-se, por ofício, a capitania do porto. III. Conceito de navio Versando este trabalho sobre o arresto e a penhora de navios, é mister, para o seu entendimento, avançar com a definição do conceito de navio, considerando as diversas concepções empíricas. De facto, por vezes a noção de navio encontra-se relacionada com um critério de dimensão – o navio é grande, as embarcações são pequenas. Noutras circunstâncias, o conceito de navio tem subjacente uma actividade concreta: defesa,


pesca, transporte mercantil, atribuindo-se aos engenhos utilizados em práticas recreativas a designação de embarcação. A legislação portuguesa, ao regular o ELN, dá-nos a definição de navio como o engenho flutuante destinado à navegação por água, referindo expressamente que fazem parte integrante do navio as máquinas principais e auxiliares (motores), assim como todos os aparelhos, palamenta, acessórios e equipamentos necessários à sua operacionalidade. Esta noção, embora mais restritiva, está de acordo com a oferecida pelo Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIEAM) 7222 que define como navio todo o veículo aquático de qualquer natureza, incluindo os veículos sem imersão e os hidroaviões, utilizado ou susceptível de ser utilizado como meio de transporte sobre a água. Da leitura destas duas definições, as mais importantes, verifica-se que, afinal, navio poderá ser tudo o que sirva ou possa servir como meio de transporte sobre a água. Retomando a definição do ELN, engenho flutuante destinado à navegação por água, podemos afirmar que se é um engenho, é algo fabricado, montado, pelo Homem. Daqui decorre que um tronco não é um navio, mas um tronco escavado, ou um conjunto de troncos unidos entre si pelo Homem, já o é! Ou talvez não. À sombra do referido ELN, poderíamos, sem grande pejo, considerar uma jangada um navio, no entanto este engenho não estaria sujeito a registo. Ainda analisando o ELN, constata-se que fazem parte integrante do navio as máquinas e outros equipamentos e acessórios necessários à sua operacionalidade. Teremos então de aprofundar esta relação trinomial de casco, máquinas e equipamentos e acessórios necessários à operacionalidade, concluindo, portanto, que o navio é uma coisa composta formada pela universalidade das coisas simples que o constituem. Na sequela do supra referido, a expressão navio leva-nos a considerar esta universalidade como uma coisa indivisível; se desmontarmos o navio passamos a estar na presença de um casco, de um sistema propulsor, de sistemas de navegação, de massame, etc., que, per si, podem ser acessórios e equipamentos de um navio, mas nunca um navio. De acordo com o assumido pela doutrina, o conceito de navio encerra em si mesmo algumas características: a)

engenho humano realizado de acordo com regras técnico-navais;

b) capacidade de flutuação, unicamente no meio aquático, cuja deslocação

ocorra exclusivamente à superfície ou imergida; c)

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destinar-se ao empreendimento de viagens, à navegação;

A Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, 1972, concluída em Londres em 20/10/1972, foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 55/78, publicado no Diário da República I Série, n.º 145, de 27/06/1978.


d) capacidade para navegar, o que implica a simultaneidade de

i)

capacidade de flutuação (flutuabilidade)

ii) capacidade de deslocação (estabilidade) iii) susceptibilidade de governo e manobra (manobrabilidade)

e)

destinar-se ao transporte material de mercadorias e/ou de pessoas.

Desta análise ressalta que um navio, composto por uma universalidade de coisas autónomas aglomeradas de forma operacional, resulta numa realidade jurídica complexa. Existe uma legislação aprovada e publicada, mas que, por omissão de regulamentação, nunca entrou em vigor – o Código do Registo de Bens Móveis23, que no seu art.º 44.º nos apresenta navio, como qualquer embarcação no comércio jurídico, (…) e que seja destinada a comércio, pesca, recreio, reboque, ou serviços auxiliares. Por mais estranho que possa parecer a alguns, o conceito de navio engloba, assim, desde as grandes embarcações destinadas ao transporte de mercadorias ou pessoas, às destinadas à pesca ou utilizadas em lazer. Complementarmente, a legislação portuguesa24 acrescenta que quer o navio quer os factos a ele respeitantes são sujeitos a registo, de acordo com a legislação respectiva. Da conjugação do susodito, podemos construir e propor uma nova definição, determinando que navio é todo o engenho que, dotado de características funcionais específicas, incluindo meios propulsores, equipamentos e acessórios e sujeito a registo, é utilizado, ou susceptível de ser utilizado, no transporte em meio aquático. Importa acrescentar que o Estatuto Legal de um navio é-lhe conferido com o registo inicial, pela Administração do Estado da bandeira que passa a arvorar. O conjunto dos navios que arvoram determinada bandeira é a marinha desse Estado e, existindo várias actividades marítimas, a marinha pode ser destinada à defesa e segurança – Marinha de Guerra ou Armada – ou destinada a actividades mercantis ou de lazer – Marinha Mercante. Esta marinha mercante, por sua vez, é doutrinalmente sub-dividida em Marinha de Comércio, Marinha de Pesca e Marinha de Recreio. Para efeitos da aplicação da Convenção de 1952, importa relembrar que a mesma refere “navios de mar” no seu título e refere-se sempre a navio. Assim, para efeitos da aplicação da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras sobre o

23 24

Decreto-Lei n.º 277/95, de 25 de Outubro Art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 201/98, de 10 de Julho


Arresto de Navios de Mar, de forma consuetudinária, entende-se que no conceito de navio estão incluídos todos os engenhos flutuantes susceptíveis de acontecimentos de mar25, não distinguindo a sua afectação ao comércio, à pesca, ao recreio ou à investigação científica. Retomando o navio, importa ainda referir que, contrariamente aos demais bens móveis sujeitos a registo, ao navio são conferidas personalidade e capacidade judiciárias26. A atribuição de personalidade judiciária não importa, automaticamente, a conferência da capacidade judiciária, a qual é a susceptibilidade de estar por si em juízo27, ou seja, serse passível de ser demandado ou de demandar judicialmente, ou de voluntariamente se fazer representar por representante voluntário. De facto, casos há, veja-se a título de exemplo os maiores acompanhados ou os menores, em que o sujeito imbuído de personalidade judiciária não o está de capacidade judiciária. Os navios, a lei reveste expressamente de capacidade judiciária28, importando aqui referir que a capacidade judiciária tem por base um conceito de direito material – a capacidade jurídica de exercício. Assim, o navio terá capacidade processual na medida em que os resultados ou efeitos possíveis da acção sejam englobáveis na esfera da sua capacidade de exercício de direitos. Mas o navio tem uma personalidade e capacidade judiciária limitadas, respondendo, tão-somente, pela responsabilidade civil e patrimonial, ipso facto, referimonos ao navio como uma pessoa judiciária rudimentar. Coloca-se, no entanto a questão da representação: quem representa o navio em juízo? De resposta clara e directa, a norma jurídica revela: (…) é atribuída ao navio personalidade judiciária, cabendo a sua representação em juízo ao agente de navegação que requereu o despacho.29

30 31

25

“1 — Entende-se por acontecimento de mar todo o facto extraordinário que ocorra no mar, ou em águas sob qualquer jurisdição nacional, que tenha causado ou possa causar danos a navios, engenhos flutuantes, pessoas ou coisas que neles se encontrem ou por eles sejam transportadas. 2— Consideram-se acontecimentos de mar, nomeadamente, a tempestade, o naufrágio, o encalhe, a varação, a arribada, voluntária ou forçada, a abalroação, a simples colisão ou toque, o incêndio, a explosão, o alijamento ou o simples aligeiramento, a pilhagem, a captura, o arresto, a detenção, a angária, a pirataria, o roubo, o furto, a barataria, a rebelião, a queda de carga, as avarias particulares do navio ou da carga, bem como as avarias grossas, a salvação, a presa, o acto de guerra, a violência de toda a espécie, a mudança de rota, de viagem ou de navio, a quarentena e, em geral, todos os acidentes ocorridos no mar que tenham por objecto o navio, engenhos flutuantes, pessoas, cargas ou outras coisas transportadas a bordo.” (Art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 384/99, de 23 de Setembro) 26

Art.º 7.º, idem e al f) art.º 12.º (redacção em vigor) do Código de Processo Civil

27

n.º 1 do art.º 15.º do Código de Processo Civil

28

art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 201/98, de 10 de Julho

29

n.º 2 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 202/98, de 10 de Julho

30

A actividade de Agente de navegação encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 264/2012, de 20 de Dezembro, competindo-lhe prestar proteção, apoio e assistência aos armadores ou transportadores marítimos de que sejam representantes, competindo-lhes a defesa dos interesses dos navios que lhes estejam consignados (vide al. d) do n.º 1 do art.º 3.º) 31

Refere-se ao despacho de entrada – o documento que autoriza a entrada de um navio em porto, no qual constam, obrigatoriamente, o navio identificado pelo seu número IMO, o nome do navio, a nacionalidade de registo, o porto de registo, a bandeira e a identificação do armador.


IV. A penhora de embarcações de recreio Transversal, quer à closed list da Convenção quer ao elenco numerus clausus do Código Comercial, é a origem de créditos marítimos, ou de privilégios sobre os navios, estar directamente relacionada com a actividade do navio. Assim, recordamos que não é possível arrestar ou penhorar um navio por dívidas do seu proprietário que não sejam geradas pelo navio. Na prática, não pode ser penhorado um navio (de qualquer natureza – de recreio ou outra) por incumprimento de um crédito ao consumo ou dívidas do seu proprietário que não estejam relacionadas com o navio. Do mesmo modo, em caso de dívida, e.g., relativa ao lugar de marina, deve a embarcação (o navio) ser arrestada, ficando assim impossibilitada de navegar. Considerando a crescente evolução das actividades marítimo-turísticas, cujos operadores usam, na sua maioria, embarcações de recreio, o instituto do arresto pode ser a forma de exercer maior pressão sobre os devedores, porquanto os navios ficam impossibilitados de navegar e de gerar receita. Mas a verdade é mais sombria e o vazio legal imenso. Em termos de oponibilidade erga omnes, a mesma pressupõe a publicidade dos factos e das realidades jurídicas. Pese embora não seja bom, relembramos aqui a impossibilidade de ser constituída hipoteca ou reserva de propriedade sobre um navio de recreio considerando que o mesmo não será sujeito a registo comercial e tais factos não serem objecto de registo junto das capitanias32. Assim, como publicitar o arresto ou a penhora sobre uma embarcação de recreio? Antes de responder, convém recordar qual a legislação em vigor relativa à prática tabular sobre navios. Neste aspeto, pelo art.º 5.º do decreto preambular do Código do Registo Comercial33, é-nos dado a saber que o mesmo revoga toda a legislação anterior sobre as matérias por ele abrangidas, ressalvando o n.º 2 as disposições referentes ao registo de navios, as quais se manteriam em vigor até à publicação de nova legislação sobre a matéria, numa clara menção ao já referido Código de Registo de Bens Móveis. Acontece que volvidos quase 50 anos, a esperada legislação ainda não entrou em vigor. Assim, ao registo de navios, nos dias que correm, aplicam-se as disposições insertas no Regulamento do Registo Comercial aprovado pelo Decreto nº 42645, de 14 de Novembro de 1959, as quais remetem para o Regulamento Geral das

32

A este respeito, Pareceres do IRN no âmbito do Proc.º n.º C.Co. 91/2010 SJC-CT, disponível para consulta em https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/comercial/2010/p-c-co-91-2010-sjcct/downloadFile/file/ctcco91-2010.pdf?nocache=1319124797.92 e Pº R.Bm.5/2018 STJSR-CC, disponível em https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/comercial/2006/p-r-co-10-2006-dsjct/downloadFile/file/prco010-2006.pdf?nocache=1319015498.36. 33

Decreto-Lei n.º 403/86, de 3 de Dezembro


Capitanias, cujas disposições sobre o registo de navios foram revogadas pelo DecretoLei n.º 92/2018, de 13 de Novembro. Em 2018 foi criado o Sistema nacional de Embarcações e Marítimos34 (SNEM), o qual visa reunir, num sistema de dados eletrónico, nacional e único, toda a informação relativa às embarcações, aos marítimos e a outros factos relacionados com a atividade marítima, mantendo essa informação actualizada e dando publicidade da mesma. De acordo com o art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 43/2018, de 18 de Junho, são inseridos no SNEM os dados relativos: a) Às embarcações de comércio, rebocadores, investigação e auxiliares; b) Às embarcações de recreio; c) Às embarcações de pesca; d) Aos marítimos, incluindo os actos relacionados com o exercício da actividade profissional de marítimo; e) Às vistorias realizadas no âmbito dos procedimentos de registo e de certificação das embarcações referidas nas alíneas anteriores, bem como aos respetivos certificados emitidos; f) Às cartas de navegador de recreio; g) Às entidades acreditadas para ministrar formação no âmbito da actividade marítima e respetivos actos de certificação; h) A outros actos e factos previstos em legislação própria. O regime do SNEM prevê ainda que o pedido, a emissão, a disponibilização e a consulta de certidões que atestem os actos e factos sujeitos a registo e inscrição são preferencialmente efetuados por via eletrónica, ficando o interessado dispensado de obter certidão, em formato papel, caso a entidade à qual esta se destine tenha acesso aos dados e informação constantes do SNEM (artigo 7.º n.º 3) – o regime adoptado é muito semelhante às certidões comerciais, prediais e civis, em que basta indicar o respectivo código de acesso.

34

O SNEM foi criado pelo Decreto-Lei n.º 43/2018, de 18 de Junho


Retomando a questão colocada, a publicitação de ónus ou encargos sobre embarcações de recreio, o SNEM poderia ter sido a resposta esperada. Mas a legislação é contraditória relativamente aos factos sujeitos a registo e à utilização do SNEM. Relativamente à náutica de recreio, cujas embarcações, recordamos, estão excluídas do registo comercial, dispõe o art.º 5.º do Regulamento da Náutica de Recreio, sobre a distribuição de competências pelas várias entidades, que compete à Autoridade Marítima Nacional (AMN) o registo de propriedade das Embarcações de Recreio (ER) e ao Instituto dos Registos e Notariado, I.P. (IRN) o registo de todos os demais factos que, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, estão sujeitos a registo. Ora, este art.º 10.º35 do Decreto-Lei n.º 92/2018 está incluído no Capítulo IV, sendo que o n.º 3 do art.º 2.º exclui expressamente as embarcações de recreio da aplicabilidade do registo previsto no capítulo IV36. Recordamos que os dois diplomas, o RNR e o Decreto-Lei n.º 92/2018 têm a mesma data de publicação e numeração sequencial. Pode ser entendido que o legislador, apesar de no primeiro decreto (Decreto-Lei n.º 92/2018) excluir do âmbito de aplicação de todo o seu Capítulo IV as embarcações de recreio, vem no segundo (Decreto-Lei n.º 93/2018 RNR) aplicar apenas o art.º 10.º do referido capítulo. Colhendo este entendimento, o vazio referente às embarcações de recreio mantém-se, porquanto a legislação própria da competência dos serviços de registo do IRN, I. P., apenas abrange o registo de embarcações de comércio. Estamos então colocados, pelo próprio legislador, perante um vazio legal que parece impossibilitar o registo de outros factos jurídicos, que não a propriedade, sobre as embarcações de recreio. Vale a boa colaboração da AMN que entende dever promover o registo de penhoras e arrestos sobre as embarcações de recreio, pese embora não garantir a sua publicidade. As questões aqui levantadas sobre, como se defende, a não possibilidade de penhora de embarcações de recreio também foram objecto de controvérsia noutros Estados europeus. A título de ajuda à reflexão, oferece-se o caso espanhol, cujo ordenamento jurídico foi enriquecido em 2014 com a Ley de Navegación Marítima37. Encontramos reunida numa única lei, que pela sua extensão é um verdadeiro código, la regulación de las situaciones y relaciones jurídicas nacidas con ocasión de la navegación marítima38. Esta lei, ao agregar todos os aspectos relacionados com as actividades náuticas, tem o condão de facilitar a prática do direito marítimo estabelecendo, por um lado, os

35 36 37

Ley n.º 14/2014, de 24 de Julho, publicada no «BOE» n.º 180, de 25/07/2014, disponível para consulta em https://www.boe.es/eli/es/l/2014/07/24/14/con. Sofreu as seguintes alterações: o n.º 2 do art.º 101.º pelo Real Decreto-ley 26/2020, de 7 de Julho e os art.os 69.º, 109.º, 118.º e 128.º pela Ley 9/2015, de 25 de Maio. 38

Ley n.º 14/2014, de 24 de Julho, n.º 1 do art.º 1.º


princípios substantivos e, por outro, regulando a sua aplicação processual. Como se retira do seu preâmbulo, na elaboração da lei esteve presente, não só a codificação da vária legislação avulsa existente, mas também a sua adequação aos Tratados e Convenções internacionais, tendo a técnica legislativa utilizada sido a da remição para esses convénios, regulando a lei as matérias que os mesmos reservam à legislação soberana dos Estados. Segundo a filosofia preconizada, a ley aplica-se a todos os navios, sem as dicotomias geradas pela sua classificação como de comércio ou de recreio, com o habitual regime excepcionatório relativamente aos navios de estado e da armada. No que concerne ao arresto e penhora de navios, está previsto que, caso as partes (credor e devedor) sejam ambas espanholas, os navios respondem por dívidas de qualquer natureza39, aplicando-se apenas o regime da Convenção de 1999 nas situações em que uma das partes é não nacional. O exemplo acabado de oferecer, entende-se que poderia inspirar, e sobretudo motivar, o legislador nacional a coligir a legislação marítima nacional, actualmente dispersa. Também em Portugal se aplicam, quer os tratados internacionais a que o Estado aderiu, quer vária legislação avulsa e, como tal, dispersa. Os anos de 2019 e 2020 foram dos mais profícuos na publicação de diplomas legais regulando quer os intervenientes (os marítimos), quer algumas actividades náuticas. Reitera-se o entendimento que, também por cá, todas as matérias relacionadas com as actividades marítimas deveriam ser codificadas, permitindo não só a sua fácil compreensão e aplicação, como a desejada eliminação das mencionadas lacunas. Para além disso, entende-se ser necessário e urgente, apesar de toda a produção legislativa recente, adaptar alguns aspectos, e a penhora de navios é um deles, à actualidade das relações comerciais e económicas. Seguindo estas linhas de pensamento, a revisão legislativa deve consagrar, para além do registo de todas as embarcações, independentemente da sua utilização, que seja incluído na prática tabular o conjunto de ónus e encargos que sobre elas podem recair. Ademais, deverá ainda prever que as embarcações sejam passivas de ressarcir quaisquer dívidas do seu proprietário, caso todas as partes envolvidas sejam nacionais. Se, por decisão política, o trilho for o de aproximar a legislação nacional ao espírito da Convenção (sempre à de 1999), então deve-se assumir que as embarcações apenas respondem por créditos marítimos. A par das alterações recomendadas, deve o Estado português por termo, com a maior brevidade possível, à situação de fragilidade em que se encontra relativamente aos danos ambientais, depositando o seu instrumento de adesão à Convenção Internacional sobre Arresto de Navios, 1999, adoptada em Genebra em 12 de Março de 1999.

39

Idem, art.º 473.º


V. Conclusão Articulando a definição encontrada para navio – todo o engenho que, dotado de características funcionais específicas, incluindo meios propulsores, equipamentos e acessórios e que, sujeito a registo, é utilizado, ou susceptível de ser utilizado, no transporte em meio aquático – com a existência de uma marinha de recreio e com as normas internacionais sobre o arresto de navios, concluímos que sobre as embarcações de recreio apenas são possíveis arrestos nos mesmos termos dos demais navios. Por outro lado, considerando que o direito interno faz depender a possibilidade do arresto da existência de um crédito marítimo e que, numa interpretação a contrario sensu, a admissibilidade da penhora de navios depende da admissibilidade do seu arresto, fácil é arguir que a penhora de navios, incluindo os de recreio, apenas é admissível naquelas situações em que o arresto o seria (créditos relacionados com a actividade náutica). Assim, a penhora de embarcações de recreio por outras dívidas do seu proprietário, ou não relacionadas com a própria embarcação ou com actividades náuticas, entende-se não ser admissível, atento o vazio legal que se verifica. O legislador demonstrou uma total inabilidade legislativa ao contrariar o previsto pelo art.º 5.º do Regulamento da Náutica de Recreio (RNR), que distribui competências entre a Autoridade Marítima Nacional (registo de propriedade das embarcações de recreio) e o Instituto dos Registos e Notariado, I.P. (registo de todos os demais factos que, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, estão sujeitos a registo) com n.º 3 do art.º 2.º do próprio Decreto-Lei n.º 92/2018. Ora, este n.º 3 do art.º 2.º exclui expressamente as embarcações de recreio da aplicabilidade do Capítulo IV do Decreto-Lei n.º 92/2018, do qual faz parte aquele art.º 10.º. Não se alcança, portanto, a remissão do RNR para uma disposição que não se lhe é aplicável. Partindo do exemplo espanhol, cujo legislador decidiu, e a nosso ver bem, codificar a vária legislação dispersa que regulava as actividades marítimas, aproveitando para a actualizar e adequar aos “tempos modernos”, entendemos que também o legislador português deveria seguir esse caminho, reunindo não só a vária legislação avulsa que regula variados aspectos das actividades marítimas, mas, sobretudo, preenchendo as lacunas apontadas. A par dessa alteração legislativa, deve o Estado português, sem delongas, ratificar a Convenção de Genebra de 1999 sobre o arresto de navios, considerando que é por este instrumento de direito internacional que a responsabilidade

por acontecimentos de mar com consequências

ambientais é acrescida aos créditos marítimos.


Fontes: Álvaro Sardinha (2013), Registo de navios - Estados de bandeira, Colecção Mar Fundamental, Lisboa, Setembro de 2013, disponível para consulta em : https://transportemaritimoglobal.files.wordpress.com/2013/09/registo-de-naviosestados-de-bandeira.pdf Dimitrios P. Christodoulou (2000), The Single Ship Company: The Legal Consequences from Its Use and the Protection of Its Creditors, Publicações do Hellenic Institute of International and Foreign Law, ISBN: 9789601502038 Mário Raposo (2003), Problemas relacionados com o arresto de navios, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 63 - Vol. I/II Philippe Delebecque, Les «Single ship

companies», disponível para consulta em:

https://www.arbitrage-maritime.org/fr/Misc/Singleshipcompany.pdf Ship

arrests

in

practice,

(11.ª

Ed.,

2018),

disponível

em:

https://shiparrested.com/wp-content/uploads/2016/07/Final-Ship-Arrests-inPractice-11th-edition.pdf Legislação nacional disponível para consulta em: https://dre.pt/ Convenções da Organização Marítima Internacional disponíveis em: https://www.imo.org/en/About/Conventions/Pages/ListOfConven tions.aspx


Autos de Constatação no Processo Civil e no Arrendamento

Autos de Constatação no Processo Civil e no Arrendamento

Márcia Passos Deputada Advogada

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Será novidade para alguns, mas não para aqueles que, por razões diversas, tiveram já ocasião de recorrer aos Autos de Constatação para atestar a existência de determinados factos, seja num modo preventivo, seja num modo mais reativo. No contexto jurídico, o espaço para esta novidade terá surgido com a alteração de 2013 ao Código de Processo Civil (doravante CPC), através da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, onde, pela primeira vez, se introduziu um novo meio de prova diretamente relacionado com o já então existente meio da inspeção judicial, a saber, as denominadas verificações não judiciais qualificadas. Assim, prevê o artigo 494.º do CPC que “sempre que seja legalmente admissível a inspeção judicial, mas o juiz entenda que se não justifica, face à natureza da matéria, a perceção direta dos factos pelo tribunal, pode ser incumbido técnico ou pessoa qualificada de proceder aos atos de inspeção de coisas ou locais ou de reconstituição de factos e de apresentar o seu relatório…”. Trata-se, assim, de um meio de prova que quer trazer uma maior segurança probatória do que o depoimento testemunhal, tendo ainda a vantagem de ser obtido de forma mais fácil, mais económica e certamente mais célere do que a própria inspeção judicial ou o recurso a um perito em sede de prova pericial1. Além disso, este meio de prova torna-se ainda mais fiável quando o mesmo é realizado por autoridade ou oficial público, tal como se extrai do disposto no n.º 2 da mesma disposição legal2. Por outro lado, cumpre também realçar que a solução prevê a intervenção de outros profissionais, a saber, técnico ou pessoa qualificada, deixando assim claro que a responsabilidade pela realização deste meio de prova recai, não sobre qualquer indivíduo, mas sim sobre alguém que terá determinadas características, nomeadamente o conhecimento especializado sobre determinadas matérias ou a qualificação adequada a determinada verificação. Estes, o técnico ou a pessoa qualificada, podem ser autoridades ou oficiais públicos e por isso há quem defenda que os oficiais de justiça, porque são oficiais públicos, podem ser indicados para a realização da verificação não judicial qualificada3. Em qualquer dos casos e independentemente do profissional indicado, o que se pretende através das verificações não judiciais qualificadas é a constatação de determinados factos com um grau de fiabilidade e segurança superior à falível prova testemunhal, mas onde não se afigure adequado exigir conhecimentos e juízos científicos, caso em que o meio de prova apropriado seria a prova pericial4. Considerando o exposto, não temos dúvidas em afirmar que o Solicitador, enquanto profissional, integra o conceito de pessoa qualificada, podendo, assim, ser indicado para realizar a verificação não judicial qualificada. Além disso, se considerarmos o facto deste

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Neste sentido vide Pais de Amaral, Jorge Augusto, in Direito Processual Civil, 2015, 2.ª edição, Almedina, pg. 48 Artigo 494.º, n.º 2: “Sem prejuízo das atestações realizadas por autoridade ou oficial público, as verificações não judiciais qualificadas são livremente apreciadas pelo tribunal.” 3 Neste sentido Neto, Abílio, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição revista e ampliada, janeiro/2014, Almedina, pg. 553. 4 Assim mesmo refere a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, in www.parlamento.pt 2

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profissional ser competente para dotar de fé pública determinados documentos5, parecenos possível integrar o Solicitador não só no conceito de pessoa qualificada para os termos do artigo 494.º, n.º 1 do CPC, mas também integrá-lo no conceito de oficial público, conforme previsto no n.º 2 desta disposição legal. Por outro lado, importando o exemplo do sistema legal francês, vemos que o ali designado “Huissier de Justice” com funções muito semelhantes à do Solicitador e do Agente de Execução, tem competência para elaborar o que em França se designa por “Constat”, o qual tem atualmente força de documento público6. Ora, foi precisamente com esta inspiração e exemplo que a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) criou o conceito de Autos de Constatação, tendo vindo a desenvolver, desde 2017, uma plataforma informática apta a possibilitar o registo e o depósito de tais Autos, conferindo-lhes assim características de inviolabilidade e consequente fiabilidade. Os Autos de Constatação destinam-se, como o próprio nome refere, a reproduzir a constatação de factos, sejam eles controvertidos ou não, e que são aqueles que se deparam aos olhos do Solicitador e que este os traduz num documento escrito, podendo o mesmo ser acompanhado de fotografias e outros registos audiovisuais. Este documento funciona como o relatório da observação, clara e completa, que o Solicitador fez de determinada coisa, móvel ou imóvel, sem qualquer juízo de valor ou considerações seja de que espécie for. Tal documento é depois objeto de depósito na referida plataforma, sendo-lhe conferido um número de registo o que lhe concede a máxima segurança quanto à sua autenticidade. Na verdade, caso o documento necessite de ser alterado por ser posteriormente detetado algum erro ou incongruência, a alteração ficará também ela registada e ali justificada. Conjugando tais características com o disposto no artigo 494.º do CPC, parece-nos ser possível concluir, com facilidade, que o Auto de Constatação se adequa ao conceito e fim das verificações não judiciais qualificadas, maioritariamente quando se trata de inspecionar coisas ou locais, afigurando-se lógico que a indicação do Solicitador seja feita pelo próprio juiz quando este entenda, seja ex oficcio, seja porque tal lhe foi requerido pelas partes, que deverá ter lugar uma verificação não judicial qualificada. Mas para além deste âmbito judicial, urge salientar o contributo preventivo de litígios que os Autos de Constatação revestem, particularmente no âmbito das relações arrendatícias. Na verdade, dada a obrigação do arrendatário de manter o imóvel arrendado em bom estado de conservação, não nos parece despiciendo, mas antes de elevada utilidade, elaborar um Auto de Constatação no momento da celebração do contrato de 5

Vide artigo 38.º, n.º 1 do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março. A propósito da proximidade entre o sistema legal francês e português, bem como sobre a origem do “constat” e do seu valor probatório, ver, Portela, Irene, in Manual de Formação – O regime da prova e o âmbito de aplicação da constatação dos factos, in https://ifbm.osae.pt/cursos.aspx. 6

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arrendamento, auto este que, salvo melhor entendimento, deverá fazer parte do próprio contrato, assegurando-se assim o conhecimento de ambas as partes do real estado do imóvel na data da sua entrega ao arrendatário. Tal como poderá ter utilidade proceder de igual forma quando porventura sejam realizadas obras no locado. Contudo, é principalmente no momento da entrega do imóvel ao senhorio, que os Autos de Constatação podem revestir uma especial relevância. Atestando, nesse momento, o bom ou mau estado de conservação do mesmo, o Auto de Constatação refletirá também a existência de eventuais danos provocados durante o período em que vigorou o arrendamento, sendo assim um importante contributo para a necessária imputação da inerente responsabilidade civil. Assim, o Auto de Constatação pode ser usado com um cariz predominantemente preventivo, servindo para verificar factos num determinado momento de uma relação jurídica, evitando assim que os mesmos sejam contestados quando essa relação jurídica sofre alguma perturbação, ou quando tais factos porventura se tornem controvertidos e sejam transportados para um litígio judicial. Estando o titular do direito munido deste documento, certamente estará muito melhor preparado em termos de produção de prova, do que aquele que apenas tem uma mera prova testemunhal ou até uma inspeção ao local ou verificação não judicial qualificada. É que quando se trata de danos provocados num imóvel durante o período do contrato de arrendamento, a produção de prova assentará sempre entre a comparação do estado do imóvel no momento do início do contrato e no momento do seu término. Sendo assim, não existirá meio de prova mais fidedigno do que, neste caso concreto, dois Autos de Constatação: um elaborado no momento da entrega do imóvel ao arrendatário e outro no momento da sua devolução ao senhorio. E isto aplica-se quer a devolução seja efetuada pelo próprio arrendatário, seja de forma coerciva, ora no âmbito de uma ação executiva para entrega de imóvel arrendado7, ora através de um procedimento especial de despejo8. Muitos outros exemplos poderíamos citar para demonstrar a utilidade dos Autos de Constatação, tais como aqueles que podem ser concretizados no âmbito dos contratos de empreitada, relacionados com as diferentes fases da obra ou no momento da entrega dos autos de receção dos trabalhos nas várias especialidades como eletricidade, carpintaria, vidraria, instalação de equipamentos eletrodomésticos e outros. Utilidade esta transversal a muitos contextos e matérias, como o comércio eletrónico, o direito da propriedade industrial, intelectual e da concorrência, entre outros9. Seja qual for o contexto, temos a convicção de que os Autos de Constatação, enquanto um meio de prova que pode e, a nosso ver, deve, ser preparado preventivamente, têm a 7

Ver artigo 862.º do CPC. Ver artigo 15.º-J e ss do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano). 9 Ver, a este propósito, os vários exemplos citados por Portela, Irene no Manual acima citado. 8

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particularidade de prevenir litígios e de assegurar um melhor cumprimento dos contratos, tal é a segurança jurídica que os mesmos conferem às partes no que concerne à realidade dos factos, num determinado momento. E esta circunstância, de certeza jurídica, confere segurança, seja no início de uma relação contratual, seja durante a mesma ou no seu término. Ora, é esta característica de certeza jurídica que se pretende alcançar nas verificações não judiciais qualificadas, munindo assim o julgador de um instrumento fidedigno que o auxilie na formação da sua convicção, mormente tratando-se de uma atestação de factos elaborada por um oficial público como poderá ser considerado, para este efeito, o Solicitador. Bibliografia Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, www.parlamento.pt Neto, Abílio, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição revista e ampliada, janeiro/2014, Almedina Pais de Amaral, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, 2015, 2.ª edição, Almedina Portela, Irene, Manual de Formação – O regime da prova e o âmbito de aplicação da constatação dos factos, https://ifbm.osae.pt/cursos.aspx

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O Direto de Remição – No âmbito do Processo Executivo

O Direito de Remição No âmbito do Processo Executivo

Tânia Cunha Licenciada e mestre em Solicitadoria pela ESTG.PP, aprovada no Estágio para Solicitadores em 2021

Vanessa Rocha Licenciada e mestre em Solicitadoria pela ESTG.PP, aprovada no Estágio para Solicitadores em 2021


RESUMO 1.A ação executiva; 2. O direito de remição: 2.1. Conceito, 2.2. Razão de ser do direito de remição, 2.3. A quem compete, 2.4. Exercício do direito de remição; 2.5. Pós exercício do direito de remição; Conclusão; Bibliografia e Webgrafia; Jurisprudência. A ação executiva A ação executiva visa a satisfação coativa ao exequente de um direito previamente reconhecido, contudo, para o efeito é necessário que estejam verificados determinados requisitos, como a existência de um título executivo (cfr. arts.º 10.º, n.º 5 e 703.º, ambos do Código do Processo Civil, doravante designado de CPCivil) e que a prestação devida ao exequente assuma três características essenciais: certeza, exigibilidade e liquidez (cfr. art.º 713.º do CPCivil)1. Encontrando-se verificados estes requisitos, necessários à instauração da ação executiva, a mesma segue os seus termos de modo que o credor seja ressarcido da obrigação não voluntariamente cumprida pelo devedor. A venda executiva, enquanto fase processual, constitui um instrumento que permite a conversão dos bens do executado numa quantia pecuniária permitindo ao exequente o cumprimento da sua prestação ou, pelo menos, parte dela. Para o efeito, normalmente é dada publicidade aos bens para que os interessados possam apresentar as suas propostas, o que significa que os bens podem ser adquiridos por qualquer pessoa desde que se verifiquem todas as condições para tal. Ou seja, como o objetivo do processo executivo é a satisfação dos direitos do credor através do produto da venda dos bens, é completamente irrelevante quem vai adquirir esses mesmos bens e é precisamente neste cenário que o direito de remição assume especial importância, na medida em que visa, essencialmente, impedir a saída dos bens do património familiar do devedor, evitando a aquisição dos mesmos por pessoas estranhas ao executado. As ações executivas podem revestir três modalidades - para pagamento de quantia certa2 (arts.º 724.º e ss. do CPCivil), entrega de coisa certa (arts.º 859.º e ss. do CPCivil) e prestação de facto (art.º 868.º e ss. do CPCivil)), porém, o direito de remição somente se verifica no processo executivo para pagamento de quantia certa, porque, como sabemos, no processo executivo para pagamento de quantia certa todo o património do devedor, desde que suscetível de penhora responde pelas suas obrigações (cfr. art.º 601º do CCivil), pelo que é efetuada a penhora dos bens do executado para que com o produto destes se

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FREITAS, José Lebre – A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, 2018, pp. 39- 44. 2 O processo executivo para pagamento de quantia certa, nos termos do art.º 550.º do CPCivil, pode ainda tomar a forma ordinária ou a forma sumária. Em termos práticos, a diferença entre elas verifica-se apenas na rapidez em efetuar a penhora do património do devedor, isto é, em termos sequenciais, na forma ordinária, em primeiro efetuase a citação ao executado para que se possa opor à execução (utilizando para tanto os fundamentos previstos nos arts.º 729.º e ss. do CPCivil) e, posteriormente, realiza-se a penhora, enquanto que na forma sumária, em primeiro lugar efetua-se a penhora dos bens do executado e seguidamente procede-se, em simultâneo, à citação e à notificação ao executado para que possa reagir à execução e opor-se à penhora respetivamente (art.º 856.º, n.º 1 do CPCivil).


pague ao exequente, reparando o seu direito violado (art.º 795.º do CPCivil). O produto dos bens é conseguido através da venda executiva, venda essa que não se verifica nas demais formas do processo executivo, pois no caso da execução para a entrega de coisa certa pretende-se efetivamente a entrega de um bem que não foi efetuada voluntariamente e, na execução para prestação de facto, visa-se uma atuação seja pelo próprio devedor ou por outrem. Direito de Remição Conceito e Natureza O direito de remição consiste num “mecanismo de proteção do património do executado”3, cujo exercício pertence a alguns dos parentes mais próximos do executado de modo a conservar, no âmbito do seu património familiar, o bem ou os bens objeto de venda no processo executivo. Assim, na fase da venda do património penhorado, o cônjuge e os parentes em linha reta (os descendentes e os ascendentes) gozam de uma preferência “no confronto com estranhos”4, o que permite que os bens sejam adquiridos por familiares do executado, desde que o façam em “igualdade de condições e pelo mesmo preço”5, tal como resulta do estatuído no art.º 842.º do CPCivil. Por esse motivo é que o direito de remição apenas pode incidir sobre uma proposta concretamente formulada pelo adjudicatário ou pelo comprador, retirando-se daqui também que não sendo apresentada nenhuma proposta o direito de remição não pode ser validamente exercido6. Este direito processual contemplado nos arts.º 842.º a 845.º do CPCivil7 é caracterizado pela doutrina de diversa natureza, no sentido em que uns Autores tendem a qualificá-lo como um direito de preferência especial, enquanto que outros tendem a considerá-lo como um direito distinto e autónomo do direito de preferência8. Importa, assim, recordar que o direito de preferência, frequentemente associado a um negócio jurídico, determina a obrigação de um sujeito dar preferência a outro na eventualidade de pretender celebrar determinado negócio no futuro com terceiro9, preferência essa que pode ser legal ou

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GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo, Coimbra: Almedina, 2020, p. 392. IDEM, p. 393. 5 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva Anotada e Comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 526 6 CÂMARA DOS SOLICITADORES - Manual de Boas Práticas – A Venda Executiva (Parte II), Lisboa, 2012, p. 30. Disponível em: https://www.osae.pt/uploads/cms_page_media/808/manual%20sobre%20a%20venda%202.pdf 7 Ao contrário de outras matérias que sofreram uma profunda alteração em consequência da reforma do processo civil em 2013, o direito de remição manteve a génese que constava nos artsº. 912.º e ss. do CPCivil de 1961. 8 CARVALHO, Filipa - Os poderes processuais do cônjuge do executado, Dissertação de Mestrado em Direito. Coimbra: UCFD, 2014, pp. 114 a 118. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/ 9 Acerca do direito de preferência, CARLOS LIMA escreve: “a preferência centra-se na seguinte ideia: em relação a determinado negócio jurídico que um sujeito vinculado a dar preferência se proponha celebrar com terceiro, o titular do correlativo direito tem a possibilidade de chamar a si o negócio, desde que se disponha a contratar, em substituição do terceiro, nas mesmas condições em que este o faria”. Cfr. Direitos legais de preferência, Publicações Ordem dos Advogados, 2005, Disponível em: https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez2005/doutrina/carlos-lima-direitos-legais-de-preferencia/ (consultado em 17-12-2020). 4


convencional conforme resulte da lei ou de negócio jurídico10. Depois, importa esclarecer que independentemente da natureza atribuída ao direito de remição, o mesmo prevalece sobre o direito de preferência, tal como dispõe o art.º 844.º, n.º 1 do CPCivil. Esta prevalência acontece mesmo que os preferentes não sejam notificados ao abrigo do disposto no art.º 819.º do CPCivil para exercer o seu direito, o que determina que não possam ser intentadas ações de preferência na medida em “que o exercício do direito de remição faz caducar esse direito de ação dos titulares do direito de preferência”11. Acerca da natureza do direito de remição, JOSÉ LEBRE DE FREITAS acredita que o direito de remir conferido aos parentes do executado é um “direito especial de preferência”, na medida em que apenas pode ser exercido por determinados familiares do executado e não por todos, o que significa, e como veremos, que é um direito cujo recurso é limitado a familiares realmente próximos, como o cônjuge e os descendentes ou ascendentes. Além deste fundamento, o mesmo Autor justifica esta caracterização pelo facto de ser um direito que, tal como resulta do art.º 844.º do CPCivil, prevalece sobre o próprio direito de preferência12. No mesmo sentido, nas palavras de RUI PINTO, o direito de remição enquanto “direito de preferência qualificado”13 proporciona a determinadas entidades a substituição “ao adjudicatário ou ao comprador, na aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido”14, o que significa que a aquisição do bem penhorado não será efetuada pelo comprador através da venda executiva como acontece na maioria das situações, mas por um familiar próximo do executado nos exatos moldes da venda executiva. Por sua vez, ALBERTO DOS REIS e SALVADOR COSTA defendem a autonomização do direito de remição comparativamente com o direito de preferência. De acordo com o primeiro Autor, não obstante o direito de remição se exercitar da mesma forma que o direito de preferência, existem diferenças entre eles, nomeadamente, quanto à base em que assentam e ao fim a que visam. De acordo com o segundo Autor, há decididamente uma diferença entre o direito de remição e o direito de preferência, diferença essa reconhecida logo no art.º 844.º, n.º 1 do CPCivil, onde é conferida a prevalência do direito de remição sobre o direito de preferência, e que a existência do direito de remição visa unicamente a proteção do património do executado15. O acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA acompanha este último entendimento e, citando Alberto dos Reis defende que, “o direito de remição não é uma modalidade do

