Ed. 158 - Revista Caros Amigos

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ano XIV número 158 maio 2010 R$ 9,90

EM QUADRINHOS Salar do Uyuni na Bolívia

FIES sufoca estudantes

Falta universidade pública para os pobres

Sacanagens da Vale

contra os trabalhadores e o meio ambiente

DROGAS Fracasso da penalização exige alternativas

Amianto Assassino no banco dos réus

ENTREVISTA

Ermínia Maricato

“As nossas cidades estão inviáveis” ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO

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Estamos vivendo um novo Brasil. Feito por você. Respeitado pelo mundo. Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais. US$ 239 milhões acumulados em reservas internacionais no último ano.

24,1 milhões de brasileiros superaram a pobreza, entre 2003 e 2008. Fonte: Pesquisa Nacional

Aumento de 385% frente a 2003.

por Amostra de Domicílios (PNAD).

Fonte: Banco Central.

A classe C já corresponde a 53,6% da população brasileira e a classe AB aumentou de 10,7% para 15,6%, de 2003 a 2009. Fonte: FGV.

R$ 69,92 bilhões investidos em habitação. Aumento de 600% em relação a 2003. Fonte: Ministério das Cidades.

596 mil bolsas do Prouni concedidas em 1.253 municípios, de 2005 a 2009. Posição: março de 2010.

12,1 milhões de empregos formais gerados nos últimos 7 anos. Fonte: Rais e Caged.

Desmatamento 74,4% menor do que em 2004. O menor índice já registrado desde 1998, quando foi iniciada a apuração da taxa anual. Fonte: INPE.

O percentual da população pobre caiu de 42,7% para 28,8%. Fonte: PNAD.

Queda de 61,6% da desnutrição infantil, entre 2003 e 2008. Fonte: Ministério da Saúde.

Mais de 3 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 150% em comparação a 2003.

www.confiancanobrasil.gov.br

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CAROS AMIGOS ANO XIV 158 maio 2010

Foto de capa Jesus Carlos

EDITORA CASA AMARELA

sumário

04 Guto Lacaz. 06 Caros Leitores 07 José Arbex Jr. destaca a advertência dos Estados Unidos sobre Israel. 08 Joel Rufino dos Santos reflete sobre Chico Xavier e o desejo de descobrir. Guilherme Scalzilli considera erro submeter a inelegibilidade ao Judiciário.

­ evistas • Livros • Serviços Editoriais R fundador: Sérgio de Souza (1934-2008) Diretor Geral: Wagner Nabuco de Araújo

Os segredos do poder destrutivo A grande imprensa hegemônica, que costuma dedicar atenção e espaço para quase tudo o que seja do interesse empresarial, praticamente ignorou o encontro que reuniu, no Rio de Janeiro, em abril, representantes de movimentos sociais, ambientalistas e trabalhadores da VALE (ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce), para debater os danos causados pela empresa em vários países do mundo, especialmente no Brasil. A jornalista Tatiana Merlino, da Caros Amigos, acompanhou todo o encontro. Nesta edição, ela relata as sacanagens que essa transnacional (brasileira!) está fazendo contra o meio ambiente e os trabalhadores. Numa entrevista bombástica, a arquiteta e professora Ermínia Maricato, que já foi secretária de Habitação de São Paulo e secretária-executiva do Ministério das Cidades, analisa os principais problemas urbanos. Ela critica o atual modelo de expansão das cidades, e deixa claro que o déficit habitacional só será resolvido se o poder público confiscar terras para moradias populares. Para ela, a especulação imobiliária, o poder das construtoras e o aumento dos automóveis inviabilizam a vida nos grandes centros urbanos. Programado para ser um fundo de apoio financeiro para universitários de escolas privadas, o FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) se tornou um grande pesadelo para seus usuários. A jornalista Lúcia Rodrigues mostra como o “financiamento” de um curso, no valor de R$9 mil, acabou se transformando numa dívida de R$59 mil. De um lado, a inadimplência sufoca milhares de recém-formados, e, de outro, a maioria dos jovens pobres continua excluída do ensino superior. A presente edição inclui também excelentes matérias sobre o fracasso da penalização dos usuários de drogas, o maior processo trabalhista contra o amianto da Eternit na Itália, os projetos dos cineastas populares Júlio Pecly e Paulo Silva, e uma novidade em quadrinhos: a reportagem sobre o Salar do Uyuni, na Bolívia. E, como sempre, com os artigos, análises e histórias da equipe de colunistas da revista. Boa leitura.

09 10

Ferréz debate alguns conceitos adotados no tratamento de ricos e pobres. Marcos Bagno critica o academicismo e indaga pra que legislar sobre o hífen. Mc Leonardo denuncia o ataque dos especuladores aos favelados do Rio.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: a insônia faz parte da música brasileira. 12 Entrevista com Ermínia Maricato: problemas urbanos e déficit habitacional. 17 João Pedro Stedile desmistifica o agronegócio glorificado pela mídia. Ana Miranda lembra a coleção de cartas da biblioteca Guita e José Mindlin.

18

Glauco Mattoso Porca Miséria: critica o estilo dos entrevistadores da TV. Eduardo Matarazzo Suplicy fala sobre encontro de pesquisadores de renda.

19

Frei Betto analisa a questão da liberdade no regime socialista de Cuba.

Fidel Castro fala sobre a juventude e a universalização do conhecimento.

20 Lúcia Rodrigues relata o drama dos estudantes sufocados pelo FIES. 23 Gilberto Felisberto Vasconcellos lembra Oswald de Andrade e a ecologia. 24 Ensaio Fotográfico de Alejandra Daglia: a vida dos imigrantes na Itália. 26 Tatiana Merlino relata as sacanagens da mineradora Vale em vários países. 31 Quadrinhos: uma reportagem inédita sobre o Salar do Uyuni na Bolívia. 34 Julio Delmanto Drogas: o fracasso da penalização exige alternativas. 37 Gershon Knispel fala sobre a violência crescente do Estado de Israel. 38 Anelise Sanchez relata o maior processo contra o amianto da Eternit na Europa. 40 Marcelo Salles fala sobre o cinema popular de Júlio Pecly e Paulo Silva. 42 Emir Sader considera o marxismo como o melhor método de análise da realidade. Cesar Cardoso especula o que aconteceria com a eleição no final da copa.

43 Renato Pompeu Idéias de Botequim: Manoel de Barros, Gilberto Freyre e outros. 44 Ari Zenha de Oliveira critica o modelo de destruição dos recursos naturais. 45 Claudius.

EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERes: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves revisora: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon Sítio: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau Assessoria de imprensa: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242) diretor geral: wagner nabuco de araújo

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 158, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf Redação e administração: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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ALTERCOM

Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação

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Caros leitores

A revista Caros Amigos recebeu cumprimentos pela passagem de seu aniversário dos seguintes amigos e amigas: • Carlos Neder, deputado estadual: “Parabéns pelos 13 anos e pelos outros que certamente virão”. • Paulo Maldos, Assessor Especial do Gabinete Pessoal do Presidente da República: “Escrevo para enviar meus parabéns aos companheir@s da Caros Amigos por tantas conquistas ao longo destes anos, na defesa dos direitos do nosso povo e na construção de um país digno e livre”. • Carlito Merss, prefeito de Joinville (SC): “Parabéns a toda a equipe da revista Caros Amigos!” • Ivan Valente, deputado federal: “Caros Amigos presta uma contribuição inestimável à democracia, fomentando a resistência e o fortalecimento do pensamento crítico brasileiro. Parabéns a todos e todas que com seus esforços, profissionalismo e dedicação contribuem para a sua realização”. • Aída Monteiro, secretária-executiva de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco: “Parabenizamos a todos os que fazem a Revista Caros Amigos pelos 13 anos de resistência e de trabalho de qualidade social relevante”. • Pedro Wilson, deputado federal: “Meus cumprimentos por 13 anos de vida da Revista Caros Amigos, publicação tão importante para o Brasil da democracia, cidadania, direitos humanos e solidariedade entre todos os povos amantes da justiça social e da paz”. • Telma Gimenes, Universidade Estadual de Londrina: “Parabéns a vocês todos que fazem da Caros Amigos um oásis de reflexão sobre o Brasil”. • Carlos Lichtsztejn, Instituto Sedes Sapientiae: “Parabéns a todos e continuem firmes nesse projeto”. • Otávio Augusto de Araújo Tavares, Rio Grande do Norte: “Desejamos sucesso”. • M. Elisa Campos, assessora pedagógica de Contagem (MG). • Renato Simões, secretário nacional de movimentos sociais do PT. • Nilmário Miranda, presidente da Fundação Per-

seu Abramo: “Parabéns pelos 13 anos da revista Caros Amigos de efetiva contribuição à democratização do país”. • Wandi Doratiotto, apresentador cultural: “Desejo muito sucesso pra toda a equipe”.

Caros Amigos Quero parabenizar a revista Caros Amigos, na qual podemos ter confiança devido à sua transparência e pela competência e clareza nos assunto discutidos. Agradeço também os textos que me enviam pelo e-mail. Leio todos, muito obrigada e gostaria que continuassem mandando. Katia Guazeli Leio e compro a revista há pouco tempo. O conteúdo é um dos mais interessantes e curiosos que já li. Sou estudante de jornalismo do 2° ano, e o quanto a revista contribui para o meu conhecimento e aprendizado intelectual é sem tamanho. Bruna Sales de Oliveira Jornalistas e articulistas da revista Caros Amigos: gostei da edição de março (156). Muito oportuno o artigo de Neco Tabosa sobre a escola flutuante do Recife. O texto do lixo radioativo também foi esclarecedor e assustador para quem mora em São Paulo, como eu. A entrevista do ministro Sérgio Rezende também é interessante, bem como a do português Boaventura. A revista tem assuntos variados que nos deixam curiosos. Parabéns. Maria Conceição Arruda, São Paulo (SP)

Heloísa Helena Sobre o comentário do Sr. Edson Amaro de Souza, São Gonçalo (RJ) na Seção Caros Leitores da revista Caros Amigos - Edição 153, de dezembro de 2009. Não vamos tapar o sol com a peneira, eu acho melhor ser franco e colocar a verdade nua e crua! O fato é que a Heloísa Helena fundou o Psol dizendo que seria uma alternativa para o povo brasileiro. Agora, quando a maioria do Psol decide coerentemente lançar candidatura própria pra pre-

sidente, a Heloísa Helena vai pra imprensa declarar que lamenta opção por candidatura própria e se oferece para colaborar com candidata de outro partido. Com essa atitude, Heloísa Helena desidrata e desarticula as pré-candidaturas dos companheiros do próprio partido, que ajudou a fundar. Nmasp

Especial da Direita Cara Lucia, maravilhoso o seu artigo, aliás a revista toda. Vocês estão de parabéns pela qualidade do jornalismo, pela coragem de abordar temas tão delicados e pela capacidade investigativa. Longa vida para Caros Amigos. Vale mais do que as publicações oficiais de vários partidos comunistas e socialistas de esquerda. Isso porque não defende os interesses de um partido específico, mas da sociedade como um todo. Dr. Adail Ivan de Lemos Lucia, Acabo de ler o especial sobre a direita. Os artigos de sua autoria estão ótimos. Tanto o que se refere ao sistema financeiro quanto o relativo aos torturadores que continuam impunes. Meus parabéns. Josué F. de Castro Jornalista Tatiana Merlino: muito lúcido seu texto sobre a tortura de ontem e de hoje na publicação “A direita continua forte, ataca e morde”, do mês de abril. No caso dos direitos humanos, a senhora explicou bem os motivos da direita continuar forte e “atacando”. A tortura foi e continua sendo usada como instrumento de controle de classe. Andreas Frauendorf

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13 ANOS

Caros editores Hamilton, Tatiana, Renato e José Arbex: perfeita a revista da direita. Chico de Oliveira, Virginia Fontes, José Arbex e Gilmar Mauro. Time de primeira para analisar como a direitona brasileira funciona. Osvaldo de Medeiros, Rio de Janeiro (RJ)

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José Arbex Jr.

As crescentes tensões entre os governos

dos Estados Unidos e Israel atingiram, nos últimos meses, um nível sem precedentes desde 1956, quando Israel resolveu atacar o Egito, em operação conjunta com a Inglaterra e a França, sem prévio conhecimento da Casa Branca, para tomar o controle do Canal de Suez. Elas são o reflexo de uma perigosíssima tormenta que se prepara no Oriente Médio e na Ásia central, envolvendo o conjunto dos países árabes e islâmicos, incluindo Afeganistão, Paquistão, Irã e, claro, Estados Unidos, Rússia e Israel. Exagero? Longe disso. Com a palavra o vice-presidente estadunidense Joseph Biden, durante uma visita a Israel, em 10 de março, ao advertir o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu, segundo relata o jornal Yediot Aharanoth, um dos mais influentes em Israel: “A coisa está começando a ficar muito perigosa para nós. O que vocês estão fazendo aqui cria novas ameaças à segurança dos nossos soldados que combatem no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão. Criam-se riscos novos para nós e para a paz regional”. A advertência ganha maior significado quando se recorda que Biden é um fervoroso defensor de Israel. Em outubro de 2006, o então senador pelo Partido Democrata chegou a afirmar que o apoio dos democratas ao Estado judeu “vem de nossas vísceras, atinge o coração e vai até o cérebro. É quase genético.” Biden criticava a política de implantação de novos assentamentos israelenses nos territórios palestinos ocupados, em especial no setor oriental (árabe) de Jerusalém. No momento mesmo em que o vice-presidente iniciava sua visita a Israel, Netanyahu anunciava a instalação de 1.600 novas casas para judeus ultraortodoxos no bairro de Ramat Shlomo, em Jerusalém Oriental, além da construção de 112 novos apartamentos em Beitar Illit, na Cisjordânia. Irritado, Biden afirmou que “dado que muitos, no mundo muçulmano, veem uma clara co-

nexão entre as ações de Israel e a política dos Estados Unidos na região, qualquer decisão que agrida os direitos de palestinos em Jerusalém Leste terá impacto direto na segurança pessoal dos soldados americanos que combatem o terrorismo islâmico”. As advertências de Biden refletem as conclusões de um relatório apresentado no final de 2009 pelo general estadunidense David Petraeus ao Comando Unificado das Forças Armadas dos Estados Unidos. Segundo o relatório, “cresce entre os líderes árabes a percepção de que os Estados Unidos não conseguirão enfrentar Israel, que os países cobertos pelo Centcom – quase todos árabes – começam a perder a fé nas promessas dos Estados Unidos; que a intransigência do governo de Israel no conflito Israel-Palestina está pondo em risco a autoridade dos Estados Unidos na região. ”Centcom é a sigla em inglês de Comando Central, uma instância de controle das Forças Armadas estadunidenses, criada em 1983, para monitorar uma vasta área que compreende o Oriente Médio e a Ásia Central. Após o fiasco da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, e o recrudescimento da guerra no Afeganistão e Paquistão (dotado de armas nucleares), a Casa Branca teme a regionalização da guerra e os efeitos do “fantasma do Vietnã” entre a opinião pública estadunidense e mundial. A percepção de uma Casa Branca politicamente frágil, refém de Israel, abre uma avenida para a catástrofe. Não por acaso, em encontro mantido com o presidente francês Nicolas Sarkozy, no começo de abril, em Washington, o próprio presidente Barack Obama declarou que vai manter a pressão sobre Israel, ainda que isso custe um alto preço político nas eleições que serão realizadas em novembro, nos Estados Unidos. Obama declarou não ter opções. A eventual regionalização dos conflitos daria novo impulso aos movimentos separatistas islâmicos no interior da Federação Russa, em especial no norte do

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Cáucaso, envolvendo a Chechênia, Ingushétia e Daguestão. Esse movimentos produziram, em 29 de março, os atentados a bomba em duas estações de metro, em Moscou, resultando na morte de 39 pessoas. Os atentados foram realizados pelas “viúvas negras”, mulheres de guerrilheiros separatistas islâmicos mortos por tropas russas. Uma delas tinha 17 anos e a outra, 20. Os ataques foram reivindicados por Doku Umarov, líder separatista checheno. O primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, declarou que iria “esmagar” o movimento separatista, e obteve imediato apoio da Casa Branca na “guerra ao terrorismo”. Jamais Washington esteve tão próxima de Moscou: em 8 de abril, ao assinar o acordo de redução do arsenal nuclear, Obama convocou os dirigentes dos onze países ex-comunistas que hoje fazem parte da OTAN a “assumir uma nova atitude para com a Rússia”, abandonando uma postura de suspeita. Putin, em contrapartida, tomou a iniciativa, sem precedentes, de convidar o presidente polonês Lech Kaczynski e o primeiro-ministro Donald Tusk a uma cerimônia em homenagem a cerca de 22 mil de soldados poloneses massacrados pelo Exército Vermelho, em 1940, em Katyn. Putin responsabilizou diretamente o ex-ditador soviético Josef Stalin pelo massacre. Foi a primeira vez que as autoridades polonesas receberam um convite oficial russo para homenagear as vítimas de Katyn, fato obscurecido pelo acidente aéreo que causou a morte de Kaczynski. Sedimenta-se uma aliança entre Moscou, Washington e aliados europeus, com o objetivo de “preservar a ordem” no Oriente Médio e Ásia Central, onde estão situadas vastas reservas de petróleo e gás. A intransigência de Israel, ironicamente, torna-se a pedra no sapato de Washington, e ameaça precipitar um conflito de vastas proporções.

Ilustração: carval

Israel abre uma avenida para a catástrofe

José Arbex Jr. é jornalista. maio 2010

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

Chico Xavier x Bertrand Russell

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Abusos

de função

O juiz espanhol

dos Chico Xavier? Bom, primeiro porque é um grande negócio. Aliás, a terceira neta de Einstein, Evelyn, formada em antropologia e literatura tem, na Califórnia, a rendosa profissão de “desprogramadora de seguidores de culto”. Uma ironia atroz. Mas não é tudo. A ciência, com sua empáfia, e a técnica, com sua subserviência ao capital, favorecem o irracionalismo místico. Muitos cientistas afirmam que, mais cedo ou mais tarde, explicarão tudo. Muitos tecnólogos prometem que inventarão todas as máquinas para conforto do homem. O senso comum de nossa época é ambivalente com relação à ciência e à técnica. Ao mesmo tempo que acredita em suas promessas, desconfia que haverá um outro saber, mais anterior e profundo, que as cauciona e lhes estabelece limites. O homem, enquanto homem, não precisa da ciência e da técnica para existir. A existência precede as duas. Não entrei no programa sobre Chico Xavier. Chamo Bertrand Russell em meu socorro: “O que é necessário não é a vontade de acreditar, mas o desejo de descobrir, que é justamente o oposto”. Joel Rufino é historiador e escritor.

Baltasar Garzón é acusado de extrapolar as prerrogativas do cargo nas investigações sobre desaparecidos do regime franquista. Não cabe aqui discutir as nuances políticas do episódio, mas aproveitá-lo para uma reflexão mais ampla sobre os limites da atuação de magistrados. Objetivos inquestionáveis justificam eventuais irregularidades cometidas para defendê-los? O Estado de Direito pode aceitar que filigranas técnicas perpetuem injustiças históricas? Ou aquelas são indissociáveis da estabilidade legal que garante o funcionamento do sistema democrático? A premissa do “mal menor” ganha seguidores no Brasil. A ideia de estabelecer a inelegibilidade de candidatos condenados, por exemplo, tem motivações aparentemente irretocáveis. Submeter às diferentes competências do Judiciário os destinos eleitorais do país seria preferível à impunidade dos bandidos. Mas também permitiria que projetos políticos fossem destruídos em simples canetadas, sob quaisquer pretextos disponíveis. E não só nas cortes menores, pois a contaminação econômica e ideológica do Judiciário é generalizada – basta contabilizar as derrotas judiciais sofridas pelo governo paulista de José Serra. Encontramos problema semelhante quando as decisões de instâncias superiores ferem o interesse público. Se o STF endossa a anistia às torturas e assassinatos da ditadura militar ou a criminalização do uso de entorpecentes, magistrados sensíveis à inconstitucionalidade flagrante dessas medidas deveriam comprometer sua integridade moral e acatar a soberania dos ministros? Mas que efeitos práticos teriam as decisões contrárias, senão criar incertezas e congestionar as cortes? Tais dilemas revelam um paradoxo incômodo: alheia aos instrumentos de representatividade popular, a crescente politização da Justiça resultará sempre ilegítima e antidemocrática.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

Fui convidado a um programa de rádio sobre o médium Chico Xavier. Cheguei a ir à emissora. No último instante, tive o juízo de desistir. Provavelmente com meu ceticismo sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte etc., acabaria ferindo a susceptibilidade de algum ouvinte crente. Não é que devamos declinar do debate com crentes. Por filosofia, nada do que é humano nos deve ser estranho. A própria filosofia nasceu e se desenvolveu pela suspeita da crença. Desse amor humano ao saber (filo-sofia) vieram as ciências. Elas emergiram com dificuldade da nebulosa mítica inicial. Mas, num programa de rádio, na televisão, em sala de aula, mais vale a prudência: deixar os crentes com sua crença. Anos atrás, numa aula de literatura, eu falava dos critérios de verdade: “Se, por exemplo, um cachorro entra por aquela porta e nos dá bom-dia, não acreditaremos. Vemos e ouvimos o cachorro, mas não acreditamos: cachorros não falam”. Quis reforçar a ideia e pedi que olhassem a baía de Guanabara pela janela, azul e cálida: “Se alguém viesse andando sobre o mar, neste momento...”. Um aluno levantou o braço imediatamente: “Andar sobre as águas, nem por hipótese. Só Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Pedi desculpa, arranjei outro exemplo. Hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas confrontarem professores. Com a velhíssima arma da razão, podemos compreendê-los; eles não nos podem compreender, já que se baseiam numa crença. Crença, por definição, é indemonstrável. Foi impossível (pelo menos até hoje) demonstrar, pela lógica, assim como provar, pela experiência, que mortos se comunicam com vivos. Um dos lemas da Igreja Positivista era “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. O Barão de Itararé gozou: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos... mais vivos”. Esta é a linha divisória: nós, os céticos racionalistas, nos movemos no mundo dos vivos e mais vivos; eles, os crentes irracionalistas, no mundo dos mortos e deuses. Cada macaco no seu galho. No mundo dos vivos há muito que explicar. Por exemplo: por que a idade da ciência e da técnica é também a da crença, do misticismo, da astrologia, da cientologia, dos gnomos,

Guilherme Scalzilli

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Ferréz

O país da bolsa

e da bermuda criminal traz pânico e medo, pra completar o fato, trilha sonora do gueto, eu vou xingar até a mãe do prefeito por ter deixado a favela desse jeito”. Esses versos do grupo Trilha Sonora do Gueto, nunca me saíram da mente, é uma frase de puro protesto e ao mesmo tempo fala da vida criminal, isso mesmo, a vida traz pânico e medo, mas nem pra todo mundo, afinal, a lei é diferente para quem tem grana. A famosa deputada que colocou dinheiro na bolsa. A reportagem a mostra, a deputada Eurides, que nos últimos três anos, incluindo 2010, destinou R$ 10,5 milhões em emendas parlamentares, curiosamente uma parte do pagamento foi para seu genro, Ira Levin, que leva ou R$ 40 mil como maestro. A deputada Eurides, durante a matéria, está sentada, respondendo calmamente às perguntas, num lugar bem aconchegante, um escritório, não está sendo ofendida, puxada sem camisa, algemada, nem muito menos exposta pelo apresentador, palavras como: vagabunda, pilantra, ladra, não são em nenhum momento pronunciadas, coisa que você ouvirá logo depois na próxima matéria. Ao terminar a entrevista, você fica com dúvida, uma senhora tão serena e convicta do

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tados, ela se recusou a dar, o jovem disse que era da comunidade ali do lado, ela se indignou. Claro! Na hora do almoço, quando contou vantagem ao celular falando que morava na parte “nobre da cidade”, não era vergonha, agora o cara dizer que era da comunidade do lado é ameaça, o único lugar em que ele tem valor, o único sobre o qual pode falar. O sistema fez bem sua lição de casa, pegou jovens, prendeu na cadeia. Lá, vão ter aula de malandragem, vão aprender que 10 real num é nada, o bagulho é os malotes, tem que invadir, meter o revólver, que pedir o quê, olha aí você, vai agir na moral, vamo partir para o arrebento. Um dia um deles tromba com a empresária que fez a denúncia, que ficou aquela noite na delegacia, que vai ter o que contar nas altas rodas da sociedade, que viveu uma aventura diferente, que olhou para a calça justa do policial malhado, que pegou o telefone para ligar direto para ele se “precisar”, vai voltar pra sua grande casa, pra sua “grande” vida, enquanto a cela vai ganhar mais alguns “perigosos” meliantes, que na cadeia vão perguntar, e ai irmão por que está aqui. Sou flanelinha. Pôr muito dinheiro na bolsa de marca pode, pôr pouco na bermuda rasgada não. Ilustração: gil brito

“A vida

que fala, até eu acredito nela, assim como acredito no prefeito do Rio, um cara tão batalhador, que agora autorizou a derrubada das casas em área de risco. Muito boa essa medida, deixa que a gente derruba em vez da chuva. Mas vamos à próxima matéria, daria para colocar mais um capítulo no livro Showrnalismo, do Arbex. Mostra o incrível flagrante de imagens de jovens (e não meliantes como o falado a todo momento) olhando carros, isso mesmo, eles filmaram eles olhando carros, depois mostram eles presos, na mesa, 6 notas de 5 reais, 4 de 20 reais, como se fosse crime pobre ganhar alguma miséria, diferente do pacote que a deputada tem na sacola. Também diferente é o lugar, eles entram algemados, sem camisa, um após o outro, o crime? Ser flanelinha, cobrar para deixar o carro num lugar, o seguro acima de 2.000 reais que todo mundo paga não é extorsão? Cobrar zona azul de um lugar que a gente paga imposto não é extorsão? Agora um cara na rua, desempregado, pedindo para olhar seu carro é extorsão? Bom, você tem a opção de não querer, e o carro vai correr o risco, como se você também não quiser o seguro, a zona azul, é o mesmo dilema. Vai arriscar se quiser. A empresária, loira, digna, honrada, com seu carro de 200.000, diz que temos que agir diferente, ela quis ser um bom exemplo para nossa sociedade. Ficou até altas horas na delegacia para poder depor contra os jovens (meliantes, a matéria insiste), disse que eles pediram os 10 reais adian-

Ferréz é datilógrafo, mas já foi flanelinha como vários moradores de periferia, e já correu muito atrás de madame que não pagou ao sair do mercado, mas acabou não alcançando, sobre isso diz. – esse povo me deve! maio 2010

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falar brasileiro Marcos Bagno

Rio de Abril,

PRA QUE LEGISLAR SOBRE O HÍFEN?