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O direito de preferência convencional existe em consequência dos chamados pactos de preferência, cuja regulação está prevista nos arts.º 414.º a 423.º do CCivil. De acordo com o art.º 414.º do CCivil, diz-se pacto de preferência, “a convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa”. 11 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 531. 12 FREITAS, José Lebre – A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, 2018, p. 385. 13 PINTO, Rui – A ação executiva, Lisboa: AAFDL, 2018, p. 886. 14 IDEM, p. 885. 15 CARVALHO, Filipa - Os poderes processuais do cônjuge do executado, Dissertação de Mestrado em Direito. Coimbra: UCFD, 2014, pp. 114 a 118. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/.


direito de preferência, sendo antes direitos distintos, com diversa natureza, quer pela base em que assentam, quer pelo fim a que visam”. Mais refere que, “o direito de remição e direito de preferência são noções e conceitos nitidamente diferenciados. (…) o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar do executado para as mãos de pessoas estranhas”16. Todavia, este último entendimento não é, de todo, apoiado pela nossa jurisprudência. Ao invés, a jurisprudência maioritária considera o direito de remição como um direito especial de preferência, mais concretamente, um direito de índole familiar. Neste âmbito, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA sustenta que, “está-se perante um efetivo direito de resgatar os bens vendidos entendido por alguns como um direito de preferência reforçado que se faz prevalecer sobre os demais direitos de preferência (legais e convencionais)”17. De igual sentido, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES entende que, “o direito de remição constitui um verdadeiro direito de preferência que tem por finalidade a proteção do património familiar, querendo evitar-se que os bens saiam para fora da família”18. Como podemos verificar, a questão previamente desenvolvida consiste num tema um tanto ao quanto complexo e, por isso, origina opiniões diversas. Face do exposto, seguimos o entendimento defendido por ALBERTO DOS REIS e SALVADOR COSTA e, portanto, também defendemos que o direito de remição é um direito autónomo quando comparado com o direito de preferência. Assim sendo, sustentamos a nossa opinião com base em dois argumentos que, na nossa perspetiva são aqueles que se demonstram mais sólidos e inequívocos, isto é, o facto de o direito de remição prevalecer sobre o direito de preferência, bem como o seu âmbito de aplicação, ou seja, o direito de remição destinase única e exclusivamente a proteger o património familiar do executado e o remidor apenas pode lançar mão deste direito neste contexto, ao passo que o direito de preferência pode ser utilizado numa panóplia de situações, tais como nos negócios jurídicos de compra e venda. Razão de ser do direito de remição Apurada a noção e a natureza do direito de remição, questiona-se qual é a finalidade do direito de remição. Neste aspeto, a doutrina defende que o exercício deste direito impede a saída dos bens do património familiar do executado, uma vez que a compra do bem é efetuada não por um terceiro estranho, mas sim por um familiar dentro do âmbito que a lei permite (ou seja, o familiar substitui o comprador na aquisição do bem).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 617/09.8T2ETR.S1, de 02-11-2010. Relator Azevedo Ramos. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo n.º 532/2008-7, de 29-01-2008. Relatora Graça Amaral. 18 TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 418/14.1T8VNF-G.G1, de 24-11-2016. Relatora Ana Cristina Duarte. 17


A este propósito, partilhamos o entendimento de VIRGÍNIO DA COSTA RIBEIRO e SÉRGIO REBELO que consideram que o direito de remição “visa tutelar a manutenção e intangibilidade do património familiar, evitando (…) a saída dos bens do campo do património da família do executado”19, o que significa que, não obstante a penhora, o bem saí do património do executado, mas permanece no seu seio familiar e, para além disso, o exequente consegue ver o seu direito satisfeito nos mesmos termos de uma venda judicial “normal”. Assim, e conforme expõe RUI PINTO, mais do que impedir a saída dos bens, permite a proteção de todo o património familiar, evitando a existência de maiores prejuízos tanto para o executado como para os seus familiares20. Por via de regra, a razão na base do exercício deste direito assenta no valor sentimental que as pessoas têm para com os bens materiais. Falamos de uma importância e valor a nível pessoal e não de mercado (e, portanto, que não se traduz numa quantia monetária), que acontece, por exemplo, nos veículos automóveis, casas, mobílias e outros, que passam de geração em geração. Desse modo, apesar do processo execução, o legislador teve o cuidado de criar mecanismos de proteção, que permitissem assegurar que o património do executado não saía do seu âmbito familiar, sem que fosse dada a possibilidade de os seus familiares os adquirirem. Não obstante, JOSÉ LEBRE DE FREITAS alerta-nos para a utilização indevida do direito de remição, nas situações em que o executado não previne a execução e consequente penhora dos seus bens, na medida em que lhe pode ser vantajosa a venda dos bens, pois os seus familiares podem adquiri-los por preço inferior à realidade, desvinculando-se, dessa forma, das obrigações que tem para com os credores e mantendo o património em família. Mais ainda, de acordo com o mesmo autor, como se trata de um mecanismo legal no âmbito do processo executivo, o exercício deste direito dificulta o recurso por parte dos credores às ações de impugnação pauliana, o que significa que a transmissão do bem do executado para o seu familiar não pode ser colocada em causa pelos credores, pois ocorreu no âmbito de uma ação judicial21. Não obstante, com o devido respeito, como referimos o direito de remir só é validamente exercido se for proposto o mesmo preço pela qual é feita a adjudicação ou venda (art.º 842.º, in fine do CPCivil), o que significa que o preço pelo qual o familiar vai adquirir o bem dependerá necessariamente da proposta formulada pelo proponente, que pode não ser mais baixa do que o preço real do bem. Dada a sua finalidade, a lei não permite ao titular do direito de remição passar procuração irrevogável a terceiro, para que este terceiro o exerça, nem permite que seja conferido o direito de negociar consigo mesmo, ou, celebrar promessas de compra e venda, na medida

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RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 526. 20 PINTO, Rui – A ação executiva, Lisboa: AAFDL, 2018, p. 886. 21 FREITAS, José Lebre – A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, 2018, p. 388.


em que estes negócios não incidem diretamente sobre o bem, objeto da venda, mas antes na alienação do próprio direito de remição22. A quem compete O direito de remição é o direito processual reconhecido apenas aos familiares do executado taxativamente previstos no art.º 842.º do CPCivil, todavia, é um mecanismo de índole meramente facultativa e não obrigatória. De facto, tal como resulta expressamente do art.º 843.º do CPCivil, o direito de remição “pode ser exercido”, dependendo unicamente da vontade daqueles a quem é concedido. E a quem é concedido tal direito? Primeiro, o cônjuge do executado, desde que não esteja judicialmente separado de pessoas e bens porque caso o esteja não se justifica a finalidade do direito de remição23. Além do cônjuge, o direito pode também ser exercido pelos descendentes ou ascendentes do executado, não tendo a lei especificado se na linha reta ou colateral, nem limitado o(s) grau(s). No entanto, de forma a impedir alguns conflitos, a lei estabelece uma hierarquia entre eles. Dessa forma, prevê o art.º 845.º, n.º 1 do CPCivil, uma ordem de preferência, devendo, em primeiro lugar, ser exercido pelo cônjuge do executado, em segundo lugar pelos descendentes e, por último, pelos ascendentes do executado. Relativamente aos últimos, o conflito não fica resolvido, pelo que em caso de concurso entre os vários descendentes e ascendentes preferem os de grau mais próximo comparativamente com os de grau mais afastado (art.º 845.º, n.º 2, 1.ª parte do CPCivil). A título de exemplo, e no que concerne aos descendentes do executado, estabelece-se uma preferência quanto aos seus filhos em detrimento dos seus netos. Por sua vez, nas situações em que o direito é exercido por pessoas em igualdade de grau deve ser aberta licitação entre eles, preferindo aquele que oferecer o montante mais elevado (art.º 845.º, n.º 2, in fine do CPCivil)24. Porém, mais do que ser parente do executado, o remidor (ou seja, aquele que vai exercer este direito), não pode ser parte na ação executiva, sob pena de colocar em causa a própria finalidade do direito de remição. Por outras palavras, o cônjuge, descendente ou ascendente que tenha intenção de recorrer a este instituto legal não o pode fazer caso seja também parte na ação, independentemente da qualidade em que intervém, isto é, quer seja como próprio executado (co executado, juntamente com o seu familiar), ou em substituição do executado como consequência do incidente de habilitação de herdeiros25.

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CÂMARA DOS SOLICITADORES - Manual de Boas Práticas – A Venda Executiva (Parte II), Lisboa, 2012, p. 29. Disponível em: https://www.osae.pt/uploads/cms_page_media/808/manual%20sobre%20a%20venda%202.pdf. 23

Relembre-se que a separação de pessoas e bens é um mecanismo previsto nos arts.º 1794.º e ss. do Código Civil de modificação do vínculo matrimonial em que, embora os cônjuges se manterem casados, permite extinguir alguns deveres decorrentes do casamento, como é o caso da coabitação e assistência, permitindo a partilha dos bens comuns do casal (cfr. art.º 1795.º- A do Código Civil). 24 GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª edição, Coimbra: Almedina, 2020, p. 393. 25 Neste sentido, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO refere expressamente que, “(…) o filho do executado, habilitado como herdeiro daquele, por morte do pai, em ação executiva que contra aquele pendia, não goza do direito de remição, por, em consequência da habilitação, deter, agora, a qualidade de executado”. Cfr. Processo n.º 0653650, de 11-09-2006. Relator Abílio Costa.


Acerca desta matéria, EDUARDO PAIVA e HELENA CABRITA, consideram que a intervenção do remidor no processo executivo é motivo de incompatibilidade com o exercício do seu direito, uma vez que se pretende a preservação do património do executado no seu seio familiar e não a sua saída. Assim, os parentes ao intervirem no processo, seja na posição de executado(s) ou de herdeiros do executado, fazem-no nessa qualidade e não como terceiro, o que faz com que o seu próprio património possa também ser objeto de penhora e ulterior venda, o que significa que um bem adquirido ao abrigo do exercício do direito de remição pode facilmente ser “perdido” com a nova apreensão no mesmo processo, saindo dessa forma do seio familiar26. Pense-se no seguinte: um bem adquirido pelo cônjuge do executado na efetivação do exercício do direito de remição pode ser novamente penhorado para o cumprimento da dívida exequenda, caso o cônjuge seja também executado na mesma ação executiva. Exercício do direito de remição Conforme referimos anteriormente, o direito de remição enquadra-se na tramitação da ação executiva para pagamento de quantia certa na fase da venda dos bens penhorados, pelo que, tal como consta no art.º 842.º do CPCivil, apenas existe direito de remição se existir efetivamente venda ou adjudicação27. Assim, o direito de remição somente pode ser exercido depois do agente de execução ter determinado a venda e, independentemente da modalidade, já existir uma proposta concreta aceite, visto que é sobre a proposta de valor mais alto e aceite que o direito de remição será exercido28. Além disso, conforme considera RUI PINTO, trata-se de uma “intervenção espontânea”29 cujo exercício deste direito por parte do remidor nasce da sua vontade e decorre da publicidade natural do processo e, portanto, não compete ao agente de execução a notificação das pessoas referidas anteriormente para que exerçam a remição30. Por outras palavras, é sobre o executado e os seus familiares que recai o ónus de acompanhar de forma diligente o processo executivo em que esteja em causa o património familiar. No que respeita ao prazo concedido, temos de considerar que o exercício do direito pode ser exercido pelo remidor até aos limites previstos no art.º 843.º, n.º 1 do CPCivil. Mas o

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PAIVA, Eduardo e CABRITA, Helena – O processo executivo e o agente de execução, 3ª edição, Coimbra Editora: 2013, p. 211. 27 Conforme consta no art.º 842º do CPCivil, “é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda”. 28 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 529. 29 PINTO, Rui – A ação executiva, Lisboa: AAFDL, 2018, p. 886. 30 No mesmo sentido, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA refere que, “o interessado na remição, como terceiro, não tem de ser pessoalmente notificado dos atos e diligências que vão ocorrendo na tramitação da causa, presumindo a lei de processo que o seu familiar – executado e, ele sim, notificado nos termos gerais, - lhe dará conhecimento atempado das vicissitudes relevantes para o eventual exercício do seu direito”. Cfr. Processo n.º 386/12.4TBSRE-B.C1, de 27-05-2015. Relator Arlindo Oliveira. Do mesmo modo, segundo parte do sumário do acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, “I. Os titulares do direito de remição não têm de ser notificados de que vai ser realizado o ato jurídico no qual têm o direito de remir ou para exercerem, querendo, este direito. II - Não é aplicável ao direito de remição, por analogia, a norma que prevê a notificação dos preferentes”. Cfr. Processo n.º 4666/11.8TBMAI-AA.P1, de 23-06-2015. Relator Aristides Rodrigues De Almeida.


referido preceito estabelece dois momentos distintos conforme a modalidade de venda adotada no processo31. No caso da venda mediante proposta em carta fechada32 (art.º 843.º, n.º 1, al. a) do CPCivil) o direito de remição deve ser exercido até à emissão do título de transmissão dos bens para o proponente ou no prazo previsto no art.º 825.º, n.º 3 do CPCivil (cinco dias após o termo do prazo do proponente ou preferente faltoso). Perante esta modalidade de venda, o art.º 843.º, n.º 2 do CPCivil prevê duas situações distintas: o exercício do direito de remição na abertura e aceitação das propostas e após essa abertura e aceitação. Em qualquer dos casos, perante a falta de depósito, o remidor fica sujeito às consequências previstas no art.º 825.º do CPCivil (art.º 843.º, n.º 2, in fine do CPCivil). Quer isto dizer que, se o remidor exercer o seu direito na abertura e aceitação das propostas aplica-se o disposto no art.º 824.º do CPC, isto é, o remidor deve juntar obrigatoriamente ao processo uma caução correspondente a 5% do valor anunciado (através de cheque visado ou garantia bancária) à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências são promovidas pela secretaria, do tribunal. Como tal, o remidor não necessita de efetuar desde logo o pagamento da totalidade do preço, usufruindo da mesma faculdade concedida ao proponente que, numa primeira fase, efetua o pagamento de 5% do preço, sendo posteriormente notificado para realizar o pagamento do remanescente (aplicação do n.º 2 do art.º 824.º do CPCivil). Porém, se o direito for exercido em momento posterior à abertura e aceitação das propostas, o remidor deve necessariamente depositar a totalidade do preço proposto pelo proponente e ainda um acréscimo de 5%, a título de indemnização, no caso de o proponente já ter depositado a totalidade do preço proposto (arts.º 843.º, n.º 2 e 824.º, n.º 2 do CPCivil). Entende-se que estes 5% pagos a título de indemnização são uma espécie de “compensação devida ao proponente pela frustração das suas expectativas de aquisição do bem”33. Por isso, a lei prevê expressamente o cumprimento deste montante de 5% do valor realizado pelo proponente no caso deste ter procedido ao depósito da totalidade do valor para efetivar a sua proposta, contudo, não consagra disposição semelhante quando o preferente tenha também exercido o seu direito. Assim, coloca-se a questão de saber se o remidor tem de efetuar, a título de compensação, o depósito de 5% do valor pago pelo preferente. A este respeito, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA considera que deve ser realizada uma interpretação extensiva desta norma, no sentido em que o remidor deve

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Cfr. art.º 811.º do CPCivil. Recorde-se que a modalidade da venda é determinada pelo agente de execução após serem ouvidos o executado, o exequente e os credores que gozam de garantia sobre os bens cuja venda se pretende (art.º 812.º, n.º 1 do CPCivil). 32 A venda por proposta em carta fechada (arts.º 816.º a 829.º do CPCivil) dada a sua maior regulação em comparação com as outras modalidades de venda constitui uma espécie de modalidade preferencial na venda dos bens, em que se procede resumidamente à publicidade do bem, receção das propostas (devidamente caucionadas) e aceitação da proposta de valor maior, isto tudo no tribunal sob a observação do juiz. Para mais desenvolvimentos, vide FREITAS, José Lebre – A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, 2018, pp. 375-377. 33 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 530.


também efetuar o cumprimento desse valor ao preferente pelos prejuízos que lhe causou se o preferente tiver, também, depositado a totalidade do preço34. Após ter sido exercido o direito de remição e aceite pelo agente de execução, compete, ainda, ao remidor dar cumprimento a todas as obrigações fiscais associadas a esta compra, devendo, posteriormente, e pelo agente de execução ser lavrado o título de transmissão, tal como previsto no art.º 827.º do CPCivil. Este título de transmissão deve identificar o processo executivo, as partes e o bem, assim como o preço pelo qual foi adjudicado e que essa adjudicação resultou do exercício do direito de remição. Além disso, neste título, o agente de execução deve certificar que o preço pelo qual foi exercido o direito encontrase efetivamente pago, tal como declarar o cumprimento ou isenção das obrigações para efeitos ficais e a data na qual os bens foram adjudicados (cfr. art.º 827.º, n.º 1 do CPCivil). Após a elaboração do título compete ainda ao agente de execução promover o registo da adjudicação (cfr. art.º 827.º, n.º 2 do CPCivil). Nas restantes modalidades de venda35/36 (art.º 843.º, n.º 1, al. b) do CPCivil), o direito de remição deve ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta. Por exemplo, no caso dos bens móveis, o remidor pode exercer o seu direito até à entrega do bem pelo agente de execução ao proponente; e, por sua vez, no caso dos bens imóveis este exercício pode ser efetuado até à emissão do título de transmissão37. Nestas outras modalidades de venda inclui-se a venda por leilão eletrónico, que atualmente assume uma grande importância na venda em processo executivo. De acordo com o art.º 13.º do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de novembro, responsável pela criação da plataforma «www.e-leiloes.pt», o exercício do direito de remição deve ser efetivado diretamente no processo executivo correspondente. Nesta modalidade de venda, o direito de remição deve ser exercido depois de aceite a licitação de valor mais elevado e até ao limite dos prazos referidos anteriormente.

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Neste sentido, refere o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 2741/11.8TBPBL-I.C1, de 14-07-2014, em que é relator Henrique Antunes que, “(…) se tiver sido exercido um direito de preferência e a totalidade do preço da venda sido depositada, não pelo proponente mas pelo preferente, como o dano decorrente do exercício da remição se produz na esfera jurídica do preferente, a norma relativa à indemnização devida pelo remidor deve ser objeto de interpretação extensiva, de modo a que também ao preferente preterido se reconheça o direito à reparação do dano que a remição dos bens, nas condições apontadas, lhe causou”. 35 De acordo com o art.º 811.º do CPCivil, além da venda mediante proposta em carta fechada, a venda pode ser efetuada em mercados regulamentados, venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens, venda por negociação particular, venda em estabelecimento de leilões, venda em depósito público ou equiparado e venda em leilão eletrónico. 36 O acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA entende que a venda, através de negociação particular, mas antecedida de tentativa de venda mediante proposta em carta fechada, apesar de frustrada por falta de propostas, carece de depósito da totalidade do preço aquando da apresentação do requerimento por parte do remidor, tal como resulta do art.º 843.º, n.º 2 do CPCivil. A este respeito refere “(…) ao exercer o direito de remição já após o momento de abertura das propostas em carta fechada, o Requerente tem de efetuar o depósito imediato e integral do preço, de acordo com o estabelecido no artº 843 nº 2 do CPC., pois só assim está a exercer validamente tal direito. Pode dizer-se que o depósito do preço é elemento constitutivo do direito de remição, na medida em que o mesmo nunca pode ser exercido de forma válida sem a efetivação do pagamento do preço”. Cfr. Processo n.º 306/05.2TBPCV-F.C, de 17-12-2014. Relatora Maria Inês Moura. 37 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 529.


Ao não ser corretamente exercido o direito de remição questiona-se, agora, se isso impossibilita a apresentação de um novo requerimento. A este respeito, entendeu o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA que, apesar do direito de remição exercido num primeiro momento ter sido deficiente, tal facto não obsta a um novo exercício, desde que realizado dentro do prazo que a lei prevê (cfr. art.º 843.º, n.º 1, al. b) do CPCivil). Não há, portanto, uma caducidade de direitos, na medida em que essa caducidade só pode ocorrer depois de ultrapassado o prazo previsto no art.º 843.º, n.º 1, al. b) do CPCivil. O remidor deve exercer o seu direito mediante a apresentação de um requerimento ao processo dirigido ao agente de execução em que identifica o processo e o tribunal onde o mesmo corre os seus termos, a sua identificação, alega o seu direito e demonstra a sua legitimidade para exercê-lo, juntando prova dessa mesma legitimidade. Como suporte probatório, utilizam-se as certidões de registo civil, como são as certidões de casamento que demostram a legitimidade do cônjuge não separado de pessoas e bens e as certidões de nascimento. O acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES diz-nos que, “(…) os factos relativos ao estado pessoal das pessoas são factos relativos a direitos indisponíveis e que se encontram sujeitos a registo obrigatório, pelo que só podem ser provados através da competente certidão do registo civil”38. Assim, por exemplo, quando em causa esteja o exercício do direito de remição por parte dos pais do executado deve ser apresentada a certidão de nascimento do próprio executado, uma vez que lá constam expressamente os nomes dos pais. Por outro lado, quando o exercício do direito seja efetuado pelos filhos ou netos do executado deve ser apresentada a certidão de nascimento dos próprios remidores dado que a mesma contém o nome dos pais ou avós, respetivamente. Tudo para dizer que o direito de remição só se encontra validamente constituído mediante a apresentação do respetivo meio probatório, o que significa que uma mera comunicação ao agente de execução não permite a efetivação do direito de remição39. No entanto, caso o remidor esteja impossibilitado de apresentar prova da sua legitimidade, o art.º 845.º, n.º 3 do CPCivil vem conferir a possibilidade de ser apresentada posteriormente, num “prazo razoável”. Mas o que se pode considerar como prazo razoável? A lei nada diz. Por isso, a este respeito, partilhamos a opinião de VIRGÍNIO DA COSTA RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, os quais defendem que, “(…) o prazo é algo a decidir, caso a caso, pelo juiz do processo”40, o que vale por dizer que o prazo geralmente utilizado são os dez dias previstos no art.º 149.º do CPCivil, o que não impede que seja atribuído prazo superior quando, mediante o caso em concreto, se verifiquem circunstâncias que exijam essa dilação. Por outro lado, os mesmos Autores não defendem a concessão de um prazo exageradamente alargado, sob pena de se arrastar a venda executiva e se frustrarem as legítimas expectativas41. Do 38

Cfr. Processo n.º 458/04.9TBVLN.G1, de 04-10-2018. Relatora Fernanda Proença Fernandes. IDEM. RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, p. 532. 41 IDEM, pp. 532 e 533. 39 40


requerimento deve dar-se conhecimento, através de notificação, a todas as pessoas com interesse no processo como seja o exequente, o executado, o preferente e o comprador42. Pós exercício do direito de remição Conforme verificamos anteriormente, uma vez exercido validamente o direito de remição, o remidor substitui-se aos proponentes e aos preferentes que tiveram interesse no objeto de venda executiva. E nas situações em que o direito de remição não foi devidamente constituído, o que isso provoca nos proponentes ou preferentes? Como já referimos anteriormente, o direito não se encontra validamente constituído quando não for efetuada a prova da legitimidade do remidor ou se o requerimento apresentado por este não se encontrar devidamente caucionado. Quanto a esta última situação, o art.º 843.º, n.º 2 do CPCivil manda aplicar as disposições do art.º 825.º do CPCivil, isto é, perante a falta de depósito, o agente de execução pode determinar uma de três soluções, no sentido de determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta imediatamente inferior, ou, determinar que a venda fique sem efeito e efetuar nova venda, ou então, liquidar a responsabilidade do remidor43. Em relação a esta última situação, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO considera que, uma vez anulado o direito de remição pelo facto de o remidor não ter procedido ao depósito do preço, os proponentes ou preferentes não podem ser obrigados a efetuar o depósito do remanescente do preço por eles proposto e que se encontra em falta. Significa isto que, o exercício do direito de remição não faz suspender os direitos e obrigações dos proponentes ou preferentes e que, por isso, sendo anulada a remição, os proponentes ou preferentes devem ser notificados “para que, querendo, adquirirem o bem nas condições constantes da sua proposta, seguindo o processo de execução os seus trâmites normais”44. Ou seja, o tribunal, citando Alberto dos Reis, considera que deve ser conferido ao comprador o direito (e não o dever) de adquirir o bem nas condições em que propôs, visto que, devido ao período temporal que ocorre entre a realização da proposta e a anulação da remição podem ocorrer circunstâncias que impedem o proponente ou o preferente de realizar a compra tal como tinha intenção. Outra questão a propósito do direito de remição é a titularidade dos bens adquiridos em consequência do exercício deste direito. Por exemplo, aquando do divórcio de um casal,

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PINTO, Rui – A ação executiva, Lisboa: AAFDL, 2018, p. 887. Dispõe o art.º 825º, n.º 1 do CPCivil que, “[F]indo o prazo referido no n.º 2 do artigo anterior, se o proponente ou preferente não tiver depositado o preço, o agente de execução, ouvidos os interessados na venda, pode: a) Determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou b) Determinar que a venda fique sem efeito e efetuar a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou c) Liquidar a responsabilidade do proponente ou preferente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos”. 44 Processo n.º 0631643, de 18-05-2006. Relatora Ana Paula Lobo. 43


ao efetuar a partilha dos bens, questiona-se se determinados bens são comuns ou se próprios de um deles. Neste âmbito, o acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu que, mesmo que os bens tenham sido adquiridos no âmbito de um processo executivo (neste caso, num processo de execução fiscal) fruto do exercício do direito de remição que fora concedido a apenas um dos cônjuges, o bem é comum de ambos uma vez que o referido direito nasceu já na constância do casamento, e que a aquisição concreta dos bens também se deu na constância do casamento45. Conclusão O contributo, que agora consideramos como findo, teve como primordial objetivo analisar minuciosamente a temática que se prende com o direito de remição no âmbito do processo executivo. A esse propósito, exploramos algumas questões conexas ao mesmo, de cuja análise foi-nos possível concluir que existe no nosso ordenamento jurídico algumas divergências, motivo pelo qual tornou a escrita deste estudo ainda mais desafiante. Principiamos com uma breve, mas fulcral abordagem à ação executiva, destacando os aspetos processuais mais relevantes, bem como as modalidades previstas para a ação executiva, o que nos permitiu concluir que o direito de remição unicamente pode ser exercido no processo executivo para pagamento de quantia certa. No que concerne à natureza do direito em causa, verificamos alguma discordância quanto à sua qualificação, encontrando-se a doutrina dividida entre qualificá-lo como um direito de preferência especial ou um direito distinto e autónomo do direito de preferência. Após analisarmos cuidadosamente ambas as teses defendidas, somos da opinião de que o direito de remição é um direito autónomo quando comparado com o direito de preferência. Relativamente à finalidade do direito de remição, pudemos chegar à conclusão que o motivo que esteve na génese da sua criação consistia em impedir que os bens fossem adquiridos por terceiros, estranhos ao executado. Ou seja, numa perspetiva positiva, significa que se visa a manutenção dos bens na esfera familiar do executado. Todavia, ressalva-se que este direito somente é reconhecido aos familiares do executado que se encontrem previstos no art.º 842.º do CPCivil (elenco taxativo, a saber, cônjuge, descendentes ou ascendentes do executado), e apresenta-se como um mecanismo de caráter facultativo. Note-se, ainda, a preocupação do legislador ao estabelecer uma hierarquia entre eles, tendo em vista dirimir eventuais conflitos que pudessem surgir. Não obstante, tenha-se a atenção da especificidade/obrigatoriedade imposta pelo legislador em estabelecer que o remidor não pode ser parte na ação executiva, qualquer que seja a qualidade em que intervém.

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Processo n.º 617/09.8T2ETR.S1, de 02-11-2010. Relator Azevedo Ramos.


Por fim, e quanto ao exercício do direito propriamente dito, bem como aos prazos que têm de ser respeitados e demais aspetos, tais como as consequências da falta de depósito, vejase o disposto nos art.ºs 843.º e 825.º do CPCivil. Bibliografia e Webgrafia - CÂMARA DOS SOLICITADORES - Manual de Boas Práticas – A Venda Executiva (Parte II), Lisboa,

2012,

p.

30.

Disponível

em:

https://www.osae.pt/uploads/cms_page_media/808/manual%20sobre%20a%20venda%202 .pdf. - CARLOS LIMA - Direitos legais de preferência, Publicações Ordem dos Advogados, 2005 Disponível

em:

https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez-

2005/doutrina/carlos-lima-direitos-legais-de-preferencia/ (consultado em 17-12-2020). - CARVALHO, Filipa - Os poderes processuais do cônjuge do executado, Dissertação de Mestrado em Direito. Coimbra: UCFD, 2014. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/. - FREITAS, José Lebre – A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, 2018. ISBN 978 989 99 8243 7. - GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª edição, Coimbra: Almedina, 2020. ISBN 978 972 40 8386 5. - PAIVA, Eduardo e CABRITA, Helena – O processo executivo e o agente de execução, 3ª edição, Coimbra Editora: 2013. ISBN 978 972 32 2149 7. - PINTO, Rui – A ação executiva, Lisboa: AAFDL, 2018. ISBN 978 972 629 212 8. - RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva Anotada e Comentada, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 2021. ISBN 978 972 40 9368 0. Jurisprudência46 - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo n.º 532/2008-7, de 29-01-2008. Relatora Graça Amaral. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 418/14.1T8VNF-G.G1, de 24-112016. Relatora Ana Cristina Duarte. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo n.º 0653650, de 11-09-2006. Relator Abílio Costa. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 386/12.4TBSRE-B.C1, de 27-05-2015. Relator Arlindo Oliveira. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo n.º 4666/11.8TBMAI-AA.P1, de 23-06-2015. Relator Aristides Rodrigues De Almeida.

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Todos disponíveis em www.dgsi.pt.


- TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 386/12.4TBSRE-B.C1, de 27-05-2015. Relator Arlindo Oliveira. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 306/05.2TBPCV-F.C, de 17-12-2014. Relatora Maria Inês Moura. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 458/04.9TBVLN.G1, de 04-10-2018. Relatora Fernanda Proença Fernandes. - SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 617/09.8T2ETR.S1, de 02-11-2010. Relator Azevedo Ramos. - TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo n.º 0631643, de 18-05-2006. Relatora Ana Paula Lobo.


O Contrato e os Bens e Serviços Não Solicitados

O Contrato e os Bens e Serviços Não Solicitados

Isa Raquel Pinto Pereira Solicitadora Mestre em Direito

João Vasco Loureiro Advogado Formador Mediador


I - INTRODUÇÃO O Direito do Consumo é uma área relativamente recente que tem vindo a registar um significativo desenvolvimento nasúltimas décadas acompanhando o aumento crescente do número de agentes económicos e operações de transação comercial. Os bens e serviços não solicitados tornaram-se numa prática usual entre os agentes económicos nas relações contratuais que pretendem estabelecer com os consumidores, forçando assim estes últimos, muitas vezes, a adquirir bens e serviços que, na verdade nunca sequer solicitaram ou contrataram. É de tal forma exageradaesta prática dosagenteseconómicosque o legislador se obrigado a regular a mesma em diferentes diplomas, mas todos eles atinentes à proteção do consumidor. Apesar da(s) lei(s) ser(em) inequívoca(s) quanto à reprovação destas práticas, o certo é que são recorrentes os bens e serviços que invadem a casa dos consumidores, impondo a estes uma vontade que nunca demonstraram. Trata-se de uma matéria que não é (são escassas as exceções) apreciada pelos tribunais superiores, o que se justifica pelo reduzido valor dos bens ou serviços não solicitados, mas encontra-se presente em várias decisões dos tribunais arbitrais do consumo, pois que se tratam de entidades de resolução alternativa de litígios1, vocacionadas para dirimir litígios em matéria de consumo de reduzido valor económico, e de forma gratuita ou a baixo custo. Importa assim identificar o que são bens e serviços não solicitados, quais os regimes jurídicos que lhes são aplicáveis, as possíveis soluções jurídicas que envolvem esta matéria e, concluir, tendo em conta a opção legislativa, quanto aos bens e serviços não solicitados. Toda esta análise por referência ao consumidor, na sua interpretação restritiva2, ou seja, uma pessoa singular que utiliza os bens ou serviços para fins não profissionais, excluindo, assim, as pessoas coletivas.

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No sítio da Direção Geral do Consumidor, é possível consultar a lista das Entidades de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo (RAL) que foram comunicadas à Comissão Europeia, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 144/2015 de 8 de setembro, na sua versão mais recente, dada pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro. Estas entidades estão localizadas em diversas zonas de Portugal. Acessível em: https://www.consumidor.gov.pt/parceiros/sistemade-defesado-consumidor/entidades-de-resolucaoalternativa-de-litigios-de-consumo/ral-mapa-e-lista-deentidades.aspx 2

Na esteira de Jorge Morais de Carvalho, quanto à definição de consumidor, diz-nos que “No direito português podemos encontrar várias definições de consumidor, desde as mais restritas, como a do DL 133/2009 (“pessoa singular que [...] atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional”), até às mais amplas, como a do DL 29/2006 (“o cliente final de eletricidade”)”. Ainda, numa interpretação restritada noção de consumidor, refere o mesmo autor que “Em matéria de resolução alternativa de litígios de consumo, é necessário ter em conta a definição da Lei 144/2015, que adota a definição restrita da Diretiva 2013/11/UE.” Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª Edição, Almedina, 2020, páginas 30 e 31.


II. OS BENS E SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS Em regra, os bens são adquiridos ou os serviços são prestados, em função de uma relação contratual existente. Nesta relação contratual, uma das partes manifesta a intenção de adquirir, enquanto a outra manifesta a intenção de vender ou prestar. Resulta assim deste encontro de vontades, opostas mas convergentes, o contrato. Não existindo aquelamanifestação de vontade, não existe negócio jurídico, isto é, o contrato3 e, logo, não existe nem a aquisição de bens nem a prestação de serviços. Porém, nem sempre assim acontece, verificando-se em muitas situações que os agentes económicos fornecem bens e serviços que nunca foram solicitados pelos consumidores, pretendendo assim forçar a celebração de um contrato ou, pelo menos, exigir a contraprestação pelo serviço ou bens fornecidos. A forma de manifestar a vontade de contratar resulta de uma declaração negocial. Esta declaração negocial comporta em primeiro lugar um elemento interno, ou seja, a vontade de contratar e, de seguida, um elemento externo, ou seja, a declaração negocial propriamente dita. Esta declaração pode ser expressa ou tácita4, sendo expressa quando “manifestada através de linguagem falada ou escrita, ou através de outro meio direto”, mas pode ainda ser tácita, deduzindo-se “a vontade de uma pessoa de um comportamento, da ausência de comportamento, de um facto que, com grande probabilidade, a revele”5. No artigo 218.º do Código Civil, o legislador complementa a noção de declaração negocial referindo que “o silêncio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção.” Portanto, a regra é o silêncio não valer como declaração negocial6. O que distingue a declaração negocial (e, portanto, o negócio jurídico por ela consubstanciado – e a propósito do qual a doutrina em geral se pronuncia), no seio dos restantes factos jurídicos, é a circunstânciade o ordenamento associar efeitos jurídicos a um comportamento humano voluntário cujo significado corresponde, precisamente, à prefiguração dos referidos efeitos jurídicos. 3

O conceito de negócio jurídico não se confunde com o conceito de contrato. O contrato é um negócio jurídico bilateral (ou plurilateral), em que as declarações de vontade das partes são opostas mas convergente. Nos negócios jurídicos unilaterais, as declarações de vontade, de uma ou mais pessoas, têm apenas uma única direção, não são opostas (Por exemplo o testamento, a renúncia à prescrição, a procuração). 4

Conforme artigo 217.º do Código Civil.

5

Ana Prata, Dicionário Jurídico - 3.ª Edição – Revista e Atualizada, Almedina, 1995, página 321.

6

A “d eclaração n eg o cial” é o co mp o rtamen to h uman o , simp les ou co mp lexo , q ue man ifesta , d ireta o u indiretamente, a vontade do sujeito (artigo 217.º, n.º 1 do Código Civil). A declaração negocial, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, é o núcleo do negócio jurídico (por isso o Código Civil lhe dedica a primeira seção do capítulo sobre o negócio jurídico).


Por isso se afirmou que o comportamento em que a declaração se traduz é destinado, pelo seu autor, a produzir efeitos jurídico-privados. Podemos assim perceber então que, para contratar, é necessário manifestar uma declaração negocial nesse sentido e, podemos também concluir que a transmissão de bens (da propriedade dos bens), ou a prestação de serviços, se faz através de contrato, seja compra e venda (nos termos do artigo 874.º e seguintes do Código Civil), seja contrato de prestação de serviços (conforme artigo 1154.º e seguintes do Código Civil). Não existindo a declaração negocial, então os bens que são transmitidos aos consumidores, ou os serviços que lhes são prestados, são bens ou serviços não solicitados. III - REGIMES JURÍDICOS APLICÁVEIS AOS BENS E SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS São várias as normas que regulam esta matéria e que comportam em si uma ideia clara que, de grosso modo, não se paga o que não se tiver solicitado. Nestes casos, o interesse do consumidor consiste na segurança de que só fica vinculado na sequência de um comportamento da sua parte, ficando assim garantido contra surpresas no que respeita à celebração de eventuais contratos. Podemos, então, no ordenamento jurídico português, encontrar as seguintes normas: O n.º 4, do artigo 9.º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro) - “O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa.” O n.º 1, do artigo 28.º do regime jurídico dos Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial (Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro) – “1 - É proibida a cobrança de qualquer tipo de pagamento relativo a fornecimento não solicitado de bens, água, gás, eletricidade, aquecimento urbano ou conteúdos digitais ou a prestação de serviços não solicitada pelo consumidor, exceto no caso de bens ou serviços de substituição fornecidos em conformidade com o n.º 4 do artigo 19.º 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a ausência de resposta do consumidor na sequência do fornecimento ou da prestação não solicitados não vale como consentimento.” A alínea f) do artigo 12.º do regime aplicável às Práticas Comercias Desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro) – “São consideradas agressivas, em qualquer circunstância, as seguintes práticas comerciais: (…) Exigir o pagamento imediato ou diferido de bens e serviços ou a devolução ou a guarda de bens fornecidos peloprofissional que o consumidor nãotenha


solicitado, sem prejuízo do disposto no regime dos contratos celebrados à distância acerca da possibilidade de fornecer o bem ou o serviço de qualidade e preço equivalentes;” O artigo 7.º do regime jurídico aplicável aos Contratos à Distância Relativos a Serviços Financeiros (Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 242/2012, de 7 de novembro) – “1 - É proibida a prestação de serviços financeiros à distância que incluam um pedido de pagamento, imediato ou diferido, ao consumidor que os não tenha prévia e expressamente

solicitado. 2 - O consumidor a

quem sejam prestados serviços financeiros não solicitados não fica sujeito a qualquer obrigação relativamente a esses serviços, nomeadamente de pagamento, considerando-se os serviço prestados a título gratuito. 3 - O silêncio do consumidor não vale como consentimento para efeitos do número anterior. 4 - O disposto nos números anteriores não prejudica o regime da renovação tácita dos contratos.” O n.º 3 do artigo 135.º do Regime Jurídico do Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração (Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro) – “Nenhum prato, produto alimentar ou bebida, incluindo o couvert, pode ser cobrado se não for solicitado pelo cliente ou por este for inutilizado.” Ora, o ponto comum de todas estas disposições é, sem dúvida, a desobrigação de pagamento, ou proibição de cobrança, dos bens ou serviços não solicitados, o que faz transparecer que estas normas dão por assente que existe uma declaração negocial no sentido de celebrar um contrato. Isto porque, se não existir declaração negocial7, não se pode falar num dos elementos essenciais dos contratos típicos de compra e venda ou prestação de serviços, ou seja, o pagamento correspondente ao bem transacionado ou do serviço prestado8. Dito de outro modo, para proibir a cobrança ou desobrigar ao pagamento, é necessário, primeiro, ficar assente que existiu uma declaração negocial que justificaria aquela transferência patrimonial, e que só assim não vai ser por força daquelas disposições legais. Para melhor entendimento, repare-se que o artigo 224.º do Código Civil optou pela doutrina da receção quanto ao momento da conclusão dos contratos, ou seja, “o contrato está

7

Neste trabalho não teremos em conta situações de falta de vontade da ação, falta de vontade da declaração, ou um desvio da vontade negocial. 8

Conforme artigo 879.º, alínea c), quanto à compra e venda e artigos 1156.º e 1167.º alínea b), quanto à prestação de serviços, todos do Código Civil.


perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de ação do proponente, isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer9”. Ora, no caso dos bens ou serviços não solicitados, não se poderá falar que a aceitação chegou à esfera de ação do proponente, pois a aceitação não chegou sequer a ser manifestada. Desta forma, a declaração negocial no sentido de celebrar um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, não é eficaz10. E sendo a eficácia da declaração um facto constitutivo de direitos, a perfeição da mesma será sempre necessária para se constituir o direito de recebimento ao preço pela transmissão de um bem ou pela prestação de um serviço, de forma que, posteriormente, se proíba o exercício desse direito, tudo como resulta das normas aqui em apreço. Pelo que, deveria ser suficiente para a resolução de litígios emergentes da “venda” de bens ou “prestação” de serviços não solicitados a teoria da receção, prevista no artigo 224.º do Código Civil. Assim não acontece, o que se justifica, em nossa opinião, pelas particularidades que habitualmente acompanham estes casos de venda de bens ou prestação de serviços, quando do outro lado se encontram os consumidores, e que será abordado no ponto seguinte. IV - O INSTITUTO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NOS BENS OU SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS Destarte, a surpresa dos consumidores que se veem presos nas malhas destes litígios é tal que, não raras as vezes, acabam por consumir os bens ou serviços que lhes são pespegados (por exemplo no caso de entrega de uma enciclopédia pelo correio, não solicitada pelo consumidor, ou no caso de venda de eletricidade sem que o consumidor tenha manifestado qualquer declaração negocial com aquela determinada empresa, agora prestadora do serviço). Nestes casos, (da enciclopédia ou do fornecimento de energia), o consumidor não é capaz de devolver aquilo que consumiu. No caso do fornecimento de energia isso é mesmo

9

Neste sentido, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil – 3ª Edição Atualizada, Coimbra Editora, 1993, página 441. 10

Aqui ineficácia em sentido amplo, ou seja, “tem lugar sempre que um negócio não produz, por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, (…), os efeitos que tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respectivas.” - Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Atualizada, Coimbra Editora, 1993, página 605.


impossível, no caso da enciclopédia, a sua devolução, senão impossível, é pelo menos muito onerosa11. Assim sendo, nestes casos poder-se-ia cair numa situação de, mesmo faltando a declaração negocial do consumidor, ver-se este forçado a pagar aquilo que nunca solicitou, mas que, por força das circunstâncias do caso, se viu obrigado a consumir. Isto porque, a bem da verdade, verifica-se um ganho do consumidor, que foi obtido à custa do fornecedor dos bens ou serviços não solicitados, mas que não existe qualquer justificação para aquele ganho. Acresce que, na maior parte dos casos, conforme supra se exemplificou, não está o consumidor em condições de restituir aquilo que consumiu. Tal aconteceria por via do instituto do enriquecimento sem causa previsto nos artigos 473.º a 482.º do Código Civil. Este instituto do direito constitui uma das fontes das obrigações cujo princípio geral no artigo 473.º estabelece da seguinte forma: “ 1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.” É ainda caraterística do enriquecimento sem causa a subsidiariedade, ou seja, apenas poderá ser invocado quando ao empobrecido não seja possível subsumir a obrigação de restituir, ou de ser indemnizado, em qualquer outro instituto12. Embora os efeitos sejam semelhantes (senão iguais na prática), relembramos aqui que, como o fornecimento de bens ou serviços não solicitados se traduz numa situação de ineficácia do negócio jurídico e não de invalidade13, não há lugar à aplicação do regime previsto no artigo 289.º do Código Civil quanto aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação, ou seja, a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. A nulidade contratual implica a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não o for possível, o valor correspondente14, em qualquer caso, não será linearmente assim nos casos de execução continuada, nos quais uma das partes beneficie de um serviço.

11

No limite, valores que os consumidores podem não ter disponíveis, tendo em conta que a gestão de um orçamento familiar é, muitas vezes, contado ao cêntimo.

12

Conforme artigo 474.º do Código Civil.

13

Na invalidade, a ausência de produção dos efeitos negociais resulta de vícios ou deficiências do negócio, contemporâneos da sua formação.” - Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Atualizada, Coimbra Editora,1993, página 605. 14

Conforme artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil.


Neste sentido, ensina Karl Larenz que “o mesmo é dizer que o mecanismo do artigo 289.º n.º 1 do Código Civil com eficácia ex tunc, na sua radicalidade, se não se neutralizarem os efeitos da nulidade em relação às prestações já efetuadas, não assegura a restituição de tudo o que foi prestado. Resultado este que não cumpre a teleologia do próprio preceito e que se aliado à inaplicação do instituto do enriquecimento sem causa, é de uma injustiça flagrante e impele o intérprete a procurar outra via para realizar a maior justiça possível15”. Poder-se-ia argumentar que pela eficácia retractiva da declaração de nulidade (artigo 289.º, n.º 1 do C.C.) tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado, ou produzido quaisquer efeitos, nessa medida se impondo inelutavelmente a restituição das aludidas importâncias solvidas em sua execução. Todavia, a nulidade, conquanto tipicizada pelos mais drásticos predicados de neutralização do negócio operando efeitos interactivos ex tunc, nem assim pode autorizar a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido. A celebração do negócio revela-o existente como evento e por isso não está ao alcance da ordem jurídica tratar o acto realizado como se este não houvesse realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhe a produção deefeitos jurídicos quelhe vão implicados. Nãoé, por conseguinte, exacta a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes. Pode na verdade suceder que os contraentes tenham efectuado prestações com fundamento no contrato nulo, ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, dando lugar à abertura de uma vocacionada composição inter-relacional dos interesses respectivos - v. g., a sociedade desenvolveu normalmente as suas actividades comerciais, agindo e comportando-se os fundadores como sócios por determinado período de tempo, não obstante a nulidade do contrato social; sendo nulo o contrato de trabalho, todavia o trabalhador prestara efectivamente os seus serviços à entidade patronal. Neste conspecto - e ademais quando se pretenda estar vedado no domínio específico das invalidades o recurso aos princípios do enriquecimento sem causa pelo carácter subsidiário do instituto - observa-se estar hoje generalizado o entendimento segundo o qual deve o contrato nulo ser valorado, em semelhante circunstancialismo, e no que respeita ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes (…) como «relação contratual de facto» susceptível de fundamentar os efeitos em causa(v. g., a remuneraçãodo trabalhoprestadono quadrodo contrato laboral nulo por incapacidade

15

Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, página398.


negocial do trabalhador), encarados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do ato na realidade praticado. E, assim, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do «contrato de facto» - «contrato imperfeito» noutra terminologia; de «errada perfeição» (…) tudo se passará, nos aspectos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) operasse os seus efeitos.” Este entendimento converge, no essencial, com as posições de Rui Alarcão16, autor que considera que «a chamada restituição em valor virá, por vezes, a traduzir-se no respeito pela execução, entretanto ocorrida, do negócio» e de António Menezes Cordeiro17 que, a propósito, escreve: “Nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficia do gozo de uma coisa – como no arrendamento – ou de serviços – como naempreitada, no mandatoou no depósito –

a

restituição

em

espécienãoé,

evidentemente,

possível.

Nessaaltura,

haveráquerestituiro valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva, nestes casos.” Não se negue que um contrato de fornecimento de energia elétrica, por exemplo, é um contrato de execução duradoura/continuada, pelo que a aplicação, sem mais e taxativa, da regra do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, mostra-se inadequada à sua própria teleologia, carecendo de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é desigual, devendo por isso, a sua interpretação ser objeto de uma redução teleológica, nos termos conjugados com o disposto no artigo 433.º e no n.º 2 do artigo 434.º, ambos do Código Civil. Assim, nos contratos de fornecimento de energia elétrica (por se tratar de um contrato de execução continuada), beneficiando o consumidor do gozo dos serviços prestador pelo fornecedor, cuja restituição não é possível, a retroatividade da nulidade não abrange as prestações já efetuadas, produzindo o contrato os seus efeitos, como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução. Pelo que, enquanto “contrato de facto” o contrato, ainda que nulo, de fornecimento de energia elétrica em que o consumidor efetivamente gozou dos serviços prestados pelo fornecedor terá de ser remunerado, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 289.º e artigo n.º 433.º e n.º 2 do artigo 434.º todos do Código Civil.

16

Rui Alarcão, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, I, Coimbra, 1971, página 76, nota 101.

17

António MenezesCordeiro, TratadodeDireitoCivilPortuguês, I, ParteGeral, TomoI, página874.


No caso do enriquecimento sem causa, prescreve o artigo 479.º n.º 1 do Código Civil que “a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.” Ficaria, assim, o consumidor colocado numa posição ingrata de ter que restituir tudo aquilo que tivesse obtido à custa de um astucioso fornecedor de bens ou serviços. É certo que sempre poderia o consumidor socorrer-se da figura do abuso de direito18, ou do princípio da boa-fé para, assim, anular os efeitos do enriquecimento sem causa. Não é, no entanto, intenção deste trabalho abordar estes conceitos, tanto que, em nossa opinião, também o legislador sentiu que os mesmos nem sempre fossem suficientes para afastar a astucia com que os agentes económicos atuam, quando impõem bens ou serviços não solicitados aos consumidores19. V - OPÇÃO LEGISLATIVA FACE AO FORNECIMENTO DE BENS OU SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS Deixou assim claro o legislador que, seja qual for a construção jurídica que se faça à volta de uma situação de fornecimento de bens ou serviços não solicitados, o pagamento dos mesmos não é devido. Portanto, mesmo tendo o consumidor gozado dos bens ou serviços não solicitados, criandoassim uma situação que se poderia apelidar de “contrato de facto”, um dos efeitos desse “contrato de facto” que é o pagamento do preço, não se verificará por força de lei especial. Opção legislativa esta que se justifica por se considerar que o fornecimento de bens ou serviços não solicitados consubstancia uma prática reprovável a todos os níveis. Assim, desta forma, o legislador além de proteger os interesses do consumidor, promove e defende ainda uma sã concorrência entre os agentes económicos, criando uma espécie de efeito punitivo (proibição de cobrança do preço) a quem envereda por este tipo de práticas. VI - CONCLUSÃO

18

Conforme artigo 334.º do Código Civil.

19

A título de exemplo, apraz-nos trazer aqui à colação, parte de uma sentença (GÁS 1 – 24/04/2018, cujo JuizÁrbitro é Jorge Morais de Carvalho) do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC), que nos diz, relativamente ao fornecimento de energia sem um contrato vigente, o seguinte: “(…) Apesar de não existir contrato vigente entre o demandante e a demandada B, esta tem-lhe fornecido gás natural desde o dia 29 de outubro de 2016. O gás natural fornecido desde essa data deve, assim, ser qualificado como um bem não solicitado. (…) Logo, o demandante não tinha a obrigação de pagar pelo gás natural fornecido pela demandada B, que ele não solicitou. (…) O facto de o gás natural ter sido efetivamen te fornecido não altera esta conclusão, uma vez que resulta claro da parte final da norma que o consumidor não tem que devolver o bem não solicitado nem que compensar o fornecedor de qualquer forma.” Podendo o texto integral da sentença ser consultado em: https://www.cniacc.pt/pt/jurisprudencia-cniacc


Em jeito de conclusão, consideramos útil destacar a parte final do n.º 3 do artigo 135.º do Regime Jurídico do Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração (Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, com as alterações introduzidas pelo DecretoLei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, ou seja, se o cliente inutilizar o produto alimentar ou a bebida, o pagamento do mesmo será devido. Ora, tal opção parece ser acertada e desde logo tendo em conta o princípio da boa-fé que, aqui em causa (tanto para o consumidor como para o fornecedor de bens e serviços) é a boa-fé objetiva, ou seja, “a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e lealdade nos comportamentos e, designadamente, na celebração e execução dos negócios jurídicos20”. É verdade que a honestidade e lealdade poderá também faltar aos consumidores, o que não será o habitual nas relações negociais estabelecidas com os agentes económicos, mas que nem assim se deverá tolerar. É que, a declaração negocial é uma manifestação externa da vontade real, e que, regra geral, não depende da observância de forma especial. No caso de o consumidor inutilizar produto alimentar ou bebida (comendo-o ou bebendo-a num estabelecimento de restauração, local para onde está direcionado o regime jurídico de onde emana esta norma), não será, no nosso entendimento, possível sequer representar esse facto como uma não manifestação de vontade de contratar. Em todo o caso, o legislador optou por dissipar quaisquerdúvidas as quais, refira-se, existem, e com legitimidade, mais não fosse por serem levantadas por quem dedicou toda a sua vida ao estudo, e desenvolvimento do direito do consumo21. Veremos, então, se o direito a constituir evolui no sentido defendido pelo Ilustre Professor Doutor, ou não. Certo é que, o direito já evoluiu, e bem no nosso entendimento, no sentido de criar normas especiais para que os litígios emergentes da venda de bens ou prestação de serviços não solicitados a consumidores, sejam na prática, de resolução clara e eficaz e, acima de tudo justa. BIBLIOGRAFIA: ALARCÃO, Rui, A confirmação dos negócios anuláveis, I, Coimbra, 1971; ALMEIDA, Teresa, Lei de Defesa do Consumidor – Anotada, Instituto do Consumidor, 1997; CARVALHO, Jorge Morais de, Manual de Direito do Consumo, 7.ª Edição, Almedina, fevereiro 2020;

20

Ana Prata, Dicionário Jurídico, 3ª Edição – Revista e Atualizada, Almedina, 1995, página 124. 21

Referimo-nos a Mário Frota, cuja opinião nesta matéria poderá ser consultada, em linha, em: https://www.asbeiras.pt/2016/07/opiniao-produtos-e-servicos-nao-solicitados-nao-pagamosnaopagamos/


LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, janeiro 2009, Fundação Calouste Gulbenkian; MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 2012, Almedina; MOTA PINTO, Carlos Alberto, Teoria Geral do Direito Civil – 3ª Edição Actualizada, 1993, Coimbra Editora; NETO, Abílio, Código Civil Anotado – 13ª Edição Actualizada, Ediforum, 2001; PRATA, Ana, Dicionário Jurídico – 3ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, 1995. LEGISLAÇÃO: Código Civil (Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, na sua versão mais recente, dada pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro); Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro); Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial (Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro); Práticas Comerciais Desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro); Contratos à Distância Relativos a Serviços Financeiros (Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 242/2012, de 7 de novembro); Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração (Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, com as alterações introduzidas pelo DecretoLei n.º 9/2021, de 29 de janeiro). FONTES ON-LINE: www.dgsi.pt/ www.pgdlisboa.pt www.consumidor.gov.pt www.cniacc.pt www.asbeiras.pt


A administração da massa insolvente pelo devedor

A administração da massa insolvente pelo devedor Libânia Fonseca Queirós Aluna do Mestrado em Solicitadoria na ESTG-IPP


Resumo: O presente contributo versa sobre a administração da massa insolvente pelo devedor, uma figura que surge no âmbito do processo de insolvência, na qual é possível atribuir ao próprio devedor a administração mediante a verificação de determinados requisitos. Numa fase inicial desta pesquisa pretende-se abordar as questões gerais relativas ao processo de insolvência e aos seus efeitos, em especial a privação dos poderes de administração e disposição dos bens, tomando daqui início para o tema principal, a administração da massa insolvente pelo devedor, que se apresenta como uma exceção a esta privação de poderes. Assim, de seguida, será analisada esta figura jurídica, abordando o seu âmbito e os seus pressupostos. Por fim, serão analisados os efeitos que decorrem desta atribuição ao devedor e as respetivas causas de cessação da mesma. Em suma, pretende-se analisar aprofundadamente vários assuntos que à administração da massa insolvente pelo devedor dizem respeito, tomando uma opinião crítica relativamente a algumas questões, para um melhor entendimento acerca desta figura que, sendo bem empregue, poderá ser vantajosa para a recuperação e continuidade da empresa. Palavras-chave: Processo de insolvência; Massa insolvente; Administração; Devedor; Empresas. Sumário: Introdução O processo de insolvência Aspetos gerais A administração da massa insolvente pelo devedor Âmbito e pressupostos Efeitos da administração pelo devedor Cessação da administração pelo devedor Conclusão


Abstract: The present work deals with the administration of the insolvent estate by the debtor. This appears in the context of the insolvency process, in which it is possible to assign the administration to the debtor by verifying certain requirements. In an initial phase of this research, it is intended to address the general issues related to the insolvency process and its effects, focusing on the deprivation of administrative powers and disposition of assets. After that, this legal figure will be analyzed, by addressing its scope and assumptions. Finally, the effects arising from this attribution to the debtor and the respective causes of cessation will be analyzed. Basically, it is intended to analyze several matters that concern the administration of the insolvent estate by the debtor, taking a critical opinion on some issues, for a better understanding of this figure that, if well used, may be advantageous for the recovery and continuity of the company. Keywords: Insolvency process; Insolvent estate; Administration; Debtor; Companies. Summary: Introduction Insolvency process General considerations Administration of the insolvent estate by the debtor Scope and assumptions Effects of administration by the debtor Cessation of administration by the debtor Conclusion Introdução A situação pandémica instalada no início de 2020 decorrente da propagação do novo Coronavírus (Covid-19 ou SARS-CoV-2) deu origem a uma crise sanitária, social e económica a uma escala mundial. Embora ainda não seja possível perceber a dimensão exata das consequências que a pandemia proporcionou, especificamente, na economia, prevê-se uma crise económica grave, com repercussões nas empresas, o que poderá suscitar uma maior ocorrência de processos de insolvência. Deste modo, torna-se cada vez mais importante percebermos o direito de insolvência e as possibilidades que a lei prevê para a recuperação da empresa, como é o caso da administração da massa insolvente pelo devedor, o qual iremos estudar afincadamente nesta pesquisa. Esta é uma figura que, como iremos ver adiante, poderá ser bastante benéfica na insolvência de empresas, uma vez que o devedor estará familiarizado com as


questões económicas da empresa e, tal como nesta situação do Covid-19, a insolvência poderá surgir de circunstâncias incontroláveis, podendo demonstrar-se como importante e vantajoso a administração pelo devedor para uma recuperação da empresa com êxito. Neste trabalho procuraremos, em primeiro lugar, analisar o processo de insolvência, em linhas gerais, abordando ainda alguns dos efeitos que este produz com a sentença de declaração de insolvência. Em segundo lugar, e já incidindo sobre o tema escolhido, será feita uma contextualização da administração da massa insolvente pelo devedor, abordando a sua razão de ser e os requisitos que necessitam de se verificar para que esta figura possa ser utilizada. Por fim, serão analisadas as restantes questões inerentes à administração pelo devedor, nomeadamente, os efeitos desta atribuição no processo de insolvência, tomando sempre um ponto de vista crítico, e as possíveis causas de cessação da administração pelo devedor. O processo de insolvência Aspetos gerais O processo de insolvência, previsto e regulado no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante designado por CIRE), encontra-se definido no art.1º como um processo de execução universal cuja finalidade é a satisfação dos credores, através de um plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando isso não for possível, na liquidação do património do devedor insolvente e consequente repartição do produto obtido pelos credores. No entanto, para que seja possível recorrer a este regime é necessária a verificação de dois pressupostos, em especial, um pressuposto subjetivo e um pressuposto objetivo. Quanto ao pressuposto subjetivo, diz-nos o art.2º nº1 do CIRE os diversos sujeitos que poderão ser objeto de processo de insolvência1, excluíndo também este preceito determinadas entidades2, no seu nº2. No que concerne ao pressuposto objetivo, entendese que este será a situação de insolvência do devedor. A este propósito é importante referir que, de acordo com o art.3º nº1 do CIRE, considera-se em situação de insolvência “o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. Além disso, o nº2 do artigo mencionado anteriormente estipula ainda que, quando se trate de pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular

1

Podem ser objeto do processo de insolvência quaisquer pessoas singulares ou coletivas, a herança jacente, as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais, as sociedades civis, as sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, as cooperativas, antes do registo da sua constituição, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada e, por fim, quaisquer patrimónios autónomos. 2

Estão excluídas do regime do processo de insolvência as pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais, bem como se excluem as empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e dos organismos de investimento coletivo, na medida em que os regimes especiais previstos para estas entidades se mostre incompatível com o processo de insolvência.


responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, serão considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, sendo, neste âmbito, necessário atentar ao disposto no nº3 do mesmo artigo. Por fim, quanto à situação de insolvência, resta dizer que o legislador equipara ainda, no nº4 do art.3º do CIRE, à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente3, quando o próprio devedor se apresenta à insolvência. Posto isto, será importante abordar a legitimidade ativa no âmbito do processo de insolvência, razão pela qual recorremos aos art.18º a art.20º do CIRE de onde retiramos que terá legitimidade o próprio devedor, qualquer responsável legal pelas suas dívidas, qualquer credor e o Ministério Público. Além disso, em determinadas situações, nomeadamente por força do art.17º-G nº4 e art.222º-G nº4, ambos do CIRE, também o administrador judicial provisório poderá ter legitimidade para requerer a declaração de insolvência4. Reunidas estas condições para a instauração do processo de insolvência, o mesmo deverá ser requerido através de petição inicial, nos termos previstos no art.23º e seguintes do CIRE, sendo aí expostos os factos que integram os pressupostos e se conclui pela formulação do pedido. De seguida, poderão ocorrer várias situações após a apresentação da petição inicial, sobre as quais não nos debruçaremos, mas que será importante referir que se encontram previstas entre o art.27º e o art.35º do CIRE. Após a tramitação que decorre subsequentemente à petição inicial, surge o momento da sentença de declaração da situação de insolvência, se a ela houver lugar5, onde o juiz, atendendo ao art.36º do CIRE, determina várias questões como, por exemplo, nomeia o administrador da insolvência, decide atribuir a administração da massa insolvente ao devedor bem como decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade e de todos os bens do devedor, entre outros assuntos que se encontram elencados no nº1 do artigo supramencionado. Posteriormente à declaração da situação de insolvência do devedor surgem determinados efeitos que se poderão agrupar do seguinte modo: efeitos sobre o devedor e outras pessoas, efeitos processuais, efeitos sobre os créditos, efeitos sobre os negócios em curso e resolução em benefício da massa insolvente6. No âmbito desta contextualização de alguns aspetos do processo de insolvência, para introdução da figura da administração da massa

3

Entende-se como situação de insolvência iminente a probabilidade de o devedor não cumprir as suas obrigações atuais no momento em que se vençam.

4

EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência, p.38.

5

Poderá haver sentença de indeferimento do pedido de declaração de insolvência, nos termos do art.44º do CIRE.

6

EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência, p.98.


insolvente pelo devedor, será apenas importante referir-nos aos efeitos da insolvência sobre o devedor. Quanto aos efeitos da declaração da insolvência sobre o devedor e outras pessoas, estes poderão ter caráter automático ou caráter eventual. Os efeitos automáticos são aqueles que se produzem em todos os processos de insolvência, pela mera prolação da sentença de declaração de insolvência. Já os efeitos eventuais são aqueles que dependem da verificação de determinados requisitos previstos na lei.7 Os efeitos automáticos, por sua vez, poderão desdobrar-se em efeitos pessoais, que são aqueles que incidem sobre a esfera pessoal do insolvente, e efeitos patrimoniais, que são todos aqueles que dizem respeito ao património do insolvente, destinando- se a proteger os credores, sendo sobre estes últimos que iremos incidir. Dentro dos efeitos patrimoniais, podemos destacar o principal e clássico efeito da declaração de insolvência, a privação dos poderes de disposição e de administração, o qual se encontra consagrado no art.81º nº1 do CIRE. De acordo com o artigo mencionado, com a declaração de insolvência, o devedor, por si ou pelos seus administradores, fica imediatamente privado de administrar ou dispor de bens integrantes da massa insolvente. Por estas razões, estes poderes de administração da massa insolvente são transferidos para o administrador da insolvência, que os passará a exercer com a cooperação da comissão de credores e com a fiscalização do juiz e da comissão de credores8. Deste modo, e conforme o nº4 do art.81º do CIRE estipula, o administrador da insolvência passa a representar o devedor em todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência. No entanto, poderão ocorrer situações em que o devedor não fica privado dos poderes de disposição e de administração dos bens que integram a massa insolvente, nomeadamente, e a que aqui nos diz mais respeito, a exceção prevista no nº1 do art.81º do CIRE que remete para o título X do CIRE que trata a administração da massa insolvente pelo devedor. Deste modo, como veremos mais aprofundadamente de seguida, é retirada a administração da massa ao administrador da insolvência, passando este apenas a fiscalizar a atuação do devedor, a qual terá algumas limitações e dependerá da verificação de determinados requisitos9. A administração da massa insolvente pelo devedor Âmbito e pressupostos

7

EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência, p.100.

8

EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência, p.308.

9

EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência, p.127.


A administração da massa insolvente pelo devedor encontra-se prevista no título X do CIRE, nomeadamente entre o art.223º e o art.229º do diploma, sendo um regime que surgiu em 2004, não apresentando correspondência com o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), pelo que podemos dizer que é uma figura relativamente recente e sem precedentes no nosso ordenamento jurídico insolvencial10. De um modo

resumido, este regime prevê a possibilidade de, após a declaração de

insolvência e o cumprimento de determinados requisitos, o devedor manter a administração da massa insolvente, afastando esse poder do administrador da insolvência. Cumpre-nos elucidar um pouco daquela que é a razão de ser deste regime e do que poderá ter de útil sendo que, como nos diz Alexandre de Soveral Martins, recorrendo a este regime, estará em vista a recuperação do devedor e, portanto, “aproveitam-se as experiências, as informações e os contactos do devedor em processos de insolvência que até podem ter sido o resultado de circunstâncias que o devedor não podia controlar”11. Também a respeito da utilidade do mesmo diz-nos Catarina Serra que “as suas maiores vantagens são a possibilidade de aproveitamento da familiaridade do devedor com a empresa, com benefícios presumíveis para a recuperação desta”12. Podemos ir ainda um pouco mais longe, recorrendo ao preâmbulo do CIRE, no ponto 32, que nos diz o seguinte “Fica bem à vista o sentido deste regime: não obrigar à privação dos poderes de administração do devedor, em concreto quanto à empresa de que seja titular, quando se reconheça que a sua aptidão empresarial não é prejudicada pela situação de insolvência, a qual pode até resultar de fatores exógenos à empresa, havendo, simultaneamente, a convicção de que a recuperação da empresa nas suas mãos permitirá uma melhor satisfação dos créditos do que a sua sujeição ao regime comum de liquidação”. Em suma, podemos assim perceber que o legislador criou este regime com foco para a sua possível utilidade para determinadas situações em que seja mais benéfico para a massa que o devedor assuma a sua administração, uma vez que tem mais conhecimentos da situação de crise e de tudo o que envolve, podendo vir a utilizá- los a seu favor, com vista à recuperação. Posto isto, podemos agora versar sobre o âmbito de aplicação deste regime sendo que o art.223º do CIRE determina que será aplicável apenas aos casos em que na massa insolvente esteja compreendida uma empresa. Neste sentido, temos de recorrer ao art.5º do CIRE que nos diz que se considera “empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”. Além disso, será ainda necessário conjugar estes artigos com o art.250º do CIRE, que se insere no capítulo relativo à insolvência de 10

CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.811. 11

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.345.

12

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.258.


não empresários e titulares de pequenas empresas e nos diz que “Aos processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X.”. O que este artigo nos quer dizer é que aos processos de insolvência relativos a não empresários e titulares de pequenas empresas não será possível a aplicação do plano de insolvência e do regime da administração da massa insolvente pelo devedor. Deste modo, concluímos que o regime em estudo apenas será aplicável se o devedor não é pessoa singular mas é titular de empresa ou, se for pessoa singular, é titular de uma empresa que não é pequena13, ou seja, não se insere nos termos previstos no art.249º nº1 do CIRE. Sabendo a que entidades devedoras pode ser atribuída a administração da massa insolvente pelo devedor, falta entender os pressupostos que necessitam de se verificar para que tal aconteça, uma vez que se trata de um regime exceção ocorrendo apenas em determinados casos. Assim sendo, poderemos já delimitar a quem é concedida a competência para atribuição da administração ao devedor e, posteriormente, serão analisados os respetivos pressupostos. Pela interpretação integral do art.224º do CIRE podemos retirar que a administração da massa insolvente poderá ser confiada ao devedor pelo juiz, que o poderá determinar na sentença declaratória da insolvência, de acordo com o art.36º nº1 alínea e) do CIRE, e pela assembleia de credores14, que o poderá decidir na assembleia de apreciação de relatório ou em assembleia que a preceda, nos termos do art.224º nº3 do CIRE. Para que o juiz possa atribuir ao devedor a administração da massa insolvente, segundo o nº2 do art.224º do CIRE, terão de se verificar os seguintes requisitos: o devedor tenha requerido a administração; o devedor tenha apresentado um plano de insolvência, ou se comprometa a fazê- lo nos 30 dias após a sentença declarativa da insolvência, no qual se preveja a continuidade da empresa pelo próprio; não haja razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores; e se o pedido de declaração de insolvência tiver sido apresentado por pessoa diversa do devedor, o requerente terá de dar o seu acordo. Expostos os requisitos para o juiz ter a possibilidade de atribuir ao devedor a administração, impõe-se a necessidade de abordar cada um individualmente para uma melhor compreensão. Quanto à apresentação do requerimento, prevista na alínea a) do nº2 do art.224º do CIRE, é sempre necessário que ocorra, mas a lei não é muito clara quanto ao momento em que o mesmo deve ser feito. Assim, entende-se que o requerimento terá de ser apresentado na petição inicial da declaração de insolvência, quando é o devedor a apresentar-se à insolvência. No caso de a declaração de insolvência ser requerida por

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14

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.348.

Veremos mais adiante que a doutrina poderá não considerar esta atribuição pela assembleia de credores tão linear, necessitando de uma decisão final do juiz.


terceiros, o devedor deverá requerer a administração juntamente com a oposição ao pedido de insolvência, ou se a não efetuar, no seu prazo. No que diz respeito à necessidade de apresentação de um plano de insolvência em que se preveja a continuidade da exploração da empresa pelo devedor, como se encontra determinado no art.224º nº2 alínea b) do CIRE, este será cumprido se o devedor já o tenha apresentado ou o faça em 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, sendo que o não cumprimento desta apresentação origina a cessação da administração pelo devedor15, mas iremos aprofundar essa questão adiante. Quanto a este pressuposto, diznos Catarina Serra que na administração pelo devedor está evidente a ligação com a recuperação da empresa, sendo justificado que a atribuição deste regime dependa da existência de um plano de recuperação16. Por sua vez, será ainda necessário que o juiz avalie se existem razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores, tal como nos diz a alínea c) do nº2 do art.224º do CIRE, que o deverá fazer tendo em conta determinados critérios, nomeadamente, o comportamento do devedor em vários momentos17. Na ótica de Alexandre de Soveral Martins entende-se que poderá haver “razões para recear atrasos na marcha do processo” quando, por exemplo, já há manifestações sérias de credores que se opõem à atribuição da massa insolvente ao devedor e, certamente, poderá haver lugar a uma assembleia de credores para pôr termo à administração,

o que, obviamente,

culminará em atrasos18. Neste âmbito, impõe-se ainda analisar a opinião de Catarina Serra que aponta uma crítica a este pressuposto dizendo o seguinte “Ao contrário do que é habitual em circunstâncias idênticas, a norma nem sequer impõe que não exista “fundado receio” ou “justificado receio” ou “risco sério”. Só podendo aceitar o pedido quando não há (de todo) razões para receio, o juiz quase nunca o defere (quase nunca é possível garantir que dela não advêm atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores). Para as coisas funcionarem seria necessário inverter-se o requisito: só poder haver recusa quando houvesse alguma razão concreta para receios.”19. Relativamente a esta opinião tendemos em concordar com o que é dito, uma vez que está em causa uma norma com demasiada amplitude, sem concretizar aquilo que poderão ser as razões para recear atrasos no processo ou o que é que poderá ser considerado desvantajoso. Além disso, com esta norma, o juiz só poderá atribuir a administração se

15

Nos termos previstos no art.228º nº1 alínea e) do CIRE.

16

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.259. CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.813. 17

18

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.348.

19

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.260.


considerar que isso não irá afetar negativamente o processo, o que possivelmente leva a que maior parte dos pedidos de administração pelo devedor sejam indeferidos, porque torna-se quase impossível prever que não irão surgir quaisquer problemas. Deste modo, seria benéfica uma alteração desta norma, como Catarina Serra aponta no excerto referido anteriormente, para uma maior possibilidade de se utilizar este instituto que poderá ser vantajoso para as empresas. Por fim, ainda no âmbito dos pressupostos a que o juiz tem de atender para atribuir a administração da massa ao devedor, resta incidir sobre o que se encontra previsto no art.224º

nº2 alínea d) do CIRE, que nos diz que será necessário que o requerente da

insolvência dê o seu acordo, se este não tiver sido o devedor, tendo assim um verdadeiro direito de veto20. A este respeito Catarina Serra aponta que a exigência do acordo do requerente poderá ser útil em determinados casos, uma vez que poderá ter fundamentos importantes para a decisão sobre o pedido21. No entanto, a Autora, com a qual concordamos novamente, critica também este pressuposto e refere que esta exigência poderá ser desnecessária, uma vez que o acordo do requerente poderá ser coberto pelo pressuposto anterior em que o juiz, avaliando as possíveis razões para recear atrasos no processo, deverá também ouvir a sua opinião, além de que, com esta norma, a atribuição da administração poderá ser indeferida por interesses exclusivos do requerente, o que nem sempre poderá ser benéfico. Verificados os pressupostos que analisamos anteriormente, surge-nos uma outra questão, a qual se relaciona com o facto de se o juiz será obrigado a atribuir a administração da massa insolvente ao devedor logo que se preencham os devidos requisitos. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins diz-nos que o “art.224º, 1, parece conferir ao juiz o poder de não atribuir aquela administração ao devedor ainda que estejam preenchidos os pressupostos previstos.”22. Concordamos com o Autor, uma vez que o disposto no artigo não parece impor uma obrigação ao juiz e, portanto, depreendemos que lhe é conferido um poder discricionário de decidir conforme entender. Como foi referido anteriormente, não só poderá o juiz atribuir a administração da massa insolvente ao devedor, como também poderá a assembleia de credores decidir nesse sentido. Do mesmo modo que a lei impõe que se verifiquem determinados requisitos para o juiz decidir, também são estipulados pressupostos para que por decisão da assembleia de credores se possa atribuir ao devedor a administração da massa insolvente. Da interpretação do art.224º nº3 do CIRE retiramos que será apenas necessário verificar-se dois requisitos, nomeadamente, que o devedor tenha requerido a administração e que tenha apresentado um plano de insolvência, ou se comprometa a fazê-lo nos 30 dias após

20 21

22

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.349. SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.260. MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.349.


a deliberação dos credores, no qual se preveja a continuidade da empresa pelo próprio. Neste momento, podemos já referir que são excluídos dois dos requisitos necessários para a atribuição pelo juiz mas o requerimento será sempre necessário, não podendo o juiz decidir oficiosamente nem a assembleia de credores o poderá deliberar se não houver requerimento, bem como também será sempre necessário um plano de insolvência. Será ainda pertinente referir que à deliberação dos credores para esta decisão será aplicável o art.77º do CIRE, o qual determina que as deliberações da assembleia de credores são tomadas por maioria simples, sendo este o normativo aplicável uma vez que não está prevista qualquer norma em específico para este caso em concreto que afaste a regra supletiva. Assim, iremos agora proceder a uma análise mais profunda dos respetivos pressupostos, começando pelo requerimento que terá de ser apresentado. Tal como vimos nos pressupostos aplicáveis à decisão do juiz, a lei não especifica o momento em que o requerimento deverá ser feito pelo que se entende que o requerimento poderá ser feito até à assembleia de apreciação do relatório ou até à assembleia anterior a essa em que poderá vir a ser concedida a administração, ou seja, será já num momento posterior à declaração da insolvência e a atribuição ao devedor será mais tardia. É ainda de ressalvar que, por força do disposto no art.36º nº1 alínea n) do CIRE, conjugado com o nº2 e o nº3 do mesmo artigo, que admite a possibilidade de não ocorrer assembleia de apreciação do relatório, nestes casos, o devedor terá de efetuar o seu pedido até à primeira assembleia que tiver lugar no processo23. No que concerne à apresentação do plano de insolvência, este pressuposto apresenta-se semelhante ao que vimos para os requisitos do juiz, e funda-se nas mesmas razões analisadas anteriormente, sendo que assim o devedor terá de já ter apresentado um plano de insolvência até à data da assembleia ou terá de se comprometer a fazê-lo, surgindo aqui uma pequena diferença, uma vez que o prazo para apresentar o plano será contado a partir da deliberação em que se atribuiu a administração ao devedor, mas mantendo-se os 30 dias para o fazer. Posto isto, é de ressalvar que o processo de insolvência tem como objetivo a satisfação dos credores, surgindo a assembleia de credores como o orgão que defende os interesses destes, sendo que, se eles pretendem deliberar no sentido de atribuir a administração ao devedor, consentindo eles próprios sobre os possíveis riscos que poderão ocorrer com este instituto, também eles poderão ter esta competência além do juiz. Além disso, será assim dada esta hipótese porque no caso do juiz os pressupostos são mais difíceis de serem cumpridos, tornando-se mais acessível este regime. Deste modo, podemos compreender a 23

CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.814.


razão da exclusão dos pressupostos que constam na alínea a) e b) do nº2 do art.224º do CIRE, uma vez que ambos tem como principal objetivo a proteção dos credores e, se eles deliberam em atribuir a administração ao devedor, é porque admitem que poderá ser o melhor para o processo, consentindo com os possíveis riscos e dispensando ainda o acordo do requerente. Ainda no que diz respeito à deliberação da assembleia de credores para a atribuição da administração da massa insolvente ao devedor, Alexandre de Soveral Martins adverte-nos do seguinte “Embora a norma pudesse ser mais clara, julgamos necessária uma subsequente decisão judicial a confiar aquela administração ao devedor. Desde logo, porque o art.224º nº3, não estabelece que são os credores que confiam essa administração ao devedor. O que resulta do preceito é que os credores podem deliberar que a administração é confiada ao devedor”24. Ou seja, este Autor considera que os credores apenas poderão deliberar e, posteriormente, o juiz confia efetivamente a administração ao devedor. Analisados todos os pressupostos para a atribuição da administração da massa insolvente ao devedor, tanto pelo juiz como pela assembleia de credores, poderemos concluir dizendo que todos os requisitos previstos tem como principal objetivo evitar que este instituto se projete negativamente no processo, impondo ainda ao devedor a obrigatoriedade de apresentar um plano de insolvência, prevendo-se que este recupere e mantenha a exploração da empresa, uma vez que é este o principal propósito deste regime25. Efeitos da administração pelo devedor Atribuída a administração da massa insolvente ao devedor, este instituto irá produzir efeitos, os quais necessitam de ser abordados detalhadamente. Assim, poderemos dividir os efeitos quanto a três situações: a apreensão de bens, a liquidação e a remuneração. Além disso, será também pertinente abordar os poderes que o devedor e o administrador da insolvência detêm com a aplicação deste regime. No que diz respeito à apreensão de bens, pela interpretação do nº2 do art.228º do CIRE, entendemos que com a administração da massa insolvente pelo devedor é suspensa a apreensão de bens, uma vez que o artigo nos diz que só após a cessação desse regime se procede à apreensão. Deste modo, tendo sido atribuída a administração pelo juiz não há lugar à apreensão mas, por sua vez, se a administração só for conferida posteriormente através de deliberação de credores, certamente que já se iniciou a apreensão dos bens, o que levanta uma outra problemática neste regime. Menezes Leitão pronuncia-se dizendo

24

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.350.