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como sempre a culpa é dos pobres

pojado e agradável de ler, ao passo que quem escreve em francês, espanhol, italiano ou português tem que evitar ao máximo as “marcas da oralidade”, como se fossem uma doença contagiosa, e produzir textos barrocos ou, no mínimo, parnasianos. Mas é da Alemanha que vem o exemplo mais luminoso de democracia linguística. Foi aprovada em 1996 uma reforma ortográfica da língua alemã. Mas ela só é obrigatória para o ensino e a administração pública. Fora daí, todo e qualquer cidadão pode escrever como quiser, usando as diferentes opções ortográficas da tradição de sua língua. Será que não poderíamos fazer o mesmo por aqui, pelo menos no caso desse sinalzinho ínfimo, para que seus décimos de milímetro não tirassem o sono de tanta gente boa e honesta? Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Todos conhecem os sucessivos erros políticos que fizeram a Cidade do Rio ter o número de favela que tem. Mas o maior de todos os erros foi aceitar tantas pessoas de tantos lugares (em nome do crescimento da cidade) sem ter um plano habitacional pra elas. Ver a favela como problema foi o segundo maior erro, quando na verdade a favela foi a solução encontrada por quem não tinha opção. Acompanhar de forma humana cada caso de cada favela e fazer novos planejamentos de moradia era o que devia ter sido feito nos últimos 60 anos. Mas não foi. Dizer que quem mora em encosta com alto risco de desabamento tem responsabilidade nas consequências desastrosas das chuvas do Rio de Janeiro é tão covarde quanto a negligência dos verdadeiros culpados. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao anunciar o plano de habitação para os desabrigados, mostrou que não está disposto a ouvir opinião diferente da sua administração e soltou essa: “Peço aos politiqueiros de plantão que se recolham às suas insignificâncias e não vão pra lá (pra onde estão sendo levadas as vítimas e os moradores das áreas de alto risco) para fazer baderna”. A verdade é que os moradores de favela do Rio nunca precisaram tanto de se unir, pois vem um processo de desapropriação em massa que tem que ser acompanhado por todos e DECIDIDO pelos favelados depois de uma grande discussão com vários setores da sociedade. E isso os governantes não querem. O interesse que existe pela especulação imobiliária em várias favelas do Rio não é novidade pra ninguém, inclusive o próprio Morro dos Prazeres (que será demolido por inteiro), o qual conheci e frequentei na minha adolescência, é o pico mais alto habitado por favela na cidade, e tem uma vista privilegiada. Peço a todos (politiqueiros ou não) que reconheçam a significância do momento que vivemos e busquem informações sobre o que a Prefeitura está fazendo e como está fazendo nas favelas cariocas. Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

Tenho inveja quando abro um dicionário de inglês e encontro as grafias online e on-line, up to date e up-to-date, non-return e nonreturn entre outras: tanto faz escrever com hífen ou sem hífen, juntando as palavras numa só ou deixando separadas... Não podia ser assim também em português? Já declarei em diversas ocasiões meu total apoio ao novo acordo ortográfico, não por questões propriamente linguísticas, mas pela importância política que ele reveste, principalmente para que os setores mais chauvinistas da sociedade portuguesa abandonem para sempre a pretensão idiota de achar que são os donos da língua só porque ela tem o nome do país deles. Mas confesso que essa história de querer legislar sobre o uso do hífen me tira a paciência. Com a nova ortografia, bem que podíamos ter nos livrado dessa chatice, não? Por que não liberamos de vez o uso do hífen e deixamos que as pessoas empreguem onde e quando bem lhes der na telha? Qual a justificativa para agora escrever “mula sem cabeça” sem hífen, quanto antes era “mula-sem-cabeça”? E por que antes se escrevia “microondas” e agora tem que ser “micro-ondas”? E, principalmente, por que não deixar que as duas formas sejam usadas sem medo nem estardalhaço? As línguas românicas (italiano, francês, espanhol, português) sofrem há séculos com a tradição purista e academicista, que impõe sobre a língua uma paranoia de correção, um monte de regras anacrônicas que impede os cidadãos de se apropriar da língua, de sentir seu idioma materno como algo que lhes pertence de absoluto e pleno direito. No caso de nações surgidas do processo colonial, como o Brasil, esse mal se transforma em doença crônica, já que o ideal de correção está sempre do outro lado do mundo. Já nos países de língua inglesa, impera uma repulsa às academias de língua, que nunca brotaram na Inglaterra nem nos Estados Unidos. O resultado é que por lá, mesmo havendo (como em todo canto) os reacionários da língua, a aceitação das formas inovadoras é muito mais rápida e tranquila: a partir do momento em que essas formas começam a aparecer com frequência na fala e na escrita das pessoas mais letradas, elas automaticamente entram para o rol do que é certo e aceitável. Por isso, um texto erudito escrito em inglês é muito mais fluente, des-

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

Insônia, namorada Lulina costuma escrever canções sobre insônia. Em Bichinho do Sono: “Vejo tudo na escuridão/ eu agora sou japonês/ os carneiros já vão chegar/ os carneiros vão me ajudar/ a dormir”. Narcolepsia: “Queria dormir pra sempre/ de dia nunca acordar/ para lembrar o que aconteceu/ e o que pode acontecer”. Em 2002, Lulina gravou, à própria custa, Cochilândia. Lançou 13 cópias. “Na maioria das músicas, o sono é uma rota de fuga”, ela explica. “É fechar os olhos para a realidade e abrir para uma outra interior, às vezes até menos nonsense que o mundo real. Cochilândia funcionava como um ‘tratamento’ para a insônia. Começa pedindo para a pessoa se deitar e avisando que lá pela quarta música ela já estará dormindo, e no final toca um despertador altíssimo, para a pessoa acordar.” Lulina é compositora e cantora pernambucana (radicada em São Paulo), que lançou um dos CDs mais inteligentes, doces e inquietos de 2009, Cristalina (onde estão as músicas acima), disco-síntese dos dez trabalhos anteriores, gravados artesanalmente e distribuído à moda modesta de Cochilândia. Mais recentemente, o cantor e compositor paranaense (radicado paulistano) Bruno Morais gravou uma nova versão para Bichinho do Sono. Pode ser impressão, mas parecem ser de sono as olheiras que ele expõe no videoclipe (YouTube). Já parou para pensar quão raro é um intérprete excepcional, homem, cantar uma música de uma exímia compositora, mulher? Enquanto Lulina e Bruno contam carneiros, ovelhinhas são tema do cearense Fernando Catatau (outro filho adotivo de São Paulo), compositor principal da banda Cidadão Instigado. “Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis ovelhinhas pulam na cerquinha de madeira”, canta. “Fiz essa música num período em que eu e minha mãe tínhamos um bar em Fortaleza. Virava noites trabalhando, e parei até de tocar por quase um ano”, conta. “E ficava pensando que não conseguia organizar minha vida nem dormir, e estava perdendo meu

caminho. Vivia num loop eterno. É tudo tão rápido que você não tem tempo mais para pensar lentamente. A velocidade destrói a nossa capacidade de imaginação.” Instrumentista de peso, Catatau canta com voz agreste à moda dos conterrâneos Belchior, Fagner e Ednardo, e seu Cidadão Instigado costuma misturar brilhantemente referências de rock’n’roll e da mais legítima e luminosa tradição brega-cafona brasileira. Ovelhinhas está no disco Uhuuu!, lançado no ano passado. “Sou a favor da lentidão e dos sonhadores”, Catatau arremata. A lentidão também está entre as premissas da cantora e compositora Céu. Seu segundo CD foi lançado em 2009, Vagarosa. Uma faixa se chama Sonâmbulo. Outra, um reggae de perfume árabe, é o Cordão da Insônia: “Dorme, dorme, Babilônia/ quanto mais quietinha fica/ mais aumenta a insônia”. “Constatei que não só eu, mas muitas pessoas que trabalham com criatividade tem esse problema de ter inspirações de madrugada, na hora que estamos tentando dormir”, explica. “Você acaba pensando: ‘Ah, amanhã vou me lembrar disso...’, mas a ideia se perde. Não que sejam as ideias mais incríveis do mundo, mas para mim é extremamente produtivo o momento em que a cidade está dormindo e tudo está mais quieto. Imaginei um cordão dos insones, tipo carnavalesco mesmo, cantando de pijama.” Céu nasceu e mora em São Paulo, mas sua música tem exercido impacto musical noutros continentes – nos EUA, por exemplo, Vagarosa já vendeu 110 mil cópias. Em disco, ela soa rígida e rigorosa, às vezes solene. No palco, solta os bichos e se apresenta quente, presente, contagiante. Ronei Jorge é baiano (mora em Salvador) e lidera a banda de rock Os Ladrões de Bicicleta, que no ano passado lançou o segundo CD, Frascos Comprimidos Compressas, cuja terceira faixa se chama A Respeito do Sono. “Enquanto você fica deitada/ eu sigo pela casa sem dormir/ você é que sabe de tudo/ e faz uso de um sonho bom/ mas esse sonho bom/ insiste em me levar/ pra cama”, divaga. “O que me motivou foi perceber que casais vi-

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vem em mundos diferentes por conta do sono. Enquanto um perambula pela casa totalmente insone, o outro dorme por conta da vida atribulada e toma conta do sonho, da casa e da vida”, diz. “Isso parece muito com a situação que vivo. Durmo tarde, já tive insônia braba, e por conta da profissão, tem todo esse lance da instabilidade de ser artista, tudo meio imprevisível.” Ronei produz baladas e rocks corpulentos, às vezes tristonhos, representantes de uma Bahia em que a obrigatoriedade da alegria, alegorizada à perfeição pela axé music, deixou de ser o único mundo possível. O tema da insônia não se restringe às novas gerações. Em seu Multishow ao Vivo (2009), Rita Lee apresentou a inédita... Insônia, de versos loquazes como “insônia/ minha namorada/ insônia/ de madrugada/ rolando na cama/ estou tão cansada/ mas ela me chama/ quarto escuro/ de olhos abertos/ acendo o abajur/ ela sorri/ e chega mais perto/ eu bocejo/ eu desejo Morfeu/ ela tem ciúme/ me olha e diz/ ‘ou ele ou eu’/ (...) viro de lado/ ela se encaixa/ deito de bruços/ ela me enlaça/ já passa das seis/ ela me abraça/ e me ama outra vez”. O bichinho do sono não perturba apenas os compositores do presente. No curso de nossa história, cantaram e/ou compuseram músicas batizadas Insônia artistas como Nelson Cavaquinho, Baden Powell, Gonzaguinha, Danilo Caymmi, Kleiton & Kledir, Zé Renato, Ritchie, DJ Dolores, Latino… Seria mera especulação dizer que a música brasileira anda especialmente insone ou que esse mal aflige em particular os músicos na tensa São Paulo ou os rebentos da cena independente (“é tudo ficção, eu durmo que é uma beleza”, surpreende Lulina). Não se quer aqui insinuar que há algum significado na soma de tantas (boas) canções de não ninar, mas sim que o brinquedo de procurar músicas de sono pode ser um entre muitos modos divertidos de mergulhar na promissora música nova do Brasil. E, bem, confessar que, sim, o autor deste texto também sofre de insônia. Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

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entrevista

Ermínia Maricato

Especulação da terra inviabiliza moradia popular Participaram: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Julio Delmanto, Lucia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

a

arquiteta Ermínia Maricato tem uma longa trajetória de reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, como profissional e como militante do PT. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), foi também secretária de Habitação de São Paulo (19891992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005). Na entrevista a seguir ela faz uma análise profunda e reveladora da situação caótica das cidades brasileiras. Vale a pena ler.

Hamilton Octávio de Souza - Onde você

nasceu? O que estudou? Fale sobre a sua trajetória. Ermínia Maricato - Eu nasci no interior do Estado de São Paulo, em uma cidade chamada Santa Ernestina, mas vim muito cedo para São Paulo. Meu pai foi camponês, mas se tornou um pequeno empresário, tinha uma granja de aves. A família é três quartos italiana e um quarto portuguesa. Nós tivemos que vir para São Paulo porque a minha mãe tinha uma doença, hoje eu sei que é psíquica, mas no interior nós não sabíamos bem o que era. Com 5 anos eu vim para São Paulo, estudei em escola pública, que era maravilhosa, morei no Brás e, enfim, sempre gostei muito de estudar, minha mãe não queria que eu estudasse, o meu pai me deu toda a força, acho que não tem tanta novidade aí. Foi um período em que era possível um filho de europeu, mesmo que viesse do campo, era fácil ter ascensão social em São Paulo. Foi o que aconteceu com o meu pai, ele amealhou um certo patrimoniozinho, então não é a mesma condição que o filho de camponês brasileiro, que tem origem muitas vezes na herança escrava, uma condição diferente. Bem, eu fiz química industrial no nível médio, comecei a faculdade de física na USP, depois é que eu passei para arquitetura; mas hoje eu acho que errei, estou muito apaixonada pela terra, por agricultura, por agricultura orgânica. Atualmente pertenço a uma associação que tem uma gleba de Mata Atlântica e nós estamos fazendo um pomar de frutas em extinção da Mata Atlântica, esse é o meu hobby atual. Então eu estou tão encantada, tão impressionada com a força e a exuberância da Mata Atlântica que fico pensando como nós conseguimos destruir essa riqueza.

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Ermínia Maricato denuncia o poder das incorporadoras e construtoras pelo alto preço dos terrenos urbanos.

Lúcia Rodrigues - Como surgiu essa ideia? A associação já existia. Eu cheguei em um amigo e falei: acho que a gente devia comprar um pedaço de mata para deixar lá. E aí ele falou: mas eu já estou em um lugar que tem isso e tal. Aí eu fui, me encantei, entrei na diretoria. Temos uma médica homeopata como presidente, temos várias tribos ali, temos sete nascentes de água, então nós estamos trabalhando no tratamento e distribuição dessa água e agora nós passaremos a discutir o lixo, o esgoto.

Tatiana Merlino - Onde é? Fica a uma hora de São Paulo, em São Lourenço da Serra. Então é a minha paixão atual e eu fiquei muito impressionada de como é que eu não fui para a agricultura, pois tem muito a ver com a questão ambiental. Eu comi uma fruta quando era criança e morava no interior que chamava pindaíva, é uma fruta lindíssima, vermelha, parece uma fruta do conde, ela é de uma árvore muito alta e aí eu falei: Mas cadê a fruta? Não existe mais. Então eu fui pesquisar e consegui, depois de muito procurar, achar uma muda da pindaíva, hoje nós plantamos quatro mudas lá no vale e aí tem outras frutas que eu nem sei o que são, comprei outras mudas, fui atrás, agora eu estou pesquisando isso. Lá tem

uns malucos que entram na mata, pegam semente, estão plantando, tem um pessoal interessante. Eu gosto mais de falar disso do que falar de cidade, meu Deus do céu. O que eu quero deixar de fundamental em relação a questão urbana é que as cidades vão piorar.

Lúcia Rodrigues - Mais ainda? Muito, muito.

Lúcia Rodrigues - Por que, professora? Porque não tem nada sendo feito para contrariar o rumo.

Júlio Delmanto - As cidades que você diz não

são só as grandes, né? Não só as grandes, porque as cidades que mais crescem atualmente são as médias no Brasil, não são as metrópoles, as metrópoles deram uma recuada, desde a década de 80 as metrópoles estão crescendo menos e as cidades médias estão crescendo mais.

Tatiana Merlino - Nada está sendo feito nos âmbitos federal, estadual e municipal? Não é só uma questão de governo. Primeiro não é uma questão restrita a governo, é uma

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questão do capitalismo periférico, eu quero fazer questão de falar isso porque muita gente fala: ah! falta vontade política! Eu vou dizer que tem problemas que são estruturais. Um deles: o mercado residencial, no capitalismo periférico, atinge uma pequena parte da população. Até 2004, quando começa uma mudança na política habitacional, da qual eu fiz parte, o mercado brasileiro produzia para 20% da população. Em São Luís (MA) é para 10% da população. Eu fico pensando, pela minha experiência, que São Paulo, por exemplo, chega a 40% da população, mas quando você vai para São Luís ou Belém (PA), o mercado não chega a 10% da população. O mercado, esse sim, segue a lei, que tem um investimento, às vezes tem um financiamento, ou às vezes até mesmo a empresa incorpora o teu financiamento, você faz um projeto que é aprovado na prefeitura de acordo com a legislação de código de obras, legislação de parcelamento do solo, legislação de zoneamento, aí isso é lançado, tem compradores que também podem ter um financiamento. Isso é o que? No Canadá, na Europa, nos EUA isso atinge de 70 a 80% da população. No Canadá isso é muito claro: 30% da população precisa de subsídio para comprar moradia. Aqui no Brasil é o oposto: tem 70% da população. Varia de cidade, de região, se tem uma classe média maior, esse número é maior, se você tem uma classe média menor, como as cidades do Norte e Nordeste, esse número é menor. Então, vivemos em uma sociedade em que uma parte da população se vira, ela não se integra ao mercado e não tem política pública para chegar nela. O financiamento, o investimento público habitacional ampliou muito a partir de 2004, é impressionante o aumento nos últimos anos. Mas na sociedade brasileira a classe média não entra no mercado. O que quer dizer que a classe média não entra no mercado? O policial, o funcionário da USP, o professor secundário mora em favela, isso é uma coisa comum. Então, o Brasil é um país típico de capitalismo periférico, onde um trabalhador regularmente empregado, com estabilidade no emprego, que é o caso de um funcionário público, não tem acesso à moradia no mercado.

Tatiana Merlino - Esse “se vira” a que você se referiu é equivalente ao déficit habitacional que há no Brasil? É mais do que o déficit. Tatiana Merlino - Qual é o déficit habitacional hoje do Brasil? Olha, o déficit deve estar entre os 7 e 8 milhões, o déficit é sempre uma coisa que deve ser discutida, né? O que você considera déficit? Uma das questões que discutimos no ministério, por exemplo, é que o IBGE considera déficit a convivência de famílias e às vezes é uma decisão sua conviver com mais de uma família. Então, devo ou não considerar isso déficit? O que eu quero dizer é o seguinte: “parte da população brasileira se vira” significa que ela arruma terra, eu tenho muita restrição para usar a palavra invadindo, porque os movimentos sociais não gostam, digamos que ocupando ilegalmente, mas

esse ocupando ilegalmente é uma coisa muito vasta. E construindo as próprias casas, como o Chico de Oliveira mostrou em um artigo que ficou clássico, em 1972, que essa autoconstrução, essas ocupações ilegais não eram uma coisa espontânea ou decisão deles, aquilo era o resultado do rebaixamento da força de trabalho, quer dizer uma força de trabalho que não ganha para comprar uma casa, para pagar para alguém construir, mas não dentro da lei, não é dentro do mercado, não consegue comprar a terra. E a terra é um capítulo a parte. Então essa condição de ilegalidade é geral no Brasil. Tem um município perto de Belém, Ananindeua, ou outros municípios na periferia de Recife, Salvador, Fortaleza, onde 90% dos domicílios são ilegais. Quando você chega à região metropolitana de Fortaleza o próprio IBGE dá 33% da chamada sub-habitação. Nós temos alguns estudos, não temos dados fidedignos, mas isso já mostra um pouco o que é a realidade brasileira. Quanto por cento da população brasileira mora em favela? Tem alguns trabalhos que mostram que há uma grande diferença de uma cidade para outra no Brasil, mas que a exceção que seria uma casa ilegal, construída completamente fora da lei em uma terra ocupada de forma completamente irregular, construída aos poucos, sem qualquer conhecimento de engenheiro ou arquiteto etc., é regra, não é mais exceção. Veja bem, o que era para ser exceção virou regra e o que era para ser regra virou exceção.

Tatiana Merlino - Essa é uma característica do capitalismo periférico? É. Você vê isso no mundo inteirinho e varia um pouco em cada país. A Argentina, que já teve uma condição muito melhor socialmente na América Latina, agora está em uma situação dramática. Na Argentina você tinha menos disso, algo em torno de 20 ou 30 anos atrás, ela era mais formal, a cidade na Argentina. Fui convidada para ir a um encontro sobre moradores de rua na Argentina, eles ficaram encantados com a nossa política de morador de rua e aí eu falei: Bom, mas vocês não tinham porque vocês não tinham morador de rua e no Brasil tem há muito tempo. Se você vai para o Chile você tem uma formalidade maior na cidade, tem uma classe média mais forte. Agora o resto, Bolívia, Venezuela, que eu andei pelos morros em volta de Caracas, o próprio México, você tem uma situação que é pior do que algumas metrópoles brasileiras, porque o Brasil tem algumas coisas que são mais ricas e algumas coisas que são mais pobres. Hamilton Octávio de Souza - Mas esse

processo não está sendo revertido? Ao contrário, as cidades do mundo estão se empobrecendo. Se você pegar a África é impressionante o que está acontecendo.