25

MARTINS, Luís M. – Processo de Insolvência: anotado e comentado, p.522.


que nestes casos a apreensão deverá ser revogada26. No entanto, a este respeito, Catarina Serra opõe-se dizendo, relativamente à suspensão da apreensão que já se havia iniciado “Não pode, evidentemente, suspender-se nem tão-pouco deve poder ser revogada. Se, no caso em que a apreensão ainda não está concluída, é de procurar uma solução que não desperdice a atividade já desenvolvida, por maioria de razão, é de evitar aqui uma solução tão drástica que, na hipótese de o juiz pôr termo à administração pelo devedor, obrigue a realização de toda a atividade de apreensão realizada.”27. Concordamos com a opinião de Catarina Serra uma vez que a revogação total da apreensão poderia ter impacto negativo no processo. Quanto à liquidação, o art.225º do CIRE determina que uma vez atribuída a administração da massa insolvente ao devedor, a liquidação só terá início depois do termo daquela. Porém, o mesmo artigo vem ressalvar o disposto no art.158º nº1 do CIRE e ainda a realização pelo devedor de vendas, de acordo com o nº2 do mesmo artigo, se houver consentimento do administrador da insolvência e da comissão de credores, se existir. O art.158º nº1 do CIRE determina que, transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente. Já o seu nº2 determina que o administrador da insolvência promove, também, a venda antecipada dos bens da massa insolvente que não possam ou não se devam conservar por estarem sujeitos a deterioração ou depreciação. Estes artigos podem, desde logo, demonstrar-se contraditórios com o regime em causa, uma vez que o mesmo pretende permitir ao devedor uma administração com vista à recuperação da empresa e com estas remissões estará a limitar a atuação do devedor, retirando- lhe a disponibilidade dos bens. No entanto, temos de aplicar a remissão para o nº1 do art.158º do CIRE com a lógica de que, por alguma eventualidade que seja benéfica para o processo, se possa alienar alguns bens, sem isso afetar a continuidade da exploração da empresa pelo devedor. Quanto à remissão para o nº2, esta será ainda mais compreensível uma vez que é relativa à venda antecipadas de bens deterioráveis ou depreciáveis, sendo mais proveitosa a sua venda do que a perda dos mesmos. Outro efeito que surge com a concessão da administração da massa insolvente ao devedor é a atribuição de uma remuneração, que se encontra regulada no art.227º do CIRE. De acordo com o art.82º nº1 do CIRE, após a declaração de insolvência, a regra é a de que os órgãos sociais do devedor que se mantenham em funcionamento não serão remunerados. Portanto, o art.227º do CIRE constitui uma exceção a esta norma. Assim, dispõe este artigo

26

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p.280.

27

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.262.


que, se o devedor for uma pessoa coletiva, mantêm-se as remunerações dos seus administradores e membros dos seus órgãos sociais, ao passo que, se o devedor for uma pessoa singular, terá o direito de retirar da massa os fundos necessários para uma vida modesta dele próprio e do agregado, tendo em conta a sua condição anterior e as possibilidades da massa. Daqui concluímos logo que existe uma disparidade de tratamento incompreensível, consoante se trate de pessoa singular ou pessoa coletiva. Por estas e outras razões, esta é uma norma bastante criticada pela doutrina. Quanto às pessoas coletivas que continuam a obter as mesmas remunerações, Catarina Serra critica esta opção, e bem, dizendo que “é muito provável, num contexto de insolvência, que não seja adequado manter o valor anterior das remunerações.”28. No que concerne ao estipulado no nº2 do art.227º do CIRE, também surgem várias dúvidas, nomeadamente no que diz respeito ao conceito de “vida modesta”, conceito este que comporta um elevado grau de subjetividade. Como sabemos, uma vida modesta para uns, poderá não ser uma vida modesta para outros, pelo que este direito poderá colocar em perigo a tutela e garantia dos credores. Também a este propósito, Catarina Serra diz-nos que “a remuneração correspondente aos “fundos necessários para uma vida modesta” pode não coincidir – raramente coincidirá – com a remuneração adequada à sua anterior.”29. No entanto, se atendermos a que também o artigo se refere às “possibilidades da massa”, poderemos ter aqui um meio mais seguro de quantificar a remuneração. Por todas estas razões, também podemos concluir que esta é uma outra norma que faz com que este regime não seja tão atrativo quanto merecia. Relativamente aos poderes do devedor, através da interpretação do art.226º do CIRE, podemos concluir que o conteúdo dos poderes do devedor não é sempre o mesmo, pelo que teremos que analisar este preceito com a devida atenção. Em primeiro lugar, apesar da administração ser atribuída ao devedor, é de realçar que este ficará sujeito à fiscalização por parte do administrador da insolvência, o qual continua a existir como órgão da insolvência e tem a função de comunicar ao juiz e à comissão de credores, qualquer circunstância que desaconselhe a continuidade da administração pelo devedor, sendo que se não houver comissão de credores, a comunicação é feita a todos os credores que tiverem reclamado os seus créditos, segundo consta no nº1 do artigo mencionado anteriormente. De seguida, o nº2 do art.226º do CIRE estipula duas limitações aos poderes do devedor dizendo que tratando-se de atos de gestão corrente, o devedor não deve contrair obrigações, se o administrador da insolvência a elas se opuser e, por sua vez, tratando-se

28

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.264.

29

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.265.


de atos de administração extraordinária, o devedor não deve contrair obrigações sem o consentimento do administrador da insolvência. Impõe-se aqui explanar aquilo a que se refere o legislador como atos de gestão corrente e atos de administração extraordinária. Segundo Menezes Leitão, poderemos dizer que atos de gestão corrente são referentes a atos de administração ordinária, estando em causa atos que promovem a conservação e frutificação

normal

dos

bens.

Consequentemente,

por

contraposição,

atos

de

administração extraordinária são aqueles que visam promover uma frutificação anormal dos bens ou a realização de benfeitorias ou melhoramentos do património administrado à custa dos rendimentos do mesmo30. Aqui também seria vantajosa uma maior clareza da norma quanto a estes conceitos, devendo o legislador tê-lo dito quando elaborou o preceito em questão. Posto isto, não podemos deixar de referir que o corpo do nº2 do art.226º do CIRE determina que a eficácia dos atos praticados não é afetada, o que também gera críticas na doutrina, nomeadamente levantadas por Carvalho Fernandes e João Labareda, uma vez que não se consegue depreender quais as consequências da prática dos referidos atos. Estes Autores criticam esta posição “tendo em conta a publicidade e o registo de que é objeto a atribuição da administração ao devedor”31, nos termos previstos no art.229º do CIRE. Além disso, os mesmos Autores sustentam que a eficácia dos atos do devedor só seria justificável para a tutela da boa-fé de terceiros, sendo que deveria ser limitada aos casos em que isso acontecesse. Deste modo, os Autores consideram que o legislador deveria ter optado por um regime de ineficácia, salvo quando os terceiros provassem estar de boafé32, posição com a qual concordamos, sem necessitar de acrescentar mais nada à opinião dos autores. Por sua vez, entende-se que o devedor poderá ter o poder de receber dinheiro e pagamentos. No entanto, o nº3 do art.226º do CIRE, determina que o administrador da insolvência poderá exigir que esses recebimentos e pagamentos fiquem a seu cargo. Todavia, isto poderá não ser muito benéfico para a continuidade da empresa, uma vez que não irá transmitir confiança aos terceiros com quem a empresa se relaciona, uma vez que estes irão efetuar determinadas operações com o administrador da insolvência. Catarina Serra aponta que esta possibilidade deveria ser apenas usada em situações em que haja risco sério de má realização destas operações33. No entanto, somos da opinião de que se isso estivesse em causa deveria colocar-se em prática o disposto no nº1 do art.226º ou a

30

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito da Insolvência, p.314.

31

CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.818. 32

CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.819. 33

SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência, p.263.


alínea d) do nº1 do art.228º, ambos do CIRE, e deveria pôr-se termo à administração pelo devedor, pois haveria um comportamento desadequado do devedor. O disposto no nº4 do art.226º do CIRE determina que, oficiosamente ou a pedido da assembleia de credores, o juiz poderá proibir a prática de certos e determinados atos sem antes haver a aprovação do administrador da insolvência. Será assim necessário que, nessa decisão, o juiz especifique quais os atos que se encontram abrangidos por esta proibição. Consequentemente,

se estes atos forem praticados aplica-se, com as necessárias

adaptações, o nº6 do art.81º do CIRE e serão considerados ineficazes. Já o nº6 do art.226º do CIRE estabelece que será da responsabilidade do devedor a elaboração e o depósito das contas anuais que sejam obrigatórias por lei, o que se compreende, uma vez que mesmo sem a atribuição da administração ao devedor, isto já aconteceria nos termos do art.65º do CIRE. Resta dizer que, segundo o nº7 do art.226º do CIRE, apesar de ser atribuída ao devedor a administração da massa insolvente, em nada prejudica o exercício das demais competências atribuídas por lei ao administrador da insolvência, como é o caso do poder de examinar os elementos de contabilidade do devedor. Por fim, resta dizer que, nos termos do art.229º do CIRE, como já adiantamos anteriormente, há determinadas decisões que, pela sua importância, são objeto de publicidade e registo, nos termos dos art.37º e 38º do CIRE, nomeadamente, a atribuição ao devedor da administração da massa insolvente, a proibição da prática de certos atos sem o consentimento do administrador da insolvência e a decisão que ponha termo à administração pelo devedor. Cessação da administração pelo devedor Menezes Leitão diz-nos que “a administração de bens pelo devedor é encarada como uma situação transitória e excecional”34, pelo que se compreende que seja encerrada no caso de se verificarem determinadas situações, sendo que bastará que ocorra uma das que se encontram previstas no artigo para que seja determinada a cessação da administração pelo devedor. Desta forma, o art.228º nº1 do CIRE dispõe que o juiz põe termo à administração da massa insolvente pelo devedor: se o próprio apresentar requerimento nesse sentido; se a assembleia de credores assim o deliberar; se for afetada pela qualificação da insolvência como culposa a própria pessoa singular titular da empresa; se algum credor o solicitar por haver razões para receio de atrasos no processo ou de desvantagens para os credores; e se o plano de insolvência não for apresentado no prazo devido ou se não tiver sido admitido, aprovado ou homologado. Nesta norma não temos qualquer dúvida que o termo da

34

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p.280.


administração pelo devedor é objeto de decisão do juiz35, não tendo aqui o juiz um poder discricionário, uma vez que verificando-se um destes casos terá de ser decretado o fim da administração. Relativamente a esta questão da cessação da administração, Alexandre de Soveral Martins refere que, apesar de a lei não o estabelecer no art.228º do CIRE, a administração da massa insolvente pelo devedor também irá cessar quando é encerrado o processo de insolvência36. Decretada a cessação da administração pelo devedor, de acordo com o nº2 do art.228º nº2, procede-se de imediato à apreensão dos bens e passa a ter lugar a liquidação, prosseguindo o processo a sua normal tramitação. Conclusão Em jeito de conclusão, podemos afirmar que, com a elaboração desta pesquisa, foi possível entender a possibilidade que é atribuída às entidades devedoras de, no decorrer de um processo de insolvência, serem as próprias a administrar a massa insolvente, desde que se verifiquem determinados requisitos, nomeadamente, que na massa insolvente esteja compreendida uma empresa e aqueles que constam no art.224º do CIRE. Foi também possível apurar que estamos perante um instituto que poderá possibilitar a recuperação da empresa, através da utilização dos conhecimentos do devedor que mantém a administração da massa. Assim, se bem utilizado, e se todas as partes envolvidas tiverem o mesmo objetivo de continuar a exploração da empresa pelo devedor, poderá ser um regime que será bem sucedido no âmbito do direito da insolvência. O propósito deste trabalho foi analisar o regime jurídico de uma forma clara, de modo a pormenorizar todas as suas questões, para que cada vez mais se tente abordá-lo de uma forma que leve a introduzi-lo nos processos de insolvência, uma vez que pela pequena quantidade de jurisprudência que existe acerca do mesmo, leva-nos a constatar que é pouco recorrente. Por fim, terminamos dizendo que, apesar de estarmos perante um regime jurídico que poderá trazer vantagens à recuperação da empresa, pela proximidade do devedor com a situação da mesma, pudemos depreender que apresenta também algumas indeterminações que o poderão tornar complexo e pouco utilizado, opondo-se assim à ideia de que esta seria uma novidade bem-vinda e bem empregue no direito português. Assim, para que se pudesse retirar as vantagens deste regime, seria benéfica uma alteração legislativa de modo a tornar as normas aplicáveis mais claras e, consequentemente, tornar este tipo de administração mais recorrente. 35

CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, p.822. 36

MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência, p.365.


Bibliografia CARVALHO FERNANDES, Luís A.; LABAREDA, João - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado. 3ª edição. Lisboa: Quid Juris?, 2015. ISBN: 978- 972-724-713-4. EPIFÂNIO, Maria do Rosário – Manual de Direito da Insolvência. 7ª edição. Coimbra: Almedina, 2019. ISBN: 978-972-40-8872-3. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. 10ª edição. Coimbra: Almedina, 2018. ISBN: 978-972-40- 7586-0. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito da Insolvência. 9ª edição.

Coimbra:

Almedina, 2019. ISBN: 978-972-40-8012-3. MARTINS, Alexandre de Soveral – Um Curso de Direito da Insolvência. 2 ª edição revista e atualizada. Coimbra: Almedina, 2015. ISBN: 978-972-40-8479-4. MARTINS, Luís M. – Processo de Insolvência: anotado e comentado. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN: 978-972-10-6576-2. SERRA, Catarina – Lições de Direito da Insolvência. Coimbra: Almedina, 2018. ISBN: 978972-40-7445


A competência internacional dos tribunais portugueses em questões de responsabilidade parental

A competência internacional dos tribunais portugueses em questões de responsabilidade parental Ana Isabel Guerra Professora Adjunta Convidada da ESTGFelgueiras- IPP

Fábio André Coelho da Silva Aluno do Mestrado em Solicitadoria na ESTG

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Resumo: O presente trabalho versa sobre a competência internacional dos tribunais português, concretamente no âmbito das responsabilidades parentais. O presente tema apresenta relevância, uma vez que, existindo um confronto entre dois ou mais ordenamentos jurídicos para julgar uma determinada matéria – no caso, as responsabilidades parentais -, urge saber, concretamente, qual o ordenamento jurídico com competência a julgar. Para tal, e de modo a aferir quais os critérios considerados determinantes pela dotar os tribunais de competência internacional, o presente trabalho aborda várias posições doutrinárias, bem como jurisprudência sobre a matéria. Pretende-se, com o presente trabalho, contribuir com o estudo do tema, dada a sua importância e pertinência. Palavras-chave: Competência interna; competência internacional; responsabilidades parentais; residência habitual. Sumário: 1.

Considerações introdutórias

2.

Os tribunais

Conflitos de jurisdição Conflitos de competência Competência interna Competência internacional 3.

Competência internacional dos tribunais portugueses

4.

Competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais

5.

Conclusão

Resume: The present work deals with the international jurisdiction of the Portuguese courts, specifically in the scope of parental responsibilities. The present theme is relevant, since there is a confrontation between two or more legal systems to judge a certain matter - in this case, parental responsibilities -, it is urgent to know, concretely, which legal system with competence to judge. To this end, and in order to assess which criteria are considered decisive for endowing the courts with international jurisdiction, the present work addresses several doctrinal positions, as well as jurisprudence on the matter. It is intended, with this work, to contribute to the study of the theme, given its importance and relevance.


Keywords: Internal competence; international competence; parental responsibilities; habitual residence. Summary: Competence conflicts Internal competence International competence 3. International jurisdiction of Portuguese courts 4. International competence in the area of parental responsibilities 5. Conclusion Siglas e abreviaturas Als. - alíneas art. - artigo arts. - artigos CPC - Código de Processo Civil (CPC) CRP - Constituição da República Portuguesa LOSJ - Lei da Organização do Sistema Judiciário nºs – Números p. – página pp. - páginas TRC – Tribunal da Relação de Coimbra Vg – Por exemplo Considerações introdutórias Aferir a competência dos tribunais para julgar determinada ação é um passo fundamental para que a ação prossiga os tramites necessários e culmine numa decisão justa e imparcial. Ora, a determinação da competência dos tribunais é simples quando não há confronto entre vários ordenamentos jurídicos. No entanto, quando este confronto ocorre existem vários critérios a considerar. Desde logo, impõem-se colocar as seguintes questões: quais são os critérios que permitem determinar a competência de um tribunal? Em que circunstâncias é determinada a competência internacional aos tribunais portugueses? E no âmbito das responsabilidades parentais, quais são os critérios a aferir além dos estabelecidos na lei portuguesa? Estas são algumas questões para as quais se pretende obter uma resposta neste âmbito. Os tribunais


Encontra-se desde logo consagrado no artigo (art.) 202º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que os tribunais são os órgãos de soberania com capacidade para administrar a justiça que têm como função defender de forma independente, imparcial e transparente

os

interesses

e

direitos

legalmente

protegidos

dos

cidadãos,

independentemente dos seus meios económicos. Cabe aos tribunais, desta forma, pôr fim aos conflitos de interesses das partes e nisso consiste a sua função jurisdicional. Numa primeira abordagem, a jurisdição, em sentido amplo e abstrato, compete a todos os órgãos jurisdicionais, considerados no seu conjunto. Por outro lado, a competência é a parcela de jurisdição que é atribuída a cada um dos órgãos jurisdicionais.1 Temos de exigir do Estado o exercício da jurisdição, mas o Estado não pode fazê-lo de qualquer maneira, só o pode fazer através dos tribunais (órgão independente e imparcial em relação aos outros órgãos do Estado). O Estado tem o dever de instituir tribunais e o dever de instituir legalmente um procedimento, assim como os cidadãos tem direito a uma jurisdição de acordo com um procedimento previamente estabelecido A jurisdição e a competência são distintas, e, por isso, a sua caracterização é fundamental para se que as suas funções fiquem devidamente diferenciadas. Além disso, esta distinção é também relevante no âmbito dos conflitos de jurisdição ou de competência. Conflitos de jurisdição A jurisdição, tal como já foi referido, constitui o poder de julgar e é atribuído aos tribunais considerados no seu conjunto. De acordo com o art. 109º, nº1 do Código de Processo Civil (CPC) “há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito dizse positivo no primeiro caso e negativo no segundo.” Admitamos, por exemplo, a seguinte situação: uma ação é proposta no tribunal cível e o juiz julga que esse tribunal não é competente, uma vez que a questão em litígio não tem natureza civil, mas sim natureza administrativa. Proposta tal ação num tribunal administrativo, o juiz declara-se igualmente incompetente por entender que, afinal, a questão é de natureza civil e não administrativa. Nesta situação, como se pode ver, os dois tribunais – que pertencem a ordens jurisdicionais distintas – declinam o poder de conhecer a questão, o que significa que estamos perante um conflito de jurisdição negativo. Se no exemplo anteriormente dado os referidos tribunais, arrogassem do poder de conhecer da questão, então o conflito de jurisdição em causa era positivo. Os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Conflitos, mediante os casos, de acordo com o art. 110º, nº1 CPC.2 Conflitos de competência 1

PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto – Direito Processual Civil, 9ª edição. Coimbra: Almedina, 2010, pp. 125-126 A composição, a competência, o funcionamento e o processo do tribunal de conflitos sofreram alterações através da Lei nº91/2019 de 4 de setembro. O Tribunal de Conflitos é atualmente composto por um presidente e dois juízes. 2


Relativamente à competência, esta é uma porção do poder jurisdicional. A repartição do poder jurisdicional faz-se segundo as regras de competência, atribuindo-se, deste modo, competência aos tribunais, considerando os termos que caracterizam cada ação. Com isto pretende-se delimitar internamente a atividade dos tribunais, de modo a evitar conflitos. No entanto, esta delimitação não trava a totalidade dos conflitos. De acordo com o art.º 109º, nº2 “há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.” Admitamos o seguinte exemplo: o juiz de um tribunal cível declara-se incompetente para julgar determinada questão, uma vez que entende que compete ao tribunal de comércio resolver a questão em litígio. Proposta tal ação no tribunal de comércio, o respetivo juiz declara o tribunal igualmente incompetente por entender que a questão em causa cabe ao foro civil. Neste caso, os dois tribunais – que pertencem à mesma ordem jurisdicional – declinam o poder de conhecer a questão, o que significa que estamos perante um conflito negativo de competência. Se no referido exemplo os tribunais se arrogassem do poder de conhecer da questão, então o conflito era positivo. Competência interna Urge fixar, primeiramente, qual o tribunal português competente para julgar determinada ação. Em conformidade com o art.º 60º, nº2 CPC, a competência reparte-se em função da matéria, da hierarquia, do valor da causa e do território. A competência interna encontrase também prevista no art.º 37º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ). Relativamente à competência em função da matéria, os artigos 64º CPC e 40º, nº1 da LOSJ dizem-nos que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. De acordo com os artigos. 117º e seguintes (ss.) da LOSJ, as instâncias centrais de competência especializada apresentam as seguintes secções: cíveis; criminais; instrução criminal; família e menores; trabalho; comércio; e execução. Importa dizer que quando não sejam da competência de qualquer secção da instância central ou de qualquer tribunal de competência territorial alargada, todas as ações devem ser propostas na instância local e dirigidas à respetiva secção de competência genérica, tal como determina o art.º 130º, nº1 da LOSJ.3 Por outro lado, a competência em razão do valor determina a intervenção das secções de competência genérica das instâncias locais ou as secções cíveis da instância central, de acordo com os artigos 66º CPC e 41º da LOSJ. A competência interna em razão da hierarquia apresenta uma disposição vertical dos tribunais. Na base desta disposição constam os tribunais de 1ª instância, onde se instauram, em regra, as ações (art.º 67º CPC). De seguida, os tribunais de 2ª instância ou tribunais da Relação. Estes tribunais têm competência para 3

PIMENTA, Paulo – Processo Civil Declarativo. Coimbra: Almedina, 2015, p.97


conhecer dos recursos interpostos de decisões da 1ª instância (art.º 68º, nº2 CPC e 42º, nº2 da LOSJ). Por fim, no topo da hierarquia judiciária, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O STJ tem competência para conhecer dos recursos das decisões proferidas pela Relação (artigos 69º, nº2 CPC e 42º, nº2 da LOSJ). Por fim, o art.º 43º, nº1 da LOSJ determina que o STJ exerce jurisdição em todo o território nacional e que os tribunais da Relação e os tribunais da 1º instância exercem jurisdição na área das respetivas circunscrições. Competência internacional Agora, uma vez analisada a competência interna, é tempo de analisar a competência internacional. O ordenamento jurídico português abra-se normas e princípios de direito internacional geral ou comum; normas constantes de convenções internacionais, emanadas pelos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte; e disposições dos tratados que regem a União Europeia emanadas pelas suas instituições, no exercício das respetivas competências, tal como determina o art.º 8º CRP. Ora, uma vez que há comunhão de legislação entre os vários países, uma questão litigiosa pode estar em contacto com mais do que uma ordem jurídica. Neste caso, torna-se necessário determinar os limites da competência internacional dos tribunais de cada um dos Estados. A competência internacional, nas palavras de Paulo Pimenta, “deve ser considerada em bloco, isto é, relativamente a todos os tribunais portugueses no seu conjunto.”4 É possível inferir desta afirmação que das duas uma: ou os tribunais portugueses têm todos competência internacional ou, por outro lado, os tribunais portugueses não têm (todos) competência internacional, o que nos levará ao nosso próximo ponto. Competência internacional dos tribunais portugueses Nos termos do disposto no art.º 59º CPC, “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.” É de realçar, no entanto, que o referido artigo dota os tribunais portugueses de competência internacional, sem prejuízo do que se encontrar determinado nos regulamento europeus e em outros instrumentos internacionais. Deste modo, cabe aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional, importando analisar, em primeiro lugar, se tendo o caso dos autos elementos de conexão com diversas ordens jurídicas, existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar, por exemplo, uma ação de

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PIMENTA, Paulo – Processo Civil Declarativo. Coimbra: Almedina, 2015, p.87


divórcio e, em caso negativo, se se verificam alguns dos elementos de conexão referidos nos artigos. 62.º e 63.º CPC.5 De acordo com o disposto no art.º 62º CPC, existem três pressupostos por via dos quais os tribunais portugueses têm competência internacional. Basta que se verifique um dos três para que se verifique tal competência. Relativamente ao primeiro pressuposto, previsto na alínea (al.) a) do referido artigo 62.º, os tribunais portugueses são territorialmente competentes quando a ação possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial. Devido ao princípio da coincidência entre a competência territorial e a competência internacional, os tribunais portugueses podem julgar qualquer ação que deva ser proposta em Portugal. Os tribunais portugueses assumem esta competência se o elemento relevante da causa estiver em conexão com o território português.6 Por outro lado, a al. b) do mesmo artigo determina que se o facto que serve de causa de pedir na ação ou, tratando-se de uma causa de pedir complexa, algum dos factos que a integrem tiver sido praticado em território português, então os tribunais portugueses têm igualmente competência.7 Por fim, determina a al. c) que quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, então, neste caso, os tribunais portugueses são, também, internacionalmente competentes. Esta alínea concretiza o princípio da necessidade, uma vez que pretende evitar que o direito em causa não fica sem tutela quando se verifique uma impossibilidade de ordem prática ou jurídica ou uma grave dificuldade na instauração da ação no estrangeiro. Neste caso, os tribunais portugueses são competentes para apreciar a ação, desde que haja uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal (v.g. residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar o território português o bem que objeto da ação).8 O regime explanado ao longo dos últimos três parágrafos e previsto no art.º 62º não determina a competência exclusiva dos tribunais português, uma vez que a ação pode dar entrada nos tribunais português ou num tribunal de outro país. No entanto, quando se verifica alguma das alíneas do art.º 63º do CPC os tribunais têm competência exclusiva para apreciar a ação. Isto significa que, nos casos previstos no referido artigo, a ação tem

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo nº 4435/19.7T8BRG.G1.S1, de 7 de outubro de 2020. Relator: Rosa Tching VARREGOSO MESQUITA, Lurdes - Noções de Direito Processual Civil. Coimbra: Gestlegal, 2020, p.175 Este pressuposto, também designado de princípio da causalidade, verifica-se, por exemplo, no caso previsto no acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, processo nº 531/15.8T8LRA.C1.S2, de 11 de julho de 2017, relatado por Hélder Roque, em que as partes celebram um contrato em Portugal – que não foi cumprido -, tendo sido praticados, em território português, alguns dos factos que servem de causa de pedir na ação. 8 ABRANTES GERALDES, António Santos; PIMENTA, Paulo; PIRES DE SOUSA, Luís Filipe – Código de Processo Civil Anotado Vol. I – Parte Geral e Acão Declarativa. 2º edição. Coimbra: Almedina, 2020, p. 94 6 7


de proposta nos tribunais português. Este caso é diferente do previsto no art.º 62º, uma vez que, no caso do referido artigo, a ação pode ser proposta nos tribunais portugueses ou num tribunal estrangeiro. No caso do art.º 63º CPC, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes quando se trate de matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; matéria de validade da constituição ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas coletivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como a validade das decisões dos seus órgãos; matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal; matéria de execuções sobre imóveis situados em território português; e, por fim, matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas coletivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português. Todavia, existem algumas exceções relativamente à competência exclusiva dos tribunais portugueses, concretamente contempladas nas als. a) e b). Assim, determina a al. a) que, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro. Por outro lado, o al. b) tipifica que para determinar a sede das sociedades, o tribunal português aplica as suas regras de direito internacional privado. No plano da competência internacional, urge ainda referir o art.º 94º CPC, no qual se encontra expresso o princípio da consensualidade. Segundo o referido artigo, as partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um determinado litígio, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais do que uma ordem jurídica. Esta designação pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa à dos tribunais portugueses.9 Note-se, no entanto, que a atribuição da competência ao tribunal designado só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis; ser aceite pela lei do tribunal designado; ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra; não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente. Determina ainda o nº4 do artigo em questão que se considera reduzido a escrito o acordo constante

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Sobre esta matéria dá-se como exemplo o acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, processo nº 1387/15.6T8PRTB.L1.P1-A, de 9 de fevereiro de 2017, relatado por Nunes Ribeiro, em que as partes acordaram a atribuição de competência exclusiva aos tribunais espanhóis, mais concretamente ao tribunal de Vigo, para a resolução dos litígios que pudessem decorrer do contrato de mútuo bancário entre ambas celebrado. Uma vez que existe esta convenção, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para dirimir o litígio, na parte referente ao mencionado contrato de mútuo bancário.


de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham diretamente o acordo, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido, demonstrando que as partes assim o convencionaram. Competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais Uma vez analisada detalhadamente a competência internacional dos tribunais português, devemos agora aplicar o que foi abordado numa vertente mais pragmática. Assim, o presente

ponto

pretende

tratar

a

competência

internacional

no

âmbito

das

responsabilidades parentais. Como foi dito anteriormente, os tribunais portugueses têm competência internacional, sem prejuízo do que se encontrar determinado nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais. Na matéria das responsabilidades parentais existem algumas normas e instrumentos internacionais a ter em conta, nomeadamente as normas presentes no Regulamento n.º 2201/2003, de 27-11-2003 relativas à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, em vigor desde 1 de agosto de 2004, nos Estados-Membros da União Europeia. Estas normas são aplicáveis aos litígios emergentes de situações transnacionais e devem ser respeitadas pelos tribunais dos Estados-Membros da União Europeia.10 As regras de competência em matéria de responsabilidade parental estabelecidas no referido regulamento visam o superior interesse da criança, particularmente o critério da proximidade, tal como determina o nº12 deste Regulamento. Deste modo, no momento de determinar a competência internacional do tribunal de um determinado Estado, esta deverá ser atribuída primeiramente aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança e, em particular, o critério da proximidade. O número seguinte do Regulamento determina ainda que o tribunal competente pode, a título excecional e em certas condições, remeter o processo a um tribunal de outro Estado-Membro, se este estiver em melhores condições para dele conhecer. Os referidos números devem ser conjugados com o art.º 8º, nº1 que estabelece que são competentes os tribunais de um Estado-Membro em matéria de responsabilidade parental, desse mesmo Estado, relativa a uma criança que resida habitualmente no Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. Uma vez que o conceito de residência habitual se afigura importante para a determinação da competência internacional, é apropriado defini-lo. Deste modo, segundo o acórdão do

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A harmonia com as regras definidas no Regulamento (CE) nº 2201/2003 não se aplicam apenas aos Estados-Membros da União Europeia, podendo ser também aplicadas entre um Estado-Membro e um Estado terceiro, desde que, pelo menos, um dos elementos de estraneidade previstos nas als. a) e b) do nº1 do art. 3.º do regulamento, desde que apresente uma conexão significativa com um dos Estados-Membros.


STJ nº 1691/15 de 26 de janeiro de 2017, o conceito de residência habitual - ou permanente – traduz, em especial, uma ideia de estabilidade do domicílio, assente, designadamente, num conjunto de relações sociais e familiares, demonstrativas da integração na sociedade local. Neste sentido, a criança deve ter a sua vida estabilizada num Estado-Membro e este Estado deve, em princípio, oferecer melhores condições para proceder à regulação do exercício da responsabilidade parental, designadamente para a realização do inquérito às condições sociais, morais e económicas dos pais.11 Devemos debruçar-nos sobre o referido acórdão do STJ, uma vez que este apresenta pertinência para algumas posteriores conclusões. Na situação em apreço no referido Acórdão, AA instaurou contra BB uma ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo à menor CC. A menor é filha das partes, não casados, encontrando-se a menor a viver com a mãe (BB). A menor reside, desde que nasceu, no Luxemburgo, com a mãe, que aí reside há cerca de oito anos. Pelo tempo que a mãe da menor reside no Luxemburgo, podemos afirmar que a mesma tem, nesse país, a sua residência habitual e, tendo a menor consigo desde que nasceu, também esta tem aí, a sua residência habitual, uma vez que o tempo de vida já decorrido demonstra inequivocamente uma situação de estabilidade domiciliária. Ora, neste sentido, e ao aplicar os nºs 12 e 13 do regulamento anteriormente referido, bem como o art.º 8º, nº1, também já referido, é possível concluir que os tribunais competentes para dirimir aso litígio em causa são os tribunais luxemburgueses, uma vez que há uma forte conexão com a ordem jurídica luxemburguesa. Foi esta aliás, foi esta a decisão do STJ, contrariamente às decisões do Tribunal de 1º instância e do Tribunal da Relação de Guimarães. Além do conceito de residência habitual, é relevante pensarmos também sobre o conceito de proximidade, uma vez que, como se disse, é um conceito com relevância para determinar a competência internacional dos tribunais. O referido conceito deve sempre ser atendível e o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) 12 teve como base para decidir, no ano de 2017, o conceito de proximidade. No processo em causa, L requereu contra D a alteração do regime de regulação das responsabilidades parentais em relação ao filho menor das partes, O requerente indicou, para si, uma residência habitual em Viseu e uma temporária na Guarda. Além das suas residências, o requerente indicou também, para a requerida, uma residência na Alemanha e, quando estava em Portugal, uma residência em Viseu. O requerente pretende alterar o regime das responsabilidades parentais, uma vez que este alega que não consegue contactar com o menor que reside com a requerida (mãe) na Alemanha. Perante a situação, o Ministério Público declarou o tribunal judicial da comarca de Viseu internacionalmente incompetente com base no artigo. 17º do

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Processo nº 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1, de 26 de janeiro de 2017. Relator: Olindo Geraldes 12 TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA - Processo nº 6484/16.8T8VIS.C1, de 11 de outubro de 2017. Relator: António Domingos Pires Robalo


Regulamento Bruxelas II-A, e nos artigos 59.º, primeira parte e 590.º, n.º 1, ambos do CPC. Esta decisão levou o requerente a recorrer da decisão, facto que levou o TRC a apreciar a decisão. Perante a situação, o TRC decretou competência internacional aos tribunais portugueses, uma vez que: os tribunais portugueses, no caso, o Tribunal da Comarca de Viseu -, em maio de 2012, decretaram o divorcio entre as partes; e apesar do menor viver com a mãe desde abril de 2012, este, até ir para o estrangeiro, viveu sempre em Viseu com os progenitores; e as famílias de ambos os progenitores – com quem o menor tem relacionamentos pessoais – continuam a viver na cidade de Viseu. O TRC entende, dadas as circunstâncias, que apesar do menor ter a sua residência habitual na Alemanha, a proximidade do menor com a ordem jurídica portuguesa é maior, uma vez que este viu regulado o exercício do poder paternal em Portugal, no tribunal que agora, se declarou incompetente internacionalmente. Além disso, o TRC considera que o menor viveu pouco tem na Alemanha – quando comparado com o tempo vivido em Portugal -, tendo em conta que menor se encontra a viver com sua mãe na Alemanha apenas desde abril de 2012, tendo vivido em Portugal desde a data do nascimento 10-11-2004 até abril de 2012, momento em que foi viver para o estrangeiro. Este, tal como já se disse, nasceu em Portugal e conviveu com os seus familiares, mantendo as suas origens e raízes. Deste modo, entende que, pelo critério da proximidade e os superiores interesses do menor, deve ser o tribunal português a apreciar e decidir com vista à prossecução de uma decisão mais justa. Ora, como se pode aferir pela análise aos acórdãos, os conceitos de residência habitual e proximidade são determinantes para dotar os tribunais de competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais. No caso português, através da leitura dos art.º 59º do CPC, resulta que a lei dá prevalência às normas convencionais sobre esta matéria, pugnando o referido na CRP, na medida em que o seu art.º 8, em conjugação com outras normas, acolhe o princípio do primado do Direito Comunitário. Assim, o direito convencional presente nos tratados e acordos em que participe o Estado português são diretamente aplicáveis pelos tribunais. Conclusão Em razão da comunhão legislativa entre o Estado português e os demais Estados, através de regulamentos europeus e demais instrumentos internacionais, surgem, por vezes, conflitos de competência internacional e a resolução destes é imperiosa e determinante. Como se pode verificar ao longo do presente trabalho, a lei portuguesa (nomeadamente nos seus artigos 62º e 63º CPC) determina especificamente quais os critérios que atribuem competência internacional aos tribunais português em caso de conflito entre o ordenamento jurídico português e um outro ordenamento internacional. Além dos referidos critérios, no que concerne à competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais, devemos atender a dois conceitos que, segundo o


entendimento da doutrina e jurisprudência, são fundamentais: o conceito de residência habitual e o conceito de proximidade. Estes conceitos apresentam uma conexão entre si e, por isso, devem ser conjugados. No entanto, apesar do conceito de residência habitual ser importante – uma vez que o art.º 8º, nº1 do Regulamento nº 2201/2003, de 27-11-2003 estabelece que são competentes os tribunais de um Estado-Membro em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse EstadoMembro à data em que o processo seja instaurado no tribunal -, este não é totalmente determinante. Como se pode ver pela análise do acórdão do TRC, processo nº 6484/16.8T8VIS.C1, de 11 de outubro de 2017, relatado por António Domingos Pires Robalo, o conceito de proximidade apresenta-se primordial, uma vez que, segundo este entendimento – com o qual concordo -, um processo deve ser julgado pelo tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular – como é o caso. Neste sentido, a regra tipificada no nº1 do art.º 8 do Regulamento nº 2201/2003 deve ser aplicada com alguma reserva, uma vez que o superior interesse do menor e a proximidade deste com um determinado ordenamento jurídico são fatores que entram na equação que determina a competência internacional dos tribunais. Assim sendo as regras comunitárias devem ser aplicadas de forma cuidada atendendo casuisticamente a cada situação concreta, não devendo ser aplicadas de forma generalista e mecânica, sob pena de estarem em causa elementos decisivos para que a causa possa ser julgada de forma justa e equitativa e com isso prejudicar o superior interesse da criança. Bibliografia ABRANTES GERALDES, António Santos; PIMENTA, Paulo; PIRES DE SOUSA, Luís Filipe – Código de Processo Civil Anotado Vol. I – Parte Geral e Acão Declarativa. 2º edição. Coimbra: Almedina, 2020 MONTALVÃO MACHADO, António; PIMENTA, Paulo – O Novo Processo Civil, 11ª edição Almedina, Coimbra 2009 PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto – Direito Processual Civil, 9ª edição - Almedina, Coimbra 2010 PIMENTA, Paulo – Processo Civil Declarativo. Coimbra: Almedina, 2015 VARREGOSO MESQUITA, Lurdes - Noções de Direito Processual Civil. Coimbra: Gestlegal, 2020 Jurisprudência SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Processo nº 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1, de 26 de janeiro de 2017. Relator: Olindo Geraldes SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo nº 4435/19.7T8BRG.G1.S1, de 7 de outubro de 2020. Relator: Rosa Tching


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, processo nº 1387/15.6T8PRT-B.L1.P1-A, de 9 de fevereiro de 2017. Relator: Nunes Ribeiro SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, processo nº 531/15.8T8LRA.C1.S2, de 11 de julho de 2017. Relator: Hélder Roque TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA - Processo nº 6484/16.8T8VIS.C1, de 11 de outubro de 2017. Relator: António Domingos Pires Robalo Legislação Lei nº91/2019 de 4 de setembro Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003


Penhora do Património Conjugal

Penhora do Património Conjugal Ana Isabel Guerra Professora Adjunta Convidada da ESTG- Felgueiras- IPP

Beatriz Coelho Aluna do Mestrado em Solicitadoria na ESTG e Solicitadora Estagiária

Patrícia Ferreira Aluna do Mestrado em Solicitadoria na ESTG e Solicitadora Estagiária


Resumo O presente trabalho versa sobre a penhora do património conjugal, mais concretamente, no âmbito de uma execução movida apenas contra um dos cônjuges e sobre o incidente da comunicabilidade. A abordagem deste tema, tem como ponto de partida, umas breves considerações gerais, mais concretamente quanto ao Princípio da liberdade de regime de bens, aos regimes de bens legalmente previstos, ao Princípio da imutabilidade do regime de bens e à responsabilidade por dívidas dos cônjuges. Em execução movida apenas contra um dos cônjuges, nada obsta a que, por vezes, sejam penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens próprios suficientes do executado. Não obstante vigorar no processo executivo o princípio da legitimidade formal, para além das exceções previstas para este princípio, a lei processual civil prevê a possibilidade de se alegar que a dívida é comum ao cônjuge do devedor, mesmo que aquele não figure como devedor no título executivo. Assim, numa execução instaurada apenas contra um dos cônjuges em que o credor tenha um título executivo extrajudicial, pode ser suscitado o incidente da comunicabilidade da dívida, quer pelo credor exequente, quer pelo cônjuge executado. Ao cônjuge do executado, quando este ocupe a posição de terceiro face à ação executiva, é permitido, ainda, a defesa dos seus direitos relativos aos bens próprios e aos bens comuns, por meio de dedução de embargos de terceiro. No regime da separação de bens verifica-se a inexistência de um património comum, conservando cada cônjuge a titularidade dos seus bens. Contudo os cônjuges não se encontram impedidos de serem comproprietários de um bem. Relativamente à união de facto, ainda que se possa provar a existência de proveito comum dos companheiros ou unidos de facto, os bens que existem são apenas bens pessoais de cada um deles, pelo que não é suficiente para se sustentar a responsabilização do unido de facto não contratante. Palavras-Chave: Comunicabilidade das Dívidas; Cônjuges; Património Conjugal; Penhora. Sumário: Introdução 1.