Hamilton Octávio de Souza - E São Paulo? O que acontece em São Paulo? São Paulo está assim: o município concentra, se não me engano, 22% da população que ganha acima de 20 salários mínimos do Brasil. Então você tem uma grande concentração de renda em São

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Paulo, Ribeirão Preto, Santos, e Brasília – no plano piloto. Então você tem uma condição de expulsão da população desses municípios mais ricos.

Hamilton Octávio de Souza - A favelização aqui tem sido crescente, não tem? Desde a década de 50? Mas muito mais nas periferias. Se eu pegar Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Embu, Embu-Guaçu, você tem uma periferização com o aumento da violência, com uma queda geral de índices e a gente trabalha com média, o que é complicado. Lúcia Rodrigues - A concentração do capital

é o que está levando ao empobrecimento das cidades, é isso? Não é só. Você tem assim uma tradição de desigualdade histórica, você tem nesses países essa questão estrutural da informalidade tanto no trabalho quanto na ocupação do solo, então nós temos ilhas que são cidades do primeiro mundo, isso é tudo inadequado. Por isso que eu acho engraçado dizer que a questão é técnica. Na verdade nós copiamos a lei de zoneamento, toda a legislação do primeiro mundo e aí a gente garante uma ilha onde o resto não cabe. Para inserir a população pobre nessa cidade eu preciso transformar o conjunto, isso foi o que discutimos no Fórum Urbano Mundial e no Fórum Social Urbano.

Júlio Delmanto - Existe alguma diferença entre esses países que são chamados em desenvolvimento em relação ao resto da periferia? Sim. O Brasil é diferente. É uma economia forte. É um player internacional. Ele passou de “nada dava certo” para “país do futuro” ou “do presente”. Mas a desigualdade é uma coisa escandalosa no Brasil. A África do Sul me impactou porque ela saiu do apartheid, em que a segregação, diferentemente da nossa, era jurídica. Então você não podia ir para a cidade se você fosse negro, a menos que você tivesse um passe. Vencer essa segregação quando o Mandela ganhou parecia fácil. Mas existe um problema que está atingindo todo o terceiro mundo que é a questão da terra. A questão da terra não foi superada com a luta contra o apartheid. Aliás, foi uma coisa que me impressionou muito, que eu ouvi de vários líderes: se a terra tivesse entrado em negociação, a paz não acontecia. Hamilton Octavio de Souza - O que é a questão da terra? É a terra urbana? É a terra urbana e rural. A terra está na essência da alma brasileira. A desigualdade no Brasil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma parte da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado. Então os urbanistas estão trabalhanmaio 2010

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do em um espaço de ficção, com realidade de ficção. Aliás, essa ausência dos engenheiros nem se fala. Eu quero falar depois do estrago que a engenharia fez em São Paulo.

Lúcia Rodrigues - Essas leis que você citou

funcionam? Nada. O estatuto da cidade é um sucesso no mundo. Do Brasil para o mundo. Eu sou convidada a consultoria internacional o tempo todo por conta do estatuto da cidade. Eu fui a poucos lugares, mas para onde eu fui eu falei que não está sendo aplicado no Brasil. Não está sendo aplicado. Tatiana Merlino - Existe uma política habitacional para resolver essa questão do controle do solo? Lei nós temos. O estatuto da cidade é ótimo. Constituição Federal nós temos. Só que nós não aplicamos a função social da propriedade. Só terminando aquilo. A nossa lógica é que a mão de obra barata de que o Celso Furtado falava muito, que garante a exportação de riqueza, que garante uma elite conspícua, que é patrimonialista, que se agarrou a este Estado e fez dele o que fez, tem a lógica de que nós temos que ter uma mão de obra absolutamente rebaixada no seu preço para poder segurar essa relação.

Lúcia Rodrigues - Mas isso não é

anticapitalista? Por que se você tem gente ganhando mais injeta força e fluxo no mercado. É engraçado isso. Porque o Ford descobriu que os operários precisavam ganhar melhor para que o capitalismo fosse melhor em 1905, início do século 20. Não é essa a lógica no Brasil. Inclusive uma das coisas que nós nos perguntamos é se o capitalismo brasileiro, principalmente a burguesia nacional, porque as transnacionais não estão nem aí se vão esgotar as reservas, se as cidades vão virar um negócio inviável, pretende se tornar viável. O capitalismo no Brasil não está preocupado em viabilizar. As nossas cidades estão ficando inviáveis. O automóvel está inviabilizando não só São Paulo, mas todas as cidades brasileiras. Brasília está também com um problema seríssimo de trânsito. Então você tem um problema que também é estrutural. A indústria automobilística é responsável por 20% do PIB do mundo, se eu colocar a exploração de petróleo, a distribuição de petróleo, toda a indústria da borracha, das autopeças. E todas as obras nas cidades são uma questão de infraestrutura para o automóvel andar. Quebrar esse modelo é o que seria necessário para incorporar os pobres. Lúcia Rodrigues - E como se quebra esse modelo? Vamos primeiro falar da terra. Porque esse “como se quebra esse modelo” é uma reflexão muito difícil para eu fazer depois que eu saí do governo federal. A terra no Brasil durante vários séculos, a propriedade da terra, esteve ligada à detenção de poder social, político e econômico. É interessante perceber em uma cidade como São Paulo como é que a área de proteção dos mananciais, que é uma área protegida por lei federal, estadual e municipal

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e planos de tudo quanto é tipo, está sendo ocupada. O poder de polícia sobre o uso do solo tem cinco organismos: a Sabesp, a Cetesb, Eletropaulo, o poder municipal sobre o parcelamento do solo, e a Polícia Florestal. Todo mundo é responsável pela fiscalização. Então não falta lei, não falta plano. É bem importante deixar isso claro. Estou cansada de ouvir gente dizendo que falta planejamento, falta plano diretor. Não falta nada. E não falta lei no papel. O que falta é que essa população tem que morar em algum lugar. E ela vai morar onde? Então pensa na população que chega na cidade de São Paulo. O centro está se esvaziando. Isso parece incrível, aliás, em todas as cidades brasileiras grandes. Então nós temos em área de proteção dos mananciais, já vi secretário de meio ambiente falar em um milhão e quinhentas mil pessoas. E já ouvi gente da Empresa Metropolitana de Planejamento falar em dois milhões de pessoas. É uma ligeira margem de dúvida. Isso mostra que nós não sabemos quantas pessoas moram na área de proteção dos mananciais.

Hamilton Octavio de Souza – Qual a

consequência disso para o abastecimento de São Paulo? Nós estamos buscando água na bacia do rio Piracicaba. Falam em buscar água serra abaixo. Estão falando em buscar água não sei mais onde no vale do Paraíba, e nós temos duas represas em que a água vem por gravidade, mas a água está crescentemente contaminada, e eu estou me referindo à contaminação recém-descoberta de que mesmo depois do tratamento existem hormônios e antidepressivos na água. Mas isso é outra coisa, são pesquisas mais recentes. Eu tenho então uma metrópole na área de proteção dos mananciais. E se os governos decidissem cumprir a lei? Não entra mais ninguém ou tem que sair? O que aconteceria? Os conflitos do MST iam ser refresco. Eu já tive aluno que afirmou que haverá guerra civil. Eu concordo. Se voce de repente pega todo mundo que ocupou os morros do Rio de Janeiro, que estão desmoronando, ou dos morros de São Paulo, que desmoronaram meses atrás, e proíbe de ocupar, é guerra. Mas aí alguém fala: tem que ter uma política habitacional. Tem. Metade da população do Rio de Janeiro mora em domicílios ilegais. Como é que você faz uma política habitacional para incorporar metade da população sem uma completa revolução com a terra? Sem uma completa mudança na característica do mercado imobiliário? Sem uma completa mudança no direito de propriedade? Sem uma completa mudança da forma de ação do Estado? De que jeito?

Tatiana Merlino - Mas como é muito pouco provável que aconteça, para onde a gente vai caminhar? Nós estamos caminhando para o caos. Tatiana Merlino - O que aconteceu no Rio de Janeiro é a prova disso? É. O que aconteceu em São Paulo, em todas as cidades, é a maior prova disso. Se você somar a falta de controle de uso e ocupação do solo,

que não existe a consciência de que é necessário controlar, mais a falta de planejamento com a questão da macrodrenagem... E ainda com mais incentivo para a matriz automobilística, nós vamos piorar.

Lúcia Rodrigues - Mas como romper com esse modelo? Eu acho sinceramente que não vai ser simples. A questão da terra sempre foi muito clara no campo, mas ela não foi muito clara na cidade. Por quê? Porque ninguém se dava conta de que a regra era exceção e a exceção era regra. Lúcia Rodrigues – Mas qual é o problema da

terra? Um aluno meu me mostrou a funcionalidade da confusão registrária no Brasil. Ele mostrou que nos parques estaduais paulistas existiam sete andares de registro de propriedade no mesmo pedaço de terra. Por quê? Porque a história do registro de propriedades no Brasil é uma história de fraudes. Eu desagradei muita gente, mas falo isso o tempo todo. A história da propriedade privada no Brasil é uma história de fraudes sistemáticas. Não é que você tenha uma fraude ou outra. É regra de novo. O Ariovaldo Umbelino mostrou em uma de suas palestras (ele é um geógrafo competente, se aposentou da USP) um anúncio de venda de uma propriedade de 40 mil hectares, no qual a grande vantagem que oferecia era uma escritura de 4 mil hectares. Porque a cerca anda. Então ter uma escritura já é uma maravilha. E a cerca anda no Brasil. Então o que me impressionou na tese do Joaquim de Brito, esse meu aluno, é que o governo não tem nenhum interesse em cancelar registros que se revelam falsos.

Tatiana Merlino - E no caso da Cutrale? Esse é outro exemplo que eu adoro dar. Quer dizer, para a mídia brasileira foi muito mais importante a derrubada de meia dúzia de pés de laranja do que o patrimônio público ser apropriado privadamente. Ora, é regra. O Pontal todo. E a polícia e o Judiciário têm a coragem de atacar o MST, que é meia dúzia de gente pobre que quer o mínimo, que é o acesso à terra. Vai fazer a discriminatória das terras públicas que você vai ver quanto esse país vai ganhar de terra!

Bárbara Mengardo - Existe uma estimativa

de quantos hectares de terras griladas são ocupadas por grandes empresas? Na verdade os documentos são produzidos. Foi isso que eu verifiquei com a tese do Joaquim de Brito, que, aliás, eu pedi que ele produzisse um texto que fosse mais palatável para a linguagem de um livro e ele morreu na madrugada que ele escreveu o texto. Aprendi muito com ele porque ele tinha documentos de todas as terras e dizia: “Olha, ainda tem registros novos aparecendo”. Ele mostrou que tinha propriedade no litoral que subia a serra. E aí quando eu vejo a mídia atacar o MST eu fico absolutamente impressionada. Em um país onde a história da propriedade é de fraude. Eu resolvi juntar livro sobre isso. Aí eu comecei a ver que nós temos uma produção gigantes-

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ca sobre a fraude na propriedade da terra, sobre as disputas de terra, sobre morte.

construir infraestrutura. Seja infraestrutura ligada à produção, usinas, aeroportos, estradas, viadutos, ferrovias. As nossas empresas construtoras foram iniciadas com reserva de mercado no período do Juscelino. Elas são muito fortes.

Lúcia Rodrigues - Quem está por trás disso? São os cartórios? É o governo? Tudo. É a sociedade brasileira. É poder vinculado à propriedade.

Tatiana Merlino – Como você avalia o

Hamilton Octavio de Souza - De quando é o

estatuto das cidades? 2001.

Hamilton Octavio de Souza - O estatuto da

terra é de 1965 e não é respeitado até hoje... Não é respeitado. É impressionante como o Judiciário não conhece a legislação. Ou não quer conhecer.

Júlio Delmanto - Você diz que lei nós temos, que Constituição nós temos, que não é uma questão de governo. Você acha que os governos e os partidos estão nessa lógica de disputar por esse caminho? Acho que grande parte dos movimentos está equivocada de se limitar ao espaço institucional. Lúcia Rodrigues - E o que precisa ser feito para romper com esse modelo? Bom, eu vou falar para você o que eu esperava. Tem a ver com o rompimento do modelo. O Paulo Arantes diz que a esquerda brasileira, quando lutou e resistiu contra a ditadura, se colou na questão da democracia, que era uma questão nova na esquerda brasileira. É interessante isso. Quer dizer, “nós queremos democratizar a sociedade”. E por que isso cabia? Tem gente que diz que não, vocês erraram. Ah! As pessoas estavam sendo mortas. Você não tinha liberdade de falar. Essa reunião aqui era impossível. Publicar essa minha entrevista. Se a gente estivesse aqui nessa mesa conversando, estaria todo mundo com medo. Claro que a gente lutou pela abertura democrática. Essa luta pela abertura democrática, ela levou muito naturalmente a conquistas institucionais. Então, nós tomamos um rumo, que era o rumo da democratização. Eu vou confessar que eu tinha a convicção de que o Brasil não ia conseguir democratizar. E que nós íamos explodir. Explodir no bom sentido. Explodir os sentidos e as amarras. Ao contrário do que aconteceu. Eu acho que muitos movimentos ficaram banguelas. Quer dizer, sem capacidade de transformação, de ofensividade. Depois tem muito dessa coisa de certas lideranças terem os seus movimentos atendidos. Tatiana Merlino - Aí eles param de lutar? Não param. Mas é muito interessante você verificar que muitas das demandas são demandas de governo. O MST em momento algum eu colocaria nessa linha. Por exemplo, você tem muita liderança que está em gabinete de governador, deputado. Ou muita liderança que está participando de prefeituras mais democráticas, ou então não democráticas, é puro clientelismo. Quando me perguntam qual é a política urbana vigente no Brasil eu respondo: é a política do favor, do clientelismo.

Como é possível planejar em uma cidade se o vereador é dono do bairro? E aí ele quer ambulância, ele quer a ponte em cima do córrego. Não é que não seja legítimo um representante do povo dizer “o povo está precisando de tal coisa lá no bairro”. Mas não tem planejamento que sobreviva nessa condição. A política do favor está mais viva do que nunca. A força das empreiteiras nas cidades, eu estou muito impressionada. A força do capital imobiliário e a política do favor, essa coisa atrasada, elas estão mais vivas do que nunca.

Hamilton Octavio de Souza - Qual o jogo das empreiteiras, das imobiliárias e dos bancos dentro dessa especulação na cidade? Os bancos eu ainda não vejo tão clara a ligação deles com o espaço urbano. Inclusive tem muito pesquisador brasileiro que leu sobre a bolha americana e faz uma transferência. Não tem nada a ver o que está acontecendo no Brasil com a bolha americana. Nada a ver. Para você ter uma ideia, no Brasil o financiamento imobiliário é 3% do PIB e na Europa e nos EUA passou de 50% antes da crise. E o imóvel foi lastro de criação para a loucura do capital fictício, aquela coisa que no Brasil, como um bom mercado patrimonialista, não nos atingiu. Enquanto tudo isso acontecia nos EUA, o Brasil produzia para uma minoria da população produto de luxo. Apartamento principalmente amplo, com várias vagas na garagem. Então você tem uma especulação com a terra que é muito forte. Ela não fez parte essencial do processo capitalista, se você pegar a produção de moradias, mas era necessário produzir controle sobre a renda da terra nesses países. E aqui, ao contrário, nós temos lei, os proprietários de terra sempre foram muito fortes. Então você tem um setor que é dos produtores imobiliários, você tem um setor que é das grandes empreiteiras, então uma coisa é construir edificação, outra coisa é

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programa “Minha Casa, Minha Vida”? Atende suficientemente as necessidades da população que ganha até três salários mínimos? Olha, no Brasil nunca atendeu, e eu acho muito difícil que venha atender de forma significativa. Foi lançado o PAC 2, que eu acho que a gente tem que prestar atenção, com uma carga de subsídio que até agora não existia. Já era impressionante para a história do Brasil o “Minha Casa, Minha Vida”, perto de 17 milhões de subsídios. Porque o BNH não tinha subsídio. Na verdade, houve subsídio para a classe média por que houve uma maracutaia. Mas do ponto de vista da lógica do programa, ele beneficiou a classe média, que era quem podia pagar e a lógica do programa era o retorno do investimento, porque era FGTS, o dinheiro tinha que ser remunerado. Nós passamos praticamente 25 anos sem investimento na área de habitação e saneamento. Qual foi o efeito disso? Foi quebrar o aparelho de Estado. Você fala: Antes aplicava na baixa renda?. Não, não aplicava na baixa renda. Eram aqueles conjuntos no fim do mundo, mas existia a migalha. E a migalha de alguma forma alimenta. A migalha do banquete, para usar o bolo do Delfim Netto.

Tatiana Merlino – Mas como política

habitacional, qual a sua avaliação? O “Minha Casa, Minha Vida” foi desenhado pelo governo federal e por um grupo de 11 empresários. Isso me chocou.

Lúcia Rodrigues - Onze empresários? Quem são esses empresários? São os 11 principais empresários da área da construção civil de promoção imobiliária. Lúcia Rodrigues - Camargo Corrêa... Não sei te dizer quem são os onze, eu sei te dizer alguns.

Hamilton Octavio de Souza - Mas o que quer dizer isso concretamente? O que quer dizer é uma tentativa de você produzir moradia por meio do mercado, porque com o Estado está difícil. E está difícil mesmo. Porque as prefeituras se queixam porque elas não têm acesso à terra. E a terra, pelo plano diretor, poderia ser gravada para a função social. Mas como ninguém faz isso... Lúcia Rodrigues - Quando você desloca o eixo da habitação para o mercado, o que acontece? Vamos entender o que aconteceu com o “Minha Casa, Minha Vida”. Hamilton Octavio de Souza - Vamos entender o mercado, o que significa isso? maio 2010

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Sim, vamos primeiro entender. Você quer construir milhares de moradias. Voce está percebendo que as prefeituras estão lentas e sem capacidade de botar obra na rua. O que você faz?

locar uma gleba dentro de São Paulo, não é? Então o que nós estamos vendo, agora sim, é a consequência disso. Nós vamos ter uma explosão na expansão da cidade. E nós já tivemos uma explosão do preço da terra.

Hamilton Octavio de Souza - Vou buscar a empresa privada para fazer a parceria. É. O “Minha Casa, Minha Vida” é isso. O que o “Minha Casa, Minha Vida resolve?

Otavio Nagoya - Ermínia, depois da tua

experiência dentro do governo federal, você ainda acredita no processo eleitoral para a transformação? Não acredito.

Hamilton Octavio de Souza - Essa casa vai custar muito mais... Aliás, o preço já explodiu. Mas eu vou explicar o porquê. Você tem um milhão de moradias para serem financiadas pelo “Minha casa, Minha vida”: 400 mil, o governo falou para os empresários “É de zero a três salários”. Nós não abrimos mão. Depois você tem 200 mil que vão de seis a dez salários. Duzentos mil não é pouco para o mercado brasileiro. Ele já está satisfeito com essas de seis a dez. Dentro dessas de seis a dez você tem casa de 500 mil reais, que é uma coisa que eu fiquei chocada. Para que um pacote que dá alguns subsídios se os subsídios dos 17 milhões do governo não vão para esses de seis a dez? Mas aí tem facilidade de escritura, subsídio nos juros, na securitização. Tatiana Merlino - Essa faixa da população

precisa disso? Pois é. É uma ótima questão. Por que no Brasil um cara que vai comprar um apartamento de 900 mil reais precisa estar dentro de um programa do governo?

Hamilton Octavio de Souza – Sim, por quê? Esse é o mercado que eu quis apresentar a vocês. É o mercado patrimonialista. O mercado patrimonialista quer subsídio para a classe média. Porque ele não quer diminuir o preço.

Hamilton Octavio de Souza – As empresas

que se associaram ao governo para fazer o “Minha Casa, Minha Vida” vão ganhar dinheiro nas faixas mais altas de renda? Elas não vão ganhar dinheiro nessa faixa de zero a três salários mínimos. E sim nas outras.

Tatiana Merlino - Aí é a compensação? É. É assim: de zero a três salários tem as operações estruturadas. É público / público. E aí pode entrar uma construtora para construir. Mas são as prefeituras que estão se mexendo para fazer para a baixa renda. Vou voltar um pouquinho só, falar das empresas brasileiras de incorporação, que é outro capital. Então você tem o capital de construção pesada e infraestrutura, o capital de edificação e o capital de incorporação. Edificação é quem constrói e incorporação é uma espécie de um capital comercial. Elas abriram o capital na bolsa, não sei se vocês se lembram, em 2007. Foram 17 empresas brasileiras que abriram o capital na bolsa. Dessas, poucas se mantiveram em pé. Elas pegaram os recursos captados na bolsa e compraram terra. Isso foi interessante. Elas fizeram um estoque de terras. Então o “Minha Casa, Minha Vida”, não vou dizer que era tudo o que elas queriam, mas era

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alguma coisa interessante. Eu estou com um estoque de terra, estou precisando de um financiamento, e o que é que o governo federal fez? Ele fez um pacote. E você tem virtudes no pacote, porque ele inclusive facilita o acesso à terra por parte das prefeituras. Por terras que estão abandonadas, e fica aquela coisa perene para você tomar posse. Porque no Brasil enquanto você tem fraude de um lado, de outro é difícil o poder público chegar em uma terra e dizer “tá bom, aqui nós vamos usar para fins sociais”. Qual é o nó desse negócio? Por que o preço da terra explodiu? Faltava dinheiro. Puseram dinheiro. Por que eu não fiz a reforma fundiária? Eu não apliquei o estatuto das cidades.

Hamilton Octavio de Souza - Quer dizer, no jogo do mercado essas terras acabam com o preço lá em cima. E as grandes empresas compraram terra onde? Tem uma empresa que está aqui em Caieiras com um projeto para 200 mil pessoas. Vai mais que dobrar a população de Caieiras. Eu vi alguns projetos na Caixa Econômica Federal. É de arrepiar o cabelo. Quer dizer, São Paulo vai explodir de uma forma... Hamilton Octavio de Souza – O poder público

tem que colocar a infraestrutura, não é? Eu fui discutir com a Caixa, que eles me pediram para dar uma ajuda. Eu disse a eles o seguinte, que pela Constituição Federal a responsabilidade pela aprovação da localização de um grande empreendimento é do município, não é de vocês. Agora não vai ter prefeito que queira me dizer “aqui você não vai construir isso porque eu não tenho assegurada a água, a distribuição de água para uma população desse tamanho”. Ou então: “Eu não tenho escola aí”, “Eu não tenho posto de saúde aí”. “Eu não tenho transporte aí”. A lei fala que os empreendimentos têm que estar dentro do tecido urbano. Mas é obvio que ninguém vai co-

Hamilton Octavio de Souza - Não acredita em quê? Não acredito na transformação pela via eleitoral. Não acredito. Eu acho que eu não estou dizendo que não há o que fazer. Eu sempre vou achar o que fazer. Na ditadura eu vou achar o que fazer. A gente ia e trabalhava com os moradores na periferia. Nós sempre vamos ter o que fazer. Eu costumo dizer que nós estamos em um debate político e urbano. Nós batemos no teto. Nós batemos no teto da produção acadêmica. Nós batemos no teto dos movimentos sociais urbanos Nós batemos no teto das estruturas democráticas. Acho que nós precisamos reinventar a luta. Agora a reinvenção dessa luta tem que levar em consideração a luta anticapitalista. Não é possível você achar que nós vamos mudar governo e isso está resolvido. Lúcia Rodrigues - Como se rompe esse modelo capitalista? Ah, querida, tem muita gente muito mais competente do que eu. Otavio Nagoya - E a perspectiva das eleições

de 2010? Como é que você está vendo? Olha, eu hoje estou menos interessada em eleições do que algum tempo atrás. Está claro. Eu ajudei a fundar o PT, trabalhei feito louca com políticas públicas etc. Os partidos hoje estão extremamente pragmáticos e voltados para eleições. É impressionante. Mesmo os mais radicais estão apostando que tem que ampliar o espaço eleitoral. Todo o trabalho de base, de massa que a gente fazia foi abandonado. Eu acho que o nosso grande problema agora é o seguinte: onde está a nossa unidade agora que nós não temos um partido que nos une? Eu estou insistindo muito nisso com os movimentos sociais que estão concordando muito com o que eu concordo: onde está a ponte campo-cidade?

Lúcia Rodrigues - Você está fora do PT? Estou.

Lúcia Rodrigues - Desfiliada legalmente? Não. Simplesmente não fui mais.

Hamilton Octavio de Souza - O que aconteceu com muita gente não é? É. Tem muito prefeito que eu ainda apoio, ajudo, mas é muito evidente que a coisa do pragmatismo e da negociação... eu acho que nós fechamos uma etapa.

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João Pedro Stedile

Ana Miranda

O agronegócio só produz com veneno

Cartas de

Mindlin

Todos os dias

Livros não deixam de ser cartas que escrevemos e

Já foram registrados pelas universidades casos de chuva com veneno agrícola, em cidades do Mato Grosso. Na região de Ribeirão Preto (SP), a água potável já aparece com incidência dos venenos da cana. Dos 17 milhões de trabalhadores da agricultura brasileira, apenas 1,6 milhão estão no agronegócio; os demais, na agricultura familiar. Todos os anos, os bancos públicos disponibilizam 90 bilhões de reais, da poupança nacional, para que o agronegócio plante. Para a agricultura familiar são menos de 8 bilhões. Pior, o Tesouro Nacional, o dinheiro de nossos impostos, precisa repor aos bancos a diferença entre o juro pago pelos fazendeiros e o juro de mercado. E isso custa por ano um bilhão de reais. Muito mais do que os recursos para reforma agrária. A Polícia Federal tem encontrado trabalho escravo, em média em uma fazenda por mês. Mas dorme na Câmara um projeto que determina a desapropriação das fazendas com trabalho escravo. Os parlamentares ruralistas não aceitam.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

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saem à deriva, como um solitário lança ao mar uma garrafa contendo sua mensagem. Não é endereçada, leva apenas o nome do remetente, mas também sua alma. Nosso bibliófilo querido, José Mindlin, reuniu uma preciosa coleção epistolar. Ele adorava cartas, escrevia-as e estimulava autores para que as escrevessem. Cartas escritas em papel não são efêmeras como as que hoje costumamos enviar e logo caem no esquecimento. Recebi de Irene e Mary Lou Paris um livro que elas organizaram e editaram: Cartas da biblioteca Guita e José Mindlin. Vão de 1647 a 1996, desde dom João IV, majestosamente assinada Rey, até a psiquiatra Nise da Silveira, que enviou a Mindlin um postal com gato em natureza morta, por sua “vocação de gato de livraria”. Material para dias e dias de exame e deleite. Cada carta revela algo do seu autor, seja pela letra, pela escolha e arrumação das palavras, pelo tom que as sublinha ou os sentimentos que guardam esses papéis escritos quase sempre num gesto de entrega, quem sabe, involuntária. O tempo vai passando, os manuscritos se transformam em datilografias, a caligrafia se desvanece, as palavras e o modo de uso vão mudando. Cada uma das 55 cartas daria um tratado, sob uma chave de personalidade ou história: a princesa Carlota Joaquina surpreende-nos com uma caligrafia nada turbulenta, e até carinhosa, em carta à filha, mas não deixa de mencionar conspirações; Dom Pedro I ordena secamente, Já!, e Pedro II escreve sob mágoas, abrasileirado; Euclides da Cunha, que assinava o nome com y, comenta seus “embrulhos” em linguagem pessoal; Lima Barreto revela sua severa inquietação, candidatando-se à Academia, para logo retirar-se da disputa, sem dar as razões; Rubem Braga envia um cartãozinho como pequenina crônica; Adélia Prado, um bilhete singelo, com sua mão divina; Drummond, no costumeiro recato, recusa homenagens; Manoel de Barros encanta com uma letra cada vez menor, “que vai virando formiguinha”... e um pequeno relato meu, derramado em afetos. Cada carta vem acompanhada de pequena biografia do autor e do destinatário, assim como anotações que inserem a missiva em seu contexto. Como dizia Mindlin, escrevamos cartas! Ana Miranda é escritora.

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Ilustração: HKE

a grande imprensa faz apologia ao agronegócio. Seriam eles que abastecem nossa população de alimentos, salvam a balança comercial, dão emprego aos pobres do campo e até sustentam a economia brasileira nas costas. Quanta mentira junta! Os grandes proprietários de terra são também capitalistas na cidade, e muitos deles têm ações e vínculos com as empresas da mídia. A associação brasileira de agronegócio tem apenas 50 sócios, transnacionais, grandes cooperativas capitalistas e, pasmem, também a Rede Globo e o grupo O Estado de S. Paulo! Mas, infelizmente, a realidade do agronegócio é outra. O agronegócio se baseia na produção em grande escala, em lavouras de monocultivo – de uma só planta. Usam muita máquina e, portanto, desempregam, além de muito veneno, para matar todos os outros seres vivos que existam naquele espaço, sejam vegetais ou animais. Somente sobrevive o produto que eles plantam. Cerca de 80% das terras utilizadas pelo agronegócio se destinam a apenas quatro produtos: soja, milho, cana e pecuária bovina. E grande parte dessa produção vai para exportação. No entanto, quem controla as exportações são transnacionais. Por exemplo, o Brasil é o maior exportador mundial de soja. Exportamos 40 milhões de toneladas em grãos, ainda como matéria-prima. E quem ganha com essas exportações? Cinco transnacionais: Bunge, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto. O Brasil se transformou no maior consumidor mundial de venenos agrícolas. São 720 milhões de litros de venenos. Matam os demais seres vivos, afetam a fertilidade do solo, contaminam as águas do lençol freático e ficam resíduos nos alimentos que você consome. E quem produz? Bayer, Basf, Syngenta, Monsanto, Shell Química. Nenhuma empresa brasileira. Pior, a Anvisa já confiscou e incinerou milhares de litros adulterados pelas empresas Bayer, Basf e Syngenta. Uma delas chegou a adicionar um perfume para deixar o veneno mais aceitável.

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Eduardo Matarazzo Suplicy

porca miséria! Glauco Mattoso

O Congresso da

Renda Básica

TRELA NA TELA [soneto 3123] Você ja não esteve no sofá da Hebe? Ou cara a cara co’a Gabi? Pensando bem, eu acho que ja vi você com o Abujamra, dando um pla... Ah, nunca foi no Jô? Torço que va! Mas, caso for no Ronnie Von, aqui p’ra nós, me avise, tá? Você sorri tão bem, que animaria a todos la... Na Sylvia? Bem... Eu acho que seria perder tempo: a si mesma ella responde. Rattinho? Não! É muita gritaria! Caralho! É mesmo! Agora eu ja sei onde você pode fallar de putaria: do Gordo nenhum sadico se esconde...

Nunca fui entrevistado pela Hebe, mas, ao entrevistar gente bonita e decente, ella ja fallou mal do meu livro, o oitentista “Manual do podolatra amador”, por exaltar o pé masculino e não o delicado pezinho duma actriz de telenovella. Dos entrevistadores alludidos neste soneto, só gravei com Abujamra no “Provocações” e com Ronnie Von no “Todo seu”, este quando me convidou, juncto com Cacá Rosset, para fallarmos dos agitos de 1968, anno em que a nossa geração estudantil era a “esquerda festiva”, dividida entre applaudir Caetano ou Vandré, epocha em que o Zé Dirceu ainda tinha cabellinho estylo Beatle e eu nem hippie era. Si não estive nos programmas mais badalados, em compensação gravei com Ferréz, Clemente, Pereio, Lobão, Marcello Tas, Marcello Rubens Paiva e outros descontrahidos. Agora, mesmo que me chamem, não dou mais entrevista, deixo para os queridinhos das companhias. Fallemos franco: poeta não apita nada. Muito menos um ve-

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lho punk cego. Nada mais tenho a declarar nas telinhas e nos microphones. Quem tem que se explicar, em publico e ao povo, são os politicos. E com elles parece que os entrevistadores pegam leve. O Boris, por exemplo, foi inevitavelmente duro com o Sergio Naya na epocha em que cahiu aquelle predio no Rio, mas, com Temer, Maluf, FHC e outros caciques, sempre alliviava nas questões mais melindrosas. Tudo para fazer esse recente papellão com os lixeiros! Que adeanta, depois, pedir desculpas pela “gaffe”? Acho que todos esses anchoras e apresentadores teem mais responsabilidade do que simplesmente “conversar” com as auctoridades. Deviam, isso sim, pedir desculpas por não jogarem na cara de pau dessas authenticas celebridades tudo de sujo que ellas fazem ou toleram, muito mais sujo, aliaz, que meu manualzinho de podolatria, que tanto indignou a Hebe... Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Em 30 de junho, 1º. e 2 de julho, acontecerá na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o XIII Congresso Internacional da BIEN, Basic Income Earth Network, Rede Mundial da Renda Básica. O primeiro dia será dedicado ao Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará a palestra de abertura do dia internacional na manhã de 1º. de julho. Os coordenadores brasileiros do congresso, professores Lena Lavinas e Fábio Waltenberg, a coordenadora acadêmica professora Célia Lessa Kerstnetzky e a direção executiva da BIEN ficaram felizes com o grande interesse despertado. Até 24 de abril, mais de 150 trabalhos foram submetidos por pesquisadores de mais de 30 países dos cinco continentes sobre os seguintes tópicos: A renda básica e a cultura; a RB, democracia e justiça; RB e comunidades informais, migrantes, favelas, quilombos, vilas rurais e indígenas; RB e discussões contemporâneas de desenvolvimento; RB e a crise econômica global; RB e bem-estar social; políticas familiares, pensões, serviços sociais e a transição de programas condicionados para programas universais; RB e o trabalho, temas éticos e situações no mercado formal e no informal; RB e enfoques comparativos: garantia de emprego, capital básico, o crédito fiscal por remuneração recebida, renda mínima de inserção, bolsa família, solidariedade, oportunidade; RB, países e regiões, integração regional; RB, política de esquerda e ou de direita?; Financiamento da RB nos âmbitos regional, nacional e global; RB e as questões rurais e urbanas de violência, segurança econômica. Será o mais importante evento desta natureza já ocorrido nas Américas. Os professores Philippe Van Parijs, Claus Offe, Guy Standing, Karl Widerquist, Ingrid Van Niekerk, José Antonio Ocampo, Pablo Yanes, Rubén Lo Vuolo, Toru Yamamori, Scott Goldsmith, Carmelo Mesa-Lago, Amit Bhaduri, Andrea Fumagali, Bispo Zephaniah Kameeta, entre outros, já confirmaram sua participação. O Brasil foi escolhido para sediar o congresso porque foi o primeiro país do mundo onde o Congresso Nacional aprovou a Lei que institui a RB de Cidadania, incondicional, a ser instituída por etapas, iniciando-se pelos mais necessitados. Informações adicionais em www.bien2010brasil. com e www.basicincome.org. Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Ilustração: bruno paes

de Cidadania na Terra

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Frei Betto

Socialismo e

LIBERDADE

O socialismo é estruturalmente mais justo que o capitalismo. Porém não soube equacionar a questão da liberdade. Cercado por nações e pressões capitalistas, o socialismo soviético cometeu o erro de abandonar o projeto originário de democracia proletária para perpetuar a estrutura imperial czarista da Rússia, agora denominada “centralismo democrático”. Em países como a China é negada à nação a liberdade concedida ao capital. Ali o socialismo assumiu o caráter esdrúxulo de “capitalismo de Estado”, com todos os agravantes, como desigualdade social e bolsões de miséria, superexploração do trabalho etc. Não surpreende, pois, que o socialismo real tenha ruído na União Soviética. O excessivo controle estatal criou situações paradoxais, como o pioneirismo dos russos na conquista do espaço. Mas não conseguiu oferecer bens de consumo de qualidade, mercado varejista eficiente e pedagogia de formação dos “homem e mulher novos”. Nesse cenário, Cuba é uma exceção. Trata-se de uma quádrupla ilha: geográfica, política (é o único país socialista do Ocidente), econômica (devido ao bloqueio imposto pelo governo dos EUA) e órfã (com a perda do apoio da extinta União Soviética). O regime cubano é destaque no que concerne à justiça social. Prova disso é o fato de ocupar o 51º lugar no IDH estabelecido pela ONU (o Brasil é o 75º) e não apresentar bolsões de miséria – embora haja pobreza – nem abrigar uma casta de ricos e privilegiados. Se há quem se lance no mar em busca de uma vida melhor nos EUA, isso se deve às exigências de se viver num sistema de partilha. Quanto à liberdade individual, jamais foi negada aos cidadãos, exceto quando representou ameaça à segurança da revolução ou significou empreendimentos econômicos sem o devido controle estatal. É inegável que o regime cubano teve, ao longo de cinco décadas, suas fases de sectarismo, tributárias de sua aproximação com a União Soviética. Porém, jamais as denominações religiosas foram proibidas, os templos fechados, os sacerdotes e pastores perseguidos por razões de fé. A visita do papa João Paulo II, em 1998, e sua apreciação positiva sobre as conquistas nas áreas de saúde e educação, o comprovam. No entanto, o sistema cubano sinaliza que poderá equacionar melhor a questão da liberdade por meio de mecanismos mais democráticos de participação popular no governo, maior rotatividade no poder, de modo que as críticas possam chegar às instâncias superiores sem que sejam confundidas com manifestações contrarrevolucionárias. Na área econômica, Cuba terá de facilitar o acesso à produção, consumo de bens e parcerias com investimentos estrangeiros. No socialismo não se trata de falar em “liberdade de”, e sim em “liberdade para”, de modo que esse direito inalienável não ceda aos vícios capitalistas que permitem que a liberdade de um se amplie em detrimento da liberdade de outros. O princípio “a cada um, segundo suas necessidades; de cada um, segundo suas possibilidades” deve nortear a construção de um futuro socialista em que o projeto comunitário seja, de fato, a condição de realização e felicidade pessoal e familiar. Frei Betto é autor de A mosca azul – reflexões sobre o poder (Rocco).

Fidel Castro

O 9º Congresso da União de Jovens

Comunistas de Cuba

Tive o privilégio de acompanhar pela TV o 9º Congresso da União de Jovens Comunistas de Cuba, no Palácio das Convenções, no domingo, 4 de abril. O mérito da Revolução Cubana pode se medir pelo fato de que um país tão pequeno tenha podido resistir durante tanto tempo à política hostil e às medidas criminosas lançadas contra nosso povo pelo império mais poderoso surgido na história da humanidade, o qual, acostumado a manejar à vontade os países do hemisfério, subestimou uma nação pequena, dependente e pobre a poucas milhas de suas costas. Isso não teria sido jamais possível sem a dignidade e a ética que caracterizaram sempre as ações da política de Cuba, assediada por repugnantes mentiras e calúnias. Junto à ética, forjaram-se a cultura e a consciência que fizeram possível a proeza de resistir durante mais de 50 anos. Não foi um mérito particular de seus líderes, senão fundamentalmente de seu povo. A enorme diferença entre o passado em que apenas podia ser pronunciada a palavra socialismo e o presente, pôde ser percebida na sessão final do 9º Congresso da União de Jovens Comunistas de Cuba, nos discursos dos delegados e nas palavras do presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros. Em suas palavras de encerramento, breves, profundas, precisas, Raúl pôs os pingos nos is em vários temas de suma importância. O discurso foi uma estocada profunda nas entranhas do império e seus cínicos aliados, ao expressar críticas e autocríticas que fazem mais fortes e incomovíveis a moral e a força da Revolução Cubana, se formos consequentes com o que cada dia nos ensina um processo tão dialético e profundo nas condições concretas de Cuba. Contamos atualmente com um povo que passou do analfabetismo a um dos mais altos níveis de educação do mundo, que é dono da mídia em massa, e pode ser capaz de criar a consciência necessária para superar dificuldades antigas e novas. Independentemente da necessidade de promover os conhecimentos, seria absurdo ignorar que, num mundo cada vez mais complexo e mutável, a necessidade de trabalhar e de criar os bens materiais que a sociedade necessita constitui o dever fundamental dum cidadão. A Revolução proclamou a universalização dos conhecimentos, ciente de que quanto mais conhecer, mais útil será o ser humano em sua vida; mas nunca se deixou de exaltar o dever sagrado do trabalho que a sociedade requer. O trabalho físico é, pelo contrário, uma necessidade da educação e da saúde humana, por isso, seguindo um princípio martiano, proclamou-se muito cedo o conceito de estudo e trabalho. O esquecimento de quaisquer desses princípios entraria em conflito com a construção do socialismo.

Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

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Lúcia Rodrigues

Financiamento O sonho do canudo virou pesadelo na vida de milhares de estudantes. Sem emprego fixo e com o nome sujo no Serasa em função da inadimplência com a Caixa Econômica Federal, Edney Mota exemplifica o drama vivido por esses estudantes. Ele acumula uma dívida de quase R$ 50 mil com a instituição bancária.

Edney Mota quer devolver o diploma.

Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), crédito educativo do governo federal destinado aos estudantes de baixa renda que passaram no vestibular de faculdades particulares e não têm como bancar os estudos, se transformou em uma verdadeira tormenta na vida de milhares de estudantes brasileiros. A dívida acumulada com a Caixa Econômica Federal no decorrer do curso cresce exponencialmente e se torna praticamente impagável logo após a formatura. A crise gerada por esse tipo de financiamento, que ao invés de facilitar a vida de estudantes carentes acaba criando um problema gravíssimo para estes quando concluem a graduação, está levando o Ministério da Educação a rever o programa criado, em 1999, pelo governo do tucano Fernando Henrique Cardoso e mantido na gestão do presidente Lula. Várias modificações estão sendo discutidas pelo MEC para tentar amenizar o caos em que se transformou o Fies, mas até o fechamento desta edição o Ministério da Educação não havia transformado as propostas em uma legislação que de fato proteja o aluno pobre. Além disso, os estudantes que ingressaram nas instituições de ensino privado neste ano também não estão conseguindo

ter acesso ao financiamento, que está suspenso até que o MEC efetive as novas regras para o Fies. Pela proposta, o alongamento do prazo de carência para o início do pagamento da dívida passará dos atuais seis meses para um ano e meio. O Ministério também está propondo a prorrogação do prazo para o pagamento do financiamento, que seria ampliado de duas vezes o tempo de duração do curso para três vezes. Com isso, o estudante que se forma em quatro anos, passaria a ter 12 anos para saldar o total da dívida contraída. O MEC também pretende que os futuros médicos e professores que ingressem nas redes públicas de saúde e educação possam abater anualmente 1% de suas dívidas. No início do ano, o Ministério também reduziu os juros dos contratos de financiamento de 9% para 3,4% ao ano. As medidas estão sendo encaradas pelo Ministério da Educação como a tábua de salvação para evitar o naufrágio do programa, mas estão longe de resolver o problema dos estudantes pobres. Apesar de amenizar os impactos negativos para os futuros financiamentos, essas propostas não resolvem o problema dos estudantes que possuem contratos antigos, como é o caso de Edney Mota. Formado em jornalismo pela Pontifícia Uni-

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versidade Católica de São Paulo, PUC-SP, em 2002, Edney está com o nome sujo no Serasa há cinco anos porque não conseguiu pagar a dívida com a Caixa Econômica Federal. O jornalista não arrumou emprego fixo quando terminou o curso e a dívida virou uma bola de neve. Em abril deste ano, Edney devia para a Caixa R$ 49.153,70, apesar da dívida de capital ser de apenas R$ 9.896,39. Os juros estratosféricos inflacionaram o saldo devedor e o levaram à inadimplência. “Eu estudei com muita dificuldade. Meu pai é pedreiro, minha mãe teve derrame, tenho uma irmã excepcional. Não consegui pagar porque não arrumei emprego. Minha divida é de pouco mais de R$ 9 mil reais e o banco quer me cobrar quase R$ 50 mil. É um absurdo”, protesta Edney. Os efeitos negativos do financiamento estudantil não atingiram apenas ele. Seu irmão, que no caso é o fiador da dívida, também está sentindo na pele o peso da mão do credor. A Caixa pediu o bloqueio de sua conta bancária. E a Justiça determinou que 30% do dinheiro que entra seja bloqueado. Além disso, o irmão também corre o risco de perder o carro, único bem que possui, para saldar parte da dívida.

foto jesus carlos

vira tormenta na vida de estudantes pobres

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Edney está preocupado com as consequências que sua inadimplência está acarretando para o irmão, que praticamente rompeu relações com ele em função do problema gerado. “Ele ainda não me perdoou, acha que é um problema meu e que eu tenho de resolver.” Ele conta que seu irmão é funcionário público e que os advogados da Caixa penhoraram a conta salário dele. “Como não conseguiram os R$ 50 mil, a próxima ação será penhorar o carro. Eu não tenho carro, mas meu irmão tem um Gol antigo. Terminada a penhora e como não vão conseguir atingir o valor, vão querer penhorar a casa”, afirma apreensivo. A sorte de Edney, que mora na residência da família no Capão Redondo, em Campo Limpo, na periferia da zona sul da capital paulista, é que a casa não está no nome do irmão, que também não tem nenhum outro imóvel e, portanto, não tem mais o que penhorar. O teto do jornalista também foi conseguido com muita luta. Os familiares de Edney se cotizaram para a compra do terreno e seu pai ergueu os cômodos. “Moro com minha família, minha mãe, minhas irmãs, meu cunhado, dois sobrinhos. Mora a família inteira, é como se fosse uma comunidade”, ressalta. Ao contrário da permissividade que tem com os grandes devedores latifundiários, banqueiros e empresários no pagamento de suas dívidas, a Caixa Econômica Federal é extremamente rígida com aqueles que buscam apenas um financiamento para custear os estudos. O banco não fala sobre inadimplência. A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com a instituição, mas ninguém quis se manifestar sobre o assunto. Em abril, o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp) divulgou o índice de inadimplência. O percentual recuou 2,74% em 2009 em relação ao ano anterior, mas atinge 23,9% dos estudantes. Na região metropolitana da capital paulista o percentual é maior e chega à casa dos 33,9%. Esse é o terceiro maior índice de inadimplência registrado nos últimos 11 anos no Estado, segundo o sindicato das mantenedoras.

Fies Justo Daniela Pellegrini Nóbrega, líder do Fies Justo, movimento de defesa dos direitos dos estudantes que possuem o financiamento federal, orienta os inadimplentes que correm o risco de ter a dívida executada a entrarem com embargo de execução na Justiça. A medida, no entanto, tem apenas caráter protelatório e não afasta de vez o risco da execução da dívida. “Estamos cobrando do MEC para que parem de executar as dívidas e façam logo essa legislação.” Para quem está com o nome sujo no SPC, Daniela é mais pessimista. “Por mais que se faça, a situação vai continuar na mesma, porque quase todos os tribunais estão indeferindo nossos pedidos”, lamenta.