Considerações gerais

1.1.

Princípio da liberdade de regime de bens

1.2.

Os regimes de bens legalmente previstos

1.3.

Princípio da imutabilidade do regime de bens

1.4.

Responsabilidade por dívidas dos cônjuges

2.

Penhora do património conjugal em execução movida apenas contra um dos

cônjuges 3.

Incidente de Comunicabilidade da Dívida

3.1.

Suscitado pelo exequente


3.2.

Suscitado pelo executado

4.

Penhora em caso de comunhão ou compropriedade

5.

Embargos do cônjuge do executado

6.

Responsabilidade por dívidas e união de facto

6.1.

A união de facto

6.2.

A responsabilidade por dívidas dos unidos de facto

Conclusão Resume The present work deals with the attachment of the conjugal patrimony, more specifically, in the scope of an execution filed only against one of the spouses and the incident of the communicability. The starting point for this theme is brief general considerations, more specifically regarding the Principle of freedom of property regime, the legal systems of property legally provided for, the Principle of immutability of the property regime and liability for the debts of the spouses. In execution carried out only against one of the spouses, there is nothing to prevent the couple's common assets from being seized at times, as sufficient assets of the executed are not known. Notwithstanding the principle of formal legitimacy in the executive process, in addition to the exceptions provided for in this principle, civil procedural law provides the possibility of claiming that the debt is common to the debtor's spouse, even if the debtor does not appear as such in the title executive. Thus, in an enforcement proceeding against only one of the spouses and having an extrajudicial enforceable title, the incident of debt communicability can be raised, either by the creditor or the executed spouse. The defendant's spouse, when he / she occupies the position of third party vis-à-vis the executive action, is also allowed to defend his / her rights related to own assets and common assets, by deducting third party embargoes. In the system of separation of assets, there is no common heritage, with each spouse retaining ownership of their assets, however the spouses are not prevented from being coowners of an asset. Regarding the de simple couple union, although it is possible to prove the existence of common benefit of the partners or de simple couple partners, the assets that exist are only personal assets of each one of them, so it is not enough to sustain the responsibility of the simple couple union non-contractor. Key words: Debt Communicability; Spouses; Conjugal Heritage; Garnishment. Summary: 1. General considerations 1.1Principle of freedom of property regime 1.2.The legally provided for property regimes


1.3.Principle of immutability of the property regime 1.4.Liability for spouses' debts 2. Pledge of marital assets in execution filed against only one spouse 3. Debt Communicability Incident 3.1Raised by the former 3.2 Raised by the executed 4. Attachment in case of communion or joint ownership 5. Oposition of the defendant's spouse 6. Liability for debts and partnership of a simple couple union 6.1.The simple couple union 6.2.The liability for debt of the simple couple union Conclusion

Siglas e Abreviaturas Al./als. – Alínea/s Art./arts. – Artigo/s CC – Código Civil Cfr. – Conferir CPC – Código de Processo Civil Ed. – Edição N.º/n.os – número/s p./pp. – página/s ss. – seguintes Introdução No âmbito da ação executiva a penhora do património conjugal, mais concretamente em execução movida apenas contra um dos cônjuges, pode ocorrer, por vezes, por não se conhecerem bens próprios suficientes do executado. Por esse facto podem ser penhorados bens comuns do casal, nos termos do n.º 1 do art. 740.º do Código de Processo Civil (CPC). Não obstante, vigorar no processo executivo o princípio da legitimidade formal, previsto no art. 53.º do CPC, para além das exceções a este princípio previstas no art. 54.º do CPC, a lei processual civil prevê ainda, a possibilidade de se alegar que a dívida é comum ao cônjuge do devedor, mesmo que aquele não figure como tal no título executivo. Assim, no âmbito de execução movida apenas contra um dos cônjuges com base num título extrajudicial, pode ser alegado que a dívida é comum, suscitando-se o incidente da comunicabilidade da dívida.


Neste contexto, com o presente trabalho, pretendemos abordar a penhora do património conjugal, bem como questões conexas a esta problemática, designadamente, o incidente da comunicabilidade da dívida e a aplicabilidade das disposições legais previstas nos arts. 740.º a 743.º do CPC à união de facto. Partiremos de uma abordagem genérica a algumas considerações relacionas com o direito substantivo, nomeadamente, o Princípio da liberdade de regime de bens, os regimes de bens legalmente previstos, o Princípio da imutabilidade do regime de bens e a responsabilidade por dívidas dos cônjuges. Posteriormente iremos debruçar-nos sobre a penhora do património conjugal em execução movida apenas contra um dos cônjuges e sobre o incidente da comunicabilidade da dívida, suscitado quer pelo exequente, quer pelo executado. Analisaremos também os embargos do cônjuge do executado, bem como as circunstâncias em que o pode fazer e quais os bens objeto do embargo. Observaremos igualmente a penhora em caso de comunhão ou compropriedade e a responsabilidade por dívidas no âmbito união de facto. Considerações gerais Definido no art. 1577.º do Código Civil (CC), o casamento consiste no acordo celebrado entre duas pessoas, as quais visam constituir família, em virtude da comunhão de vida entre si. A relação matrimonial estabelecida por este vínculo é considerada “a principal fonte de relações jurídicas familiares” 1, emergindo da mesma diversos efeitos tanto a nível pessoal como a nível patrimonial. Por um lado, a relação matrimonial vincula os cônjuges a um conjunto de deveres, de acordo com o art. 1672.º do CC2, bem como, pode também implicar alterações no nome ou na nacionalidade dos mesmos, nos termos dos arts. 1677.º a 1677.º-C do CC e dos arts. 3.º e 8.º da Lei da Nacionalidade Portuguesa (cfr. Lei n.º 37/81, de 03 de outubro), sendo estes os efeitos pessoais emergentes do casamento3. Por outro lado, na esfera jurídica dos cônjuges também se verificam efeitos patrimoniais, consoante o regime de bens adotado, o qual consiste “[no] conjunto de regras cuja aplicação define a propriedade sobre os bens do casal, isto é, a sua repartição entre o património comum”4. Assim, o casamento produz efeitos sob a titularidade dos bens e, consequentemente, sob o exercício dos poderes de administração e de disposição (cfr. arts. 1678.º a 1689.º do CC). Além disso, outro efeito patrimonial emergente do casamento é a responsabilidade dos cônjuges por dívidas contraídas por ambos ou apenas por um

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FALCÃO, Marta; SERRA, Miguel Dinis Pestana; TOMÁS, Sérgio Tenreiro – Direito da Família: Da Teoria à Prática. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 21. 2 Segundo o art. 1672.º do CC, os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação (art. 1673.º), cooperação (art. 1674.º) e assistência (arts. 1675.º e 1676.º). 3 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 396, 425 e 431. 4 IDEM – Ibidem, pp. 559 e 560.


deles, nos termos dos arts. 1690.º a 1697.º do CC. Devido a estes efeitos de natureza patrimonial, o regime de bens do casamento manifesta o seu caráter essencial, devendo a escolha do mesmo ser efetuada com a devida ponderação e discernimento. Princípio da liberdade de regime de bens No ordenamento jurídico português vigora o princípio da liberdade de regime de bens, consagrado no art. 1678.º do CC. Este princípio determina que os nubentes têm a faculdade de fixar livremente o regime de bens do casamento, mediante a celebração de uma convenção antenupcial, podendo escolher um dos regimes de bens legalmente previstos no CC ou estipular o que lhes aprouver, dentro dos limites da lei5. Deste modo, os nubentes podem escolher um dos regimes-tipo, previstos no CC, nomeadamente, o regime supletivo da comunhão de adquiridos (cfr. arts. 1721.º a 1731.º do CC), o regime da comunhão geral de bens (cfr. arts. 1732.º a 1734.º do CC) e o regime da separação de bens (cfr. arts. 1735.º a 1736.º do CC), ou criar um regime atípico, quer estipulando um regime distinto dos legalmente consagrados, quer combinando elementos destes regimes-tipo6. Apesar de, neste contexto, se verificar uma grande autonomia das partes, este princípio contém algumas restrições, nomeadamente, as previstas no art. 1699.º e ss. do CC, e as situações em que a lei determina que se aplica imperativamente o regime da separação de bens, de acordo com o art. 1720.º do CC. Os regimes de bens legalmente previstos Reiterando o que foi dito anteriormente, o CC consagra três regimes-tipo de bens do casamento, os quais produzem efeitos sob os bens dos cônjuges e as dívidas contraídas por estes. Desta forma, demonstra-se essencial efetuar uma breve caraterização dos regimes de bens previsto no referido diploma legal. Regime da comunhão de adquiridos Previsto nos arts. 1721.º a 1731.º do CC, o regime da comunhão de adquiridos é o regime mais utilizado7, o que é compreensível, uma vez que, este trata-se do regime supletivo8,

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Note-se que os nubentes “não têm apenas a liberdade de escolher o regime de bens. A própria lei mostra que é possível incluir disposições que são estranhas à conformação do regime de bens, como as que estão previstas nos arts. 1700.º e segs. Pode dizer-se que esta liberdade lhes permite “incluir quaisquer negócios que possam constar de escritura pública”, tanto de natureza patrimonial como de natureza não patrimonial”. Cfr. COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 571. 6 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 563. 7 De acordo com dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2019 foram celebrados 24 135 sob o regime de bens da comunhão de adquiridos, 493 sob o regime de bens da comunhão geral, 5 801 sob o regime de bens da separação de bens e 2 166 sob outro regime fixado por convenção antenupcial. Cfr. Instituto Nacional de Estatística (INE) (2020) - Casamentos celebrados (Entre pessoas de sexo oposto - N.º) por Local de registo (NUTS 2013), Sexo, Regime de bens e Estado civil anterior do cônjuge; Anual. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0008128&contexto=bd&selTab=ta b2 8 O regime de bens da comunhão de adquiridos passou a ser considerado como o regime supletivo a partir de 31 de maio de 1967. “Antes dessa data, o regime de bens com maior incidência era o da comunhão geral”. Cfr. FALCÃO,


de acordo com o art. 1717.º do CC. Destarte, quando os nubentes não celebrem uma convecção antenupcial, ou no caso de a convenção celebrada ter caducado ou ser inválida ou ineficaz (cfr. arts. 1709.º a 1712.º e 1716.º do CC), considera-se que o casamento é celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos. Atendendo ao seu caráter supletivo, é invulgar este regime ser estabelecido por convenção antenupcial. No âmbito deste regime existem bens próprios e bens comuns, tendo o legislador consagrado, nos art. 1722.º a 1729.º do CC, diversas normas de forma a facilitar a classificação da natureza jurídica do bem. Mediante a observância do art. 1722.º, n.º 1 do CC, é possível afirmar que a lei consagra “três categorias de bens próprios: (i) os que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento - al. a); (ii) os que lhe advierem depois do casamento por sucessão ou doação – al b); (iii) os adquiridos na constância do matrimónio em virtude de direito próprio anterior”9. No que concerne aos bens próprios, estes bens pertencem a cada um dos cônjuges, sendo estes os previstos nos arts. 1722.º, 1723.º e 1726.º a 1728 do CC. Relativamente aos bens comuns, estes constituem o património conjugal, ou seja, “uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”10. Note-se que, ao contrário do que ocorre no instituto da compropriedade, o património conjugal pertence em comum a duas pessoas, as quais têm um único direito sob todo o património, não se verificando a repartição por quotas ideais. Tal se deve ao “vínculo pessoal que liga entre si os membros da coletividade e que exige que o património coletivo subsista enquanto esse vínculo perdurar”11. Nos termos do art. 1724.º do CC, o legislador determinou que devem ser classificados como comuns os rendimentos auferidos pelos cônjuges, em virtude do seu trabalho e os bens por estes adquiridos na constância do matrimónio, que não sejam considerados próprios ao abrigo da lei12. Além desta disposição legal, neste âmbito deve-se ainda observar os arts. 1725.º, 1726.º e 1728.º a 1729.º do CC.

Marta; SERRA, Miguel Dinis Pestana; TOMÁS, Sérgio Tenreiro – Direito da Família: Da Teoria à Prática. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, pp. 71 e 72. 9 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo n.º 20580/11.4T2SNT.L1-6, de 19 de dezembro de 2013. Relator Vítor Amaral. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e62657447c4d1c2e80257c820055f6b8?OpenDocume nt 10 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 596. 11 IDEM – Ibidem, pp. 596 e 597. 12 Um bem pode ser adquirido durante a constância do matrimónio e ser considerado como um bem próprio. A título exemplificativo, “se, na constância do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, um só dos cônjuges adquire um bem imóvel por via de um seu direito próprio anterior, tal bem é considerado bem próprio desse cônjuge (art.º 1722.º, n.º 1, al.ª c), do CCiv.). Porém, se, em vez disso, esse bem é adquirido conjuntamente por ambos os cônjuges, mediante contrato de compra e venda por ambos outorgado, então a aquisição por ambos impede que o bem seja considerado próprio de qualquer deles”. Cfr. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo n.º 20580/11.4T2SNT.L1-6, de 19 de dezembro de 2013. Relator Vítor Amaral. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e62657447c4d1c2e80257c820055f6b8?OpenDocume nt


Regime da comunhão geral Até ao dia 31 de maio de 1967, o regime de bens em análise, previsto nos arts. 1732.º a 1734.º do CC13, era considerado o regime de bens supletivo, sendo que, atualmente, para que o casamento seja celebrado sob o regime da comunhão geral, os nubentes têm de o escolher, mediante a celebração de uma convenção antenupcial. Contudo, verificam-se algumas restrições quanto à possibilidade de adoção deste regime, nomeadamente, nos casos em que um dos nubentes ter filhos (cfr. art. 1699.º, n.º 2 do CC)14, ou uma idade igual ou superior a 60 anos (cfr. art. 1720.º, n.º 1, al. b) do CC), bem como nas situações de casamento urgente (cfr. arts. 1590.º e 1720.º, n.º 1, al. a) do CC). À semelhança do que se verifica no regime da comunhão de adquiridos, no regime de bens da comunhão geral podem existir bens próprios e bens comuns. Contudo, no regime em apreço, grande parte dos bens dos cônjuges são considerados bens comuns, pois, tal como determina o art. 1732.º do CC, “o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam excetuados por lei”, nomeadamente pelo art. 1733.º do CC. Segundo o Tribunal da Relação de Coimbra, “no regime de comunhão geral de bens, como se sabe, o património comum do casal, é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam excetuados por lei. Neste regime, os bens comuns constituem, pois, a regra, sendo os próprios a exceção. Como próprios, em divergência com a regra da comunicabilidade, entendeu o legislador considerar os bens de carácter estritamente pessoal, onde, patentemente, se inserem as indemnizações a que se refere a disposição salientada”15. Note-se que, o número de bens incomunicáveis, previstos no art. referido anteriormente, é consideravelmente menor do que o número de bens considerados próprios, no âmbito do regime de comunhão de adquiridos. Regime da separação de bens Regulado nos arts. 1735.º e 1736.º do CC, o regime da separação é o regime de bens que tem verificado um maior crescimento quando comparado com os outros regimes-tipo16. O

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Além disso, nos termos do art. 1734.º do CC, são aplicáveis ao regime da comunhão geral as disposições legais do regime da comunhão de adquiridos. 14 Relativamente a este aspeto, a posição maioritária da doutrina considera que a ratio legis do art. 1699.º, n.º 2 do CC é salvaguardar os interesses dos filhos dos nubentes “enquanto herdeiros legítimos e legitimários”. Mas, se esses filhos forem de ambos os nubentes, a doutrina considera que é possível convencionar que o casamento será celebrado sob o regime da comunhão geral. Cfr. FALCÃO, Marta; SERRA, Miguel Dinis Pestana; TOMÁS, Sérgio Tenreiro – Direito da Família: Da Teoria à Prática. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 81. 15 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 4260/03, de 19 de fevereiro de 2004. Relator Garcia Calejo. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/04caa212cc51ddd280256e58005922ee?OpenDocu ment 16 De acordo com dados do INE, em 2011 foram celebrados 4 067 casamentos sob o regime da separação e em 2019 foram celebrados sob este regime 5 801. Este crescimento da adoção deste regime contraria a evolução negativa do n.º de casamentos celebrados sob os regimes de comunhão. No que concerne ao regime de comunhão de adquiridos, em 2011 cerca de 30 233 casamentos foram celebrados por este regime, ao passo que, em 2019, apenas foram celebrados sob este regime 24 135 casamentos. Tal é compreensível devido ao crescimento da adoção do regime da separação e de regimes atípicos, afastando assim o regime supletivo. Cfr. Instituto Nacional de Estatística (INE) (2020) - Casamentos celebrados (Entre pessoas de sexo oposto - N.º) por Local de registo (NUTS - 2013), Sexo, Regime de bens e Estado civil anterior do cônjuge; Anual. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em:


principal elemento caraterizador deste regime de bens é “a inexistência de património comum”, uma vez que, os cônjuges conservam a titularidade, domínio e fruição dos bens que detém antes do casamento e que vierem a obter após a celebração do mesmo, conforme determina o art. 1735.º do CC. Destarte, apenas existem bens próprios num casamento celebrado sob este regime de bens, sendo que “no máximo existirão bens em compropriedade”17. Pois, tal como determina o art. 1736.º, n.º 2 do CC, quando haja dúvidas quanto à titularidade dos bens móveis, considera-se que o mesmo é detido por ambos os cônjuges em compropriedade. O regime da separação pode ser adotado pelos nubentes, mediante a celebração de uma convenção antenupcial (cfr. art. 1698.º do CC). Contudo, este regime também pode ser obrigatório, ou seja, existem situações em que as partes não podem escolher livremente o regime de bens que irá reger os efeitos patrimoniais do seu casamento. Tais situações encontram-se previstas no art. 1720.º do CC. Além disso, outra circunstância em que um casamento pode ser regulado pelo regime da separação é no caso da separação judicial de bens, em virtude da qual o regime de bens do casamento é alterado para o da separação18. Princípio da imutabilidade do regime de bens De acordo com o art. 1714.º, n.º 1 do CC, após a celebração do casamento, não é possível modificar quer as convenções antenupciais quer os regimes de bens legalmente previstos, exceto nos casos admitidos por lei. O legislador pretendeu impedir os cônjuges de alterar diretamente o regime de bens do seu casamento, sendo que, estes também não podem modificar indiretamente o seu regime de bens (cfr. art. 1714.º, n.º 2 do CC). Segundo o Supremo Tribunal de Justiça, “o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento inicialmente fixado por lei ou pelos nubentes, respondendo a exigências de proteção dos interesses de cada um dos cônjuges, face ao ascendente do outro, compreende a alteração desse regime direta ou indiretamente, isto é, através da modificação da convenção antenupcial ou mediante contratos de compra e venda ou de sociedade que implique responsabilidade ilimitada de ambos os cônjuges”19. Por outro lado, Francisco Pereira e Guilherme de Oliveira consideram que “a ideia mais válida que poderá justificar o princípio da imutabilidade é a proteção de terceiros”, uma vez que, “se os cônjuges pudessem, depois do casamento, alterar o seu regime de bens

https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0008128&contexto=bd&selTab=ta b2 17 Cfr. FALCÃO, Marta; SERRA, Miguel Dinis Pestana; TOMÁS, Sérgio Tenreiro – Direito da Família: Da Teoria à Prática. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 81. 18 IDEM – Ibidem, pp. 81 e 82. 19 ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 076926, de 27 de abril de 1989. Relator Eliseu Figueira. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/479472676d67e632802568fc003a2c45?OpenDocume nt


livremente […], os terceiros que com quem eles tivessem contratado poderiam ficar gravemente lesados nos seus direitos”20. Contudo, este princípio não é absoluto, verificando-se a existência de situações em que é possível alterar o regime de bens, às quais se encontram previstas no art. 1715.º, n.º 1 do CC. De acordo com Antunes Varela, “os casos discriminados nesta disposição legal não constituem, todos eles, verdadeiras exceções ao princípio da imutabilidade, segundo este autor, a intenção da lei foi solucionar eventuais dúvidas relativamente àquele princípio”21. Apesar de o legislador permitir que o regime de bens seja alterado em determinadas situações, este determinou que essas alterações só produzem efeitos em relação a terceiros após o registo das mesmas (cfr. arts. 1715.º, n.º 2 e 1711.º, n.º 1 do CC), protegendo desta forma os terceiros que contratam com os cônjuges. Responsabilidade por dívidas dos cônjuges Segundo Francisco Pereira e Guilherme de Oliveira, “a comunhão de vida conjugal — comunhão de pessoas e de bens — justifica a utilização de instrumentos especiais, mais complexos, mas também mais adequados”.22 Assim, o legislador consagrou um regime especial de responsabilidade por dívidas dos cônjuges nos arts. 1690.º a 1697.º do CC. Uma das ideias estruturante deste regime especial é a legitimidade de qualquer um dos cônjuges contrair dívidas sem o consentimento do outro, de acordo com o art. 1690.º, n.º 1. Tal legitimidade representa um desvio ao direito comum das obrigações23, uma vez que o cônjuge fica vinculado à obrigação contraída pelo outro, apesar de este não “ter participado no ato de assunção da dívida e na ausência de um acordo de mandato ou independentemente da verificação dos requisitos da gestão de negócios”. Além disso, independentemente do facto de a dívida responsabilizar ambos os cônjuges ou apenas um dos cônjuges, os bens comuns e os bens próprios dos mesmos podem responder pelas dívidas “para além da quota de responsabilidade que lhes competia”24. Ou seja,

20

COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 583. 21 RODRIGUES, Ana Isabel Martins - Da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens legalmente fixado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017. Dissertação de Mestrado na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, p. 50. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/81098/1/Dissertac%CC%A7a%CC%83o%20P.%20Imutabilidade.pdf 22 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 478. 23 O princípio geral, resultante do Direito das Obrigações, é o de que só responde pela dívida quem a contraiu. No entanto, no regime patrimonial do casamento, este princípio sofre algumas derrogações por força da plena comunhão de vida que se projeta na vida patrimonial dos cônjuges, ainda que entre eles vigore o regime da separação de bens. Cfr. CARNEIRO, Andreia Pereira – A aplicação do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges à união de facto. Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2017. Dissertação de Mestrado em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Privatísticas, p. 15. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/109712/2/236823.pdf 24 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 478.


apesar de o cônjuge não ter consentido na assunção da dívida, os seus bens podem ser chamados a pagar a dívida na mesma25. Mas quais são os critérios que determinam que as dívidas responsabilizam ambos os cônjuges ou apenas um deles? Nos termos do art. 1691.º e 1692.º do CC, o legislador determina, respetivamente, as dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges e as dívidas que responsabilizam apenas um dos cônjuges. Para além disso, o legislador trata as dívidas que oneram doações, heranças ou legado e as dívidas que oneram bens certos e determinados

em

artigos

distintos

dos

supramencionados,

devido

a

algumas

particularidades associadas às mesmas (cfr. arts. 1693.º e 1695.º do CC). Após se determinar quem pode ser responsabilizado pela dívida, é possível determinar quais os bens que respondem pelas dívidas dos cônjuges, consoante sejam da responsabilidade de ambos (dívidas comuns) ou de apenas um deles (dívidas próprias), segundo os arts. 1695.º e 1696.º do CC. No caso de a dívida ser da responsabilidade de ambos os cônjuges, os bens pertencentes ao património comum dos cônjuges respondem pela dívida em causa, de acordo com o art. 1695.º, n.º 1, 1.ª parte do CC. No caso de não existirem bens comuns ou de estes serem insuficientes, respondem, solidariamente, os bens próprios de qualquer um dos cônjuges, nos termos do art. 1695.º, n.º 1, 2.ª parte do CC. Desta forma, o cônjuge, que afetar os seus bens próprios à satisfação da dívida, deterá um direito de regresso sob o outro cônjuge, sendo que, este crédito apenas é exigível no momento da partilha dos bens do casal, segundo o art. 1697.º, n.º 1 do CC. Quando o regime de bens do casamento for o da separação de bens, como não existem bens comuns, os bens próprios dos cônjuges respondem pela dívida. No entanto, a responsabilidade dos cônjuges não é solidária, não se verificando qualquer tipo de direito de regresso a favor do cônjuge que afetou os seus bens próprios à satisfação da dívida, ao contrário do que se verifica nos restantes regimes legalmente previstos (arts. 1695.º, n.º 2 e 1697.º, n.º 1 do CC). Na hipótese de apenas um dos cônjuges ser responsável pela dívida, o art. 1696.º, n.º 1 do CC determina que respondem em primeiro lugar os bens próprios do cônjuge devedor. Além destes, respondem simultaneamente os bens enumerados nas alíneas do n.º 2 do mesmo art. Na ausência destes bens ou na sua insuficiência, de acordo com o art. 1696.º, n.º 1, in fine, a meação do cônjuge devedor nos bens comuns responderá pela dívida, sendo que, quando os bens comuns respondem por este tipo de dívidas, o cônjuge não devedor passa a ser titular de um crédito de compensação no valor da sua meação naqueles bens, nos termos do art. 1697.º, n.º 2 do CC26. 25

No caso dos regimes da comunhão revela, neste aspeto, a regra da metade, a qual determina que os cônjuges participam em metade do ativo e do passivo da comunhão, de acordo com o art. 1730.º do CC, aplicável ao regime da comunhão geral, por força do art. 1734.º do CC. 26 “Não se pode, pura e simplesmente, “… deixar que estes sejam retirados da comunhão — como que voltando a ser bens próprios do seu anterior titular …”, sob pena de frustrar as expectativas e “prejudicar seriamente o outro


Após a análise do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, verifica-se que “a autonomia dos bens comuns em face dos bens próprios de cada um dos cônjuges é uma autonomia limitada, incompleta”, dado que, por um lado, os bens comuns não respondem apenas pelas dívidas comuns, mas podem ainda responder, a título excecional e subsidiário, por dívidas próprias de um dos cônjuges27. Penhora do património conjugal em execução movida apenas contra um dos cônjuges Nos termos do n.º 1 do art. 740.º do CPC, em execução movida contra um dos cônjuges, estando estes casados no regime de comunhão de adquiridos ou comunhão geral (cfr. art. 1721.º e ss. do CC), sucede-se que, por vezes, não se conhecem bens próprios do executado suficientes e penhoram-se bens comuns do casal. O regime previsto estabelecido no art. 740.º, n.º 1 do CPC, encontra-se em consonância com o instituído no art. 1696.º, n.º 1 do CC, que nos diz que pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns28. Sendo penhorados os bens comuns do casal, o outro cônjuge é citado para em 20 dias requerer a separação de bens ou juntar certidão da ação em que esteja a discutir-se tal separação, caso contrário, se não o fizer a penhora prossegue, de acordo com o art. 740.º, n.º 1 in fine do CPC). A lei processual civil vigente consagra, assim, um mecanismo de proteção do cônjuge do executado em caso de penhora de bens comuns do casal, consubstanciado na obrigação de este ser citado para, no prazo de vinte dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência dessa ação29. Requerendo o cônjuge não executado a separação de bens ou junta a certidão, a ação irá correr por apenso ao processo executivo e a execução ficará suspensa até à partilha dos bens comuns, segundo os termos da primeira parte do n.º 2 do art. 740.º do CPC. No âmbito da partilha, pode ocorrer que os bens comuns que tenham sido penhorados não sejam atribuídos ao cônjuge executado, neste caso, de acordo com a segunda parte do n.º 2 do art. 740.º do CPC, podem penhorar-se outros bens. Contudo, a penhora anterior

cônjuge”. Neste caso surge um crédito de compensação do património comum sobre o património do cônjuge devedor, a tomar em conta no momento da partilha.”. Cfr. COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 503. 27 IDEM – Ibidem, p. 598. 28 CARVALHO, Filipa Isabel Santos de – Os Poderes Processuais do Cônjuge do Executado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014. Tese de Mestrado, p. 27. [Consultada a 31 de março de 2020]. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28539/1/Os%20poderes%20processuais%20do%20conjuge%20do%20exe cutado.pdf 29 GONÇALVES, Marco Carvalho (30 de setembro de 2016) – Responsabilidade Patrimonial dos Cônjuges e Penhora de Bens Comuns do Casal. Repositórium da Universidade do Minho, p. 13. [Consultado a 22 de março de 2020]. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/42750/1/Responsabilidade%20patrimonial%20dos%20c%C3%B4n juges%20e%20penhora%20de%20bens%20comuns%20do%20casal.pdf


mantém-se até que haja nova penhora de bens, assim é por uma questão de garantia do direito do exequente (cfr. 740.º, n.º 2 in fine do CPC). Ainda no que toca à partilha, se não forem adjudicados bens ao executado, cabendo-lhe antes o direito a receber tornas, então, perante esta situação o cônjuge do executado deverá entregar as tornas ao agente de execução, não ficando desonerado dessa obrigação caso entregue as tornas indevidamente ao executado30. Neste sentido, durante o processo da separação de bens, em caso de inércia por parte do requerente, nos termos do art. 1135.º do CPC, o exequente tem o direito de promover o seu andamento, não podendo ser aprovadas dívidas que não estejam devidamente documentadas, assim como o cônjuge não executado tem o direito de escolher quais os bens que irão integrar a sua meação, procedendo para o efeito à notificação dos credores. De notar que o cônjuge não executado que tenha sido citado para usar as faculdades previstas nos arts. 740.º, n.º 1 do CPC, atendendo ao preceituado no art. 787.º, n.º 1 do CPC, não tem de assumir a qualidade de executado (cfr. n.º 2 do art. 787.º do CPC)31. Ora, deste preceito legal previsto neste art. 740.º do CPC, surge uma questão que divide a Doutrina, que consiste em saber se este se aplica, exclusivamente, às execuções por dívidas próprias do executado ou também se pode aplicar às dívidas comuns? Segundo o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa, esta norma só pode ser aplicada às dívidas próprias, nunca às dívidas comuns, nem mesmo em relação àquelas obrigações em que só haja título executivo contra um dos cônjuges, pois para estas vale o disposto no art. 741.º do CPC32. Num entendimento contrário, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, citados por Filipa Isabel Santos de Carvalho, defendem que o preceituado no n.º 1 do art. 740.º do CPC opera independentemente da “potencial tessitura substantiva do título”, defendendo para o efeito que “sendo instaurada a execução, com base num título executivo onde pontua apenas um dos cônjuges, e não sendo suscitada a comunicabilidade da dívida, não pode deixar de valer a responsabilidade singular do executado (artigo 1696.º, n.º 1, do CC), o que significa que não pode deixar de valer o regime previsto neste artigo – independentemente do potencial do regime substantivo de responsabilidade conjugal pela dívida”33.

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GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, p. 268. RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada. 2ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, pp. 280-281. 32 SOUSA, Miguel Teixeira de – A Execução das Dividas dos cônjuges: Perspetivas de Evolução. Centro de Estudos Judiciários. [Consultado a 22 de março de 2020]. Disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/M_TEIXEIRA_DE_SOUSA_A_execucao_das_dividas_dos_conj uges.pdf ; CARVALHO, Filipa Isabel Santos de – Os Poderes Processuais do Cônjuge do Executado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014. Tese de Mestrado, pp. 26-27. [Consultada a 31 de março de 2020]. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28539/1/Os%20poderes%20processuais%20do%20conjuge%20do%20exe cutado.pdf 33 CARVALHO, Filipa Isabel Santos de – Os Poderes Processuais do Cônjuge do Executado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014. Tese de Mestrado, pp. 26-27. [Consultada a 31 de março de 2020]. Disponível em: 31


A nosso ver, e seguindo o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa, esta norma apenas é aplicável às dívidas que sejam, exclusivamente, da responsabilidade do executado, visto que este art. 740.º do CPC esclarece que se aplica “em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado”. Deste modo, este preceito clarifica perfeitamente que só o podemos ter em consideração quando os bens próprios do executado não são suficientes para garantir o crédito exequendo, daí terem sido subsidiariamente penhorados os bens comuns. Incidente de Comunicabilidade da Dívida No processo executivo vigora o princípio da legitimidade formal (cfr. art. 53.º do CPC), pelo que esta deve ser promovida pela pessoa que, no título executivo, figure como devedora. Porém, para além das exceções a este princípio previstas no art. 54.º do CPC, a lei processual civil prevê, igualmente, a possibilidade de se alegar que a dívida é comum ao cônjuge do devedor, mesmo que aquele não afigure como tal no título executivo34. Isto posto, numa execução que seja instaurada apenas contra um dos cônjuges que tenha um título diverso de sentença, isto é, um título executivo extrajudicial, pode ser alegado que a dívida é comum, suscitando-se, assim, o incidente da comunicabilidade da dívida. O incidente da comunicabilidade da dívida está previsto no CPC nos arts. 741.º e 742.º, consoante este seja suscitado pelo credor exequente ou invocada pelo cônjuge executado, respetivamente. Incidente da comunicabilidade suscitado pelo exequente O incidente de comunicabilidade da dívida pode ser deduzido pelo exequente, nos termos do art. 741.º do CPC. Assim, se a execução tiver por base um título executivo extrajudicial e for movida apenas contra um dos cônjuges, pode o credor exequente deduzir o incidente, alegando que a dívida peticionada é comum do casal e que, por isso, o outro cônjuge não executado deve ser chamado à execução, para que se possa proceder à penhora de bens comuns do casal (cfr. 1.ª parte do n.º 1 do art. 741.º do CPC). Desta forma, o exequente pode alegar a comunicabilidade da dívida por uma de duas formas, logo no requerimento executivo ou, se for posterior, por requerimento autónomo até ao início das diligências de venda ou adjudicação, conforme prevê a 2.ª parte do n. º 1 do art.º 741.º do CPC. Em qualquer uma destas hipóteses, segundo o n.º 2 do mesmo art., o cônjuge não executado deverá ser citado para, no prazo de 20 dias, declarar se aceita ou não a comunicabilidade da dívida, baseada no fundamento alegado pelo exequente,

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28539/1/Os%20poderes%20processuais%20do%20conjuge%20do%20exe cutado.pdf 34 GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, pp. 268269.


caso contrário, se nada disser, a dívida será considerada comum, sem prejuízo da oposição que contra ela deduza. Aceitando a comunicabilidade da dívida de forma expressa ou por nada ter dito, o cônjuge citado poderá deduzir oposição à execução ou à penhora nos mesmos termos e limitações que seriam aplicáveis ao executado35. Tal como prevê o n.º 3 do art. 741.º do CPC, optando o cônjuge não executado por impugnar a dívida, pode fazê-lo por duas vias, dependendo se a alegação foi feita no requerimento executivo ou em requerimento autónomo. Se a alegação tiver sido incluída no requerimento executivo, poderá fazê-lo na oposição à execução, caso a pretenda deduzir; ou em articulado próprio quando não pretenda oporse à execução (cfr. 1.ª parte da al. a) do n.º 3 do art. 741.º do CPC). Na primeira situação, se o recebimento da oposição não suspender a execução, apenas podem ser penhorados bens comuns do casal e a sua venda aguardará até que seja proferida a decisão sobre a questão da comunicabilidade (cfr. 2.ª parte da al. a) do n.º 3 do art. 741.º do CPC). Por outro lado, se a alegação tiver sido em requerimento autónomo, o qual deverá ser autuado e tramitado por apenso, a impugnação poderá ser deduzida na respetiva oposição do incidente, na qual deverá igualmente observar-se o disposto nos arts. 293.º a 295.º do CPC (cfr. al. b) do n.º 3 do art. 741.º do CPC). Em virtude do n.º 4 deste preceito legal, tendo o incidente sido deduzido em requerimento autónomo, a venda dos bens que já tiverem sido penhorados fica suspensa, mantendo-se as penhoras realizadas até que o mesmo seja decidido. Assim, pelo facto de a questão da comunicabilidade da dívida ter sido invocada em incidente autónomo não impede que o cônjuge do executado deduza oposição à execução mediante embargos invocando factos e questões diversas das alegadas na oposição ao incidente, sendo que os fundamentos da oposição ao incidente têm de ser, obviamente, alegados, nesse incidente36. Por conseguinte, como decorre do estatuído no n.º 5 do art. 741.º do CPC, se no âmbito do incidente for considerada comum a dívida, o cônjuge do executado adquire a qualidade de executado e como tal, tem de lhe ser possível deduzir oposição à execução e todos os demais direitos que a lei confere ao executado, independentemente

da forma como foi

invocada no processo a questão da

comunicabilidade da dívida37. Ainda por força deste n.º 5, os seus bens próprios podem ser penhorados subsidiariamente, além de que o próprio cônjuge executado inicialmente pode pedir a substituição dos seus bens próprios penhorados por bens comuns.

35

RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada. 2ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, p. 286. 36 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 7539/15.1T8VNF-D.G1, de 17-12-2018. Relator Alexandra Rolim Mendes. [Consultado a 25 de março de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/18a2f0b83ec773058025837f00364e63?OpenDocum ent 37 IDEM – Ibidem.


Todavia, caso a dívida, no final, não seja considerada comum e tiverem sido penhorados bens comuns, o cônjuge do executado deve, em 20 dias após trânsito em julgado da decisão, requerer a separação de bens ou juntar certidão da ação de separação pendente, sob pena de que se o não fizer a execução prosseguirá sobre os bens comuns (cfr. n.º 6 do art. 741.º do CPC). Incidente da comunicabilidade suscitado pelo executado Fundando-se uma vez mais a execução num título extrajudicial, o CPC, no art. 742.º, permite também ao executado, a quem tenham sido penhorados bens próprios, suscitar o incidente da comunicabilidade da dívida na oposição à penhora, alegando com os devidos fundamentos que a dívida é comum e ficando obrigado a identificar quais os bens comuns concretos que podem ser penhorados. Neste caso, o cônjuge não executado (ou pode já ser o ex-cônjuge, mas que ainda tenha património comum por partilhar) é, então, citado para em 20 dias declarar se aceita ou impugna a comunicabilidade, com a cominação de que se nada disser, aceita a comunicabilidade, aplicando-se o disposto no art. 741.º, n.º 2 do CPC (cfr. parte final do n.º 1 do art. 742.º do CPC). De acordo com o n.º 2 do art. 742.º do CPC, se o exequente se opuser ao incidente ou o cônjuge não executado tiver impugnado a comunicabilidade da dívida, incumbe ao juiz resolver a questão e a venda dos bens próprios do executado fica suspensa, aplicando-se com as devidas adaptações os nos. 5 e 6 do art. 741.º do CPC. Penhora em caso de comunhão ou compropriedade Como já referimos, no regime da separação de bens, verifica-se a inexistência de um património comum, conservando cada cônjuge a titularidade dos seus bens presentes e futuros, nos termos do art. 1735.º do CC. No entanto, os cônjuges não se encontram impedidos serem comproprietários de um bem. Por outras palavras, estes podem ser, simultaneamente, proprietários de um bem, no âmbito do regime da compropriedade, previsto nos arts. 1403.º e ss. do CC. A ausência de bens comuns determina que os bens próprios de qualquer um dos cônjuges responda pelas dívidas comuns, de acordo com o art. 1695.º do CC. Desta forma, no âmbito de uma ação executiva, interposta contra ambos, a penhora dos bens próprios dos cônjuges não apresenta nenhuma questão controversa. Contudo, o mesmo não se verifica quando a dívida apenas é da responsabilidade de um dos cônjuges e estes são comproprietários de um dado bem, sendo que, a penhora desse bem indiviso apresenta algumas particularidades, uma vez que a execução é movida apenas contra um dos cônjuges, ou seja, apenas contra um dos comproprietários.