O Fies Justo nasceu da preocupação da estudante de direito, Daniela, que se formou em uma faculdade particular de Brasília, em defender os interesses daqueles que, assim como ela, têm o crédito educacional. O movimento se organiza virtualmente pelo sítio (www.fiesjusto.com.br) para pressionar o Executivo e parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a encontrar uma solução para o problema criado pelo formato do financiamento estudantil. “Em 2008 comecei a organizar o movimento, a buscar apoio dos deputados, pedia que os estudantes mandassem e-mail para os parlamentares pressionando. Eu ia sempre ao Congresso, então comecei a coordenar o Brasil todo. Não conhecia ninguém, as pessoas foram entrando no site...”, conta. Ela acredita que o movimento reúna, hoje, em torno de 10 mil estudantes. Daniela também está empenhada em demonstrar que a Caixa cobra juros indevidos dos estudantes que buscam financiamento para estudar. “Podem estar faturando à nossa custa mais de um bilhão de reais. Se ficar comprovando que estão cobrando indevidamente, vamos pedir o ressarcimento. Se a Caixa não tomar nenhuma providência, vamos tornar isso público e entrar com uma ação coletiva. O que eles cobraram a mais vai ter de ser devolvido para todos.” “Se a educação é uma garantia constitucional, não podem agir dessa forma. Estamos falando de um programa social que está martirizando, detonando os estudantes”, argumenta. Para ela, as regras do novo Fies que estão sendo propostas pelo MEC ainda não resolvem o problema dos estudantes. “Ameniza, fica mais maleável, mas ainda não é solução para os problemas dos que já se formaram. Para quem está entrando é excelente. É muito bom. Mas o que adianta eles criarem soluções para quem ainda não tem problemas? Queremos soluções para quem já tem problemas. E a soluções que eles dão para essas pessoas não servem”, reclama. Daniela explica que, apesar de o prazo de financiamento ser ampliado, o sistema de amortização se baseia na tabela Price, que faz com que a dívida se torne mais alta no final. “Estamos diante de um problema social, e o novo Fies não vai ser a solução para esse problema. A solução seria devolver praticamente o que nós pegamos emprestado, não o dobro ou triplo desse valor. O problema são os juros cobrados”, conclui. Ela acredita que a implantação das novas regras do Fies não deve ser posta em prática no curto prazo. “Ainda vai demorar um pouco, o MEC não estabeleceu um prazo, mas nós continuaremos cobrando. Há um jogo de empurraempurra. O MEC diz que está esperando a Caixa...”, critica.

Falta de transparência Pelas novas regras fixadas pelo Ministério da Educação e que devem entrar em vigor, a Caixa perderá poder. Na prática para o estudante isso não muda muita coisa, mas o banco deixará de

ser o operador do programa, que passa a ser controlado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia do Ministério da Educação. Além disso, a Caixa também perderá o monopólio sobre o financiamento dos contratos de crédito, que também passarão a ser oferecidos pelo Banco do Brasil. Até 2009, a Caixa executava as duas funções com exclusividade. A falta de transparência no cálculo das dívidas dos estudantes e a burocratização nos procedimentos são criticadas até mesmo por aliados do governo. “A fórmula do cálculo é bem complexa, as pessoas não conseguem entender como a Caixa chega àquele resultado, que transforma a dívida em uma bola de neve”, critica o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), um dos principais defensores desses estudantes na Câmara dos Deputados. O parlamentar adverte que no Brasil há mais de 43 mil fiadores com dívidas sendo executadas. “Têm casos dramáticos, em que os estudantes morreram e mesmo assim a dívida foi executada”, lamenta. Ele afirma que conseguiu incorporar às novas regras que o MEC deve anunciar que, nos casos de morte, a dívida não seja executa. Ainda segundo ele, a emenda que permitiu estender a todos os contratos de financiamento estudantil os juros de 3,4% ao ano também é de sua autoria. “O projeto original só tratava daqui pra frente. Consegui aprovar uma emenda estendendo o benefício também para os contratos antigos. Mas a interpretação da Caixa é muito restritiva, porque só aceita que o percentual seja daqui pra frente. Não retroage no cálculo.” A restrição imposta pela Caixa impede, por exemplo, que o valor da dívida dos contratos em vigência possa ter seu saldo recalculado com base nos juros reduzidos propostos. Isso impede um abatimento significativo nesse montante. Pela interpretação, os juros de 3,4% devem incidir sobre o saldo devedor elevado. Pimenta, que tem se destacado no Congresso Nacional como um dos parlamentares que apoiam a luta dos estudantes que possuem o Fies, já realizou audiências públicas, com a presença de representantes do MEC e da Caixa Econômica Federal para tentar resolver o problema. Para ele, a entrada do Banco do Brasil no processo de financiamento estudantil é uma alternativa. “A ideia ao abrir para o Banco do Brasil é facilitar, dar mais uma opção para o aluno, porque hoje o processo é muito burocratizado.” Pelas regras que devem entrar em vigor a partir deste ano, o financiamento estará disponível de maneira contínua. O estudante poderá solicitar o financiamento dos estudos a qualquer momento do ano. As inscrições poderão ser feitas, exclusivamente, por meio de um sistema eletrônico disponível no Portal do MEC, que será gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A data de início das inscrições, no entanto, ainda não havia sido divulgada. maio 2010

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Devedor do Fies quer devolver diploma para saldar dívida com banco Edney Mota está disposto a entregar o diploma de jornalista que obteve na PUC-SP, em 2002, para ter a dívida com Caixa Econômica Federal quitada. Desde que se formou, ele não conseguiu arrumar emprego com carteira assinada. Atualmente desenvolve trabalhos esporádicos, o que enfraquece o orçamento. “Depois que me formei nunca mais trabalhei registrado. Sou prestador de serviços na área de educação. Quando tem serviço, recebo, quando não tem, não recebo. Se arrumasse um trabalho, pagaria a dívida”, enfatiza. Apesar das adversidades vividas, ele conseguiu reunir forças para concluir o mestrado graças a uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia, que lhe permitiu custear os estudos na universidade. Recentemente se inscreveu em um concurso do MEC para trabalhar como educador social em regiões pobres do Brasil. “Quero dar aula no interior da Bahia, meu pai mora lá. Esse contrato do MEC era para ganhar R$ 55 mil. Se eu arrumasse esse emprego conseguiria pagar a dívida.” Ele faz questão de ressaltar que quer pagar a dívida que contraiu. “Dizem que não queremos pagar, que os estudantes querem dar calote, mas isso não é verdade, frisa. Edney desconfia que o fato de ter o nome sujo acaba dificultando a colocação no mercado de trabalho. “Tenho dificuldade de achar emprego por causa disso. Tem empresas que não contratam se o nome está sujo. Não falam abertamente, porque é proibido por lei, mas fazem esse levantamento. Apesar de não conseguir emprego, ele tem

uma boa experiência na área jornalística. Enquanto cursava a graduação, estagiou na Rádio Globo. “Fiquei dois anos na Globo ganhando R$ 300. O que é outra sacanagem. Trabalhava no jornalismo esportivo, mas fazia de tudo: plantão, locução, narração, reportagem. Tenho os materiais gravados. Me arrependi de não ter entrado na Justiça do Trabalho.” Na Record também trabalhou no jornalismo esportivo durante três meses, sem registro, prestando serviço. Apesar de querer devolver o diploma, o advogado gratuito, que Edney arrumou, entrou com uma ação na 21ª Vara Federal Judiciária de São Paulo, onde corre o processo, para propor um acordo à Caixa. Pela proposta, a dívida seria saldada em 168 meses ou 14 anos, com uma prestação de R$ 364,17. Até o fechamento desta edição o juiz não havia se manifestado sobre o assunto. A reportagem da Caros Amigos procurou o ministro da Educação, Fernando Haddad, para que ele comentasse as alterações no Fies e falasse como o MEC pretende resolver os problemas dos contratos antigos, como é caso do de Edney, mas a assessoria de imprensa do ministro não deu retorno. Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista com Edney Mota.

Você se arrepende de ter buscado financiamento para estudar? Muito, muito. Uma proposta, que não é inédita, seria a de devolver o diploma para eles acabarem com a nossa dívida, tirarem o nosso nome do Serasa e deixarem a gente em paz. Como assim? Quando você vai ao banco e pega um empréstimo para comprar um carro e não pode pagar, o que acontece? O banco toma o carro. Quando você financia uma casa e não pode pagar, o que acontece? O banco toma a casa. No caso da educação o que eu posso devolver para eles, se eu não tenho dinheiro, não tenho emprego? Eu fui ao banco e fiz uma oferta para pagar R$ 20 mil e eles não aceitaram, querem receber tudo. Recentemente meu advogado fez uma petição para o juiz para ver se aceitam um acordo para pagar a dívida em 14 anos, com uma parcela de R$ 364. Você só fez a faculdade porque teve financiamento? Jamais teria estudado se não fosse por meio de bolsa. Vem de uma família humilde? Muito humilde, meu pai é pedreiro, minha mãe é dona de casa, não tem nenhuma fonte de renda, teve derrame há aproximadamente dez anos e não recebe um tostão do governo. Eu tenho uma irmã excepcional que recebe um salário mínimo,

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mas é a maior dificuldade para receber, a maior burocracia. É muita luta, mas a gente é de luta. A gente não é de se entregar, não. E não quer nada de presente. A gente quer pagar, mas o justo.

Os juros cobrados é que são o problema? Os juros e as multas que eles cobram, mais os honorários advocatícios. Eles me colocam na Justiça para receber o dinheiro e eu é que tenho de pagar os honorários dos advogados deles. Quando você acha que a dívida será executada? Quando meu irmão foi meu fiador ele era solteiro, mas agora casou. Para fazer acordo comigo, a Caixa exigiu a assinatura dele e da esposa. A minha cunhada evidentemente se recusou a assinar. Entrei com a petição para fazer o acordo para evitar a execução. Isso desgastou sua relação com seu irmão ou ele entende o problema? Com meu irmão e minha cunhada. Eu não falo mais com ele, não vou a casa deles há pelo menos cinco, seis meses. Ele está bravo com você? Muito bravo. Porque ele não consegue fazer nada. Ele ainda não me perdoou, acha que é um problema meu e que eu tenho de resolver. E eu dependo da Caixa, do jurídico, do governo... Mais dia menos dia vão levar o carro dele, e eu vou ter de assumir isso. No momento você está trabalhando? Sou prestador de serviços na área de educação. Quando tem serviço, recebo, quando não tem, não recebo. Em abril não recebi nada. Se arrumasse um trabalho, pagaria a dívida. Quando você tem serviço recebe por volta de quanto? Recebo uma média de R$ 1.600. O máximo que recebi foi R$ 2.300. E se estivesse pagando a Caixa de quanto seria essa prestação? Eu não tenho certeza, mas acredito que em torno de mil reais. Foi complicado para você conseguir esse financiamento? Não, foi superfácil. Tive de levar comprovante de endereço e os documentos. O fiador também levou cópia de RG e CPF e o holerite, que é o mais importante para eles (credor). Não há burocracia para entrar? Não, é muito fácil. O problema é para sair. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

Sol Oswald e o Palácio Trotskista Que beleza, fico eu feliz, José Celso Martinez tomou assento na Jangada de Getúlio, Jango e Brizola. Intérprete inteligente de O Rei da Vela, percebeu que a candidata Marina é a ecologia do Banco Mundial com o manto evangélico. A teoria literária bandeirante mistificou o seringueiro Mário de Andrade, adorado poeta que nunca teve no entanto olhos para ver a espoliação imperialista de que padece o povo, submetido a um desenvolvimento cafajeste e injusto. Eu compartilho com Zé Celso a admiração por Oswald de Andrade, o sol da Semana de 22. Por que Oswald do sol? É que ele, surpreendentemente antes do estrago na biosfera feito pelo petróleo, fez a crítica ecológica do capitalismo informado pela luz dos trópicos. O seu movimento filosófico da “antropofagia” é a promessa do paraíso vegetal e da fotossíntese. O coração hidrato de carbono do modernismo. Oswald de Andrade foi maravilhoso em avançar com a Dialética da Natureza de Engels, conforme escreveu Darcy Ribeiro

em A Utopia Selvagem: capitalismo é ecocídio. O problema é que Oswald de Andrade ficou embasbacado com o ano de 1945, que foi para ele um ano difícil, embarcou no mote da democracia à UDN contra o Estado Novo de Vargas. O conflito interimperialista da Segunda Guerra foi visto como um entrevero entre democracia e fascismo, dentro do qual Getulio, o “anão Vargas”, não passava de uma versão caricata de Hitler e Mussolini. Não compreendeu que o nacionalismo de uma nação oprimida não é igual ao de uma nação opressora, assim como nada tem a ver a Carta de Lavoro de Mussolini com a legislação trabalhista de Vargas. O cenário político de 1945 confundiu muita gente de esquerda. Nesse ano Oswald de Andrade sai do partidão estalinista (aí nunca foi lido, Prestes gostava mais do liberal Mário de Andrade), mas embarca na prosápia de Browder, secretário estalinista do PC norteamericano, que antecipa a “terceira via” de Blair e Clinton. Oswald de Andrade não teria se entusiasmado com Browder se tivesse assimilado as idéias de

Trotsky, o qual não foi devidamente lido por ele, o que não deixa de ser estranho, pois Trotsky era um notável escritor chegado nas vanguardas literárias. Do México, no começo da década de 40, Trotsky mandou recado claro: entre o imperialismo inglês e Vargas, Trotsky fechava com o Estado Novo varguista. Infelizmente não houve o encontro (embora fosse possível entre 1945 e 1954) de Oswald de Andrade com Leonel Brizola. Oswald de Andrade conheceu o Uruguai, indo encontrar-se com Prestes em 1928, mas não o Rio Grande do Sul. Em 1945, aos 23 anos, Leonel Brizola compreendeu aquilo que passou desapercebido ao cinquentão Oswald de Andrade, culto, vivido, viajado: a queda de Vargas em 1945 foi urdida pelo imperialismo norteamericano. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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ensaio ALEJANDRA DAGLIA A outra face da Itália. Gênova. Daqui, no século passado, centenas de italianos embarcavam em transatlânticos em busca de uma vida melhor. Hoje, seus fascinantes becos estreitos e escuros são o palco de um fenômeno que, inexoravelmente, transformará a sociedade europeia em um encontro de línguas, religiões e etnias. Atualmente, quase seis milhões de estrangeiros residem regularmente na Itália, mas o país ainda é cenário de contrastes e de uma desconfiança latente em relação aos estrangeiros. Abdel, por exemplo, vive em um contêiner nos arredores de um bairro chique da cidade, enquanto muitos imigrantes de origem chinesa são marginalizados e interagem somente com outros estrangeiros. Na zona do porto antigo de Gênova, muitos cidadãos de origem africana esperam eventuais clientes para as suas bolsas falsificadas, enquanto outros estrangeiros fazem compras em lojas de grife. Os imigrantes latino-americanos, em especial mais numerosos, os equatorianos, são aqueles que encontram maior facilidade para inserir-se nesse contexto, quase sempre frequentando igrejas. Essa é a outra face da sociedade europeia.

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Tatiana Merlino

VALE, a mineradora com as

mãos sujas de sangue Por trás da imagem verde e amarela que vende na televisão, a exestatal Companhia Vale do Rio Doce, hoje uma transnacional, coleciona denúncias de graves violações trabalhistas e ambientais por todo o planeta. Fotos Acervo Justiça nos Trilhos

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No povoado de Piquiá, no Maranhão, pó de minério emitido pelas chaminés da siderúrgicas polui a cidade.

eru, 2006 No dia 22 de julho, o líder camponês José Lezma Sánchez é abordado por três homens numa feira do município de Eduardo Villanueva. De maneira violenta, é colocado em uma caminhonete e levado a sua casa, em Campo Alegre. Chegando lá, sua casa é vasculhada. Como não encontram nada, começam a agredi-lo fisicamente e o ameaçam de morte caso insista nas ações “antimineradoras”. Sánchez era presidente da Frente de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio Cajamarquino (Fredemac), que se opunha à instalação, na região de Cajamarca, da mineradora Miski Mayo, subsidiária da transnacional brasileira Vale SA (antiga Companhia Vale do Rio Doce). Víctor Acosta, também integrante da Fredemac, conta que episódios semelhantes ocorreram com diversas lideranças camponesas que se opuseram à implantação da mineração na área. “Primeiro, tentavam comprar, chantagear. Como não deu certo, partiram para o uso de milícias armadas”, explica. Acosta conta que os camponeses são contrários “à mineração porque defendem suas águas. Não existe atividade agrícola e pecuária sem água, por

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isso eles se opõem às atividades extrativas”. A Miski Mayo instalou-se em Cajamarca em 2004. Três anos depois, a pedido da população local, a Comissão de Gestão Ambiental Sustentável do governo peruano realizou uma visita à região e relatou: “Nossa principal surpresa e indignação foi encontrar gente armada com escopetas e rostos cobertos que faziam a guarda na mina. As conclusões foram: a empresa Miski Mayo recorreu a ‘quadros de defesa’, contratando, para isso, pessoas com antecedentes criminais. Algo mais preocupante ainda: o grupo de defesa foi provido com armas de fogo”. Moçambique, 2007 Mil e trezentas pessoas começam a ser removidas da vila de Moatize, no estado do Tete, para a implantação de uma mina de exploração de carvão da Vale Moçambique, que ganhou, no ano anterior, a concessão de 35 mil hectares de terra na região. Segundo Thomas Selemane, da organização moçambicana Movimento dos Amigos da Floresta, as famílias estão sendo deslocadas para uma área de pior qualidade para a prática da agricultura, “e as casas que a Vale está construindo são de baixa qualidade”.

No local do empreendimento, há dois cemitérios, e a empresa já está dando procedimento à exumação dos corpos. “Para as famílias, isso é inconcebível, é uma violação das tradições”. Na fase inicial de implantação já ocorreram três greves “por conta da diferença de tratamento com trabalhadores moçambicanos e estrangeiros”, explica Selemane. Há, ainda, denúncias de que a empresa oferece, aos trabalhadores, refeições que provocam alergias e dores. A empresa mantém, com muitos dos funcionários, vínculo contratual precário e de curta duração, deixando-os numa situação de constante insegurança. O contrato de concessão firmado com a Vale em Moçambique é válido por 35 anos, a partir de 2007. Selemane pondera que, apesar de ser um grande projeto, ele é econômica e socialmente pouco rentável. “Gera pouco emprego, não tem projeto de transferência de conhecimento etc. O mais provável é que depois de 35 anos deixe dividendos para seus acionistas e deixe para o resto do povo danos ambientais e todos os buracos que vai fazer naquela área”.

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Nova Caledônia, 2006 A Vale Inco empresa resultante da compra, pela Vale, da mineradora canadense Inco, decide construir, na colônia francesa situada no sudoeste do oceano Pacífico, um duto para resíduos da atividade de mineração dentro do mar. A barreira de corais da Nova Caledônia, que circunda o país, é a maior do mundo, formando, também, o maior sistema de lagoas do planeta. Jacques Boengkih, da organização indígena Agencia Kanak de Desenvolvimento Nova Caledônia (Agence Kanak de Developpement Nouvelle-Caledonie), considera a Vale um novo poder colonial. “Já destruíram uma área grande de floresta tropical, onde há espécies raras. Temos árvores da era dos dinossauros. Não sabemos qual serão os impactos desses resíduos”. Além dos impactos no meio ambiente, há os sociais, como o surgimento da prostituição, antes desconhecida pelo povo tradicional da Nova Caledônia. “Fora que o país não está ganhando nenhum dinheiro com isso. E não gostamos disso, queremos que eles paguem royalties. Não entendo como eles possam tirar o níquel, vender para a China, e nós não ganharmos nada. Essa é uma nova forma de colonialismo, e é muito estranho, porque o Brasil foi uma colônia”.

Transnacional brasileira Os casos acima retratam, resumidamente, o modus operandi Canadá da transnacional brasileira Vale S.A. após sua privatização, realizada, por meio de um leilão, em abril de 1997. A verdadeira cara da EUA

A Companhia Vale do Rio Doce foi fundada empresa é bem diferente da que ela mesma vende em 1942 como uma empresa estatal brasileira. em propagandas de televisão, que a atrela a imaSua privatização é, até hoje, contestada na Justigens de famosos, como a atriz Fernanda Monteça brasileira. Desde então, a empresa obteve lunegro e o fotógrafo Sebastião Salgado. cro total de 49,2 bilhões de dólares, dos quais Uma das maiores transnacionais brasileiras e 13,4 bilhões foram distribuídos aos seus acionisa maior mineradora do mundo, o grupo empretas. Nos últimos dez anos, foi a quarta empresa sarial da Vale é composto por, pelo menos, 27 mais rentável entre as grandes companhias (de empresas coligadas, controladas ou joint-ventuacordo com o Boston Consulting Group). res, distribuídas em mais de 30 países, como BraEm janeiro de 2010, seu valor de mercado foi sil, Angola, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, avaliado em 139,2 bilhões de dólares, rendendoEquador, Indonésia, Moçambique, Nova Caledôlhe a 24ª posição entre as maiores companhias do nia e Peru, onde desenvolve atividades de prosmundo, de acordo com o jornal inglês Financial pecção e pesquisa mineral, mineração, operações Times. “Foram 49 bilhões de dólares de lucro para industriais e logística. uma empresa que foi privatizada por 3 bilhões. É Sua forma de atuação não difere da das granuma coisa absolutamente escandalosa, um saque des corporações mundiais, que utilizam a superexao patrimônio público”, critica Sandra. ploração do trabalho e destruição do meio ambienHoje, a Vale é controlada pela sociedade Vate para garantir alta lucratividade. “A Vale não é lepar S.A., que detém 53,3% do capital votanbrasileira nem verde e amarela. Isso é propaganda. te (33,6% do capital total). Em seguida, aparece Ela é uma multinacional como outra qualquer”, diz o governo brasileiro, com 6,8%, e vários invesAna Garcia, da Fundação Rosa Luxemburgo. tidores que não possuem mais de 5% das cotas. Sandra Quintela, economista e integrante do A Valepar tem a seguinte constituição acionáInstituto Políticas Alternativas para o Cone Sul ria: o fundo de pensão Previ, que por meio da so(Pacs), explica que a Vale não é mais uma empreciedade Litel Participações S.A., possui 39% das sa nacional, “mas sim uma empresa controlada cotas da sociedade; a Bradespar S.A. (sociedade por seus acionistas. Grande parte deles são bande investidores ligada ao grupo Bradesco) com cos e fundos de pensão, capital financeiro. Assim, Noruega 21,21%; a empresa siderúrgica japonesa Mitsuib objetiva capitalizar os seus acionistas e, para isso, & Co. Ltda com 18.24%; os fundos de pensão bratem aplicado Reino Unido uma política duríssima: de um lado, sileiros Petros, Funcef e Fundação Cesp, que, por tirando direitos dosAlemanha trabalhadores, economizando Cazaquistão meio daMongólia sociedade Litel Participações S.A., posas despesas de pessoal; de outro, com uma escaFrança Suíça suem 10% das cotas;Coréia e o governo federal, que lada ilimitada de exploração mineral”. do Sul China

A Vale no mundo Omã

Japão Taiwan

India

Filipinas

Tailândia Guiné

Cingapura

Colômbia

RDC

Gabão Brasil

Indonésia

Noruega Angola

Peru

Zâmbia

Reino Unido

Canadá

Austrália

Alemanha

Chile EUA

Nova Caledônia

Moçambique

França

Cazaquistão

Suíça

Mongólia

África do sul

Argentina

Coréia do Sul China

Omã

Taiwan

India

Filipinas

Tailândia Guiné

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Operações Vale

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Escritório Joint ventures

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Moçambique Zâmbia

Exploração mineral

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Sede

Argentina

África do sul

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Operações Vale

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Escritório Joint ventures Exploração mineral -VALE_158.indd 27

Sede

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possui 11.51%. O governo detém, ainda, ações especiais (golden share), que lhe dão poder de veto em determinadas decisões.