Segundo Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, o art. 743.º do CPC estabelece “o princípio geral de que os bens integrados em património autónomo ou em regime de compropriedade, não sendo demandados todos os contitulares, não poderão ser penhorados os bens incluídos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”38. Destarte, na hipótese mencionada anteriormente, não poderá ser penhorada uma parte especificada do bem comum, de acordo com o art. suprarreferido. Tal é compreensível, uma vez que, o art. 1408.º, n.º 1 do CC determina que “a disposição ou oneração de parte especificada sem o consentimento dos consortes é havida como disposição ou oneração de coisa alheia”. No entanto, o art. 743.º, n.º 1 do CPC não impede que seja penhorada a quota do cônjuge executado nesse bem, uma vez que, esta é ideal e abstrata, não sendo considerada uma parte especificada do bem39. Na hipótese de o agente de execução contrariar o disposto no referido artigo, o cônjuge não executado, enquanto contitular da coisa comum, pode reagir à penhora de uma parte especificada do bem, mediante a dedução do incidente de embargos de terceiro, nos termos dos arts. 342.º e ss. do CPC40, sendo ainda possível intentar uma ação de reivindicação (cfr. art. 1311.º do CC)41. Este princípio pode ser afastado, de acordo com o art. 743.º, parte inicial e o art. 781.º, n.º 4 ambos do CPC, quando os restantes contitulares, neste caso, o cônjuge não executado, consentirem na venda da totalidade do bem, revertendo para este último o valor correspondente à sua quota naquele bem. Assim, para o efeito, o agente de execução deverá notificar o cônjuge não executado, na qualidade de contitular, para o advertir que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação realizada, nos termos do art. 781.º, n.º 1 do CPC. Por forma a evitar que um terceiro adquira a quota do cônjuge executado e de facilitar a venda, o cônjuge não executado pode efetuar a declaração mencionada anteriormente, de que pretende que seja vendida a totalidade do bem42. Apesar de o art. 781.º, n.º 4 do CPC determinar que a declaração deve ser emitida por todos os contitulares, o executado não tem de prestar o seu consentimento para que a

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RIBEIRO, Virgínio; REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 292. 39 GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de processo civil executivo. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 272. 40 “Com efeito, é preciso ter em consideração, por um lado, que os bens de terceiros só respondem na execução quando estejam vinculados à garantia do crédito ou no seguimento da procedência da impugnação pauliana (art. 818.º do CC), e por outro lado, que a autonomia patrimonial resultante da separação de patrimónios perfila-se como uma limitação ao princípio geral da responsabilidade de todos os bens do devedor pelo cumprimento da obrigação (art. 601.º do CC).” Cfr. LEIRAS, Diana – Determinação dos bens a penhorar (reflexões). Solicitadoria e Ação Executiva Lisboa: Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Estudos #3, 2015, p. 95. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://issuu.com/camara_dos_solicitadores/docs/solicitar_estudos03 41 GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de processo civil executivo. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 272. 42 LEIRAS, Diana – Determinação dos bens a penhorar (reflexões). Solicitadoria e Ação Executiva Lisboa: Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Estudos #3, 2015, p. 95. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://issuu.com/camara_dos_solicitadores/docs/solicitar_estudos03


venda incida sobre a totalidade do bem, uma vez que, “a venda é feita sem o concurso da vontade do executado” 43. Assim, no caso em análise, apenas é necessário o consentimento do cônjuge não executado para que a venda seja feita pela totalidade do bem, de acordo com os arts. 743.º, n.º 1 a contrario e 781.º, n.º 4 do CPC. Por fim, convém referir que caso existam diversas execuções em que se penhorem todas as quotas dos contitulares, o art. 743.º, n.º 2 do CPC determina que se deve efetuar uma única venda. Ou seja, se os cônjuges detêm um bem sob regime de compropriedade e cada uma das suas quotas é penhorada, mas em ações executivas distintas, deverá realizar-se uma única venda. O legislador adotou esta solução com o objetivo de atrair um maior número de potenciais compradores daquele bem e, por conseguinte, aumentar o preço da venda44. Embargos do cônjuge do executado O CPC, no seu art. 343.º, permite ao cônjuge do executado, quando este ocupe a posição de terceiro face à ação executiva, a defesa dos seus direitos relativos aos bens próprios e aos bens comuns, por meio de dedução de embargos. No que toca aos bens comuns, e tal como refere o Tribunal da Relação de Guimarães, “O cônjuge do executado só pode embargar de terceiro em defesa dos seus direitos relativos aos bens comuns indevidamente atingidos pelo ato de penhora (art. 343.º do CPC), quando assuma a posição de terceiro em relação à ação executiva e alegue, de uma forma concretizada, o fundamento pelo qual a penhora efetivada deve ser considerada indevida”45. Desta forma, cabe ao embargante provar a natureza dos bens penhorados46. Neste sentido, caso se trate de bens próprios, a penhora não pode subsistir, pois mesmo quando segundo o direito substantivo respondam pela dívida, estes não podiam ser apreendidos tendo em conta que o proprietário daqueles não é o executado. Por sua vez, caso se trate de bens comuns, há duas situações em que o cônjuge do executado não pode embragar, a primeira das quais quando este tenha sido citado nos termos do art. 740.º do CPC e o executado não tenha bens próprios e a segunda quando a penhora incida sobre bens que foram levados pelo executado ou que por ele tenham sido posteriormente adquiridos a título gratuito e/ou sobre os rendimentos desses bens (ou

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LEIRAS, Diana – Determinação dos bens a penhorar (reflexões). Solicitadoria e Ação Executiva Lisboa: Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Estudos #3, 2015, p. 95. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://issuu.com/camara_dos_solicitadores/docs/solicitar_estudos03 44 GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de processo civil executivo. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 272. 45 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 1740/10.1JAPRT-E. G1, de 07-02-2019. Relator Pedro Damião e Cunha. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/15c2a30af4a4fe15802583b000357af8?OpenDoc ument 46 FREITAS, José Lebre de – A Ação Executiva. À luz do Código de Processo Civil de 2013. 6ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, S.A., 2014, p. 335.


sobre os bens sub-rogados no lugar deles), ou sobre o produto do trabalho e os direitos de autor do próprio executado47. Neste entendimento, mais uma vez, pronuncia-se o Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual “Tendo o cônjuge do executado sido citado na execução, nos termos dos arts. 740.º e 786.º, n.º 1, al. a), CPC, e declarado mesmo que interveio nos autos a “exercer o direito conferido”, jamais pode ser considerado terceiro. Tem, sim, o estatuto processual consignado no art. 787.º”48. Todavia, havendo bens próprios do executado, quando não seja verificado qualquer condicionalismo em que atue a responsabilidade subsidiária ou não tenha sido feita a citação do cônjuge do executado nos termos do art. 740.º, n.º 1 do CPC, os embargos de terceiro já são admissíveis49. Responsabilidade por dívidas e união de facto Ao longo dos anos, a percentagem de indivíduos a viver em união de facto têm vindo a ganhar expressão na sociedade portuguesa. Tal evolução impulsionou o legislador a regular vários aspetos da vivência em união de facto. Contudo, a responsabilidade por dívidas dos unidos de facto foi um dos aspetos sobre o qual o nosso legislador não se pronunciou, restando-nos recorrer à jurisprudência e à doutrina para analisarmos questões relacionadas com esta temática50. Pois, tal como afirma o Tribunal da Relação de Évora, “sendo certo que a lei atribui alguns efeitos jurídicos à união de facto (as tais medidas de proteção), também «o que é certo é que no domínio das relações patrimoniais, e em especial, em matéria de dívidas, bem como na regulamentação das consequências da dissolução da união de facto, e não sendo de aplicar o regime jurídico do casamento, não há qualquer norma reguladora desses problemas»”51. O facto de os unidos de facto viverem como se fossem casados, torna relevante analisar se é possível aplicar à união de facto o regime de responsabilidade por dívidas dos cônjuges e, por conseguinte, os arts. 740.º a 742.º do CPC. No entanto, antes de efetuar essa análise, importa definir o conceito de união de facto. A união de facto

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IDEM – Ibidem, pp. 335-336. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 4190/12.1TBGMR-D.G1, de 28-06-2018. Relator José Amaral. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/068E596C39CD5C38802582CD0048A3CB 49 FREITAS, José Lebre de – A Ação Executiva. À luz do Código de Processo Civil de 2013. 6ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, S.A., 2014, p. 336. 50 CARNEIRO, Andreia Pereira – A aplicação do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges à união de facto. Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2017. Dissertação de Mestrado em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Privatísticas, p. 6. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/109712/2/236823.pdf 51 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA – Processo n.º 1758/12.0TBPTM.E1, de 16-12-2014. Relator Paulo Amaral [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/021858925cd617f580257de10056ff7e?OpenDocume nt&Highlight=0,uni%C3%A3o,de,facto 48


De acordo com o art. 1.º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, designa-se por união de facto, “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”. Desta forma, considera-se que a união de facto consiste numa comunhão de vida, que contempla a “comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae et babitationis), como se fossem casadas, apenas com a diferença que não o são”, não se verificando a existência do vínculo formal e contratual do casamento52. Atualmente, a união de facto não é considerada uma relação familiar, uma vez que, no ordenamento jurídico português vigora o princípio da tipicidade e o art. 1576.º do CC determina as fontes de relações jurídicas familiares, no qual não consta a união de facto. Conquanto, no direito da família, o legislador procura adaptar as normas jurídicas às novas realidades, em particular aos novos conceitos de família. Devido a isso, consideramos que, se a percentagem de indivíduos a viver em união de facto continuar a crescer, esta situação jurídica poderá, quiçá, no futuro ser classificada como uma relação jurídica familiar. A responsabilidade por dívidas dos unidos de facto Após a definição do conceito de união de facto, resta-nos analisar a questão de se aplicar o regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges aos unidos de facto. Tal como mencionado anteriormente, na ausência de regulação, a jurisprudência e a doutrina têmse debruçado sobre o estudo desta hipótese. No que concerne à jurisprudência, verifica-se uma grande uniformidade e coesão entre as decisões preferidas pelos Tribunais da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, considerando que as disposições do CC relativas ao casamento não são aplicáveis à união de facto, “não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento”, quando a lei não o prevê53. No casamento delimita-se desde o momento da sua celebração o regime de bens pelo qual se iram reger as relações patrimoniais dos cônjuges, limitando o património de cada um dos cônjuges, bem como, a constituição do património comum destes. Ao passo que, na união de facto, tal situação não se verifica. Pois, segundo o Tribunal da Relação de Guimarães, “a união de facto embora seja reconhecida pela Lei n.º 7/2001, de 11/05, revista pela Lei n.º 23/2010, de 30/08, como realidade sociológica e goze da proteção que este diploma lhe confere, não tem qualquer repercussão ao nível do património dos membros da união de facto, pelo que, excetuando-se os casos em que os conviventes tenham, no gozo da sua autonomia privada e liberdade contratual, celebrado entre eles

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COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 56. 53 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE PORTO – Processo n.º 658/15.6T8GDM.P1, de 13-06-2018. Relator Augusto de Carvalho. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/4A378BC2AF40D348802582BA00380FA2


“contratos de coabitação”, em que pactuem na constituição de um património comum, a união de facto, por si só, é insuscetível de originar um património comum”54. Neste sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra, o que afirma que “as relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros estão sujeitas a um estatuto particular, a que se chama “regime de bens do casamento”, mas assim não sucede na união de facto - os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”55. Em 2017, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre esta questão referindo que “quer as relações pessoais quer as relações patrimoniais na união de facto não estão sujeitas ao regime específico que o casamento prevê quanto a esta matéria, sendo os seus efeitos a esses níveis diversos dos que provêm do casamento, ficando os patrimoniais sujeitos ao regime geral, sem prejuízo, contudo, do que as partes possam convencionar entre si (v.g, aquisição de bens em conjunto, abertura conjunta de contas bancárias e sua movimentação)”56. A doutrina também tem partilhado deste entendimento, afirmando que na união de facto não existe qualquer regime de bens que regule as relações patrimoniais entre os unidos de facto e entre estes e terceiros, ficando por isso “as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”57. No entendimento de Delgado de Carvalho, “a separação de patrimónios é um motivo da escolha do modelo de partilha de vida, pelo que não pode ser imposta a responsabilidade dos bens pessoais do membro da união de facto não contratante para garantir o pagamento de dívidas contraídas pelo outro membro, quando foi vontade de ambos não casar”58. Após o exposto, consideramos que a união de facto se rege pelas regras do regime jurídico substantivo geral, uma vez que, apesar de muitas vezes serem vulgarmente consideradas equivalentes ao casamento, no âmbito das relações patrimoniais, o casamento fixa desde início um regime que regula os limites do património de cada um dos cônjuges e o património comum destes. Na união de facto, essa delimitação não se verifica normalmente, a não ser que os unidos de facto celebrem um “contrato de coabitação”,

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 2027/16.1T8CHV.G1, de 30-05-2018. Relator José Alberto Moreira Dias. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/3D366E19B61A283B802582B2002F7994 55 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 1501/15.1T8CTB.C2, de 26-03-2019. Relator Fonte Ramos. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/1394c6d46cb1488a802583ef003d170f?OpenDocum ent 56 ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 3712/15.0T8GDM.P1.S1, de 24-10-2017. Relator Ana Paula Boularot. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/33C831FCBF79171D802581C30052BE0A 57 COELHO, Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 82. 58 CARVALHO, J. H. Delgado de – O Estatuto Processual do Cônjuge do Executado. Centro de Estudos Judiciários. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://elearning.cej.mj.pt/pluginfile.php/69551/mod_label/intro/JHDeelgadoO%20estatuto%20processual%20do%20c%C3%B4njuge%20do%20executado_final.pdf


uma espécie de convenção antenupcial em que determinam como estes irão reger as relações patrimoniais, quase como uma unidade económica. Não existindo património comum, mas sim, relações de compropriedade sob os bens de que ambos os unidos de facto são proprietários, à semelhança do que acontece com a separação de bens. Assim, se o executado viver em união de facto, o unido de facto não executado apenas responderá pelas dívidas que tiver contraído com o seu companheiro, pois, na união de facto não se aplica o art. 1690.º, n.º 1 do CC, vigorando o princípio geral das obrigações de que só responde pela dívida quem a contraiu. Não se verificando aqui qualquer comunicabilidade da dívida mesmo que “se possa provar a existência de proveito comum dos companheiros ou unidos de facto, isso não é suficiente para sustentar a responsabilização do unido de facto não contratante, porque os bens que existem são apenas bens pessoais de cada um deles, e, por conseguinte, os riscos e insucessos de um não afetam o património do outro”59. Desta forma, se existirem bens que pertençam aos dois unidos de facto sob o regime da compropriedade e a execução apenas for movida contra um deles, esses bens apenas poderão ser penhorados pela quota que o executado unido de facto detém nesses bens, à semelhança do que se verifica com o regime da separação de bens, aplicando-se o disposto no art. 743.º, n.º 1 do CPC. Conclusão A penhora do património conjugal, mais concretamente em execução movida apenas contra um dos cônjuges, e o incidente da comunicabilidade visam, respetivamente, a penhora de bens comuns do casal por não se conhecem bens próprios suficientes do cônjuge executado e a possibilidade de alegar que dívida é comum, perante a instauração de uma execução com base num título executivo extrajudicial apenas contra um dos cônjuges, quer pelo credor exequente, quer pelo cônjuge executado. Além disso, verificamos que o cônjuge do executado, ocupando a posição de um terceiro, em face da penhora de bens próprios ou de bens comuns, pode deduzir embargos de terceiro, desde que alegue fundamentadamente o motivo pelo qual a penhora deve ser considerada indevida. Tal como apuramos, no regime da separação de bens verifica-se a inexistência de um património comum, mas os cônjuges não se encontram impedidos serem comproprietários de um bem, não se impedindo a penhora da quota do cônjuge executado nesse bem, uma vez que, esta é ideal e abstrata, não sendo considerada uma parte especificada do bem.

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CARVALHO, J. H. Delgado de – O Estatuto Processual do Cônjuge do Executado. Centro de Estudos Judiciários. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://elearning.cej.mj.pt/pluginfile.php/69551/mod_label/intro/JHDeelgadoO%20estatuto%20processual%20do%20c%C3%B4njuge%20do%20executado_final.pdf


No que toca à responsabilidade por dívidas na união de facto, ainda que se possa provar a existência de proveito comum dos companheiros ou unidos de facto, tal não é suficiente para sustentar a responsabilização do unido de facto não contratante, visto que os bens que existem são apenas bens pessoais de cada um deles. Bibliografia CARNEIRO, Andreia Pereira – A aplicação do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges à união de facto. Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2017. Dissertação de Mestrado em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Privatísticas. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/109712/2/236823.pdf CARVALHO, Filipa Isabel Santos de – Os Poderes Processuais do Cônjuge do Executado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014. Tese de Mestrado. [Consultada a 31 de março de 2020]. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28539/1/Os%20poderes%20processuais%2 0do%20conjuge%20do%20executado.pdf CARVALHO, J. H. Delgado de – O Estatuto Processual do Cônjuge do Executado. Centro de Estudos Judiciários. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://elearning.cej.mj.pt/pluginfile.php/69551/mod_label/intro/JHDeelgadoO%20estatuto%20processual%20do%20c%C3%B4njuge%20do%20executado_final.pdfCOELHO , Francisco Pereira; Oliveira, Guilherme De – Curso de Direito da Família – Volume I. Introdução – Direito Matrimonial. 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, ISBN: 978-972-26-1166-2. FALCÃO, Marta; SERRA, Miguel Dinis Pestana; TOMÁS, Sérgio Tenreiro – Direito da Família: Da Teoria à Prática. 2ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2016, ISBN: 978-972-40-65779 FREITAS, José Lebre de – A Ação Executiva. À luz do Código de Processo Civil de 2013. 6ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, S.A., 2014, ISBN: 978-972-32-2224-1. GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, ISBN: 978-972-40-6429-1. GONÇALVES, Marco Carvalho (30 de setembro de 2016) – Responsabilidade Patrimonial dos Cônjuges e Penhora de Bens Comuns do Casal. Repositórium da Universidade do Minho. [Consultado a 22 de março de 2020]. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/42750/1/Responsabilidade%20pat rimonial%20dos%20c%C3%B4njuges%20e%20penhora%20de%20bens%20comuns%20do%20cas al.pdf


LEIRAS, Diana – Determinação dos bens a penhorar (reflexões). Solicitadoria e Ação Executiva Lisboa: Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Estudos #3, 2015, p. 95. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://issuu.com/camara_dos_solicitadores/docs/solicitar_estudos03 RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio – A ação executiva anotada e comentada. 2ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, ISBN: 978-972-40-6509-0. RODRIGUES, Ana Isabel Martins - Da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens legalmente fixado. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017. Dissertação de Mestrado na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/81098/1/Dissertac%CC%A7a%CC%83o%20P .%20Imutabilidade.pdf SOUSA, Miguel Teixeira de – A Execução das Dividas dos cônjuges: Perspetivas de Evolução. Centro de Estudos Judiciários. [Consultado a 22 de março de 2020]. Disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/M_TEIXEIRA_DE_SOUSA_A_exe cucao_das_dividas_dos_conjuges.pdf Webgrafia Instituto Nacional de Estatística (INE) (2020) - Casamentos celebrados (Entre pessoas de sexo oposto - N.º) por Local de registo (NUTS - 2013), Sexo, Regime de bens e Estado civil anterior do cônjuge; Anual. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=00081 28&contexto=bd&selTab=tab2 Legislação DECRETO-LEI N.º 41/2013, de 26 de junho, atualizado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro – Novo Código de Processo Civil. DECRETO-LEI N.º 47344/66, de 25 de novembro, atualizado pela Lei n.º 85/2019, de 03 de setembro – Código Civil. LEI N.º 7/2001, de 11 de maio, atualizada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro – Medidas de Proteção das Uniões de Facto. Jurisprudência ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 076926, de 27 de abril de 1989. Relator Eliseu Figueira. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/479472676d67e632802 568fc003a2c45?OpenDocument ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo n.º 3712/15.0T8GDM.P1.S1, de 24-10-2017. Relator Ana Paula Boularot. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em:


http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/33C831FCBF79171D802581C30052BE0A ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 4260/03, de 19-02-2004. Relator Garcia Calejo. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/04caa212cc51ddd280 256e58005922ee?OpenDocument ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo n.º 1501/15.1T8CTB.C2, de 26-03-2019. Relator Fonte Ramos. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/1394c6d46cb1488a802 583ef003d170f?OpenDocument ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA – Processo n.º 1758/12.0TBPTM.E1, de 1612-2014. Relator Paulo Amaral [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/021858925cd617f5802 57de10056ff7e?OpenDocument&Highlight=0,uni%C3%A3o,de,facto ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 1740/10.1JAPRT-E. G1, de 07-02-2019. Relator Pedro Damião e Cunha. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/15c2a30af4a4fe15 802583b000357af8?OpenDocument ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 4190/12.1TBGMR-D.G1, de 28-06-2018. Relator José Amaral. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/068E596C39CD5C38802582CD0048A3CB ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 7539/15.1T8VNF-D.G1, de 17-12-2018, Relator: Alexandra Rolim Mendes. [Consultado a 25 de março de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/18a2f0b83ec7730580 25837f00364e63?OpenDocument ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo n.º 2027/16.1T8CHV.G1, de 30-05-2018. Relator José Alberto Moreira Dias. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/3D366E19B61A283B802582B2002F7994 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo n.º 20580/11.4T2SNT.L1-6, de 19-12-2013. Relator Vítor Amaral. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e62657447c4d1c2e802 57c820055f6b8?OpenDocument ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE PORTO – Processo n.º 658/15.6T8GDM.P1, de 1306-2018. Relator Augusto de Carvalho. [Consultado a 31 de maio de 2020]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/4A378BC2AF40D348802582BA00380FA2


Breve resenha sobre os métodos para evitar ou atenuar a dupla tributação internacional

Breve resenha sobre os métodos para evitar ou atenuar a dupla tributação internacional

Beatriz Rodrigues Rufino Licenciada e Mestre em Solicitadoria pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto Aprovada no Estágio da OSAE 2019/2020 Escriturária na empresa Lidl Portugal

Patrícia Anjos Azevedo Licenciada, Mestre e Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Adjunta Convidada na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto. Árbitro CAAD em matéria administrativa e em matéria tributária. Advogada, atualmente com inscrição voluntariamente suspensa.

Sérgio Magalhães Licenciado em Solicitadoria pela Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Mestre em Solicitadoria pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto Solicitador com a Cédula Profissional 8813 Formador Certificado


Sumário: 1. Generalidades; Introdução; 2. Métodos para Evitar ou Atenuar a Dupla Tributação; 2.1. Medidas Unilaterais; 2.1.1. Método da Isenção; 2.1.2. Método da imputação ao crédito de imposto; 2.2. Medidas Bilaterais; 3. Aplicação dos métodos de eliminação da dupla tributação. 4. Conclusões. Resumo: O presente contributo tem como intento tratar a temática da Dupla Tributação nos Impostos sobre o Rendimento, com especial incidência para os métodos existentes para a evitar ou atenuar. Todavia, e antes de abordarmos o tema propriamente dito, por forma a contextualizar o caminho que nos faz chegar até ele, faremos uma breve referência aos motivos que levam à existência da dupla tributação e à forma como esta ocorre. Seguidamente, passamos ao cerne do presente contributo: os Métodos para Evitar ou Atenuar a Dupla Tributação. Tratámos, por um lado, as medidas unilaterais (medidas que são adotadas por cada Estado no seu ordenamento jurídico e com a finalidade de combater a dupla tributação internacional); e, por outro lado, as medidas bilaterais (que se traduzem em convenções ou em tratados internacionais, que visam evitar a dupla tributação). Palavras-chave: dupla tributação; métodos para evitar ou atenuar; medidas unilaterais; medidas bilaterais; aplicação dos métodos. 1. Generalidades; Introdução É devido à pluralidade de normas e à incidência das mesmas sobre o mesmo imposto, o mesmo contribuinte, o mesmo facto tributário, no mesmo espaço de tempo que se verifica o fenómeno da dupla tributação. Por vezes, podem ser confundidos os critérios de conexão, como por exemplo residência1-residência ou fonte2-fonte, isto é, um residente em Portugal, tendo em conta todos os pressupostos que deve cumprir para ser considerado tal, poderá, pela mesma lógica, mas por outros pressupostos, ser considerado residente no país onde está a receber, temporariamente, um rendimento. O mesmo acontece, quando falamos da proveniência do rendimento (a fonte). Nesta situação, a questão que se coloca saber é qual dos Estados envolventes é o Estado da fonte, ou seja, qual deles dá realmente o rendimento ao contribuinte? É nesta situação que nos cruzamos com a conexão de critérios fonte-fonte. Neste sentido, pode acontecer que, a dupla tributação seja positiva ou negativa. Por exemplo, quanto à primeira, pode acontecer que o rendimento de um dado contribuinte seja tributado simultaneamente no Estado da sua residência e no Estado da

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Para mais desenvolvimentos acerca do Critério da Residência, vd. AZEVEDO, Patrícia Anjos, A determinação das competências tributárias entre os estados: análise do critério da residência, RCEJ, n.º 28, 2017, pp. 97 a 145. 2 Para mais desenvolvimentos acerca do Critério da Fonte, vd. AZEVEDO, Patrícia Anjos, O critério da fonte e o seu âmbito de aplicação, Dereito: revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, vol. 26, n.º1, 2017, pp. 141 a 164.


fonte de obtenção dos rendimentos3. No que diz respeito à segunda, pode acontecer que, o rendimento de um contribuinte não seja tributado em nenhum dos Estados4. Nestes termos, e tendo em conta a sua caracterização, podemos aferir que o fenómeno da dupla tributação acarreta inúmeras desvantagens no que concerne à livre circulação de pessoas, bens, serviços e mercadorias, e também ao próprio crescimento económico, pelo que se tornou necessária a criação de métodos capazes de eliminar ou, pelo menos, atenuar a dupla tributação. Surgiram assim por um lado as medidas bilaterais e por outro as unilaterais, que tem em vista fazer face ao fenómeno sub judice. Quando nos referimos às medidas unilaterais, falamos de medidas que são adotadas por cada Estado no seu ordenamento jurídico internamente e com a finalidade de combater a dupla tributação internacional. Por sua vez, as bilaterais, traduzem-se em convenções ou em tratados internacionais, que visam evitar a dupla tributação (ao mesmo tempo que visam evitar a fraude e evasão fiscais) e que são celebradas entre o Estado da residência do contribuinte e o Estado da fonte de obtenção de rendimentos. É precisamente nas aludidas convenções que se regula o modo de tributar os factos tributários que entram concretamente em conflito, isto é, os factos que, por algum motivo, possuem uma disposição legal idêntica em diferentes Estados. Tenta-se, com estas convenções, entre outros objetivos, evitar a verificação da dupla tributação. Apesar do modelo mais utilizado ao nível mundial ser a convenção modelo da OCDE5 (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), não existe apenas um modelo adotável no contexto destas convenções internacionais. Comecemos por abordar a convenção modelo da OCDE, conhecido como o modelo dos países “ricos”, visto que se funda na ideia de que o Estado da fonte de obtenção de rendimentos é que deve ter a obrigação de eliminar a dupla tributação, ou seja, estatuise que o país da residência é que tem a legitimidade de tributar. Como alternativa a este modelo, e também como um escape para os países em vias de desenvolvimento6, surgiu a convenção modelo da ONU7 que, apesar de seguir a mesma base do modelo da OCDE, difere no que diz respeito ao poder de tributar. Ou seja, neste

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Denominada dupla tributação positiva. Esta verifica-se quando existe, simultaneamente, tributação na residência e na fonte, o que provoca problemas ao nível da livre circulação de pessoas, bem como, ao nível do próprio crescimento económico, já que tal facto poderá distorcer a concorrência, tornando um determinado Estado menos atrativo ao investimento. 4 Denominada dupla tributação negativa. Esta verifica-se quando não haja tributação nem na residência nem na fonte, o que pode potenciar a evasão e fraude fiscais, pela ausência de normas de incidência e por outros fatores diversos, como seja a facilidade do abuso de convenções e a existência de paraísos fiscais, neste último caso, devido às condições vantajosas que oferecem na atração de grandes investimentos e de grandes fortunas. 5 Disponível para consulta online em: https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/convencoes_evitar_dupla_tributacao/convencoes_tabela s_doclib/Documents/CDT_Modelo_OCDE.pdf 6 Sendo eles os fornecedores de capital a muitas empresas, acham ser justo, que a tributação seja efetuada no Estado da fonte de obtenção dos rendimentos, ainda mais pelo facto de se tratar de um Estado em vias de desenvolvimento e, por isso, necessitar de receitas, com vista ao seu desenvolvimento. 7 Organização das Nações Unidas.


modelo o direito de tributar fica nas mãos do Estado da Fonte de obtenção dos rendimentos e a obrigação de eliminar a dupla tributação nas mãos do Estado da residência. Por último, importa fazer menção à convenção-modelo dos Estados Unidos8, que visa, essencialmente, servir de base às negociações de tratados fiscais entre os vários Estados componentes dos Estados Unidos da América, adequando-se às disposições internas do Estado em causa. De uma forma geral, podemos afirmar que, seja qual for a convenção-modelo utilizada, todas elas visam estabelecer formas que evitem que o mesmo facto tributário, referente ao mesmo sujeito passivo, no mesmo período de tempo, seja tributado em duas jurisdições diferentes. Desta forma e para o efeito, cada Estado deve abdicar do seu poder de tributar, e cumprir o que se encontra estabelecido nas convenções por si subscritas. Feito este breve enquadramento, abordámos de seguida os métodos para evitar ou atenuar a dupla tributação. 2. Métodos para Evitar ou Atenuar a Dupla Tributação9 2.1. Medidas Unilaterais São várias as medidas unilaterais que podem ser adotadas pelos Estados, para casos em que a situação geradora de dupla tributação não se encontre prevista nas convenções de dupla tributação. No entanto, importa evidenciar que estas medidas são menos efetivas em comparação com as medidas bilaterais, pelo que, pressupõem uma renúncia às receitas fiscais pelo Estado que as utilize, isto é, quando são aplicadas as medidas unilaterais, estas, muitas vezes, deixam muito a desejar, uma vez que não implicam o máximo de arrecadação fiscal possível para um Estado. 2.1.1. Método da isenção O método da isenção visa, essencialmente, isentar o contribuinte de pagar impostos no Estado da residência e, tributar, exclusivamente, o rendimento no Estado da fonte. Neste sentido, se for apresentada prova de pagamento do imposto no Estado da fonte, poderemos lançar mão de dois métodos distintos: o da isenção integral e o da isenção com progressividade, vejamos: Quando falamos de isenção integral, significa que o Estado da residência confere este tipo de isenção, relativamente ao rendimento obtido no estrangeiro, sendo que esse

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De notar que esta convenção modelo não prevê o método da isenção, admitindo apenas o método do crédito de imposto, como meio tendente a evitar a dupla tributação. Ao contrário do que preveem as duas anteriores ConvençõesModelo, que admitem os dois métodos em causa. 9 Para mais desenvolvimentos acerca deste tema, vd. AZEVEDO, Patrícia Anjos, A dupla tributação internacional: questões levantadas e métodos para a evitar, Cadernos de Dereito Actual, Nº 6, 2017, pp. 38 a 47 e AZEVEDO, Patrícia Anjos, “A tributação do rendimento na residência e na fonte - fatores de conexão à luz do direito fiscal europeu e internacional e dos princípios fundamentais de direito fiscal” (adaptação de texto de tese de doutoramento), Novas Edições Acadêmicas, 2020, pp. 220 a 236.


rendimento nunca é considerado no momento da tributação dos rendimentos obtidos na residência10. Por outro lado, existe a isenção com progressividade, que implica que o Estado da fonte isente da tributação os rendimentos aí obtidos. Porém, esta obriga a que aos rendimentos isentos se juntem os rendimentos não isentos, a fim de se conseguir apurar a taxa a aplicar a estes últimos, os quais dizem respeito aos rendimentos sujeitos a tributação no Estado da residência. Isto significa que, embora o rendimento auferido no estrangeiro, não seja tributado no Estado da Residência, terá de ser tido em conta para efeitos de apuramento de taxas de imposto11. Importa voltar a salientar que, embora estas medidas visem a prevenção da dupla tributação, não significa que este fenómeno não se volte a repetir, isto é, com estes métodos elimina-se uma tributação que eventualmente se poderá vir a verificar. 2.1.2. Método de Imputação ao Crédito de Imposto Tendo por base aquilo que foi mencionado sobre o método anterior, podemos aferir que existe uma atenuada distinção entre eles, principalmente no que toca ao facto de o primeiro ter em consideração o rendimento obtido, enquanto os segundos têm em atenção o imposto pago12. No que diz respeito ao crédito de imposto13, este consiste em conceder ao contribuinte uma dedução à coleta do imposto, no sentido em que os contribuintes podem deduzir o imposto pago no estrangeiro, à coleta do seu IRS ou IRC, consoante sejam pessoas singulares ou coletivas. Assim sendo, podemos afirmar que o método do crédito de imposto consiste na concessão dada por parte do Estado da residência ao contribuinte de um crédito pelos impostos que já pagou no Estado da fonte, estabelecendo-lhe um limite, limite esse que, habitualmente, equivale ao imposto que seria pago no Estado da residência ou então

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Por exemplo, no âmbito do disposto no art.º 27.º, n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), “ficam isentas de IRS (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) e de IRC ((Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas) as mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais, outros valores mobiliários, warrants autónomos emitidos por entidades residentes em território português e negociados em mercados regulamentados de bolsa e instrumentos financeiros derivados celebrados em mercados regulamentados de bolsa (…)”. Para maiores desenvolvimentos, cfr. CARLOS, Américo Fernando Brás, Impostos (Teoria Geral), 3.ª Edição (atualizada), Almedina, 2010, p. 237. 11 São exemplos para este método, as isenções em sede de IRS concedidas aos rendimentos auferidos ao serviço de organizações estrangeiras [art.º 37.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do EBF]; em missões de salvaguarda da paz (art.º 38.º, n.ºs 1 e 2 do EBF); no âmbito de acordos de cooperação (art.º 39.º, n.ºs 1, 2 e 4 do EBF); em empreitadas e arrematações de obras das infraestruturas comuns NATO (cfr. art.º 40.º do EBF). Cfr. CARLOS, Américo Fernando Brás, Impostos (Teoria Geral), 3.ª Edição (atualizada), Almedina, 2010, p. 237. 12 MACHADO, Jónatas E. M. e COSTA, Paulo Nogueira da, Curso de Direito Tributário, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 128 e ss. No mesmo sentido, PINTO, Natália Cardoso, A tributação das sociedades não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, Vida Económica, 2011, p. 31. 13 Esta faculdade encontra-se, no ordenamento jurídico-fiscal nacional, prevista nos art.ºs 81.º, n.º 1 do CIRS (Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) e 91.º, n.º 1 do CIRC (Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas), nos quais se determina, no essencial, que podem os contribuintes deduzir à coleta o menor dos seguintes valores: o imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro; ou a fração do IRS ou do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos custos ou perdas direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.


aquele que o contribuinte pagou na fonte. Nesta perspetiva, o método em questão tenciona impedir que se verifique a excessiva tributação do contribuinte quando aufira de rendimentos no estrangeiro, no entanto, não é um imposto ilimitado, pelo que, de um modo geral, não excede o montante de imposto que seria devido na residência caso o rendimento aí tivesse sido auferido14. Cumpre ainda referir, no contexto do método da imputação ou do crédito de imposto, que se verificam diferentes modalidades, a saber: (a) Crédito de imposto com imputação integral, que consiste na possibilidade de deduzir, no Estado da residência, a totalidade do imposto já pago no estrangeiro. Tal significa que, no momento do pagamento de imposto no Estado da residência, o contribuinte não terá de pagar o valor do imposto já pago no estrangeiro, independentemente de o valor ser ou não superior ao imposto a pagar no Estado da residência. (b) Crédito de imposto com imputação ordinária: nesta modalidade, deduz-se o valor do imposto pago no Estado da fonte de obtenção dos rendimentos. No entanto, essa dedução já não será igual à totalidade do imposto pago pelo contribuinte, mas sim até ao limite do valor que este tem de pagar no Estado da residência. (c) Crédito de imposto fictício (tax sparing credit): esta modalidade ficciona um crédito equivalente ao imposto que teria, eventualmente, sido pago no Estado da fonte, sem se considerar a existência de benefícios fiscais ou isenções, e efetua a dedução desse valor no Estado da residência. (d) Crédito de imposto presumido (matching credit ou lump-sum tax credit): neste tipo de crédito de imposto, o Estado da residência deduz, com base nas Convenções de Dupla Tributação, um montante a pagar de imposto superior ao que seria normal, consoante a taxa de retenção na fonte no Estado, no qual são obtidos os rendimentos. Nesta modalidade, verifica-se que existe um benefício fiscal atribuído pelo Estado da residência, uma vez que o crédito é mais elevado do que seria na realidade. Além das medidas já mencionadas, podemos ainda referir: (a) O método de redução de taxa, em que os rendimentos obtidos no estrangeiro são tributados a uma taxa mais reduzida no Estado da residência; (b) O método da dedução, que permite que as empresas nacionais deduzam os impostos pagos no estrangeiro como se fossem gastos da atividade, estabelecendo-se um certo limite; e

14

De notar que pode acontecer que, às vezes, não seja possível eliminar totalmente a dupla tributação, pois o valor da coleta pode não ser suficiente para efetuar a dedução à coleta. Assim, caso a coleta seja inferior ou igual à taxa do imposto no Estado da residência, existirá eliminação total da dupla tributação, caso contrário a eliminação da dupla tributação será parcial.


(c) O método do crédito por investimento, que consiste da dedução imediata, ao imposto em divida, de uma parte do investimento que foi realizado no estrangeiro15. 2.2. Medidas Bilaterais No âmbito das medidas bilaterais, surgem os tratados internacionais celebrados entre Estado da residência e Estado da fonte, através dos quais se pretende regular o modo de tributar, tendo em conta a pluralidade de normas existentes em ambos os Estados implicados na relação jurídica tributária16. Estas Convenções de Dupla Tributação, geralmente elaboradas com base na convenção modelo da OCDE, contêm normas jurídicas que abrangem os residentes de ambos os Estados, sendo aplicadas diretamente ao contribuinte que seja considerado sujeito passivo de imposto, independentemente de onde este seja efetivamente residente. Aquando

da

elaboração

das

aludidas

convenções,

fica

estipulado

(e

consequentemente aceite por quem subscreve as mesmas) um limite no seu poder de tributação de uma forma equilibrada, consoante sejam o Estado da residência ou da fonte17. Pode ainda acontecer que existam situações de conflito de normas entre a legislação interna do Estado e a Convenção de Dupla Tributação em vigor. Nesse caso, será importante saber se entre a ordem jurídica internacional e ordem jurídica nacional se criará ou não uma relação sistemática. Surgem, aqui, duas posições: a monista e a dualista18. No que toca à primeira (monista), os ordenamentos jurídicos internos e internacionais coexistem entre si, mas vigoram autonomamente. Os defensores desta tese referem que as normas dos tratados internacionais se sobrepõem às normas do Direito interno, pois numa situação de coexistência o que predomina são as normas internacionais. Pelo contrário, os defensores da segunda perspetiva (dualista), reconhecem que as normas do direito internacional precisam de ser convertidas nas normas de Direito interno. Neste contexto, importa saber quais os três procedimentos referentes à incorporação do teor das convenções nos diversos ordenamentos jurídicos. Ora vejamos:

15

XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional, 2ª Edição, Atualizada, Almedina 2007, pág. 756 (e reimpressão de 2014); e MACHADO, Jónatas e COSTA, Paulo Nogueira da, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2012, pp. 128 e ss. 16 MACHADO, Jónatas E. M. e COSTA, Paulo Nogueira da, Curso de Direito Tributário, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 128 e ss. 17 SANCHES, J. L. Saldanha, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp. 80 e ss. 18 Para maiores desenvolvimentos, cfr. XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional, Almedina, 2007, pp. 114 e ss.


(a) O sistema de receção automática, no qual a convenção se aplica internamente com a ratificação e publicação no jornal oficial do Estado. Este sistema é utilizado em Estados como a França, o Japão, os EUA e os Países Baixos. (b) O sistema de aprovação do parlamento, no qual a aplicação das normas contidas na convenção depende de prévia autorização do Parlamento. Este sistema é utilizado em Estados como a Alemanha, a Espanha, a Itália e a Irlanda. (c) O sistema de incorporação legal, no qual se determina que, para se aplicar o Direito convencional, é necessária a criação de uma lei especial nesse mesmo sentido. Trata-se do sistema utilizado pela maioria de países que fazem parte da Commonwealth. No caso de Portugal, vigora o sistema de receção automática, o qual se encontra previsto no art.º 8.º, n.º 1 da CRP (Constituição da República Portuguesa), nos seguintes termos: “as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português”. Quanto à vigência das normas de Direito internacional, vem o n.º 2 do mesmo art.º 8.º da CRP explanar que “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”. Quanto à hierarquia entre normas internacionais e constitucionais, importa evidenciar que as internacionais são hierarquicamente inferiores relativamente ao Direito constitucional, mas são superiores no que diz respeito ao Direito interno. Neste contexto, ao nível interno, os Estados de Direito (isto é, Estados subordinados ao Direito, enquanto conjunto de normas jurídicas), encontram-se limitados pelos princípios constitucionais, especialmente no que diz respeito ao modo como criam e aplicam os impostos, funcionando esta limitação como uma garantia para os contribuintes19. Por outro lado, ao nível externo, pelo facto de não existirem princípios que regulem o tratamento dos não residentes que obtenham rendimento no seu território, é necessária a criação de critérios/fatores de conexão. Tal situação faz com que, no momento da aplicação desses critérios de conexão, se verifiquem situações de dupla tributação. 3. Aplicação dos métodos de eliminação da dupla tributação20 Depois de enunciados os métodos capazes de evitar ou atenuar a dupla tributação, importa-nos agora saber como utilizá-los.

19

Cfr. SANCHES, J. L. Saldanha, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 82. Para mais desenvolvimentos acerca deste tema, vd. AZEVEDO, Patrícia Anjos, A dupla tributação internacional: questões levantadas e métodos para a evitar, Op. Cit., pp. 47 a 51 e AZEVEDO, Patrícia Anjos, “A tributação do rendimento na residência e na fonte - fatores de conexão à luz do direito fiscal europeu e internacional e dos princípios fundamentais de direito fiscal”, Op. Cit. pp. 237 a 242. 20


Começamos pelo método da isenção. Este método, encontra-se previsto no art.º 23.º-A da Convenção modelo da OCDE sobre o rendimento e o capital, a propósito do qual se dispõe que o Estado da residência elimina a dupla tributação isentando de tributação o rendimento ou património que será tributado no Estado da fonte. A isto, acresce, que o Estado da residência poderá fazê-lo através de uma isenção integral ou de uma isenção com progressividade. No que toca a isenção integral, o rendimento ou património isento não relevam para a tributação do rendimento ou património não isento. Já na isenção com progressividade, o cálculo do montante do imposto sobre o rendimento ou património não isento desse residente, deverá ter em conta para efeitos de taxa, o rendimento ou os patrimónios isentos. Todavia, não se aplica a isenção do n.º 1 do art.º 23.º-A da Convenção Modelo da OCDE, quando os rendimentos tenham já tenham sido isentos pelo outro Estado, de acordo com a Convenção, com vista a evitar que os rendimentos sejam isentos duas vezes (art.º 23-A n.º 4 da Convenção Modelo da OCDE). Desta forma, podemos entender que o método da isenção integral configura/traduz um procedimento mais simples, uma vez que não é necessário declarar o rendimento de fonte estrangeira. No entanto, pode acontecer que esta simplicidade, em algumas circunstâncias, não seja assim tão vantajosa21 e que, por esse motivo, seja preferível recorrer ao método da isenção com progressividade22. Outro método que pretendemos aqui analisar/abordar é o da imputação ou do crédito de imposto, que se desdobra em: (i) imputação por referência ao imposto pago; e (ii) imputação independente do imposto pago23. Vejamos: O método de imputação do imposto pago, previsto no art.º 23.º-B da convenção modelo da OCDE, pressupõe que o Estado da residência continue a ter o poder de tributar, permitindo, contudo, a dedução do valor referente ao imposto pago no Estado da fonte. Neste sentido, estaremos perante a imputação integral quando se permita deduzir, no Estado da residência, a totalidade do imposto efetivamente pago no Estado da fonte dos rendimentos; ou perante a imputação normal, quando a dedução permitida no Estado da residência se encontre limitada ao montante do seu próprio imposto correspondente aos rendimentos de fonte estrangeira.

21

Isto significa que, se o Estado da residência aplicasse o método da isenção integral acabaria por renunciar, não só o rendimento obtido na fonte, mas também à diferença entre o imposto calculado à taxa correspondente à totalidade do rendimento de que o contribuinte efetivamente dispõe e o imposto calculado à taxa aplicável ao rendimento de origem externa. Sendo assim, este método apenas é viável quando o cálculo do imposto se baseia em taxas proporcionais, sendo difícil a eliminação da dupla tributação nos casos em que os Estados apliquem taxas diferentes das proporcionais. 22 PEREIRA, Manuel Henrique Freitas, Fiscalidade (4.ª Edição), Almedina, 2011, pp. 224-225 e PEREIRA, Manuel Henrique Freitas, Fiscalidade (5.ª Edição), Almedina, 2014, pp. 269 e ss. 23 Para maiores desenvolvimentos, cfr. CARLOS, Américo Fernando Brás, Impostos (Teoria Geral), 3.ª Edição (atualizada), Almedina, 2010, pp. 255-251.


É precisamente através deste método que se eliminam os efeitos dos benefícios fiscais concedidos no Estado da fonte, dos quais deriva uma vantagem para o Estado da residência que nenhum imposto tem a imputar, nesse caso. Com o objetivo de evitar esta situação, alguns Estados permitem que se verifique e aceite uma imputação fictícia, isto é, que a imputação se verifique como se o imposto tivesse sido pago. Neste sentido, temos dois tipos de imputação fictícia, a saber: (i) modalidade de crédito direto (“direct foreign tax credit”), nesta modalidade o limite do crédito é referente ao limite do imposto que recaiu, no estrangeiro, sobre o contribuinte que o reclama, ou seja, aquele em cuja coleta de imposto é utilizado; e (ii) modalidade de crédito indireto (“indirect foreign tax credit; underlying tax credit”), no âmbito da qual, o crédito, no caso dos dividendos, diz respeito ao imposto que recaiu, no estrangeiro, sobre os lucros das sociedades de que os dividendos advêm. Quanto ao método da imputação do imposto não pago, este é um método utilizado em convenções celebradas por Estados que apresentam, entre si, diferenças assinaláveis de desenvolvimento. É utilizado, por exemplo, pela Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Coreia do Sul, a Finlândia, a França, a Itália, a Noruega, o Reino Unido e a Suíça, que concederam este regime a Portugal, de um modo genérico e relativamente a alguns tipos de rendimento; consequentemente, Portugal acabou por dar a conhecer este regime, primeiramente, a Moçambique24. O método aqui em causa pode traduzir-se no método do crédito presumido (matching credit); ou no método do crédito fictício (tax sparing credit). Quanto ao crédito presumido, este traduz-se no montante do crédito concedido pelo Estado da residência, o qual consiste numa percentagem do rendimento em causa, antecipadamente fixada, independentemente da taxa de tributação que incidiu sobre o rendimento auferido no outro Estado. Quanto ao crédito fictício, este pressupõe que o Estado da fonte concedeu um benefício fiscal àquele rendimento, determinando sobre ele uma não tributação ou uma tributação reduzida. Neste sentido, depreende-se que o Estado da residência concede um crédito igual ao montante do imposto que seria pago, no caso de não existirem benefícios fiscais. 4. Conclusões Quando abordamos a questão da dupla tributação internacional, queremos referir que esta surge na sequência da territorialidade do imposto, a qual se traduz no facto de cada Estado saber que, em princípio, a sua soberania tributária se limita, também, pela coexistência com outras soberanias. 24

CARLOS, Américo Fernando Brás, Impostos (Teoria Geral), 3.ª Edição (atualizada), Almedina, 2010, p. 260.


Assim, a coexistência entre Estados e a pluralidade de normas que existe entre ambos faz com que se criem inúmeros problemas, entre eles a dupla tributação. Isto porque, apesar dos conceitos terem o mesmo nome, não quer dizer que sejam interpretados da mesma forma. É o caso, por exemplo, do conceito “residente”. Este conceito, é comum nos Estados envolventes, o que poderá não ser comum, é o significado do mesmo para um Estado e para outro. Assim, poderá um determinado contribuinte ser considerado residente em ambos os Estados e por isso ver aumentada a sua carga fiscal, por uma conexão de critérios residência-residência. É neste sentido, que se torna fulcral a criação de métodos e medidas que visem evitar ou atenuar este fenómeno: A Dupla Tributação. Entre elas, surgem as medidas unilaterais que podem ser adotadas pelos Estados, para casos em que a situação geradora de dupla tributação não se encontre prevista nas convenções de dupla tributação; e as medidas bilaterais, no âmbito das quais surgem os tratados internacionais celebrados entre Estado da residência e Estado da fonte, através dos quais se pretende regular o modo de tributar, tendo em conta a pluralidade de normas existentes em ambos os Estados implicados na relação jurídica tributária. Bibliografia AZEVEDO, Patrícia Anjos, “A tributação do rendimento na residência e na fonte - fatores de conexão à luz do direito fiscal europeu e internacional e dos princípios fundamentais de direito fiscal” (adaptação de texto de tese de doutoramento), Novas Edições Acadêmicas, 2020. AZEVEDO, Patrícia Anjos, A determinação das competências tributárias entre os estados: análise do critério da residência, RCEJ, n.º 28, 2017. AZEVEDO, Patrícia Anjos, O critério da fonte e o seu âmbito de aplicação, Dereito: revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, vol. 26, n.º1, 2017. AZEVEDO, Patrícia Anjos, A dupla tributação internacional: questões levantadas e métodos para a evitar, Cadernos de Dereito Actual, Nº 6, 2017. CARLOS, Américo Fernando Brás, Impostos (Teoria Geral), 3.ª Edição (atualizada), Almedina, 2010. MACHADO, Jónatas E. M. e COSTA, Paulo Nogueira da, Curso de Direito Tributário, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012. PEREIRA, Manuel Henrique Freitas, Fiscalidade (4.ª Edição), Almedina, 2011. PEREIRA, Manuel Henrique Freitas, Fiscalidade (5.ª Edição), Almedina, 2014. PINTO, Natália Cardoso, A tributação das sociedades não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, Vida Económica. SANCHES, J. L. Saldanha, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007. XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional, 2ª Edição, Atualizada, Almedina 2007.


O Impacto da Pandemia COVID-19 no Desempenho Estatístico das Ações Executivas Cíveis: O que nos Dizem os Dados até ao Momento?

O Impacto da Pandemia Covid-19 no Desempenho Estatístico das Ações Executivas Cíveis: O que nos dizem os dados até ao momento?

Pedro Correia Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Sandra Pereira Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


Resumo O presente estudo tem como objetivo analisar o impacto da Pandemia COVID-19 no desempenho estatístico das ações executivas cíveis em Portugal. O estudo segue uma abordagem quantitativa, com recurso à análise estatística descritiva e posteriores evidências estatísticas, comparando quatro períodos do sistema judicial Português, nomeadamente o período pré-Troika, o período Troika, o período pós-Troika, e o período COVID-19. Os resultados não apresentam alterações ao nível das ações executivas cíveis durante o período COVID-19, não se evidenciando impacto significativo nas seguintes variáveis em estudo: número de ações executivas cíveis pendentes, saldo processual, taxa de resolução e tempo de disposição. A futuros trabalhos reserva-se o encargo de manter a monitorização de resultados, verificando se estes persistem no longo prazo, e ainda, alargar a monitorização a outro tipo de ações judiciais, tal como, processos de falência, insolvência e recuperação de empresas, ou processos especiais de revitalização. Palavras-chave: COVID-19; Pandemia; Ministério da Justiça de Portugal; Ações executivas cíveis; Avaliação de Políticas Públicas. Abstract This article is aims to analyze the impact of the COVID-19

pandemic

on

the

statistical

performance of civil executive actions in Portugal. The empirical study follows a quantitative approach including a descriptive statistical analyzes and statistical evidence, by covering four periods, namely, the pre-Troika period, the Troika period, the post-Troika period and the current COVID-19 period. The results show no statistically significant effect on the level of civil enforcement actions in the six main variables in question (incoming cases, completed cases; pending cases; procedural balance; clearance and disposition time) considering the COVID-19 period. This monitoring must be undertaken in future research, as well as to extend this ongoing monitoring in other types of judicial actions, such as bankruptcy, insolvency and corporate recovery actions. Keywords: COVID-19; Pandemic; Portuguese Ministry of Justice; Civil Enforcement Actions; Evaluation of Public Policies.


Introdução O paradigma do Estado de Direito, ao longo do presente século que trabalha no sentido de incorporar e caminhar na mesma direção das sociedades atuais, que passam por constantes mudança, quer dos estados, das empresas e dos próprios cidadãos. Já no decorrer de várias décadas que importantes figuras académicas, como Barnard e Hayek, centralizam na discussão a inaptidão ou dificuldade dos sistemas judiciais conseguiram

acomodar-se,

1

eficientemente, às velozes mudanças dinâmicas que se assistem . As sociedades são desafiadas com essas mudanças, muitas vezes de forma repentina e imprevisível, pelo que o planeamento e gestão de mudanças, ou crises, é de delicada atenção e deve constar no topo das prioridade governamentais (Correia, et al., 2020ª, 2020b ). É assim que se inicia o ano de 2020, com uma reviravolta na sociedade como a conhecíamos, uma crise mundial inesperada que surpreendeu todos os governos. O novo coronavírus, causado pelo vírus SARS-CoV-2, denominado posteriormente de COVID-19, originário de Wuhan, Hubei, China, já alcançou 11 897 454 casos confirmados, 299 547 mortes confirmadas, e atualmente 32 países, áreas ou territórios apresentam casos (WHO, 2020). Esta crise, com impactos intensos a nível social, económico e político, afetou cada país e cada governo de forma diferenciada, e mais, cada setor, quer público, quer privado, reagiu de modos distintos e com impactos, mais ou menos sentidos. Posto isto, cada vez mais surgem questões sobre o antes, e o depois do marco inicial desta crise que vivemos (Correia, et al., 2020a, 2020b). No que diz respeito ao Setor da Justiça em Portugal, tal como outras esferas públicas, a Justiça enfrentou os impactos trazidos pelos desafios económicos e financeiros da crise pandémica. Análises estatísticas já se debruçaram acerca das pendências e saldo processual dos Tribunais Judiciais de 1.ª Instância, quer sobre estimativas dos saldos processuais cível, penal, laboral e tutelar, e ainda, foram já extrapolados quatro cenários hipotéticos do impacto nas pendências e na duração média dos processos (DGPJ, 2020). Contudo, deteta-se uma lacuna na abordagem individual e aprofundada do impacto da pandemia COVID-19 nas ações executivas cíveis. Dito isto, e considerando a importância e problemática histórica deste tipo de ações no sistema judicial português, assim como a sua recente reforma, o presente artigo analisa, de forma neutra e informativa, com recurso a técnicas estatísticas, o impacto da pandemia COVID-19 no desempenho estatístico das ações executivas cíveis. Para efeito comparativos, é adicionado ao atual período de pandemia, três outros períodos da história recente portuguesa: o período pré-Troika, o período Troika, e, o período pós-Troika. Com este trabalho, os autores aspiram estimular e ampliar a discussão sobre

temas

elucidativos e informativos sobre a administração da justiça à sociedade

portuguesa.

1

Barnard (1971); Hayek (1973, 1978, 1979).1


Deste modo, é seguida a seguinte estrutura de trabalho: primeiramente são enunciados alguns pontos de contexto, assim como os objetivos concretos da investigação, seguidos da metodologia adotada, e dos resultados obtidos, que se dividem em duas subsecções: a) estatística descritiva; e b) evidências estatísticas. Por fim, são traçadas conclusões e pontos orientadores para futuros trabalhos teóricos e empíricos. As ações executivas cíveis: Uma componente historicamente complexa Ao abordar o tema das ações executivas cíveis importa traçar certas características da sociedade portuguesa na primeira década dos anos 2000. Achávamo-nos perante sociedade com níveis de poupança aquém, níveis de crescimento económico, prosperidade e produtividade baixos. Um cenário de endividamento acima da capacidade familiar e comercial, encaminhou a sociedade portuguesa para a inadimplência de obrigações financeiras, que originou um crescimento de disputas relacionadas com o procedimento de cobrança de dívidas, abrangendo significativas subidas no processamento de ações executivas cíveis, pelo sistema judicial2. A intervenção da Troika, três instituições bem conhecidas

no

âmbito

internacional,

nomeadamente: a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo

Monetário

Internacional veio apaziguar o cenário supramencionado. Esta intervenção materializou-se no Memorando de Entendimento sobre a Condicionalidade da Política Económica Específica (MdE)3 onde se encontrava delineado um plano, rigoroso e ambicioso, com o intuito de reerguer a justiça portuguesa. A execução do programa de assistência seguiu fortes critérios de modo a cumprir o conjunto de medidas delineadas, pelo que os outcomes favoráveis surgiram de modo gradual, mas cedo tornaram-se evidentes4. Dentro dessas medidas, um dos grandes focos foi para com a diminuição significativa do atraso e pendência nas ações executivas cíveis. Uma reforma era premente nesta componente do sistema judicial, complexa, visivelmente contraproducente e com elevado peso5. Deste modo, foram colocadas em prática um conjunto de medidas decisórias, nomeadamente (Correia & Videira, 2016, 2015): i) progressos no papel dos agentes responsáveis pela aplicação da lei; ii) aumento da supervisão e dos poderes disciplinares do órgão regulador; iii) reestruturação do mapa judicial; iv) progressos nos meios extrajudiciais de resolução de litígios; v) melhoramento e agilização de procedimentos na área processual civil, inclusive a supressão de formalidades desnecessárias6.

2 3

4

Direção-Geral da Política de Justiça (2017). Portugal (2011). Correia e Videira (2015, 2016).

5

Para informações adicionais sobre este assunto, consulte-se Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (2016). 6

O novo Código de Processo Civil (CPC) entrou em vigor em setembro de 2013 (Portugal, 2013b). É importante destacar as principais medidas legislativas, nomeadamente o Decreto-Lei 4/2013, de 11 de janeiro (Portugal,


Com o fim do programa de assistência financeira e económica e após a saída da Troika de Portugal, a implementação de políticas públicas na esfera da área cível foi evidentemente bem sucedida e comprovada empiricamente (Correia & Videira, 2015, 2016) Importa agora, averiguar, até que ponto, a crise que se vive nos dias de hoje, como consequência da pandemia COVID-19, veio alterar a tendência positiva e as melhorias conseguidas durante os períodos da TROIKA em Portugal na área das ações executivas cíveis. O presente trabalho pretende ser de caracter descritivo e informativo, pelo que nenhuma abordagem teórica será realçada, de modo a evitar qualquer tipo de inclinação teórica, como por exemplo, a teoria da nova gestão pública (Lane 2000; Gomes, 2007; Frederickson et al., 2012; Hill e Hupe, 2014), a abordagem das teorias da governança judicial (Frederickson et al., 2012; Guimarães et al., 2015), a visão da noção de crise permanente dos sistemas judiciais (Campbell, 2013), a perspetiva da erosão da legitimidade judicial e da preocupação com a separação de poderes (Stephenson, 2004; Langbroek, 2008), a perspetiva da produtividade dos recursos humanos e da pressão da procura (Walsh, 2008), ou a perspetiva da abordagem macro-modelo do sistema judicial (Bell, 2006; Ambach e Rackwitz, 2013). Metodologia O presente estudo segue uma abordagem quantitativa, analisando empiricamente as ações executivas cíveis nos tribunais de primeira instância portugueses, ao longo de quatro períodos delimitados, com uma amostra de 167 meses, entre janeiro de 2007 e novembro de 2020 (abrangendo um período de quase 14 anos). Dos 167 meses, 53 meses (de janeiro de 2007 a maio de 2011) precedem a chegada da Troika em Portugal (de agora em diante, denominado como período pré-Troika); 34 meses (de junho de 2011 a março de 2014) correspondem à estadia da Troika em Portugal (de agora em diante, denominado como o período da Troika); 71 meses (de abril de 2014 a fevereiro de 2020) correspondem ao período após a partida da troika do país (de agora em diante, denominado como período pós-Troika); e os restantes 9 meses (de março de 2020 a novembro de 2020) correspondem ao período pós início da pandemia COVID-19 (de agora em diante, denominado como período COVID-19). Os dados concretos para o desenvolvimento desta estudo de investigação dizem respeito à quantidade de ações executivas entradas, findas7 e pendentes8 nos tribunais judiciais de primeira instância em Portugal. Dados estes, passíveis de consulta pública9 divulgados pela

2013a), que aprovou um conjunto de ações provisórias para combater a pendência e os atrasos, conjunto esse que posteriormente foi absorvido pelo novo Código de Processo Civil. 7

Para uma definição exata de “processo findo”, consultar, por exemplo, Direcção-Geral da Política de Justiça (2016). 8

Para uma definição exata de “processo pendente”, consultar, por exemplo, Direcção-Geral da Política de Justiça (2017). 9

Dados disponíveis online em: https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt.


Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), responsável pelas estatísticas da esfera da Justiça. Para tornar a análise mais robusta, às três variáveis – processos entrados, processos findos e processos pendentes - são adicionados três indicadores compostos: saldo processual10, taxa de resolução processual11 e disposition time12. As fórmulas de cálculo são apresentadas de seguida (Correia & Videira, 2015, 2016):

O teste não paramétrico de Kruskal-Wallis13 foi utilizado para testar a validade das hipóteses estabelecidas (Tabela 1), devido à falta de distribuições gaussianas para as categorias em estudo, pelo que o teste paramétrico ANOVA não foi aplicado14.

Tabela 1. Hipóteses estabelecidas por validar Hipótese

Validação

H0: O período COVID-19 apresenta medianas iguais aos demais períodos

Por validar

H1: O período COVID-19 distingue-se dos demais ao apresentar medianasPor validar

10

Segundo Correia e Videira, "os valores negativos correspondem a um saldo processual favorável (mais processos findos do que processos entrados e, portanto, uma diminuição da pendência) e os valores positivos correspondem a um saldo processual desfavorável (mais processos entrados do que processos findos e, portanto, um aumento na pendência)" (2015, p. 40). 11

De acordo com Correia e Videira, " os valores superiores a 100% correspondem a uma taxa de resolução processual favorável (mais processos findos do que processos entrados e, portanto, diminuição da pendência) e os valores inferiores a 100% correspondem a uma taxa de resolução processual desfavorável (mais processos entrados do que processos findos e, portanto, um aumento da pendência) " (2015, p.). 12

Ou em português, tempo para disposição. Segundo Correia e Videira, "quanto menor o valor, mais favorável é" (2015, p. 40). 13

14

Kruskal e Wallis (1952). Nível de significância de 5,00% (0,05).

A utilização do teste ANOVA implica a verificação de distribuições gaussianas e de homocedasticidade (igualdade de variância). Se um (ou ambos) desses pré-requisitos falhar, o teste ANOVA não deve ser aplicado a esse conjunto de dados específico.


distintas

15

Fonte: Autoria própria. Resultados A presente secção é dividida entre duas subsecções que abordam diferentes evidências estatísticas. A subsecção a) expõe uma análise estatística descritiva que institui provas estatísticas fortes acerca da manutenção de resultados positivos, não só nos períodos da Troika, mas também no período COVID-19. Já na subsecção b), são apresentados os exercícios estatísticos realizados com o intuito de averiguar as afirmações indubitáveis que a subsecção a) promove. Estatística descritiva: O que nos dizem os dados até ao momento? A evolução do número de entrados e findos das ações executivas cíveis nos tribunais portugueses, entre janeiro de 2007 e novembro de 2020, é apresentada na Figura 1. Importa prestar maior atenção ao período COVID-19, que entre março de 2020 até novembro de 2020 o número de ações executivas entradas aumentou em 2.297 processos, e no que diz respeito ao processos findos, entre os nove mesos do período COVID-19, de março até novembro 2020, foi registado um aumento em 436 processos findos. Na figura 2 é evidenciado o saldo processual para os períodos em estudo. A tendência favorável que se começou a observar, aproximadamente, um ano e meio de seguida à execução do programa de assistência, mantém-se num saldo processual negativo no período pós-Troika, tal como descrito nos estudos de Correia e Videira (2015, 2016). Para esta análise foram considerados 167 meses, dos quais 108 meses correspondem a saldos processuais favoráveis, quer isto dizer que o número de processos findos é mais elevados que o número de processos entrados, o que origina menor pendência correspondente ao saldo em questão. Dos 108 meses com saldo favorável (ou seja, saldo processual negativo), apenas 12 meses (ou 11,1%) foram verificados no período pré- Troika, seguidos de 20 meses (ou 18,5%) que são registados no período da Troika, e uns surpreendentes 67 meses (ou 62%) são observáveis no período pós-Troika. Notavelmente, a tendência favorável continua em todos os meses que abrangem o período COVID-19, quer isto dizer que os restantes 9 meses (de março de 2020 a novembro de 2020) após o início da pandemia COVID-19, apresentam um saldo processual das ações executivas cíveis favorável (ou seja, saldo processual negativo).

15

A aplicação do teste de Kruskal-Wallis pode ser encontrada, por exemplo, em Correia e Catarino (2016), Catarino e Correia (2016), Correia, et al. (2016), Correia, et al. (2018ª e 2018b), Correia, Videira e Mendes (2019) ou Correia, et al. (2019).


Figura 1. Ações executivas cíveis entradas e findas, janeiro de 2007–novembro de 2020

Fonte: Autoria própria. Figura 2. Saldo processual das ações executivas cíveis, janeiro de 2007–novembro de 2020

Fonte: Autoria própria. As barras brancas representam valores favoráveis (saldos processuais negativos) e as barras escuras representam valores desfavoráveis (saldos processuais positivos). No que diz respeito à taxa de resolução processual, está é apresentada na figura 3. Considerando os 167 meses desta investigação, foram 108 meses com taxas de resolução processual favoráveis, isto é, com valores acima dos 100%, como consequência do decrescimento da pendência. Desses 108 meses, 12 (ou 11,1%) foram registados no período da pré-Troika, 20 (ou 18,5%) foram registados no período da Troika e 67 (ou 62%) foram registados no período pós-Troika. É também de salientar o facto de que, nos 9 meses que


incluíram o período COVID-19, todos os 9 meses apresentaram taxas de resolução processual favoráveis, com valores acima dos 100%. É de sublinhar que este indicador composto "tem a vantagem, em relação ao indicador de saldo processual, de ser uma medida baseada em valores relativos e não absolutos, permitindo que períodos de tempo prolongados sejam mais bem comparados, mesmo que as condições de procura e oferta do sistema judicial se alterem significativamente" (Correia & Videira, 2015, p. 41). Figura 3. Taxa de resolução processual das ações executivas cíveis, janeiro de 2007– novembro de 2020

Fonte: Autoria própria. As barras brancas representam taxas de resolução processual favoráveis (acima de 100%) e as barras escuras representam taxas de resolução processual desfavoráveis (abaixo de 100%). A figura 4 apresenta, para os períodos em análise, o tempo de disposição. Assim como nos indicadores compostos supramencionados, mantêm-se a tendência favorável, mesmo após o início da pandemia COVID-19. Por motivos de comparação com literatura já publicada na temática, foi escolhido pelos autores o marco de 1.500 dias. Deste modo, considerando os 108 meses em análise, 99 apresentaram tempos de disposição inferiores a 1.500 dias. Desses 99 meses, 14 (ou 14,1%) foram registados no período da pré-Troika, 19 (ou 19,2%) foram registados no período da Troika e 59 (ou 59,6%) foram registados no período pós-Troika. Quanto ao período COVID-19, dos 9 meses que correspondem a este período de tempo, foram 7 (ou 7,1%) os meses que apresentaram tempos de disposição inferiores a 1.500 dias. Contudo, os meses em que se evidenciou tal questão foram abril de 2020, logo após o início da pandemia, e agosto de 2020, que corresponde às férias judiciais. Logo após agosto de 2020, o tempo de disposição recuperou e, no mês de setembro de 2020 o tempo de disposição era de 1.050 dias.


Figura 4. Tempo de disposição das ações executivas cíveis, janeiro de 2007–novembro de 2020

Fonte: Autoria própria. As barras brancas representam tempos de disposição abaixo de 1.500 dias e as barras escuras representam tempos de disposição acima de 1.500 dias. Importa agora analisar o percurso do número de ações executivas cíveis pendentes, entre janeiro de 2007 a novembro de 2020, que é apresentado na figura 5. As ações executivas cíveis pendentes são uma consequência natural dos outcomes que foram posteriormente descritos. Ao observar as figuras 2 a 5, é possível destacar uma estabilidade e diminuição dos casos pendentes ao longo do período da Troika, com a manutenção desta diminuição após o período pós-Troika. Este declínio não foi alcançado por ocasionais alterações no sistema, mas sim graças as reformas implementadas por Portugal no âmbito do Memorando de Entendimento de 2011, medidas estas comprovadas, empiricamente, como eficazes. Continuando a análise ao longo do tempo até à atualidade, o declínio dos casos pendentes, notavelmente, mantémse no período COVID-19. Se considerarmos março de 2020 como o mês 1 do período COVID19, até novembro de 2020, isto é, passados 9 meses de pandemia em Portugal, foi alcançada uma redução de 42.630 processos pendentes. Figura 5. Ações executivas cíveis pendentes, janeiro de 2007–novembro de 2020


Fonte: Autoria própria. Feita a análise estatística descritiva, os dados públicos tornam passível a seguinte interrogação: os quatros períodos em estudos (pré-Troika, Troika, Pós-Troika e COVID-19) são detentores de características distintas estatisticamente? Os indicadores escolhidos para a presente investigação – processos entrados, findos e pendentes, saldo processual, taxa de resolução processual e tempo de disposição – tornam possível responder a esta questão empiricamente. Através dessas evidências estatísticas, se a resposta for positiva, e os quatro períodos apresentaremefetivamente propriedades estatísticas diferenciadas, não será possível atribuir essas diferenças a meras flutuações. Em caso afirmativo, devem ser consideradas como resultados contínuos das reformas implementadas e ações desenvolvidas pelo sistema judicial português, no sentido de se manter alerta, mesmo após enfrentar os desafios do período da Troika, conseguindo suportar os efeitos no sistema judicial de uma pandemia mundial. Evidências Estatísticas O teste não paramétrico de Kruskal e Wallis (1952) foi utilizado para testar a validade das hipóteses estabelecidas, devido à falta de distribuições gaussianas para as categorias em estudo. Assim o teste foi aplicado para averiguar se o período COVID-19 apresenta medianas iguais aos demais períodos (H0) ou se, alternativamente, o período COVID-19 distingue-se dos demais ao apresentar medianas distintas. Os resultados para as seis variáveis são evidenciados na tabela 2. Tabela 2. Resultados para o teste de Kruskal-Wallis, agrupados por "período pré- Troika",


Saldo

Taxa

deTempo

Entrados Findos Pendentes processual resolução

de

disposição

processual Valor do teste de

97,721

39,003

120,892

71,642

76,604

45,413

0,000

0,000

0,000

0,000

0,000

KRUSKAL-WALLIS p-valor (bicaudal) 0,000

"período da Troika", "período pós-Troika" e “período COVID-19” Fonte: Autoria própria. Ao observar a tabela 2, considerando todas as variáveis, conclui-se que H0, ou seja, o período COVID-19 apresenta medianas iguais aos demais períodos, é rejeitada (p-valores = 0,000 < 0,05), e H1 é validada, isto é, o período COVID-19 distingue-se dos demais ao apresentar medianas distintas. Assim sendo, destes resultados, procede-se uma interrogação (Correia & Videira, 2016): se os quatro grupos de dados não derivam da mesma população, os outcomes para cada uma das seis variáveis, obrigatoriamente que são estatisticamente distintos, ou, em alternativa, podem ser agrupados estatisticamente? De modo a dar solução a esta interrogação, é realizada uma comparação passo a passo step-down16 na tabela 3, para a conformidade estatística das medianas para o período COVID-19 e restantes períodos em análise, isto é, pré-Troika, período da Troika e para o período pós-Troika17. Tabela 3. Semelhança estatística das medianas – comparação passo a passo step-down para "período pré-Troika", "período da Troika", "período pós-Troika" e “período COVID-19” Entrados Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

Período pré-Troika

22.029

-

-

Período Troika

22.318

-

-

Período pós-Troika

-

11.639

-

Período COVID-19

-

-

7.170

Findos Período pré-Troika

Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

-

18.171

-

16

Como complemento ao teste de Kruskal-Wallis é realizada a comparação passo a passo step-down para um melhoramento da análise, permitindo localizar categorias estatisticamente idênticas ou não 17

Estes quatro períodos correspondem aos quatro conjuntos de dados originais descritos na secção da metodologia. Os grupos da tabela 3 foram desenvolvidos individualmente para cada variável, com recurso à comparação passo a passo step-down. Os períodos (pré-Troika, Troika, pós-Troika e COVID-19) quando se encontram em grupos semelhantes podem ser considerados como tendo medianas estatisticamente idênticas para a respetiva variável em análise. Quando os períodos (pré-Troika, Troika, pós-Troika e COVID-19) estão em grupos distintos podem ser considerados como tendo medianas estatisticamente distintas para a respetiva variável em análise.


Período Troika

25.483

-

-

Período pós-Troika

-

19.312

Período COVID-19

-

-

Grupo 1

Grupo 2

Período pré-Troika

-

1.009.651 -

-

Período Troika

1.232.511,5

-

-

-

Período pós-Troika

-

-

770.277 -

Período COVID-19

-

-

-

13.198

Pendentes Grupo 3 Grupo 4

480.720

Saldo processual Grupo 1

Grupo 2

Período pré-Troika

3.231

-

Período Troika

-

-1.947

Período pós-Troika

-

-8.247

Período COVID-19

-

-5.807

Taxa de resolução processual Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

Período pré-Troika

-

-

85,4%

Período Troika

-

109,3%

-

Período pós-Troika

172,9%

-

-

Período COVID-19

177,9%

-

-

Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

Período pré-Troika

1.816

-

-

Período Troika

-

1.399

-

Período pós-Troika

-

-

1.116

Tempo de disposição

Período COVID-19

1.126

Fonte: Autoria própria. Nota: Análise independente para cada variável (grupos 1, 2, 3 e 4 não relacionados entre variáveis). O conteúdo disposto na tabela 3, amplia e confirma o conhecimento difundido na literatura disponível sobre a temática das ações executivas cíveis18. Em primeiro lugar, em relação à mediana do número de processos entrados, é observável que os períodos pré-Troika e Troika podem ser considerados como tendo medianas estatisticamente idênticas, contudo o mesmo 18

Correia e Videira (2015, 2016).


não sucede com o período pós-Troika e COVID-19, em que a diferença de aproximadamente 4.469 processos entrados entre esses dois períodos é estatisticamente significativo (mediana de 22.029 processos entrados por mês antes da chegada da Troika a Portugal, de 22.318 processos entrados durante o período Troika em Portugal, mediana de 11.639 processos entrados por mês após a partida da Troika de Portugal, e mediana de 7.170 processos entrados por mês no período COVID- 19). Quanto aos processos findos, por sua vez, é possível concluir que não

há diferença

estatisticamente significativa em relação aos períodos pré-Troika e pós-Troika: mediana19 de 18.171 processos findos por mês antes da chegada da troika a Portugal, de 25.483 processos findos por mês durante a estadia da Troika em Portugal e de 19.312 processos findos por mês após a partida da troika de Portugal. Para o período COVID-19 a mediana dos processos findos entrados por mês é de 13.198 processos. Este é um declínio médio de mais de 6.000 processos findos nos meses de pandemia, este é um importante ponto que detém influência nos outcomes nos indicadores composto da análise descritiva. Em termos de resultados quanto à pendência, os quatro períodos em estudo são estatisticamente distintos: mediana de 1.009.651processos pendentes antes da chegada da Troika a Portugal, de 1.232.511,5 processos pendentes durante a permanência da Troika em Portugal, de 770.277 processos pendentes após a partida da Troika de Portugal, e de 480.720 processos pendentes durante o período COVID-19. Comparando o período pós-Troika para o período COVID-19, são mais de 289.000 unidades abaixo para o período COVID-19. Para o saldo processual, conclui-se que há diferença estatisticamente significativa entre o período pré-troika (com valor positivos de saldo processual, isto significa valores desfavoráveis) e os restantes períodos (os três com saldos processuais negativos, ou seja, favoráveis). Isto significa que há uma melhoria no saldo processual para as ações executivas cíveis, vejamos: mediana de +3.231 processos por mês, saldo processual mediano positivo, quer isto dizer, desfavorável no período pré-Troika, de -1.947 processos por mês, saldo processual mediano negativo, quer isto dizer, favorável durante o período Troika, de -8.247 processos por mês, saldo processual mediano negativo, quer isto dizer, favorável após a partida da Troika de Portugal, e durante o período COVID-19 de -5.807 processos por mês, que corresponde a um saldo processual mediano negativo, ou seja favorável. No que diz respeito aos valores da taxa de resolução processual, observa-se diferenças estatisticamente significativa entre o período pré-troika, o período Troika e os dois restantes períodos: mediana mensal de 85,4% no período pré-Troika, de 109,3% durante o período Troika em Portugal, de 172,9% para o período pós-Troika, e uma mediana mensal de 177,9% para o período COVID-19. Deste modo, verifica-se um acréscimo da mediana em 5 pontos 19

Tal como descrito na metodologia, recorde-se que, em vez de médias, foram utilizadas medianas pela inexistência de distribuições gaussianas.


percentuais durante o período COVID-19, quando comparado com o período precedente. Importa sublinhar a relevância da passagem cunho dos 100%, que estabelece também um progresso qualitativo, relacionado intrinsecamente com o decréscimo do número de processos pendentes. Por fim, voltamo-nos para os resultados alcançados ao nível do tempo de disposição. Este indicador apresenta,

tal

como no indicador analisado anteriormente, diferenças

estatisticamente significativas entre o período pré-troika, o período Troika e os dois restantes períodos, vejamos: mediana mensal de 1.816 dias no período pré-Troika, de 1.399 dias ao longo do período Troika, de 1.116 dias no período pós-Troika e uma mediana mensal de 1.126 dias no período COVID-19. Registou-se, assim, um leve aumento da mediana em 10 dias durante o período COVID-19, quando comparado com o período anterior. Discussões e conclusões Na história recente do sistema judicial português, as ações executivas cíveis ocupam um lugar de relevância. Estas componentes complexas, por vezes contraproducente e onerosas, passaram por uma profunda reforma, e as melhorias não demoraram a ser evidentes no sistema judicial (Correia & Videira, 2015, 2016). A situação pandémica atual, particularmente sentido em Portugal a partir de março de 2020, requer que se investigue o impacto da pandemia ao nível social, financeiro e económico do país. Disto isto, o presente estudo propôs-se a analisar o impacto deste momento de crise nas ações executivas cíveis, comparando com o passado recente materializado em três outros períodos: pré- Troika, Troika e pós-Troika. Foi seguida uma abordagem quantitativa, através de analise estatística descritiva e evidências estatísticas, com recurso a seis variáveis: número de ações executivas cíveis entradas, findas e pendentes, saldo processual, taxa de resolução e tempo de disposição. Com nove meses em estudo, de março de 2020 a novembro de 2020, correspondendo ao período pós início da pandemia COVID-19, de modo global, conclui-se que, até ver, não se verifica um impacto significativo estatisticamente na pendência de ações executivas cíveis, no tempo de disposição, no saldo processual nem na taxa de resolução. Pelo que, os resultados positivos oriundos das políticas públicas implementadas pela reforma do Memorando de Entendimento de 2011, que se começaram a sentir no período Troika e no período pós-Troika persistiram ao longo da presente análise. Contudo, sente-se um ligeiro e pouco significativo aumento no número de ações executivas cíveis entradas e findas. Os autores sublinham que avaliar o impacto nestas duas variáveis é de extrema complexidade, visto que as evidências dos números de ações executivas cíveis entradas e findas, analisadas isoladamente, sem outros dados justificativos, não são explicativos da situação. Isto porque, por exemplo, uma diminuição nos processos entrados pode, hipoteticamente, significar menos acesso à justiça, ou, até pode significar simplesmente


que os atuais apoios estatais como resposta aos desafios da crise pandémica, estão a adiar os processos de falência que poderão ocorrer num futuro próximo. Mais ou menos processos entrados não significam, simplesmente, que é melhor ou pior para a administração da justiça. Pelo que, importa aprofundar os motivos inerentes a essas aumentos ou diminuições, de modo a dar uma melhor resposta ao cidadão, elemento central e fulcral da administração da justiça (Pereira & Correia, 2020). Para além do já mencionado, alerta-se que os resultados aqui enunciados não devem ser generalizados para distintas ações judiciais em Portugal. A neutralidade da informação apresentada nesta investigação, deve, na sua interpretação, seguir uma abordagem ceteris paribus. Futuros estudos científicos devem inclinar-se na tarefa de ampliar esta monitorização e avaliar o impacto da pandemia COVID-19 no desempenho estatístico noutro tipo de ações, tal como processos de falência, insolvência e recuperação de empresas, ou processos especiais de revitalização. Referências Bibliográficas Ambach, P., & Rackwitz, K. (2013). A Model of International Judicial Administration? The Evolution of Managerial Practices at the International Criminal Court. Law and Contemporary Problems, 76(3-4), 119-161. Barnard, C. (1971). The Functions of the Executive: 30th Anniversary Edition. Cambridge: Harvard University Press. BELL, J. (2006). Judiciaries within Europe: A Comparative Review. Cambridge: Cambridge University Press. Campbell, D. (2013). The Sky is Falling (Again): Evaluating the Current Crisis in the Judiciary. New England Law Review, 47, 571-603. Catarino, J., & Correia, P. (2016). Receitas Fiscais e Tributação Geral sobre o Consumo em Portugal: Um Estudo sobre Eventuais Assimetrias do Comportamento dos Sujeitos Passivos do Imposto no Final da Primeira Década do Século XXI. Revista da FAE, 19 (1), 6-17. Comissão Europeia Para A Eficiência Da Justiça (2016). European Judicial Systems – Edition 2016 (2014 data): Efficiency and Quality of Justice. Conselho da Europa. Disponível em: https://www.coe.int/t/dghl/cooperation/cepej/evaluation/2016/publication/REV1/2016_1 %20-%20CEPEJ%20Study%2023%20-%20General%20report%20-%20EN.pdf. Correia, P. M. A. R., Dias, M. T. V. C., Gonçalves, D. L., Novais, Z. D. J., & Pereira, S. P. M. (2018b). Special Revitalization Procedures: Additional Empirical Contribution on the Results of TROIKA'S Experiment in the Portuguese Ministry of Justice. Lex Humana, 10(1), 123-147. Correia, P. M. A. R., Dias, M. T. V. C., Novais, Z. D. J. & Gonçalves, D. L. (2018a). Troika’s Portuguese Ministry of Justice Experiment: MoU Results based on an Empirical Study of the Bankruptcy, Insolvency and Corporate Recovery Actions Performance. Proceeding em


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em: (acesso

a

26

de


O Documento Particular Autenticado

O Documento Particular Autenticado

Juliana da Silva Cavadas Mestre em Solicitadoria - ISCAC


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CC – Código Civil CIMI – Código do Imposto Municipal sobre Imóveis CIMT - Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis CN – Código do Notariado CRP – Código de Registo Predial D.L – Decreto-Lei EN – Estatuto do Notariado IRN – Instituto dos Registos e Notariado n.º – Número NIF – Número de Identificação Fiscal p. – Página Proc. – Processo ROAS - Registo Online de Atos de Solicitadores

CAPÍTULO I – O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO Conforme referido no artigo “A insustentável leveza do mandato1”, “com a introdução do D.L n.º 76- A/2006, de 29 de março, foram simplificados os controlos de natureza administrativa e os solicitadores, entre outros juristas e entidades, passaram a poder efetuar todo o tipo de reconhecimentos e termos de autenticação. Entretanto, o D.L n.º 116/2008 de 4 de julho concretizou a desformalização dos atos que estavam sujeitos a escritura pública e alargou a outros juristas, as competências para determinados atos que, até esse momento, se encontravam na esfera dos notários”. Princípio da liberdade de forma Requisito essencial à validade dos negócios jurídicos em geral é a forma pela qual devem ser realizados2. No ordenamento jurídico português, na parte relativa à forma dos contratos, vigora o Princípio da Liberdade de Forma, previsto no artigo 219.º do CC, que estabelece que: “a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir.” O que significa que, por norma, formalizam-se por mero acordo de vontades, sem que lhe seja exigida forma especial – artigo 217.º e ss, do

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MARTA, Carla Taipina e PEREIRA, Cláudia, “A Insustentável Leveza do Mandato”, OSAE - Solicitadoria e Ação Executiva - Estudos #5, de dezembro de 2017-2018. 2

GOMES, Orlando, “Contratos – Pressupostos e Requisitos do Contrato”, 10.º Edição, Forense, p. 55.