Violações às comunidades Os impactos da expansão resultante da privatização da empresa foram discutidos durante o I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale, ocorrido no Rio de Janeiro, sede nacional da Vale, entre 12 e 15 de abril. Estiveram presentes cerca de 160 pessoas de 80 organizações e movimentos de todas as regiões do Brasil e de países como Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Moçambique, Nova Caledônia e Peru. Durante os quatro dias, os participantes apresentaram os casos de violações às comunidades tradicionais, aos trabalhadores e ao meio ambiente gerados pela mineração. Discutiram, também, estratégias comuns de enfrentamento e resistência à transnacional brasileira. A tônica do encontro foi de estudo e troca de experiências entre os moradores e comunidades afetadas pela mineração no mundo. Uma preparação para o encontro foi realizada nos dias anteriores. Em 6 de abril, duas caravanas percorreram os estados de Minas Gerais, Pará

e Maranhão com o objetivo de permitir aos participantes entrar em contato com as realidades dos atingidos pela mineradora. A primeira saiu de Itabira, cidade onde a empresa nasceu e que sofre com altos índices de poluição decorrentes de sua atuação. A segunda cruzou o Eixo Carajás, onde comunidades convivem com empreendimentos localizados em Barcarena, Marabá e Paraupebas, no Pará, e Açailândia e São Luís, no Maranhão. No primeiro dia do encontro, os participantes seguiram à Baía de Sepetiba, no Rio, onde a Vale, em sociedade com a ThyssenKrupp, está montando a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), acusada de causar danos ao meio ambiente e às comunidades ribeirinhas. A TKCSA irá emitir 273,6 mil toneladas/ano de poluentes, sobretudo monóxido de carbono (229.758 toneladas) e dióxido de enxofre (21.540 toneladas). Há, também, denúncias de que, na região, a empresa esteja atuando com grupos de milícias (paramilitares) que ameaçam aqueles que se opõem ao empreendimento. Entre os impactos ambientais provocados pela Vale, Guilherme Zagallo, advogado da Campanha Justiça nos Trilhos e vice-presidente da OAB do

“Um dia a mais, um dia mais forte” Um dos casos mais simbólicos da queda de braço entre “atingidos” e a transnacional Vale é o dos trabalhadores do Canadá, que no segundo dia do encontro ocorrido no Rio de Janeiro, 13 de abril, completaram nove meses de greve em três unidades da Vale-Inco, empresa formada em 2006 após a compra da mineradora canadense Inço pela empresa brasileira. A briga dos 3.500 trabalhadores organizados pelo sindicato dos mineiros, o United Steelworkers (USW), com a Vale gira em torno da tentativa da empresa de terceirizar 400 mineiros e reduzir o fundo de pensão dos trabalhadores, sob a justificativa da crise econômica mundial iniciada em 2008. No entanto, a transnacional brasileira, que comprou a Inco por cerca de 19 bilhões de dólares, “afirmou, na época, que as minas em Sudbury, a 400 km ao norte de Toronto, eram uma joia de sua coroa”, contou o sindicalista Jamie West. Nos dois anos seguintes, entre 2006 e 2008, a Vale lucrou cerca de 4,2 bilhões de dólares com as operações da Inco. “Ou seja: quase o dobro do que a antiga Inco não lucrou em dez anos”. Em troca, disse West, “ela exigiu concessões: em julho passado, ofereceram-nos demissões em massa, atingindo todos com menos de sete anos de serviço; a extinção de pensões defini-

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das para novos contratados; cortes na participação nos lucros em períodos de maior lucratividade; menos postos de segurança em um local de trabalho perigoso; normas mais brandas para a terceirização; nenhuma proteção sindical para novos contratados durante seis meses; e sanções mais rigorosas para as faltas, ignorando a garantia canadense de dez dias remunerados anuais por motivo de doença”. West, que há oito anos opera um forno da Vale Inco na cidade de Sudbury, a 400 quilômetros de Toronto, conta que, quando a greve começou, a transnacional brasileira acionou seguranças privados para intimidar os grevistas. A empresa também anunciou que iria retomar a produção contratando “fura-greves” terceirizados. “Nosso sindicato tem mais de 100 anos, e nunca fomos tão desrespeitados”, diz. O lema da mobilização dos canadenses grevistas é “One day longer, one day stronger” (Um dia a mais, um dia mais forte). Durante o encontro no Rio de Janeiro, West afirmou: “Estou impressionado de ver como a Vale destrói seu país, acaba com a água, com a natureza. Eles sugerem que somos todos egoístas e querem que a gente mude, assumindo uma nova ‘cultura’, mas nós percebemos que a cultura que eles falam não é a do Brasil, dos brasileiros, mas sim a da Vale”.

Maranhão, destacou que a transnacional emitiu, em 2008, 16,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, causando prejuízos à saúde da população. Ele também apontou que “em suas operações, a Vale consumiu 335 milhões de metros cúbicos de água em 2008, sendo responsável pelo derramamento, no ambiente, de 1.562 metros cúbicos de salmoura, álcool, hidrocarbonetos e outros poluentes”. Para se ter uma ideia, em 2008, a Vale produziu 346 milhões de toneladas de minérios. E em 1997, tal produção foi de 113 milhões de toneladas. Zagallo denuncia, ainda, a responsabilidade da mineradora em atropelamentos ferroviários. Em 2007, ocorreram 23 mortes; em 2008, houve nove mortes e 2.860 acidentes. “São mortes silenciosas. A única responsabilidade da empresa com isso é a compra de caixões. E, depois, falam que isso faz parte das dores do crescimento”, criticou. O vice-presidente da OAB do Maranhão lembrou que, além das mortes, o impacto sobre as comunidades que vivem à beira do percurso das ferrovias inclui “atropelamento de animais, ruído, interrupção do tráfego de pessoas e veículos em cruzamentos sem passarelas ou passagens de nível”.

Cinco usinas siderúrgicas Esse drama é vivido por Edevard Dantas Cardeal e pela comunidade onde vive. Ele é morador do povoado de Piquiá, município de Açailândia, no Maranhão, onde estão em operação, atualmente, cinco usinas siderúrgicas, que produzem, anualmente, 500 mil toneladas de ferro-gusa. A estrada de ferro passa ao lado do povoado e a BR-222 atravessa a comunidade. Quase toda a produção é exportada para os Estados Unidos, Ásia e Europa. Apenas uma pequena parte é destinada ao distrito industrial do Piquiá. Essa cadeia siderúrgica é alimentada a partir de minérios da Vale, única fornecedora das cinco usinas em funcionamento na região. Seu Edevard, nascido na Bahia e hoje com 66 anos, diz que vai lutar contra a Vale até quando aguentar. “Pode escrever tudo que eu estou falando, que eu assino embaixo. Sou um grande prejudicado dos empreendimentos”. O senhor simpático de óculos e barba por fazer conta que vive na região desde 1969. “Tinha um rio, o Piquiá, que a gente usava para lavar roupa e até beber. Depois, a Vale chegou com essas empresas siderúrgicas e poluiu tudo. Tem ainda a estrada de ferro, que passa rente ao nosso povoado”. Seu Edevard lembra que, antes da chegada da mineração, a comunidade sobrevivia da roça. Agora, não há mais onde plantar. “Tem que andar de 150 a 200 quilômetros para fazer roça. Hoje, a gente vive de respirar pó de ferro de minério e outros resíduos que caem dentro da cidade”. O agri-

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cultor conta que possuía uma grande área de terra: “eu tinha ideia de sobreviver ali plantando minhas coisas, mas, com a poluição que veio, perdeu valor e não tem como sair para outro lugar”. De acordo com o Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo, apresentado no final do encontro no Rio de Janeiro, a extração de madeira nativa para a produção de carvão vegetal a ser utilizada nas siderúrgicas é altamente predatória naquela região e gera muitos agentes poluentes, principalmente monóxido de carbono, com grandes efeitos sobre a saúde, como doenças respiratórias. “Os problemas relacionados às atividades das guseiras e os conflitos socioambientais na região aumentaram com a exploração da Vale”, aponta o documento. Segundo seu Edevard, houve um aumento do número de problemas de saúde, como coceira, dores de garganta e alergia na pele das pessoas. Ele relata, também, que a poluição emitida pelas chaminés da siderúrgica, por onde sai pó de minério, pó de carvão vegetal e outros resíduos, “caem dentro do rio e no quintal da gente, em cima das casas, em cima de tudo”. Nas fábricas, não existem filtros antipartículas. Assim, quando os alto-fornos são abastecidos com minério e carvão vegetal triturado e homogeneizado, a fuligem emitida contém resíduos provenientes do aquecimento do minério. Fuligem que cobre os móveis, camas e utensílios de cozinha das casas do povoado, causando doenças respiratórias graves. Quando a caravana norte passou pela comunidade, Seu Edevard juntou parte do pó que cai no telhado de sua casa. Num gesto simbólico, os participantes colocaram as mãos no pó, e, em seguida “carimbaram” o peito, para mostrar os danos respiratórios causados pela siderurgia. “Sabe como é chiqueiro de porco, cercado por quatro lados? Não é lugar de viver, mas estamos vivendo assim. Por isso a comunidade quer ser indenizada, já entramos com um processo. Chega de tanto sofrer”.

Explosões e alagamentos José Ribamar, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, conta que os moradores do município paraense também estão sofrendo com a instalação dos empreendimentos da Vale. No total, são cinco, sendo quatro deles desenvolvidos dentro da própria cidade, e o quinto na cidade de Curionópolis, mas com impactos em Canaã. Os projetos são destinados à extração de cobre, níquel e ferro. “Temos uma vila próxima da mineração onde vivem mil pessoas. Quando detonam explosivos na mina, parece um terremoto, e caem pedras no meio da roça”, conta. A produção de galinha caipira, que era o forte da região, não existe mais.

A mineradora é responsável por inúmeros atropelamentos ferroviários. Em 2007 ocorreram 23 mortes.

“Tivemos perda de praticamente tudo, a produção do gado, do leite, da criação de galinha”. Além disso, há muita poeira, fumaça, e alagamento das plantações e residências, resultado da implantação de diques para proteger a mina. “O pessoal tinha rocinha e o córrego represou a área, inundando a casa das pessoas”. O agricultor acredita que o pior impacto da Vale na área é o desrespeito à sociedade: “Eles querem levar por cima de tudo”. Seu Pixilinga, como José Ribamar é conhecido, chegou a ser chamado de “vagabundo e posseiro” pela administração da Vale, após uma manifestação que bloqueou a estrada, impedindo a passagem de caminhões. “Disseram que demos prejuízos de mais de dois milhões de reais, mas eles não tinham cumprido a promessa de asfaltar as ruas da vila”. Embora a empresa garanta aos moradores da região que sua atividade não afeta o meio ambiente, “os produtos químicos que eles usam quando fazem furos no solo correm a céu aberto, caem nos córregos, rios, represas”, conta. Impactos como os que ocorrem em Açailândia, no Maranhão, e Canaã dos Carajás, no Pará, são recorrentes ao longo dos 892 quilômetros da Estrada de Ferro de Carajás, que corta 22 municípios entre Parauapebas (PA) a São Luís (MA). A ferrovia foi construída para escoar, principalmente, o ferro proveniente da maior reserva mineral do mundo, a Serra dos Carajás. As atividades extrativo-exportadoras da Vale na região sul do Pará produzem cerca de 1,8 milhão de toneladas de ferro-gusa, principal matéria-prima para produção de aço. A mina de ferro de Carajás situa-se em Parauapebas, sul do Pará. Há mais de 25 anos, a Vale explora Carajás, cujas reservas estão estimadas em 18 bilhões de

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toneladas de minério de ferro, 45 milhões de toneladas de bauxita, 1 bilhão de tonelada de cobre, 60 milhões de toneladas de manganês, 124 milhões de toneladas de níquel e 100 mil toneladas de estanho, espalhados por uma área de 40 mil quilômetros quadrados.

Extinção da biodiversidade O estado onde a Vale nasceu, Minas Gerais, é responsável, hoje, por dois terços da produção de minério de ferro da transnacional – o terço restante é produzido em Carajás. Os três principais casos de violações no estado são da Mina de Capão Xavier, onde o empreendimento da Vale levou à extinção de uma área de conservação da biodiversidade e vem colocando em risco cavernas e sítios arqueológicos. Já o projeto Apolo, na Serra da Gandarela, próximo a Belo Horizonte, vem sendo denunciado por mau uso de recursos hídricos e destruição da vegetação. O projeto prevê a implantação de uma mina para produzir 24 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. Em Itabira, berço da Vale, há, hoje, 492 aposentados por invalidez em decorrência do trabalho na mineradora e 85 afastados por problemas de saúde, relata Felipe Venâncio Pedro, um dos diretores do Sindicato Metabase. “Essas ocorrências são, em parte, resultado da relação tonelada/homem/hora, ou seja, o trabalho por metas. É uma pressão invisível, e as pessoas passam a trabalhar mais do que podem”, conta. Ex-funcionário da Vale, antes e depois da privatização, ele diz que a imagem verde e amarelo que a empresa vende é “a maior palhaçada, mentira. Todo mundo sabe que o minério da Vale é manchado de sangue”. maio 2010

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Felipão, como é conhecido, afirma que, hoje, o meio ambiente de Itabira “é uma piada”. “Tinha mata atlântica primária que não existe mais, várias nascentes, algumas históricas. A qualidade ambiental da cidade piorou bastante”, relata. De acordo com dados do Metabase, a partir do início da crise econômica mundial, em 2008, a transnacional demitiu cerca de 1.500 trabalhadores diretos e 12 mil terceirizados, de um total de 120 mil trabalhadores em todo o mundo – sendo a metade deles terceirizados. Apesar disso, os números indicam que a Vale não teve sua situação financeira muito afetada pela crise. Felipão afirma que o Sindicato Metabase é autor de várias ações trabalhistas contra a Vale. De acordo com o advogado Guilherme Zagallo, da OAB do Maranhão, um dos grandes desafios dos que lutam contra as violações da Vale é reunir registros documentais e estimular as comunidades a cobrar indenizações e pedir responsabilidade criminal da empresa. “A Vale teme as ações. E por que ela teme? Porque a sua privatização foi um furto”. Quando a empresa foi privatizada, era a principal exportadora de minério de ferro, maior produtora de alumínio e ouro da América Latina,

possuía e operava dois portos de grandes dimensões com a maior frota de navios graneleiros do mundo, controlava mais de 1.800 quilômetros de ferrovias e possuía altíssimas reservas comprovadas de recursos minerais. O advogado Eloá dos Santos Cruz defendeu, no encontro dos atingidos pela Vale, as ações populares como forma de questionamento da privatização da empresa. Ele é advogado e autor de 16 ações do tipo, que ainda hoje estão sub júdice. Em todo o país foram ajuizadas mais de cem ações populares contra a venda da Vale. De acordo com pesquisa realizada entre os dias 19 e 22 de maio de 2007 pelo Instituto GPP – Planejamento e Pesquisa, 50,3% dos brasileiros eram favoráveis à retomada da empresa pelo Estado. Apenas 28,2% eram contra. Outra pesquisa aponta que 93% dos funcionários da Vale querem a reestatização da empresa.

Internacionalização A empresa começou se internacionalizar na década de 1980. Porém, é a partir dos anos 2000, já privatizada e sob a administração de Roger Agnelli, que a Vale começa uma política agressiva de expansão: em 2000, ela entra no Oriente Mé-

Violações financiadas com dinheiro público Responsável por incontáveis casos de danos ao meio ambiente e superexploração da mão de obra, grande parte da expansão da Vale é viabilizada com os recursos que a transnacional recebe do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o principal financiador da corporação. Em 2008, o BNDES liberou um financiamento de R$ 7,3 bilhões para a Vale aplicar no Brasil até 2012, o maior empréstimo concedido a uma única empresa até então. “Para aprová-lo, o BNDES teve até que reformar seus estatutos de mais de 50 anos, pois nunca havia acontecido isso”, indigna-se Sandra Quintela, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). A prioridade do financiamento era a “expansão e modernização da capacidade de produção de minério”. Em 2007, o banco já havia aprovado outros R$ 774,6 milhões para a empresa expandir a capacidade de transporte da Estrada de Ferro Carajás (EFC). Sandra explica que a capitalização é feita “com recursos da dívida pública, do tesouro nacional, a juros menores do que o BNDES empresta para suas partes. O povo brasileiro está pagando duas vezes. É um crime contra o nosso dinheiro”, lamenta. Para ela, esse

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modelo de financiamento público precisa ser discutido e questionado. Para Carlos Tautz, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o fato de o banco ser o maior financiador da Vale revela uma relação de simbiose da empresa com o Estado brasileiro. Para ilustrar tal relação, já houve, inclusive, ocasiões de “troca” de executivos entre a empresa, o governo federal e o banco. Entre 2007 e 2008, semanas após a concessão de um empréstimo à transnacional, o presidente do BNDES na época e ex-chefe de gabinete do Ministério do Planejamento, Demian Fiocca, assumiu a direção de Assuntos Estratégicos da Vale. Em 2008, uma semana após anunciar a liberação do financiamento de R$ 7,3 bilhões, Luciano Siani Pires, alto funcionário do banco, passou a ocupar o cargo de Diretor de Planejamento Estratégico da transnacional. O BNDESpar (holding do banco criada para administrar suas participações em diversas empresas) tem uma participação de 4,2% nas ações da Vale, e 12% da Valepar, empresa criada exclusivamente para ser acionista da Vale e que detém um terço do capital financeiro da companhia privatizada. (Com informações da Área de Desenvolvimento e Direitos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, Ibase)

dio ao adquirir 50% da Gulf Industrial Investment Company (empresa de capital estadunidense); em 2001 e 2002, assume projetos de minerais não ferrosos no Peru e no Chile; e, em 2003, adquire parte de uma empresa norueguesa, criando a Rio Doce Manganese Norway. A internacionalização da Vale teve dois momentos centrais, que determinam sua atuação dentro e fora do Brasil nos dias de hoje. Primeiro, em 2001, quando o maior mercado consumidor de minério de ferro do mundo, a China, fechou, com a Vale, um acordo de fornecimento de 6 milhões de toneladas de minério de ferro por ano, ao longo de 20 anos. Segundo, a compra da mineradora canadense Inco, em 2006, que tornou a Vale a maior produtora mundial de níquel e a maior mineradora do mundo. A criação da Vale Inco teve impactos gerais na economia brasileira e no mercado internacional de mineração. No entanto, engana-se quem pensa que tal expansão é apenas resultado das estratégias empresariais de uma corporação privada. De acordo com Sandra Quintela, a internacionalização da Vale faz parte de uma política do governo federal de “transnacionalizar” as empresas brasileiras, com o objetivo de inserir o país no capitalismo mundial. “A Vale está nesse trem da alegria que as transnacionais brasileiras estão, com o poder público, com o governo Lula, que é um grande gerente dessa internacionalização das empresas brasileiras”. De acordo com ela, tal política “é subimperialista, pois leva consigo condições de trabalho e desrespeito ao meio ambiente muito piores do que no Brasil, porque contam com as legislações flexíveis dos países menos desenvolvidos que os nossos. Ela está com a Odebrecht e a Petrobras nesse trem da alegria da transnacionalização”. Para Sandra, a Vale não é apenas uma empresa, “ela é um vetor de poder. Ela tem poder de Estado e conta com foro privilegiado”, ressalta. A pesquisadora do Pacs acredita que estamos vivendo um novo ciclo de colonização no mundo. “É muito grave que as grandes empresas transnacionais estejam dominando as fontes estratégicas de recursos naturais, como minério, água, biodiversidade. E o Brasil está nesse jogo através de empresas que usam o carisma que o país tem a serviço de um lucro desenfreado, da ganância, da superexploração. São as novas caravelas, é um novo processo de recolonização”, sentenciou. De acordo com Virgínia Fontes, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o “imperialismo brasileiro está nascendo. É uma forma contemporânea de imperialismo. O papel que as empresas brasileiras estão exercendo em outros países, explorando a força de trabalho, é esse”. Tatiana Merlino é jornalista. tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Júlio Delmanto

A guerra às drogas é uma

guerra contra pessoas

Com o fracasso da estratégia penal, abre-se o debate sobre alternativas para a questão das drogas no Brasil. Ilustração Vitor Zalma

a

“guerra às drogas” fracassou. Exceto por setores religiosos e ultraconservadores, esta avaliação tem se tornado cada vez mais consensual, nacional e internacional. A resposta militar e penal ao problema do uso de algumas drogas – colocadas na ilicitude no começo do século XX por questões morais, econômicas e políticas, por influência direta da política externa estadunidense – não incide sobre o consumo e nem ajuda no tratamento do abuso no uso de psicoativos. Além de tudo, traz consigo uma série de outros gravíssimos problemas: violência do crime e do Estado, corrupção, criminalização da pobreza, ingerência dos EUA sobre territórios alheios. Assim, abre-se cada vez mais a disputa por alternativas a esse falido modelo, que criminaliza uma conduta – posse de certas drogas – e, portanto, pessoas, invariavelmente pobres. O sucesso das políticas europeias pautadas

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por estratégias de redução de danos, aliado aos péssimos resultados concretos das intervenções estadunidenses na América Latina e às reprovações à guerra às drogas formuladas em conferência da ONU em março do ano passado, levou a que diversos países começassem a reformar suas políticas de criminalização das drogas. Portugal, Espanha e Itália não criminalizam posse de drogas para consumo pessoal, solução seguida em 2009 também por México, Argentina e República Tcheca. No Brasil, o debate lentamente tem ganhado maior repercussão, inclusive com a presença de figuras conservadoras defendendo outra maneira de lidar com a questão. Segundo Cristiano Maronna, advogado e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), houve “grande avanço” na penetração deste debate na sociedade nos últimos anos, “na medida em que hoje se discute mais ou menos abertamente necessidade de mudar

o rumo da política de drogas”. “Há ainda muita resistência, o discurso alarmista e catastrofista ainda intoxica a discussão”, salienta Maronna, “mas é inegável que hoje a informação é mais abundante. Há mais espaço para a busca de alternativas fora da proibição”. Sérgio Vidal, militante antiproibicionista e representante da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), concorda quanto ao avanço, mas pondera que “o problema é que existe um sistema cultural criado historicamente, que não tem como ser desfeito de uma hora para outra”. Vidal avalia que “há espaço para diálogo com o Executivo e com o Judiciário, e tem havido cada vez mais espaço para a abertura de precedentes positivos, de vitórias, avanços”. O maior entrave estaria no Poder Legislativo, mais ainda em ano de eleições. “O principal empecilho para o avanço atual são as pressões do senso co-

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Origens da proibição

mum e o imaginário políticopartidário de que a ‘guerra às drogas’ é do interesse das ‘Famílias de Bem’”, salienta. “Há muito medo de perder votos por defender uma proposta que a sociedade em geral desconhece. Políticas de drogas são coisas complexas e até mesmo parlamentares que têm envolvimento com o tema muitas vezes desconhecem experiências de regulamentação real que possam embasar uma eventual regulamentação no Brasil”. Questionado sobre um suposto avanço no debate sobre drogas no Brasil, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública, tem uma visão menos otimista: “Debate? Que debate? O que há é a movimentação de grupos bastante específicos e um ou outro editorial na grande imprensa. Fora isso, o que há são os pesquisadores devotados e respeitáveis e a admirável e incansável militância antiproibicionista”. Para além desse campo, Soares só vê “marasmo”: “são platitudes preconceituosas, retórica conservadora com tinturas diversas, estigmas e a pasmaceira de sempre ante a máquina feroz de morte e irracionalidade da política vigente, que criminaliza os jovens pobres e negros, estimula a corrupção policial, o domínio territorial pelo tráfico e o comércio ilegal de armas”, desabafa.

Propagado a partir do final do século XIX nos Estados Unidos, o ideário proibicionista era sustentado pelo lobby moralista de grupos religiosos com grande força política, reunidos em organizações como as Ligas Anti-Saloon. A droga combatida prioritariamente era o álcool, mas outras também eram identificadas como ameaçadoras ao american way of life. Não por coincidência, substâncias consumidas por diversos setores da população estadunidense eram associadas a minorias e grupos imigrantes: o ópio aos chineses, a maconha aos mexicanos e a cocaína aos negros. Desde seu princípio, a estratégia de modelo penal no trato de substâncias psicoativas teve como alvo setores da população que o Estado desejava controlar. No começo do século XX, os EUA passam a fazer pressão internacional pelo controle de substâncias psicoativas, que são primeiro mundialmente regulamentadas para depois serem consolidadas no Harrisson Narcotic Act, de 1914, considerado marco inaugural do proibicionismo. Ao final da Primeira Guerra Mundial, tratados internacionais de combate às drogas são incorporados ao Tratado de Versalhes, submetendo assim a comunidade internacional ao proibicionismo estadunidense sem que houvesse nenhum debate. O atual status global data de 1961, ano da Convenção Única sobre drogas da ONU, definitivamente regulamentada dez anos depois. O termo “war on drugs” (guerra às drogas) foi utilizado pela primeira vez por Richard Nixon, que identificou as substâncias psicoativas ilícitas como o “principal inimigo” de seu país. A partir de então, o suposto combate à produção, distribuição, comércio e consumo de drogas em escala global foi um dos principais alicerces da política externa estadunidense. O combate às drogas assume assim duplo papel: de repressão interna e de intervenção geopolítica externa. “A questão referente às drogas proibidas é sempre usada para esconder e encobrir interesses geopolíticos, geoestratégicos e geoeconômicos”, avalia Wálter Fanganiello Maierovitch, juiz de direito aposentado e secretário nacional antidrogas no governo de FHC.

“O traficante é o novo herege” Segundo Cristiano Maronna, a proibição ocupa hoje na política internacional o lugar que ocupava a guerra ao comunismo: “Há um paralelismo possível entre a ‘Guerra às Drogas’ e a ‘Guerra ao Terror’. A droga como mal universal, como o inimigo a ser combatido, como o demônio. Esse discurso que antes justificou o macarthismo, e hoje justifica a intervenção em nome do combate ao terrorismo, é muito útil para a manutenção do discurso que legitima a desigualdade e a subalternização da periferia pelo centro”, avalia o advogado criminalista. Secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Vera Malaguti Batista é auto-

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ra de Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no RJ. Ela explica que “com o fim das ditaduras militares, a construção da guerra contra as drogas como política para a América Latina manteve o aparato de controle social, manejado a partir do proibicionismo norte-americano”. “A demonização da coca e da maconha produziu a manutenção dos convênios e das missões militares americanas no continente, num momento em que não havia problema de saúde pública em relação a estas substâncias” avalia a pesquisadora, que também é doutora em Saúde Pública. Ela lembra que nos dois principais países onde houve intervenção dos EUA – Colômbia e Afeganistão – a produção de cocaína e heroína, respectivamente, aumentou depois da presença das tropas de George W. Bush. Por outro lado, Malaguti Batista lembra que as medidas neoliberais propagadas a partir do chamado Consenso de Washington trouxeram “devastação social” ao continente na década de 1980, levando camponeses e trabalhadores urbanos cada vez mais empobrecidos a se engajar na produção e no comércio varejista das substâncias ilícitas: “Mercados ilegais são sempre ocupados pelos mais pobres”, define Batista, lembrando da repressão aos camelôs como outro exemplo de criminalização das estratégias de sobrevivência da periferia. “A partir disso a mídia começa a construção do novo inimigo interno – do subversivo guerrilheiro para o perigoso traficante”, continua Vera. Não por coincidência, o governo dos Estados Unidos cria o termo “narcoterroristas” para definir as guerrilhas colombianas. Com a justificativa de guerra e do combate ao terrorismo é instituído o “direito penal do inimigo, que não tem garantia alguma. O estereótipo público é de que o traficante não tem direito a nada, e a mesma lógica da ocupação dos EUA na Colômbia é usada pela polícia nas favelas”, avalia a pesquisadora. Citando o advogado e jurista Nilo Batista, ela aponta que “o inimigo público foi inculcado pelos grandes meios de comunicação: o traficante é o novo herege, quer usurpar a alma de nossas crianças”.

Gestão penal da miséria Luiz Eduardo Soares define os efeitos da guerra às drogas como “nefastos”: “estimula a corrupção policial e o desenvolvimento das milícias, e alimenta o tráfico de armas, sem o qual não haveria tanta violência letal, nem o domínio territorial, que veta a milhões de pessoas o acesso aos benefícios derivados do estado democrático de Direito. E mais: avança a criminalização da pobreza”. Soares “desafia” o leitor da Caros Amigos “a encontrar um adolescente de classe média, branco e bem posto na vida, que esteja internado numa entidade sócio-educativa. Se houver, será a exceção a confirmar a regra”. Os números não o deixam mentir: 66,5% dos presos no Rio de Janeiro são negros. No Estados Unidos, um em cada três negros com idade entre 18 e 35 anos ou está preso ou está sob condicional. maio 2010

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São 6,5 milhões de presos no país, o que não o impede de ser o maior produtor mundial de maconha, e o país de maior número de consumidores de psicoativos ilícitos no planeta. O sociólogo e cientista político afirma que a imagem usual do vendedor de drogas como “o dragão da maldade, crudelíssimo e violento” é “uma construção social estigmatizante que costuma ser aplicada de modo generalizante e que funciona como instrumento de reprodução de preconceitos e desigualdades sociais”. Mais uma vez as estatísticas lhe dão razão: em pesquisa comandada por Luciana Boiteux no ano passado, identificou-se que 84% dos presos por tráfico de drogas no Rio de Janeiro e no Distrito Federal não portava armas no momento de sua detenção. Segundo Vera Malaguti Batista, a repressão às drogas ilícitas encobre outros problemas e leva à demonização das áreas faveladas. Essas políticas são, segundo ela, o “grande vetor para o encarceramento da população, do tesouro de nossa mão de obra, que é a juventude popular”. “Em 1994 havia cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje quintuplicamos esse número, é um aumento nunca visto na historia da criminologia”. Não só a guerra às drogas é responsável por este índice, mas também o crescimento “de uma mentalidade preventiva, que trabalha o conflito social pelo olhar penal”, explica Batista. Luiz Eduardo identifica o mesmo problema: “A sociedade e, por extensão, nossos políticos, em sua maioria, tendem a confundir justiça com punição e punição com privação de liberdade” define. “Ficam de fora todas as dimensões da reparação da vítima, de prevenção da violência e do crime, e de construção de novas oportunidades e vias a quem transgrediu as leis ou as regras do convívio social”.

Os cegos a guiar Com a evidente falência do modelo repressivo, começam a ser debatidas alternativas no âmbito nacional. O exemplo de Portugal, que descriminalizou a posse de todas as drogas para consumo pessoal em 2001 e conseguiu inclusive reduzir o consumo em algumas faixas etárias, é muito lembrado. Neste momento, o presidente brasileiro era Fernando Henrique Cardoso – hoje defensor notório da descriminalização – e Walter Maierovitch ocupava a Secretaria Nacional Anti-drogas. Ele afirma que “FHC seguiu a política de Bill Clinton (manteve um czar republicano e a war on drugs), e agora, bem depois das declarações de Obama, quis pegar um lugar no barco progressista”. Nessa empreitada, o líder tucano organizou a Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, unindo-se a Cesar Gaviria e Carlos Zedillo, ex-presidentes da Colômbia e do México, respectivamente. Maierovitch classifica os três como “fracassados” no que tange ao combate às drogas em seus governos, e aponta que “FHC, Gaviria e Zedillo me fazem lembrar um quadro famoso que está exposto no Museu de Nápole. O quadro mostra cegos a guiar outros. O trio, no que se refere às drogas, durante os seus mandatos presidenciais, têm um notável curriculum”.

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O juiz conta que esteve em Portugal “para que, juntos, pudéssemos implantar um revolucionário projeto de lei”. A meta era “não tipificar como crime o porte de drogas para uso próprio. Seria uma infração administrativa (não criminal), como, estacionar veículo automotor em local proibido”. Fernando Henrique, no entanto, não aprovou o projeto e, ao final de seu segundo mandato, apresentou um outro projeto de política nacional antidrogas. “O projeto de lei sobre drogas, convertido em lei a pedido de FHC, teve de ser vetado em mais de 80%. A lei nova era pior do que a antiga. Num dos dispositivos vetados, aplicava-se ao usuário, dado como criminoso, pena privativa de liberdade e interdição para comerciar e até para casar”, conta Maierovicth. Quanto ao recente engajamento do ex-presidente tucano no debate, o juiz aposentado classifica como “um discurso simplista, sem propostas concretas e nem ideia de como viabilizar a liberação”. Para ele, “tudo soa como oportunismo, de quem está incomodado com o sucesso internacional conquistado pelo presidente Lula. FHC quis buscar um espaço na mídia internacional”, avalia. Para Vera Malaguti Batista as intenções não só de Fernando Henrique como de outros setores conservadores proponentes de mudanças na atual política de drogas são no sentido de “descriminalizar o consumidor e aumentar rigor para o traficante. Simplificando, o traficante é o menino pobre do morro que vai vender para o menino branco que pode comprar. Onde a questão sangra não é no consumo, essa solução é atacar os pobres”.

Alternativas em disputa Segundo Vera, “a direita viu que a mudança é inevitável, e está tentando hegemonizar o discurso para manter a guerra contra os pobres, a guerra contra o tráfico. Como a esquerda não se pronuncia, eles estão ocupando espaço com sua proposta conservadora”. Para ela, “a esquerda está moscando, tem medo de sair do discurso moral”. Com a descriminalização, porte de pequena quantidade para consumo próprio deixa de ser penalizado, mas produção, venda e comercialização seguem sendo reprimidos, o que mantém o poder do Estado, criminalizar a pobreza. Sérgio Vidal defende que “a melhor alternativa é a regulamentação da formação de associação de usuários e a permição que essas associações pudessem produzir, desde que não tivessem lucro. Acredito que, retirar o poder de lucrar com a produção de drogas é a única forma de diminuir o consumo de qualquer substância”. Segundo ele, a demanda por consumo de drogas era controlada por mecanismos culturais até a proibição: “As drogas sempre foram usadas, mas de forma controlada por outros mecanismos que não apenas os legais. É com a indústria farmacêutica e a criação da propaganda, da publicidade, que as drogas se tornam objeto de consumo. Diminuam as propagandas com drogas e a demanda diminuirá”, defende o antropólogo. Cristiano Maronna defende “controle administrativo para o consumo pessoal e penas alternativas para o pequeno e médio traficante”,

além de “ênfase na redução de danos e no tratamento voluntário. Esse é o primeiro e necessário passo rumo à mudança no sentido da racionalização da política de drogas”. Luiz Eduardo Soares é incisivo: “Sejamos pragmáticos: o verdadeiro debate não é ‘devemos ou não proibir o acesso às drogas’, ao álcool à cocaína. Não é esse o debate porque a hipótese do impedimento desse acesso não existe na realidade prática. Ou seja, o acesso é um fato em todo mundo democrático ou não totalitário e teocrático”. “Os EUA gastaram 500 bilhões de dólares na guerra às drogas, desde sua declaração. Mesmo assim, o consumo não foi alterado. Portanto, não se pode dizer que faltou dinheiro, pessoal, equipamento, qualidade tecnológica, competência técnica, nada disso. O fato é que é simplesmente impossível controlar uma dinâmica desse tipo, quando, na sociedade, há demanda e oferta. O fato é este. Ponto final”, aponta Soares, que prossegue: “aliás, no fundo o que esse fato demonstra é muito bom: a sociedade vence o Estado, para o bem e para o mal. A verdadeira questão sempre mascarada é a seguinte: como não está ao nosso alcance impedir o acesso às substâncias que chamamos drogas, temos de nos perguntar: em que contexto normativo seria menos mau lidar com a realidade do acesso às drogas?” pergunta o sociólogo. “O contexto atual, em que drogas são problema de polícia e cadeia, isto é, de política criminal? Ou um contexto diferente em que elas fossem objeto de saúde pública e educação? Eu aposto no segundo caminho. Ele não vai evitar o abuso, mas pelo menos não vai provocar outros males. Das drogas e de seus efeitos destrutivos nós nunca nos livraremos, mas poderemos aprender a conviver melhor com elas, a ponto, inclusive, de reduzir o sofrimento humano que seu abuso provoca”, defende. Já há algum tempo, setores do governo federal sinalizam positivamente quanto a pequenas mudanças na atual lei de drogas. O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) tem sido um de seus maiores defensores e articuladores. No entanto, ele mesmo já aponta que em ano de eleição esse debate é inviável institucionalmente. Sérgio Vidal lembra outro elemento importante nessa disputa: “Tem sido muito positivo o crescimento e diversificação de grupos voltados para a atuação antiproibicionista. Isso só fortalece a luta política e dá espaço para a difusão de aspectos culturais normalizadores do uso dessas drogas marginalizadas dentro da sociedade. A cada dia mais pessoas em diferentes cidades têm se juntado para formar grupos com algum envolvimento, seja com redução de danos, ativismo ou pesquisa relacionados ao tema”, aponta Vidal. “Em Fortaleza temos notícia do ACORDA, em São Paulo, o DAR (Desentorpecendo a Razão), em Salvador a Ananda, no Rio de Janeiro tem o Coletivo da Marcha da Maconha e do Growroom. Todos têm feito os mais variados trabalhos para ampliar o acesso a informações seguras sobre o tema das drogas”. Júlio Delmanto é jornalista.

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Gershon Knispel

A força da rotina

É como um cupim, que come as estruturas do prédio até que ele cai.

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30 de março de 1977, construí um monumento, com meu colega árabe-israelense Abed Abdi, que chama Dia da Terra, no cemitério da cidade árabe de Sakhnin, na Baixa Galileia, como protesto contra a matança e ferimentos de dezenas de jovens árabes que se manifestavam contra a decisão das autoridades israelenses de desapropriar suas terras agrícolas para nelas localizar campos de manobras militares. Num álbum comemorativo, publicado posteriormente, escrevi: Sempre me perguntam por que fizemos o monumento ao Dia da Terra em Sakhnin. Antigamente, as pessoas empilhavam pedras como monumentos, para preservar um lugar ou expulsar maus espíritos. E certamente só maus espíritos poderiam forçar os camponeses a deixarem sua terra, e só maus espíritos poderiam perturbar a tranquilidade dos camponeses que trabalham em sua terra. Será que não foi o mau espírito que levou ao derramamento de sangue inocente, daqueles cujo único crime foi protestar contra a desapropriação de sua terra? Aqui está a resposta. Juntamente com meu colega Abed Abdi, construí essa Pedra das Massas com o mesmo propósito: para expulsar os maus espíritos e preservar o lugar, o lugar da espoliação, roubo e usurpação da terra. Mas também para deixar um memorial de trabalho criativo compartilhado que um dia vai se tornar um marco em torno do qual as futuras gerações poderão se reunir, gerações que acharão difícil acreditar no que realmente acontece... E, se você quiser, permita-nos dizer que nosso trabalho conjunto será um apelo para que o que aconteceu não ocorra de novo”. Desde então, a 30 de março se observa o Dia de Lembrança Nacional da população árabe de Israel. Milhares de árabes e judeus se reúnem para fazer cumprir o pedido inscrito no monumento, de “aprofundar o entendimento entre os dois povos”, à sombra do sarcófago monumental. Ultimamente, arrumando minha biblioteca, deparei, surpreso, com duas publicações empoeiradas. A primeira, “Conversas de combatentes”, de 1967, inclui conversações de comandantes e soldados de unidades de elite, como o Alto Comando Militar, na maioria membros dos kibbutzim, que em geral são os combatentes mais corajosos. Eles começavam pedindo perdão, arrependidos, batendo no peito, cheios de sentimento de culpa. Como soldados da reserva, haviam sido convocados para combater ameaças do Egito e da Síria, mas depois a poeira das batalhas baixou e come-

çou a reflexão, pela qual se percebeu que a estratégia dos egípcios e sírios era defensiva, não estavam preparados para atacar. A nossa guerra de resistência para assegurar a sobrevivência de Israel não passava de uma guerra de ocupação. O texto do livro era chocante. Todos tinham a mesma opinião, se queixaram de como foram vítimas de um engodo. Se dão conta de repente que estavam destruindo todas as regras de comportamento em que tinham sido educados, fugindo aos valores básicos de igualdade entre os povos e de coexistência de grupos étnicos diferentes, como nossos vizinhos árabes. A outra publicação empoeirada era um catálogo, com o caráter de uma antologia, em que os mais destacados poetas, escritores, artistas plásticos se reuniram num ato de protesto, a 5 de junho de 1985, no Museu do Castelo do Kibbutz Gaash, a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv, três anos exatos após a Primeira Guerra do Líbano. O catálogo-antologia chamava “Atravessando fronteiras”. O famoso escritor S. Izhar (Smolensky), naquele tempo ainda parlamentar do Partido Trabalhista, abriu o ato com uma citação do general Amos Jaron: “Havia aqui um blecaute dos sentidos de toda a hierarquia, um apagão dos sentidos de todos nós. Curto e grosso, e nada mais... Como é possível que o comandante do batalhão esteja no campo de batalha ignorando o fato de que aqui estão assassinando 300, 400, 500, mil, e na verdade nem sei quantos – e se esse comandante fica assim, é preciso acabar com ele. Por que os seus sentidos estavam desligados? Confesso, aqui, em cima deste pódio, que nossos sentidos, de todos nós, estavam apagados”. (General Amos Jaron, testemunhando no inquérito nacional, nos jornais de 9 de fevereiro de 1983). Logo após a citação, S. Izhar perguntou: “Esse apagão dos sentidos, como aconteceu? Por quê? Porque, se cada um que vai entrar para a guerra não está de acordo com a necessidade dela, está combatendo depois que seus sentidos foram apagados. Porque hoje, em Israel, virou costume, que o mundo está dividido em dois: de um lado, judeus, e de outro, seres não humanos. Porque virou hábito, para muitos, para a maioria dos que têm sangue judeu, que o sangue não seja derramado inutilmente. E há sangue no ser não humano. Porque muitos estão deixando claro que há leis para judeus e nenhuma lei para os outros. Porque de todas as ideias do mundo, só duas estamos utilizando: o branco e o preto: nós e os outros. Porque os estereótipos mitológicos utilizados hoje em dia, por exemplo, o rei de Israel, o Grande Israel, e

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de outro lado Satã e os terroristas, ignoram completamente os valores históricos, como a complexidade do mundo, a responsabilidade, enxergar longe, o compartilhamento, os palestinos. Porque muitos dos judeus de Israel hoje em dia estão com o coração envenenado”. Pegando esse catálogo, me lembrei que, após o evento, nossa esperança era de que fôssemos finalmente compreendidos.

Epílogo Nestes dias, tive a oportunidade de ver dois filmes: “A faixa branca”, de um corajoso cineasta alemão, que conseguiu fazer a cirurgia, com um bisturi muito afiado, da sociedade alemã antes da Primeira Guerra Mundial, muito tempo antes que Hitler tivesse envenenado os cérebros dos alemães com o famoso livro “Mein Kampf”. O cineasta está pondo no banco dos réus a educação espartana, muito cruel, e a hipocrisia, com uma capacidade cinematográfica fantástica e emocionante, de modo que se vive de novo o processo que levou à criação do estereótipo satânico em que se formou essa geração de entreguerras. O outro filme, que vi com atraso, é “A cegueira”, baseado no livro de José Saramago, que vi no Telecine Cult, na TV. Com capacidade igualmente fantástica, o cineasta brasileiro conta a história em três vertentes, contribuindo com uma dimensão universal do processo de como a sociedade do século 20 se transformou em rinocerontes à moda da peça de Ionescu. Como fui ingênuo, há 35 anos, ao escrever no prefácio do álbum do Dia da Terra que no futuro seria difícil acreditar que aquelas coisas aconteceram! Passaram quase duas gerações desde aquele 30 de março e hoje o número de árabes peregrinos aumenta a cada dia no monumento, na celebração anual, e o número dos judeus diminui cada vez mais. Naquele episódio, seis jovens árabes foram assassinados. Desde então o número de vítimas inocentes palestinas e libanesas do Exército de Israel subiu mil vezes, quarteirões inteiros foram arrasados por nossos aviões. Quando mais de 1.500 palestinos inocentes foram mortos na ação de Gaza, chamada de crimes de guerra pelo relatório da ONU, apoiado por 134 Estados do mundo, de tudo isso resultou a eleição de um governo brutal que nega a paz de um modo sem precedentes. Quantas gerações passarão ainda mais para que a população de Israel desperte dessa situação? Gershon Knispel é artista plástico. maio 2010

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Anelise Sanchez mente daqueles que apostavam no crescimento do ramo da construção civil. Leve, barato, resistente à água e facilmente transportável, poderia ter sido o parceiro ideal de momentos históricos de euforia econômica, como aquele dos 50 anos em 5. O único inconveniente é que se trata de um produto fatal para a saúde humana e, por isso, foi abolido por mais de 40 países. A Itália proibiu o uso do mineral em 1992, mas já em 1943 outras nações europeias como a Alemanha haviam reconhecido o potencial cancerígeno do amianto. Diversos estudos científicos nacionais e internacionais demonstraram que o amianto, inclusive a crisotila, ou amianto branco, é um inimigo lento e silencioso, capaz de causar doenças com longo período de latência, como a fibrose pulmonar, o câncer de pulmão e o mesotelioma de pleura, causado pela inalação do amianto no meio ambiente. Agressivas e incuráveis, essas doenças podem se manifestar até 50 anos após o primeiro contato com o amianto, mas, apesar disso, em 2008 o Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) patrocinava a campanha publicitária cujo slogan era “Amianto crisotila – a fibra mineral que faz o Brasil crescer”, mais tarde suspensa pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Amianto,

o inimigo fatal do teto ao lado Vítimas italianas e seus parentes esperam que o maior processo trabalhista contra a Eternit na Europa seja capaz de fazer justiça às mortes causadas pela fibra assassina. Roma – No eterno contraste entre capitalismo selvagem e bem-estar social, entre crescimento exasperado e consumo sustentável ou entre degração ambiental e saúde pública, o único vencedor é o poder econômico. Sobretudo nos países pobres ou em desenvolvimento, não é raro que o neoliberalismo desenfreado acabe legitimando graves danos ao ser humano e ao meio ambiente. Nos últimos anos, o crescimento dos crimes ambientais corporativos, cometidos em vários continentes, demonstram que os interesses do setor privado e suas práticas de lobby são capazes de influenciar as políticas públicas – ainda brandas – de proteção do bem-estar comum. Um caso emblemático de supremacia econômica sobre a saúde pública é o do amianto, um

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mineral de comprovado potencial cancerígeno também conhecido como “a fibra assassina”. Na Europa, a produção do amianto cresceu exponencialmente durante o período pós-guerra, mas quando os Estados Unidos limitaram o seu uso e os países do velho continente iniciaram inúmeras campanhas em favor de sua erradicação, os maiores produtores do ramo inauguravam fábricas em diversas outras partes do mundo. Não é raro que o deslocamento geográfico de empresas coincida com a preferência por países caracterizados pela mão de obra barata, por incentivos fiscais, legislações trabalhistas menos articuladas e tímidos movimentos sindicais. Com o amianto a história se repete. O material parecia ser um grande aliado do desenvolvimento dos países do terceiro mundo, principal-

Segundo os dados divulgados pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), o Brasil é um dos cinco maiores consumidores e fabricantes de amianto do mundo, com produção anual média de 250.000 toneladas. O material é empregado em mais de 3 mil produtos, como o fibrocimento (típico de telhas e caixas-d’água) pastilhas e lonas para freios e, apesar de seus efeitos catastróficos, sua alta rentabilidade atraiu, inclusive, países “ecologistas”. O Canadá, por exemplo, exporta 98% de sua produção de amianto para os países do terceiro mundo e, no Brasil, a Eternit declarou que, somente no terceiro trimestre de 2009, o seu lucro totalizou R$ 17,004 milhões e que a venda de produtos acabados alcançou 207,2 mil toneladas, aumento de 16,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Entre os países europeus, a Itália é uma das nações onde a sociedade continua pagando a conta provocada pelos males do amianto. O país proibiu o uso da fibra cancerígena em 1992, mas com o passar dos anos a curva que indica o número de mortes nacionais causadas pelo material é cada vez maior. Em dezembro, o tribunal de Turim iniciou o julgamento do maior processo trabalhista europeu, uma ação coletiva movida por quase 3 mil partes civis contra os ex-proprietários da multinacional belgo-suiça Eternit. O magnata suiço Stephan Schmidheiny e o belga Jean Louis de Cartier são acusados de desastre ambiental doloso e omissão no fornecimento de um sistema de proteção adequado aos trabalhadores expostos à fibra do amianto. A maioria das vítimas italianas são de Casale Monferrato, na província de Alessandria, mas

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Produção no Brasil

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a Eternit era detentora de outras três fábricas em território italiano: a ex Icar, em Rubiera, e outras duas em Bagnoli (Nápoles) e Cavagnolo (Turim). Ainda hoje a empresa possui saúde econômica de ferro, mas a imprudência do lobby do amianto gerou, até hoje, cerca de 120 mil mortes ao ano. Até 1992, a Itália utilizou 3,7 milhões de toneladas do mineral assassino na composição de mais de 3 mil produtos e, anualmente, o país registra cerca de 3 mil novas mortes por asbestose, a doença pulmonar crônica provocada pela inalação de fibra de amianto. Em Casale Monferrato, cidade de 32 mil habitantes, distante 70 quilômetros de Turim, foram registrados mais de 1500 casos de asbestose, câncer pulmonar e mesotelioma. Se até agora as estatísticas divulgadas pela comunidade científica são alarmantes, tudo indica que, em um futuro próximo, a asbestose provocará mais vítimas do que aquelas causadas pelo tabaco. As previsões sustentam que o maior número de mortes por amianto acontecerá por volta de 2018, com 100 mil novos casos italianos.