CC. No entanto, GOMES3, declara que embora não exigida para a maioria dos contratos, a forma escrita é a preferida. Não nos olvidemos do Princípio da Liberdade Contratual, previsto no artigo 405.º do CC4. Este “princípio da liberdade contratual, previsto no artigo 405.º do CC, exprime a auto soberania de cada uma das partes na criação e modelação das respetivas relações jurídicas5”. Veja-se que a forma pode ser exigida por lei (forma legal), regulada no artigo 221.º do CC, forma voluntária (artigo 222.º do CC) ou convencionada pelas partes (forma convencional), prevista no artigo 223.º do CC. Como preceitua o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães6, de 30-03-2017, (relatado pelo Dr.º Juiz Desebaragdor: Conceição Bucho), relativamente à liberdade de forma, “podendo tal contrato ser concluído sem observância de forma especial, livremente, nos termos gerais (219.º)”. O legislador entendeu, e muito bem a nosso entender, que a transação de bens imóveis, pelo seu valor, em princípio em tudo mais elevado em relação aos bens móveis, obriga que a lei tenha a necessidade de dotar estes negócios de um nível de certeza e segurança mais exigente. Significando isto que nos casos que lei exija formalização, e esta não vier a ser observada, a declaração negocial é considerada nula à luz do artigo 220.º do CC, seguindo as regras gerais previstas nos artigos 286.º e ss. do CC. Pois, na senda de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA7 “o artigo 220.º supõe a exigência de certa forma como elemento do negócio”. Dos atos sujeitos a escritura pública Podem ser celebrados por escritura pública todos os atos que a lei exija ou que os interessados queiram celebrar por essa via (artigo 36.º n.º 1 do CN). São atos praticados em termos da legislação especial os tipificados no artigo 81.º do CN. Devem especialmente celebrar-se por escritura pública, salvo disposição legal em contrário: os atos mencionado as justificações notariais; os atos que importem revogação, retificação ou alteração de negócios que por força da lei ou por vontade das partes, tenham sido celebrados por escritura pública, sem prejuízo do disposto nos artigos 221.º e 222.º do

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GOMES, Orlando, “Contratos – Pressupostos e Requisitos do Contrato”, 10.º Edição, Forense, p. 55.

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Dispõe que :”1 - Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver; 2 - As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.” 5

Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Proc. nº 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, de 02-10-2014, relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Serra Baptista. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f 0 03fa814/04d5d6edf926ba a080257 d6 50052 da9a?OpenDocument&Highlight=0,319%2F04.1TCSNT-A.L1.S1. 6

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Proc. n.º 1191/16.4T8VCT-A.G1, de 30-03-2017, relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Conceição Bucho. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrg.Nsf/86c25a698e4e7 cb780 2 579ec004d3832/eb535a1 31ae6c2 ad8 02581 2a 0055fc99?OpenDocument. 7

Artigo 220.º do “Código Civil Anotado”, de VARELA, Antunes e LIMA, Pires, Capítulo II - Provas, Volume I, 2.º Edição, 1979, p. 196.


CC; as habilitações de herdeiros e por fim, os atos de constituição de associações e de fundações, bem como os respetivos estatutos, suas alterações e revogações (artigo 80.º n.º2 do CN). A escritura pública é um documento elaborado exclusivamente pelo notário (artigo 4.º n.º 2, alínea b) do CN). Com a alteração introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo D.L n.º 116/2008, de 4 de julho, veio permitir que os negócios anteriormente enquadrados no artigo 80.º do CN, pudessem também ser realizados por documento particular autenticado, para além da escritura pública que se mantém obrigatória para atos enumerados no artigo 80.º n.º 2 do CN. No fundo, a escritura pública dá garantia e segurança aos negócios jurídicos. É um ato ao qual é conferida fé pública8, cuja sua certeza é reconhecida por todos os intervenientes, fazendo prova plena das declarações de vontade prestadas perante o notário. O documento particular, o documento autêntico e o documento particular autenticado A nossa legislação estabelece no seu artigo 363.º do CC duas modalidades de documentos escritos - os autênticos e os particulares - elencando as suas diferenciações. São considerados documentos particulares (artigo 363.º n.º 3 do CC) todos os documentos escritos que são assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (artigo 373.º CC). Os documentos particulares possuem a faculdade de poderem ser elaborados pelas partes e posteriormente apresentado à entidade competente para reconhecimento. Contudo, é aconselhável que seja a entidade com legitimidade e conhecimento jurídico a efetuar a sua redação, uma vez que as partes muitas das vezes são leigas. Nesta abordagem salienta SEABRA LOPES9, que “nos documentos particulares autenticados, o notário apenas garante que o seu conteúdo reflete corretamente a vontade das partes (…) não tem que intervir na apreciação da forma e do conteúdo do documento, isto é, não tem que validar a correção da forma legal escolhida nem a legalidade do conteúdo”, ficando o conteúdo do documento no livre arbítrio das partes com as consequências que daí advierem. O conceito de documento autêntico10 é dado no artigo 363.º n.º 2 do CC que o define como documento exarado, com a formalidade legal, pela autoridade pública ou no limite da sua competência. Nas palavras de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA11 “podem ser exarados por qualquer autoridade ou oficial público, como o notário. (…) exarados com as formalidades

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A fé pública é uma prerrogativa exclusiva do Estado que no uso dela, através dos seus agentes, como por exemplo o notário e o oficial público conferem autenticidade aos documentos – artigo 1.º n.º 1 e 2 do EN. 9

LOPES, J. de Seabra, “Direito dos Registos e do Notariado”, 7.ª edição, Coimbra: Almedina, 2015, p. 552.

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Dispõem sobre eles os artigos 363.º, 369.º e ss. do CC e os artigos 35.º e ss. do CN.

Artigo 363.º do “Código Civil Anotado”, de VARELA, Antunes e LIMA, Pires, Capítulo II- Provas, Volume I, 2.º Edição, 1979, p. 298.


legais (…) quando provenientes de um oficial público, que este seja provido de fé pública, isto é, tenha competência legal para atribuir fé pública ao documento”. Estes são escritos pelo notário, pelo seu punho conforme a vontade das partes, nos respetivos livros ou em instrumentos avulsos. A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade e infidelidade do documento - artigo 372.º do CC. Há falsidade quando a inexistência de veracidade incide precisamente sobre aquilo que se considera plenamente provado12. Os documentos particulares, desde que autenticados têm a mesma força probatória dos documentos autênticos (artigo 377.º do CC). Depois de outorgado do documento particular procede-se a sua autenticação. E daqui surge o denominado termo de documento particular autenticado. Assim, a grande diferença entre ambos os documentos prende-se no facto de no documento particular, ser por norma redigido apenas pelas partes que o apresentam à entidade competente para exarar o respetivo termo de autenticação. Por sua vez, no documento autêntico a responsabilidade de o redigir é da exclusiva responsabilidade do notário, e lavrado nos respetivos livros. Sendo que, desde o D.L n.º 76- A/2006, de 29 de março, não são apenas os notários que procedem à autenticação, os Advogados, Solicitadores ou outras entidades também começaram a ter competência em lavrar o termos de autenticação. Meios de elaboração do documento particular autenticado Num escritório de Solicitador ou Advogado Os advogados e solicitadores atualmente têm competência em matéria de funções notariais. Após várias e sucessivas alterações legislativas13 surge o D.L n.º 116/2008, de 4 de julho que introduziu medidas de simplificação e desmaterialização de atos e processos na área do registo predial e de atos notariais conexos. Este Decreto-Lei veio permitir que os advogados e solicitadores passassem a prestar serviços relacionados com os negócios de bens imóveis executados através de documento particular autenticado. Têm competência para autenticação de documentos particulares autenticados, conferência de fotocópias, reconhecimento de assinaturas, entre outras práticas notariais. Atente-se que atualmente, os contratos podem revestir a forma de escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do artigo 22.º do supracitado decreto-lei. Das formalidades

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Artigo 372.º do “Código Civil Anotado”, de VARELA, Antunes e LIMA, Pires, Capítulo II - Provas, Volume I, 2.º Edição, 1979, p. 305. 13 Relativamente à competência dos advogados e solicitadores tudo começou com os sucessivos D.L n.º 28/2000, de 13 de março; D.L n.º 237/2001, de 30 de agosto; D.L n.º 76-A/2006, de 29 de março; D.L n.º 125/2006 de 29 de junho; D.L n.º 8/2007, de 17 de janeiro; e finalmente o D.L n.º 116/2008 de 4 de julho.


Os documentos particulares autenticados estão sujeitos a certos requisitos legais. Requisitos estes taxativamente enunciados no artigo 46.º do CN que pretendem que o instrumento seja de fácil compreensão, ordenado e que os elementos que o compõem estejam devidamente encadeados e sequenciais com vista a garantir que cada elemento ocupe um lugar próprio de forma a evitar confusão e falta de clareza por parte dos intervenientes. Assim, o documento particular autenticado detém uma estrutura própria que deve e têm de ser respeitada contendo três partes essenciais. FERNANDO FERREIRINHA e ZULMIRA SILVA14, escrevem no seu “Manual de Direito Notarial – Teoria e Prática” que: “a primeira começa pela denominação do ato, mencionando-se depois a data e o lugar da celebração, identificação do cartório, de quem presidiu à sua celebração, dos outorgantes e das pessoas que eles eventualmente representem e a verificação da identidade dos intervenientes. Segue-se a parte atinente ao conteúdo do ato jurídico formalizado pelo documento que é usual, quando se descrevem prédios, e o instrumento respeita a factos sujeitos a registo, fazer as menções relativas à matriz e registo. O instrumento conclui-se depois pela inserção das demais formalidades e menções exigidas, conforme os casos, designadamente as alusivas ao arquivamento ou exibição de documentos (…) terminando com a leitura e explicação do instrumento, as assinaturas devidas (…)”. A denominação do ato A lei não faz qualquer referência a esta exigência. Com esta menção pretende-se necessariamente, identificar o ato lavrado em obediência ao princípio da concisão, sendo este iniciado com um título ou cabeçalho, contendo o nomen juris do ato documentado. O título deve traduzir o mais fielmente possível o conteúdo do ato, não induzindo em erro sobre a natureza jurídica. No entanto, o conteúdo do ato é que define o negócio jurídico.

A data, lugar e hora da realização do ato O documento e o termo de autenticação devem conter de acordo com o artigo 46.º n.º 1, alínea a) do CN a “designação do dia, mês, ano e lugar15 em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou”. A indicação da hora, não é um requisito essencial neste tipo de contrato, mas sim, nos instrumentos de atas de reunião de órgãos sociais. Não obstante, a não indicação da data e lugar quer no

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FERREIRINHA, Fernando Neto e Zulmira Neto Lino da Silva, “Manual de Direito Notarial - Teoria e Prática”, Edição dos Autores, 1.º edição, 2003, p. 42. 15 Quando se refere ao lugar, não basta indicar a localidade ou a cidade tem que necessariamente se indicar a rua, o andar e o número de porta.


documento, quer no termo de autenticação é causa de nulidade do ato notarial nos termos do artigo 70.º n.º 1, alínea a) do CN16. Entidade que preside o ato e identificação do local da realização Quem preside o ato? O n.º 1 do artigo 38.º do D.L n.º 76-A/2006 de 29 de março, refere que “os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial” (sublinhado nosso). Assim, no termo de autenticação, deve identificar-se o funcionário que intervém, mencionando-se o nome, a menção da respetiva qualidade, número da cédula profissional e a designação do cartório (artigo 46.º n.º 1, alínea b) do CN). Na eventualidade de surgir algum impedimento ou na falta do notário é possível intervir um substituto legal, referindo o motivo da sua substituição – artigo 46.º n.º 2 do mesmo diploma. A identificação dos outorgantes Os intervenientes do documento devem ser identificados pela seguinte ordem: o nome completo, estado civil, naturalidade e residência habitual (artigo 46.º n.º 1, alínea c) do CN). No caso do contraente17 ser casado, deve ser indicado o nome completo do cônjuge e o regime matrimonial de bens – artigo 47.º n.º 1, alínea a) do CN. O número de identificação fiscal deve ser indicado no próprio instrumento, quer para as pessoas singulares como para as pessoas coletivas e entidades equiparadas à luz do D.L n.º 463/79 de 30 de novembro. As verificações das identidades Na verificação da identidade dos outorgantes, deve ter-se em atenção o artigo 48.º do CN que enuncia como deve ser feita tal verificação, isto é, pelo conhecimento pessoal (da entidade autenticadora); exibição do bilhete identidade ou Cartão de Cidadão18, carta de condução; exibição de passaporte; ou, por declaração de dois abonadores cuja identidade será verificada por uma das modalidades supra referidas.

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Esta nulidade, porém, considera-se sanda mediante averbamento oficioso contendo os elementos em falta, se, pelo texto do instrumento ou pelos elementos existentes no escritório, for possível determinar a data ou lugar da celebração – artigo 70.º n.º 2, alínea a) e artigo 132.º n. º 7, ambos do CN. 17 Pessoa que celebra o contrato. 18

A Lei n.º 7/2007 de 5 de fevereiro, cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização.


Na verificação da identidade pelo conhecimento pessoal, na opinião de FERNANDO FERREIRINHA19, e com razão, “a utilização deste meio não deve ser facilitada”. Porque, a utilização de um documento de identificação acaba por ser uma mais-valia para assegurar a validade do negócio jurídico, uma vez que permite confirmar a identidade do outorgante, sendo menos provável a falsificação da identidade. Aquando da verificação da identificação não deve ser aceite qualquer tipo de documento ou documento cuja validade já tenha expirado. Os documentos instrutórios, arquivamento e exibição O artigo 46.º n.º 1 nas alíneas f) e g) do CN tipifica que é obrigatório a menção de todos os documentos que fiquem arquivados e os exibidos20. O artigo 27.º do CN diz que “ficam arquivados nos cartórios os documentos apresentados para integrar ou instruir os atos lavrados”. Nas palavras de FERNANDO FERREIRINHA21 “os documentos que integram em dado ato notarial têm de constar do arquivo do escritório de onde o ato for celebrado, pois, como a palavra diz, fazem parte dele, formam com ele uma unidade”. Para segurança jurídica e ordem pública a lei estabelece que precedentemente à celebração do contrato e respetivo termo é imprescindível reunir os documentos que permitam a elaboração do contrato e termo. Na eventualidade de surgir alguma dúvida sobre se um determinado documento deve ser arquivado ou exibido, para uma maior segurança é preferível arquivar o documento até porque Quod abundat non nocet22. A menção dos documentos que fiquem arquivados faz-se acompanhada da indicação da natureza do documento. No caso da liquidação dos impostos devidos, a indicação faz-se identificando o imposto em causa, o valor e data do respetivo pagamento ou se se tratar de alguma isenção, fazer expressa referência a tal facto. A menção dos documentos exibidos faz-se pela indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente ou no caso de certidão permanente pelo respetivo código de acesso23. Os documentos, em regra, necessários (mais frequentes) são: A Caderneta Predial24 que comprova a situação matricial do prédio e onde consta a identificação, localização, confrontações, descrições, áreas, os dados da avaliação e

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FERREIRINHA, Fernando Neto e SILVA, Zulmira Lino, “Manual de Direito Notarial - Teoria e Prática”, Edição dos Autores, 1.º edição, 2003, p. 48. 20

Obrigatoriedade de arquivar documentos originais do documento particular, bem como dos documentos que o instruam e que não contem em arquivo público – artigo 24.º n.º 6 do D.L n.º 116/2008, de 4 de julho e artigo 4.º n.º 1 da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. 21

FERREIRINHA, Fernando Neto, “A Função Notarial dos Advogados e dos Solicitadores”, Coimbra: Almedina, 2018, p.129. 22 23

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Expressão do latim que significa: o que não abunda não prejudica. Confere o artigo 46.º n.º 1 nas alíneas f) e g) do CN. Vide artigo 93.º do CIMI.


informações complementares, nomeadamente sobre isenções vigentes e os titulares a favor de quem o prédio se encontra inscrito. A caderneta predial, pode ser obtida pelo proprietário junto do Serviço das Finanças ou pode ser consultada e obtida via internet, sem custos, através do endereço www.portaldasfinancas.gov.pt. A Certidão Permanente25 é um documento onde se verifica as descrições e as inscrições em vigor tais como a identificação do prédio, nomeadamente se é rústico, urbano ou misto, a área, a matriz, a composição e confrontações, o proprietário atual e o sujeito passivo, bem como, a causa para a sua aquisição para além, da inscrição de propriedade horizontal, ónus e encargos, entre outros. A certidão permanente pode ser emitida em suporte papel em qualquer Conservatória do Registo Predial, ou pode ser consultada via internet através do site www.predialonline.mj.pt, sendo necessário um código de acesso que pode ser pedido na própria página da internet ou em qualquer conservatória. Pode dar-se o caso de o prédio não se encontrar descrito na Conservatória do Registo Predial, e nesse sentido, declara VIRGÍLIO MACHADO26 quanto aos prédios não descritos, a necessidade de juntar uma declaração complementar a referir a não descrição do prédio, sendo certo que no preenchimento do impresso deve indicar-se o nome, estado civil, residência do requisitante, identificação dos possuidores e antepossuidores. O solicitador requer na Conservatória do Registo Predial a emissão de uma certidão negativa, com vista a cumprir o princípio do trato sucessivo nos termos do artigo 34.º do CRP, é necessário comprovar a forma como os intervenientes adquiriram o referido prédio, porquanto o referido princípio exige que no registo estejam verificadas todas as vicissitudes da vida de um direito real27, isto é, supõe-se que o registo contenha um encadeamento lógico de inscrições. Ou ainda, a Habilitação de Herdeiros28, apresentada aquando do falecimento de um ser humano, devem os seus herdeiros realizar todo um conjunto de procedimentos no sentido de repartir o património que outrora pertencia ao de cujus29, formalizada, esta, através de escritura pública e realizada num balcão de heranças ou no cartório notarial, especificando quais são os herdeiros da pessoa falecida (de acordo com a ordem estabelecida no artigo 2133.º do CC).

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A Certidão Permanente do Registo Predial, regulada pela Portaria n.º 1513/2008, de 23 de dezembro, consequentemente alterada pelas Portarias n.º 426/2010, de 29 de junho, 286/2012, de 20 de setembro e 358/2015, de 14 de outubro. 26

MACAHADO, Virgílio Félix, “Manual de Direito Notarial”, 2009, p. 33.

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LOPES, J. Seabra, “Direito dos Registos e Notariado”, quer isto dizer que “o atual titular do direito o adquiriu do titular imediatamente anteriormente inscrito no registo e que o próximo titular só o poderá adquirir do atual inscrito, trata-se no fundo de uma sequência de direitos; saber o contar da história sucessiva”, p. 359. 28

Enuncia, BUCO, Maria Isabel Rita, “Notariado”, que a “habilitação notarial é apenas um dos meios rápidos e cómodos que a lei dá aos interessados de provarem a sua qualidade de herdeiros”, p. 235. 29

A designação de cujus é empregue com a referência ao autor da sucessão.


A leitura e explicação do conteúdo do contrato Redigido o documento procede-se à leitura. A leitura do ato deve ser feita em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes, a menos que estes dispensem por conhecerem o seu conteúdo. A leitura abrange todo o documento (documento, anexo e termo). Segundo ROCHA30 esta consiste no fundo, “na exposição sucinta do seu conteúdo, explanação das condições, e elucidação das consequências legais do acto”. O artigo 46.º n.º 1, alínea l) do CN, exige que conste no termo a menção de ter sido feita ou dispensada a leitura do instrumento lavrado. Esta última situação acontece quando os intervenientes declaram que já leram e conhecem perfeitamente o conteúdo do contrato artigo 50.º n.º 2 e 64.º n.º 4 do CN. Porém, após a leitura deverá a entidade autenticadora proceder “à explicação do conteúdo dos instrumentos e das suas consequências (…), antes da assinatura, em forma resumida, mas de modo que os outorgantes fiquem a conhecer, com precisão, o significado e os efeitos do ato” - ex vi artigo 50.º n.º 3 do CN. É precisamente através desta intervenção que se assegura a leitura efetiva, que garante que as partes conhecem o conteúdo do ato lido e assegura a veracidade dos factos contidos no documento. As assinaturas As assinaturas são feitas no final do contrato, pela ordem estipulada no documento, assinando em primeiro todos os intervenientes que saibam ou que possam assinar, sendo a assinatura do profissional que presidiu o ato, a última. (artigo 46.º n.º 1, alínea n) do CN). O artigo 52.º do CN ressalva que em caso de haver documento complementares, todas as páginas, com exceção da última, que será assinada31, devem ser rubricados pelos outorgantes. Julgo pertinente citar um pequeno excerto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-03-2019, (relator: António Joaquim Piçarra)32, onde salienta que a assinatura é elemento integrante e essencial do documento particular e a falta dos requisitos passíveis de a integrarem, consubstanciadas e materializadas nas declarações que devem constar do termo escrito (…). (sublinhado nosso) Nesta temática das assinaturas ainda temos o instituto da assinatura a rogo que é uma realidade efetivamente presente no nosso país. A assinatura a rogo, é utilizada quando a pessoa que não pode ou não sabe assinar, terá de se socorrer de outra pessoa (terceiro)

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ROCHA, José Carlos, “Código do Notariado – Anotado e Comentado”, Almedina, 2004, p. 102. A falta de assinatura de qualquer interveniente ou do próprio solicitador, determina aa nulidade do ato por vício de forma, tendo em conta o disposto no artigo 70. n.º 1, alíneas d), e) e f) do CN. Esta nulidade é sanável nos termos do artigo 70.º n.º 2, alíneas c) e d) do artigo 73.º, alíneas d) e e) do CN. 31

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 2639/13.5TBVCT.G1.S2, de 21-03-2019, Relator: António Joaquim Piçarra, disponível in: http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ddfa9386 8fd 052da802583 c5003cee57?OpenDocument.


que a seu rogo, assine o contrato ou qualquer outro documento. A assinatura a rogo é um processo jurídico que vem permitir a substituição da assinatura, aos que não sabem ou não podem assinar, com vista a assumir a obrigação efetiva num título ou documento particular, isto é, a declaração de vontade por ele exarada logo, deve ser indicado o motivo pelo qual não assina. No contrato e no termo de autenticação deve estar devidamente identificado o rogante e o rogado, que deve ser confirmado perante notário, advogado ou solicitador conforme dispõe o artigo 154.º do CN. Todavia, os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital do indicador da mão direita (artigo 51.º n.º 1 do CC). Assim, assinatura a rogo deve cumprir certos formalismos para que a mesma seja válida e produza os efeitos pretendidos no contrato. Assim, no documento particular autenticado deve constar, o nome completo, a residência do rogado e a menção de que o rogante confirmou o rogo no ato de autenticação (requisito essencial) - artigo 152.º do CN e artigo 373.º n.º 3 e 4 do CC. Deve também estar explícito no documento que ao rogante foi lido e explicado o conteúdo do documento a autenticar. O cumprimento das obrigações fiscais Em termos de obrigações fiscais, o documento particular não pode ser autenticado enquanto, não se encontrar pago ou assegurado o Imposto Municipal sobre a Transmissões Onerosas de Imóveis; e, o Imposto de Selo liquidado. Devendo constar no termo de autenticação o valor dos impostos e a data da liquidação, ou a disposição legal que prevê a sua isenção (n.º 1 e n.º 2 do artigo 25.º do D.L n.º 116/2008, de 4 de julho). As entidades com competência para a autenticação de documentos particulares devem assegurar, o Imposto de Selo, com exceção dos previstos na verba 1.2 da tabela geral anexa a este Código, surja liquidado nos prazos, termos e condições definidas no artigo 22.º do CIMT. O Termo de Autenticação33 No que concerne ao termo de autenticação (artigos 150.º e ss. do CN), a autenticação consiste na confirmação do conteúdo do documento, efetuado pelas partes que o outorgam, perante a entidade competente, declarando expressamente que leram o documento, o termo e os anexos, que estão perfeitamente inteirados do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade.

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Elaborado exclusivamente por advogado, solicitador ou notário; a “autenticidade, só pode ser conferida a um documento por autoridade pública ou oficial público, dotado de fé pública. Porque a fé pública é uma prerrogativa exclusiva do Estado que, no uso dela, através dos seus agentes, confere garantias de verdade e autenticidade aos documentos (e atos) em que intervém” - de acordo com a Ordem dos Notários – Portugal, disponível in http://www .no tarios.pt/ OrdemNotarios/PT/PrecisoNotario/TermosAutenticacao/.


Para iniciar o termo de autenticação deve começar-se por identificar o lugar de onde é lavrado e a data e hora em que o mesmo se realizou. – artigo 46.º do CN. Quando o documento é apresentado ao advogado ou solicitador, o termo de autenticação34, além dos formalismos dispostos nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos: “a) A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade; b) A ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que neste não estejam devidamente ressalvados”. O termo de autenticação pode ser lavrado em folha anexa ou no próprio documento – artigo 36.º n.º 4 do CN. É dever da entidade autenticadora explicar minuciosamente todo o conteúdo do instrumento notarial tirando sempre qualquer dúvida que surja por parte dos intervenientes. O termo de autenticação deve ser elaborado de forma sintética, com termos claros e precisos de forma a não suscitar quaisquer dúvidas de interpretação (artigo 42º do CN). O termo termina com a assinatura dos intervenientes que sabem e que podem assinar e no final pela entidade que autentica (advogado, solicitador ou notário). Por fim aquando da elaboração e conclusão do termo de autenticação, para ter validade, está dependente de depósito eletrónico, bem como, de todos os documentos que o instruam – artigo 24.º do D.L n.º 116/2008, de 4 de julho, desenvolvido seguidamente. O depósito eletrónico Como já referido, com a entrada m vigor do D.L n.º 116/2008, de 4 de julho, tornaram-se facultativas, a partir de 1 de janeiro de 2009, as escrituras públicas. Podendo estes negócios serem praticados através de documento particular, mas autenticados por solicitador, advogado, ou entre outras entidades. O Decreto-Lei supracitado, a par do registo predial obrigatório, criou um elemento de segurança adicional, imposto à entidades autenticadoras: o depósito eletrónico. Neste sentido, a Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro regula os requisitos e as condições de utilização da plataforma eletrónica para o depósito de documentos particulares autenticados e dos documentos que o instruam, como prevê o n.º 1 do artigo 4.º da referida Portaria. Elaborado o respetivo instrumento, os outorgantes e o solicitador ou advogado assinam, rubricando todas as páginas. Dessarte, compete à entidade que procedeu à autenticação

34

O termo de autenticação implica várias obrigações - disciplina o artigo 23.º do D.L n.º 116/2008, de 4 de Julho.


do documento particular proceder ao depósito eletrónico35 usando para efeito o site www.predialonline.mj.pt36. O depósito tem de ser realizado no mesmo dia da autenticação37 do documento particular autenticado, salvo se houver alguma avaria na plataforma eletrónica – à luz do disposto no artigo 7.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. É que segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23-01-201, (relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Miguel Baldaia de Morais)38 este dispõe que: “a validade dessa autenticação implica que seja efetuado o registo informático do respetivo termo dentro do prazo estabelecido no artigo 4º da Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de junho, isto é, que o mesmo seja realizado no momento da prática do ato ou nas 48 horas seguintes se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema nessa oportunidade temporal”. (sublinhados nossos) Na eventualidade de se verificar alguma anomalia que impeça que o documento seja depositado no mesmo dia da elaboração39, deve proceder-se em conformidade com o plasmado no artigo 7.º n.º 2 da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, “se em virtude de dificuldades de carácter técnico respeitantes ao funcionamento da plataforma eletrónica referida no artigo 5.º não for possível realizar o depósito, este facto deve ser expressamente mencionado em documento (…), indicando o motivo da impossibilidade, a data e a hora do facto e a identificação da entidade autenticadora, devendo o depósito ser efetuado nas quarenta e oito horas seguintes”. A inobservância do referido condicionalismo temporal afeta a validade do termo de autenticação, o qual implica que o documento particular não chegue sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado.

35

Consta do artigo 6.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro.

36

“O valor probatório dos documentos eletrónicos criados será o mesmo dos originais sujeitos a digitalização, contando que o envio seja feito por entidade com competência para a conferência dos documentos com os respetivos originais em formato de papel (artigo 18.º n.º 3)” – Parecer proferido pelo Processos C.P 13/2009 S.J.C-C.T e C.P 31/2009 S.J.CC.T- Reforma do Registo Predial. 37

Para maiores desenvolvimentos, vide Parecer proferido no Proc. C.P. 40/2010 SJC-CT - Prazo do depósito eletrónico de documento particular autenticado, disponível in: https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/ir n/doutrina/pareceres /predial/2 01 0/p-c-p-40-2010-sjc-ct/downloadFile/file/ctcp040-2010.pdf?nocache=1318239788.58. 38

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 4871/14.5T8LOU-A.P1, de 23-01-2017, relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Miguel Baldaia de Morais. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jtr p.nsf/56 a6e712 16 57 f9 1e80257cda00381fdf/df64d3c 6f1f bc109802 580b b004b3 0c3?OpenDocument&Hi ghlight=0,4871% 2F14.5 T8 LOU. 39 No eventualidade de realizar os instrumentos ao sábado, domingo e feridos, o depósito eletrónico deverá ser feito nesse dia. 39 Na eventualidade de realizar os instrumentos ao sábado, domingo e feridos, o depósito eletrónico deverá ser feito nesse dia.


No formulário do depósito40 devem ser identificados os sujeitos, NIF, data da autenticação, local e devem ser inseridos, em formato digital, todos os documentos instrutórios e o documento particular autenticado - artigo 8.º n.º 1 da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. Após a realização do depósito o sistema emite para o email da entidade executante o código de acesso (chave) ao documento, com validade de seis meses, que permite que seja acedido ou consultado, durante esse período de forma gratuita. A trave mestra deste procedimento é que o solicitador ao proceder ao depósito eletrónico está a dar validade ao termo de autenticação que elaborou. Da obrigatoriedade do registo Primeiramente, poder-se-á definir direito dos registos como sendo um conjunto de normas que regulam os processos e os efeitos decorrentes de publicidade dos direitos, tendo em vista a segurança jurídica imobiliária – artigo 1.º do CRP. Todo e qualquer ato, antes de ser efetuado o registo a que está sujeito, vai sofrer uma fiscalização prévia quanto à sua conformidade. Segundo a norma vertida no artigo 68.º do CRP prevê-se que o conservador análise se o pedido é viável, isto é, verifica a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos neles contidos. Tal obrigatoriedade foi levada a cabo pela alteração legislativa, do D.L n.º 116/2008, de 4 de julho, que consequentemente aditou os artigos 8.º- A a 8.º- D da CRP e tornou o registo predial obrigatório41. Em termos de jurisprudência é pertinente citar o relatado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça42, que enuncia: “o registo predial tem como função prioritária garantir, através da sua publicidade, a segurança do comércio jurídico imobiliário”. O artigo 8.º- A do CRP, veio determinar a obrigatoriedade direta dos registos. Por força do artigo 8.º- B n.º 1 do CRP e com ressalva do disposto no n.º 3, “devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos, as entidades que celebram por escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos ativos do facto sujeito a registo”. Cabe ao artigo 8.º- C do CRP fixar os prazos para promover o registo, obrigando as entidades, designadas por sua vez no artigo 8.º- B do mesmo diploma, a proceder ao 40

Vide artigo 9.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. “O regime da obrigatoriedade do registo previsto no artigo 8.º- A, aditado pelo artigo 2.º deste diploma ao Código do Registo Predial, apenas se aplica aos factos, ações e outros atos sujeitos a registo predial obrigatório que ocorram após a entrada em vigor deste diploma” – 1 de janeiro de 2009 - como dispõe o artigo 33º do D.L n.º 116/2008 de 4 de julho. 42 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 22616/16.3T8LSB-A.L1.S2, de 11-04-2019, relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Tomé Gomes. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/9 54f0ce6ad9dd8 b980256b 5f003f a8 14/5 3975cfc68fd995b802 5 83d9004 f46 2b?OpenDocument&Highlight=0,22616%2F16.3T8LSB-A. 41

42

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 22616/16.3T8LSB-A.L1.S2, de 11-04-2019, relatado pelo Dr.º Juiz Desembargador: Tomé Gomes. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/9 54f0ce6ad9dd8 b980256b 5f003f a8 14/5 3975cfc68fd995b802 5 83d9004 f46 2b?OpenDocument&Highlight=0,22616%2F16.3T8LSB-A.


registo dos factos no prazo de 2 meses a contar da data da titularização do documento particular autenticado, ou da escritura pública. O processo de registo tem início com o pedido de registo, pelo sujeito com legitimidade, mediante entrega do modelo 11, devidamente preenchido e instruído com os documentos que vão servir de base ao registo. O pedido pode ser realizado de uma de três formas: presencial, por via postal ou por via imediata, devendo conter a identificação do apresentante, indicação dos factos e dos prédios – ex vi artigo 42.º do CRP e artigos 2.º e 3.º da Portaria n.º 621/2008, de 18 de julho. O pedido de registo pode ser apresentado em qualquer instituição de serviços do registo predial, independentemente da localização geográficas do prédio43. Pressupõe-se que aquando do pedido do registo, já se tenha cumprido as obrigações fiscais (artigo 72.º do CRP.) O pedido de registo pode ainda ser recusado pelo conservador de acordo com o disposto no artigo 69.º do CRP. O registo protege os terceiros de boa-fé e, portanto, a inexistência de registo faz com que qualquer terceiro possa invocar, relativamente a um qualquer facto jurídico, a existência de um direito que na realidade não existe, podendo estar a lesar os direitos do titular legítimo. No caso do incumprimento da obrigação de registar nos prazos supra indicados, a entidade em questão, ou seja, a que está obrigada a promover o registo, - sujeitar-se-á ao pagamento de uma coima que se traduz no pagamento do emolumento em dobro - artigos 8.º- D e 151.º n.º 2 do CRP. Em suma, é obrigatório o depósito e o registo para validade do ato, no site www.predialonline.mj.pt acompanhado dos documentos que comprovem os factos do registo, conferindo, assim uma maior responsabilidade e rigor à entidade autenticadora tudo de acordo com o artigo 24.º do D.L n.º116/2008 de 4 de julho e artigo 8.º da Portaria n.º 1535/2008 de 30 de dezembro. CONCLUSÃO No presente estudo, abordei o documento particular autenticado incidindo na análise dos requisitos e formalidades necessários e obrigatórios a cumprir pelas partes e solicitadores. Devo salientar, mais uma vez, o D.L n.º 116/2008, de 4 de julho, uma vez que o documento particular autenticado passou a ser um meio alternativo à escritura pública realizada pelo notário. Atualmente as partes são livres de optar por realizar um determinado negócio jurídico através de escritura pública ou por documento particular autenticado, sem esquecer, no entanto, a exceção do artigo 80.º do CN. Contudo, sempre se dirá que há lugar para um solicitador conhecedor das leis e que pretenda exercer a sua profissão cumprindo os deveres e obrigações, desemprenhando as 43

“Com a eliminação da competência territorial para a prática de atos de registo predial concretizada pelo DecretoLei n.º 116/2008, de 4 de julho, os atos de registo predial passaram a poder ser efetuados e os respetivos meios de prova obtidos em qualquer serviço de registo predial, independentemente da sua localização geográfica”. – IRN, Registo Predial, disponível in https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/a_registral/registo-predial/docs-predial/co m pet enci aterritorial/.


suas competências com brio, porque a ignorância ou má interpretação da lei não justifica do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas (artigo 6.º do CC). BIBLIOGRAFIA Obras: ALMEIDA, Carlos Ferreira, Contrato I- Conceito, Fontes, Formação, 3º edição, Coimbra: Almedina, 2005. BUCO, Maria Isabel Rita, Notariado, 3.º edição, Coimbra Editora, 1995. FERREIRINHA, Fernando Neto, A Função Notarial dos Advogados e dos Solicitadores, Almedina, 2018. FERREIRINHA, Fernando Neto e SILVA, Zulmira Neto Lino, Manual de Direito Notarial Teoria e Prática, 1º edição, Edição de Autores, 2003. GOMES, Orlando, Contratos – Pressupostos e Requisitos do Contrato, 10.º Edição, Forense. LIMA, Fernando Andrade Pires de, e VARELA, João de Matos Antunes, Código Civil Anotado, Volume I (artigos 1.º a 761.º), 2.º Edição, Coimbra Editora, 1979. LOPES, J. de Seabra, Direito dos Registos e do Notariado, 7.ª edição, Coimbra: Almedina, 2015.

MACHADO, Virgílio Félix, Manual de Direito Notarial, 2009. PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, Volume I, 5.º edição, Coimbra: Almedina, 2009. ROCHA, José Carlos de Abreu e Castro Gouveia; Código do Notariado: Anotado e Comentado. 2.ª edição, Coimbra: Almedina, 2004. SOUSA, Rabindranath Capelo de, e PITÃO, José António de França, Código Civil e Legislação Complementar, Volume I (artigos 1.º a 1250.º), Coimbra: Livraria Almedina, 1978. Jurisprudência: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. nº 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, de 02-10-2014, relatado pelo Dr.º

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relatado

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Dr.º

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particular

autenticado,

in:

https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/ir

n/doutrina/pareceres /predial/2 01 0/p-c-p-40-2010-sjcct/downloadFile/file/ctcp040-2010.pdf?nocach e=13182 39788 .58. Informação retirada do IRN, Área Notarial, disponível in: https://www.irn.mj.pt /IRN/sections/irn/areanotarial/docs-comuns/informacao-sobre-o/.



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