Tipo de vítima Bruno Pesce, coordenador da Associação dos Familiares das Vítimas do Amianto, comenta que outrora a Eternit empregou mais de 2 mil habitantes de Casale Monferrato e que, na época, trabalhar para a multinacional, assim como para outras indústrias da região, era como tirar a sorte grande, uma chance de estabilidade profissional. “A fábrica situada em Casal Monferrato encerrou suas atividades em 1986, mas desde 1953 a asbsestose já era reconhecida como uma doença profissional”, explica. Em 2008, dos 27.539 casos de doenças profissionais denunciados ao Istituto Nazionale per L’assicurazione Contro Gli Infortuni Sul Lavoro (INAIL), 2 mil estavam relacionados a tumores causados pelo amianto. Apesar do INAIL prever indenização às vítimas de doenças ocupacionais, como a exposição ao amianto, um dos maiores impasses causados pela fibra assassina é o flagelo de centenas de pessoas que nunca trabalharam para a Eternit, mas indiretamente acabaram contraindo a asbestose. Segundo os juízes da procuradoria de Turim, em Casale Monferrato, a Eternit vendia a preços simbólicos seus descartes de produção para entidades públicas e privadas que utilizam o amianto para pavimentar ruas e isolar tetos, por exemplo. Isso significa que, provavelmente, mesmo sem nunca ter entrado na Eternit, o número de habitantes expostos à fibra killer é incalculável. “No caso da atual ação coletiva que deu origem ao processo trabalhista contra a Eternit, conseguimos contatar cerca de 50 pessoas com abestose ou familiares das vítimas para convencê-las a apresentar-se como parte civil em Turim”, comenta Orianno Lazaretti, responsável pelo departamento de prevenção e tutela do sindicato CGIL da região Reggio Emilia. “O problema é que mui-

tos ex-funcionários da Eternit transferiram-se para outras cidades e não sabemos se foram informadas sobre os riscos do amianto”, completa. Em 2007, o governo liderado pelo ex-premiê, Romano Prodi, criou um fundo nacional para as vítimas do amianto, cerca de 30 milhões de euros que ainda não chegaram aos trabalhadores contaminados em razão de um impasse legislativo: a falta de um regulamento que defina os critérios de acesso a tal fundo. As vítimas e seus familiares aguardam ansiosamente o desfecho dessa situação, mas mesmo na hipótese de uma decisão favorável, o fundo não seria destinado a cidadãos comuns afetados pelo amianto, mas somente àqueles que obtiveram do INAIL o reconhecimento de uma doença profissional. “Por esse motivo, o ideal também seria adotar a lógica da contaminação ambiental, comprovada, por exemplo, por um departamento de oncologia, e não exclusivamente aquela do amianto como doença profissional”, considera Bruno Pesce.

Novos casos Se na Itália a tutela às vítimas do amianto e seus familiares ainda é incerta, na França o fundo criado em 2000 para o ressarcimento de mesoteliomas, tumores pulmonares, asbestose e placas plêuricas é de 550 milhões de euros. Segundo a Agence française de sécurité sanitaire de l’environnement et du travail (Afsset), o amianto é responsável por cerca de 20% dos casos de câncer pulmonar em território francês e, até 2005, provocará mais de 100 mil mortes. Enquanto isso, em cidades italianas como Casale Monferrato e Rubiera, o amianto continua a gerar pânico e muitos de seus habitantes definem-se como verdadeiras bombas-relógio. O caso de Romana Blasotti Pavese, por exemplo, é emblemático. Presidente da Associação dos Familiares das Vítimas do Amianto, Romana, 80 anos, perdeu o marido, a irmã, a prima e a sobrinha. E quando o amianto parecia ter lhe roubado tudo, acabou perdendo a própria filha, em 2004. Assim como ela, todas as segundas-feiras, dia de audiência, os habitantes de Casale Monferrato lotam os oito ônibus que partem bem cedinho para chegar até o tribunal de Turim. Nas salas do tribunal, a cada semana são ouvidas diversas testemunhas, como Giuliana Busto, que perdeu o irmão de 33 anos, um esportista que nunca prestou serviços para a Eternit, Carlo Lidl, cuja esposa morreu por causa de um mesotelioma plêurico, ou Nicola Pondrano, que perdeu mais de 50 amigos por culpa do amianto. No total, os advogados de defesa das vítimas do amianto convocaram 3 mil testemunhas e muitas delas repetem que no final de uma jornada de trabalho na multinacional, os clássicos macacões azuis dos operários da fábrica Eternit ficavam recobertos de pó branco. O processo trabalhista coletivo contra a Eternit na Itália está concentrado em um dossiê de 220 mil páginas e espera fazer justiça a mais de 3 mil

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mortos. O pedido de ressarcimento das vítimas é de 5 bilhões de euros, mas ainda é cedo para prever qualquer resultado sobre o julgamento. Até agora, os dois acusados por negligência, Jean Louis de Cartier e Stephan Schmidheiny que, ironia do destino, é o fundador da associação Avina para o desenvolvimento sustentável na América Latina - não compareceram às audiências designadas pelo tribunal de Turim. Contudo, como explica Bruno Pesce, a tese de defesa adotada por seus advogados sustenta, entre outras objeções, que no passado não existiam evidências científicas suficientes que demonstrassem os riscos do amianto. Alguns acreditam, por exemplo, que o crisotilo puro, o tipo mais comum do mineral amianto, seja incapaz de provocar o mesotelioma pleurico, mas na verdade o crisotilo quimicamente puro não existe in natura e é sempre contaminado por substâncias como íons de ferro que desencadeiam suas propriedades patógenas. O objetivo dos defensores é demonstrar que, antes que a lei contra o amianto tivesse sido adotada na Itália, em 1992, o crime não existia. A defesa dos acusados também pede que os operários que obtiveram ressarcimento da Eternit, quando o ramo italiano da fábrica havia declarado falência, e aqueles que já receberam algum tipo de indenização por mesotelioma plêurico sejam excluidos do processo. Além disso, o advogado de De Cartier é contrário ao fato que o INPS italiano, que alega ter sofrido um grande dano patrimonial, seja admitido como parte civil no mesmo processo. Como acontece em qualquer batalha legal, os fins justificam os meios e por isso a Etex Group, multinacional comandada por Cartier, se opõe às partes civis que trabalharam na Eternit, mas não durante o periodo belga. A mesma posição foi adotada pelo advogado de Stephan Schmidheiny em relação ao período suíço.

Sentença exemplar Apesar das inúmeras polêmicas que circundam o caso Eternit na Itália, na opinião de Bruno Pesce, “o importante é que a sentença seja justa e sirva de exemplo para os países que ainda não aboliram definitivamente o uso do aminato”. No caso do Brasil, segundo a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea); até o momento, essa proibição foi aprovada e mantida somente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Isso porque as normativas de São Paulo e Mato Grosso do Sul foram anuladas por decisão do Supremo Tribunal Federal em 2003. Vale lembrar que algumas localidades do território nacional ainda são altamente expostos à fibra assassina, como Bom Jesus da Serra, na Bahia, ex-sede da SAMA, a primeira empresa mineradora de amianto de porte no país, e Minaçu, em Goiás. Uma reponsabilidade moral e econômica diante da qual nenhum governo deveria fechar os olhos. Anelise Sanchez é jornalista. maio 2010

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Marcelo Salles

O cinema de Júlio e Paulo: da Cidade de Deus para o mundo

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que mais chama a atenção em Júlio Pecly e Paulo Silva é o bom humor. Sempre sorrindo, eles contam a história de como se conheceram, há três décadas, na favela carioca Cidade de Deus, onde eram vizinhos – as famílias deles já se conheciam, Paulo diz que viu quando Júlio chegou da maternidade. Falam também das afinidades, do amor pelo cinema, dos cursos que fizeram juntos. Júlio, 38 anos, é negro, cadeirante e morador da favela, onde divide uma casa de dois quartos, sala e banheiro com outros seis familiares. Paulo, 42 anos, é branco, imigrante amazonense, vive hoje em Mesquita, município da Baixada Fluminense.

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Filho de pai caminhoneiro e mãe cobradora de ônibus, Júlio foi criado pelos avós – ele pintor, ela empregada doméstica. O cineasta foi alfabetizado pela avó e já chegou ao jardim de infância sabendo ler. Paulo também foi alfabetizado antes de entrar na escola e passou direto a 1ª série. Os dois eram fissurados por cinema desde cedo. Devoravam a revista Cinemin, especializada em filmes da extinta editora Editora Brasil-América Latina (Ebal), passavam dias inteiros assistindo a filmes. “Nosso maior curso foi ver filmes”, diz Paulo. Júlio, por sua vez, tinha um caderno onde anotava todos os filmes que via,

com as seguintes informações: nome da obra, diretor, três atores, e ainda dava nota. Com a enchente que abalou a cidade do Rio de Janeiro em 1996 ele perdeu tudo. “Mais de sete mil filmes”, garante. O primeiro curso de cinema que fizeram foi em 2003, no âmbito do Projeto Cinemaneiro, no SESC dos Apês, na Cidade de Deus. Fizeram a inscrição, não foram selecionados. Apesar da negativa, compareceram ao primeiro dia de aula. “Professora, podemos assistir como ouvintes?”. Ficaram. No segundo dia, a mesma coisa. Então, os responsáveis pelo curso acabaram abrindo uma exceção para eles. Depois fizeram ou-

foto Fernanda Chaves

Nascidos na favela carioca e apaixonados pela sétima arte desde a infância, a dupla de cineastas fez doze filmes e ganhou vinte e um prêmios, dois deles internacionais.

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tros, no Nós do Cinema (hoje Cinema Nosso) e na Central Única de Favelas (Cufa). Para ir da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, à produtora onde trabalham, a Cavídeo, no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro, Júlio e Paulo levam cerca de duas horas. No trajeto, tudo parece atrapalhar. O chão esburacado da favela, a falta de rampas nas calçadas, a falta de transporte público adequado para quem não caminha com os próprios pés. A linha de ônibus que eles geralmente pegam, a 268, só tem um carro adaptado para cadeirante. Então, na maioria das vezes, Paulo carrega Júlio, no braço, para dentro do ônibus, e em seguida leva a cadeira. Depois que chegam ao centro da cidade, e após passar pela mesma dificuldade para desembarcar, os dois tomam o metrô para continuar a viagem até a zona sul. A negligência das empresas de ônibus e de todas as outras que não adequam seus equipamentos atinge aproximadamente 25 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de deficiência – física, auditiva, visual, intelectual ou múltipla. Apesar de todos os pesares, chegam animados à produtora, que fica no segundo andar de um centro de abastecimento de alimentos, a Cobal. No feriado de São Jorge, comemorado no dia 23 de fevereiro, encontro Júlio ao pé da escada, sozinho, esperando uma “carona” para subir. Ele veste a camisa do Flamengo, mas estava chateado com a atuação do time contra o Caracas, da Venezuela – a magra vitória por um gol de diferença quase desclassificou a equipe, que terminou a primeira fase da Copa Libertadores da América em último lugar.

Futebol A paixão pelo futebol rendeu o curta-metragem Canal 001, uma homenagem ao extinto Canal 100, cinejornal fundado em 1957 por Carlos Niemeyer que exibia semanalmente documentários cinematográficos a respeito de jogos e eventos esportivos importantes. No filme de Júlio Pecly, que tem produção executiva de Paulo Silva, é narrada uma partida entre dois times fictícios, Ferro Velho e Funil, que disputam uma final de campeonato num campo de várzea. Em que pesem as caneladas dos atores, a trilha sonora, Carmina Burana, e o texto dramático de Nelson Rodrigues, ainda que adaptado do original, feito para um Fla-Flu, são suficientes para arrepiar até os telespectadores mais insensíveis. Desde que começaram a trabalhar com cinema, há seis anos, Júlio e Paulo fizeram doze filmes juntos. Ganharam vinte e um prêmios, sendo dois internacionais: o Festival do Rio e o Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, ambos com a obra 7 minutos. O filme, sobre a violência na favela, mostra uma disputa entre dois traficantes varejistas. O grande diferencial, além da visão de um diretor que vive na favela, está na câmera subjetiva, que num único plano sequencial dá ao telespectador a visão de um dos personagens. Pergunto se ele não acha o final previsível, com a morte de um dos trafi-

cantes. “O telespectador sabe que ele vai morrer, mas não sabe como. E é isso que o prende à história”, responde. Cavi Borges, dono da Cavídeo, é um grande entusiasta do trabalho de Júlio e Paulo. “De cada dez pessoas que chegam aqui querendo fazer filmes, você pode descartar dois terços. A maioria desiste diante da primeira dificuldade”, diz. Atualmente existem 20 pessoas tocando projetos diferentes na produtora, cujo espaço não excede 20 metros quadrados. Além de um computador e uma ilha de edição, o lugar tem um telefone, uma impressora, um armário com DVDs de filmes, um balcão onde as pessoas deixam mochilas e pertences, uma pequena mesa redonda e uma meia dúzia de cadeiras, se tanto. No andar de baixo funciona a locadora Cavídeo, também pequeninha, que tem todos os filmes que uma locadora normal tem e mais aqueles distribuídos pela produtora homônima. Mas a infraestrutura precária não impede a realização de filmes. Ao todo, a Cavídeo já produziu 42 curtas-metragens e três longas. O conceito de fazer muito com muito pouco levou Júlio, Paulo, Cavi e outros, como o músico Marcelo Yuka, a cineasta Kátia Lund, o escritor Paulo Lins e os atores Leandro Firmino da Hora e Natália Lage, a criarem a Companhia Brasileira de Cinema Barato, mais conhecida como CBCB. A proposta nasce após o surgimento da tecnologia digital, o que barateia muito a produção de filmes e favorece o fenômeno conhecido como Cinema de Periferia. Para se ter uma ideia, um orçamento considerado baixo para um longa filmado em película é R$ 1 milhão. Já o longa filmado em digital pela Cavídeo, o Vida de balconista, foi produzido com apenas R$ 2 mil, especialmente para ser veiculado em telefones celulares. “É o primeiro longa para celular da história”, afirma Cavi. Júlio Pecly garante: “A gente tem uma ideia. Se tiver dinheiro, faz o filme. Se não tiver, faz também”. Diante dessa afirmação, faço a pergunta inevitável. E quanto você precisa para fazer um filme? “Mil reais”. Claro que essa conta é exagerada e depende da boa vontade de todos os trabalhadores envolvidos com a produção, mas Cavi calcula que com aproximadamente 10% do orçamento de película é possível pagar os salários numa realização digital. “Tenho o sonho de conhecer o Eike Batista pra ver se ele financia um filme meu”, diz Júlio.

Audiovisual A CBCB nasce, em 2008, com um manifesto pela democratização do cinema. “Durante anos os latifundiários do audiovisual brasileiros ditaram uma fórmula milionária e excludente”, afirma o documento, disponível na internet. A companhia defende que “os rejeitados, os filhos dos guetos, das favelas e periferias (...) passem de simples personagens a realizadores de audiovisual de qualidade”. O manifesto toca num ponto nevrálgico do audiovisual brasileiro: financiamento e distri-

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buição. O tema é tão sensível que quando o governo federal tentou democratizar esse segmento dos meios de comunicação, com a criação da Ancinav – Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, em 2004, a grita foi grande. Foi tão grande que o projeto não foi à frente. “Os caras que fazem cinema hoje são os que fazem há 50 anos, são os que mais atrapalham o cinema. É uma fórmula arcaica”, critica Júlio. Mas o cineasta, cuja maior paixão é ler e escrever, garante que não quer mudar o mundo. “Só quero contar histórias comuns de pessoas comuns”. Ele também gosta de contar histórias ambientadas na favela, simplesmente porque acha que acontecem coisas interessantes nesses espaços, como noutro qualquer. No curta Jogo de Damas isso fica muito claro. Enquanto dois parceiros matam o tempo no tabuleiro, no fundo crianças brincam, pessoas conversam descontraidamente. Tudo torna o ambiente agradável, mostrando que na favela não existe apenas violência como fazem parecer as corporações de mídia. Paulo participa como ator em Jogo de Damas. Aliás, eles fazem todos os filmes juntos. E vão se alternando. Ora um produz e outro faz o roteiro, depois um dirige e o outro atua, e por aí vai. Paulo fala bastante. Gosta de discorrer sobre a história do cinema, cita filmes e atores que marcaram época, fala com orgulho que a primeira exibição de um filme foi no Café Paris, mas a segunda foi no Rio de Janeiro, na avenida Rio Branco, em 1910. Júlio, por sua vez, fala pouco. Na maior parte do tempo em que estive com ele na produtora, o computador foi seu parceiro favorito. Ali ele se dividia entre a procura por novos editais e filmes no Youtube. Pergunto o que mais ele ama no cinema. Com uma serenidade fora de série, explica: “A sensação de ver algo que você criou na tela me deixa feliz. Só quero contar histórias que me interessem e que interessem aos outros”. Não é pouco. Júlio foi parar na cadeira de rodas em função de uma doença hereditária chamada distrofia muscular progressiva, que causa a degeneração da membrana que envolve as células musculares e pode levar à morte. Ele soube disso aos 11 anos de idade e oito anos depois já não caminhava. Hoje, aos 38, tem os movimentos dos braços bastante reduzidos. Não consegue mover sua própria cadeira. Mas suas ideias seguem em movimento. Ele e Paulo estão filmando seu primeiro longa-metragem, intitulado 13 de fevereiro. O filme será do tipo documentário e vai contar a história da enchente de 1996, que deixou dezenas de mortos e milhares de desabrigados no Rio de Janeiro. E quando soube que o filme A Distração de Ivan, de Cavi Borges, foi selecionado para a mostra competitiva em Cannes, Júlio comemorou: “Isso é ótimo! Pode abrir muitas portas para o futuro”. Marcelo Salles é jornalista. salles@carosamigos.com.br maio 2010

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Emir Sader

Cesar Cardoso

RAZÃO E PAIXÃO

Se a eleição fosse hoje...

O discurso da esquerda necessariamente parte da denúncia da realidade das nossas sociedades. Busca revelar as mazelas da realidade, às vezes avança na compreensão das raízes dos problemas. Essa é uma atividade permanente e indispensável da militância de esquerda, na luta por uma sociedade justa, solidária, humanista. Porém, a denúncia e até mesmo a análise das raízes dos problemas são práticas necessárias, mas não suficientes, se não desembocam em propostas, em alternativas superadoras dos problemas apontados. Os intelectuais e algumas formas organizadas da esquerda se limitam às denúncias, alguns inclusive reivindicam o direito de “desmascarar” o que consideram ser falsidades propagadas por outros setores da esquerda, como se a verdade pudesse ser resultado da simples denúncia. O marxismo, que constitui o melhor método de análise e fonte de projetos transformadores da realidade, pretende ser não apenas uma interpretação nova da realidade, mas ter no seu bojo, intrinsecamente, projetos de transformação revolucionária do mundo. Não existe separação entre análise e ação política. Nas palavras de Álvaro García Linera, ele mesmo inte-

lectual revolucionário e dirigente revolucionário boliviano, não pode haver separação entre razão e paixão. O intelectual tende a privilegiar a teoria – os princípios em estado puro – em detrimento da utilização do método dialético, que busca a verdade concreta nos processos históricos realmente existentes. E não se trata de que a análise sem a proposta de intervenção concreta fica incompleta. Não. A análise desvinculada da perspectiva de intervenção não capta os fios que articulam a realidade e perde a capacidade de compreensão da realidade também. Não por acaso os intelectuais tendem a uma visão ultraesquerdista, porque, entre a pureza da realidade e a impureza das formas concretas que assumem os processos históricos, ficam com a primeira, contrapondo-a à esta e a desqualificando. Tendem ao pessimismo e à inação. Enquanto isso, o pensamento dialético, buscando captar a realidade no seu movimento, articulado em torno das contradições, tende a projetos que apontam para espaços de ação, de acumulação de forças, de intervenção, de transformação da realidade, de paixão intimamente vinculada à razão.

sugestões de leitura GEOGRAFIA, TRADIÇÕES E PERSPECTIVAS:

Interdisciplinaridade, meio ambiente e representações Amalia de Lemos e Emerson Galvani (orgs.) Editora Expressão Popular CONTEXTOS DA JUSTIÇA

... em qual seleção você votava? Argentina? Espanha? Costa do Marfim? Você tirava o Lula, botava o Adriano e recuava o Robinho? Imagine o seguinte: por uma dessas coincidências a final da Copa do Mundo vai cair na mesma hora da eleição. Pra piorar, o Tribunal Eleitoral e a Globo não chegaram num acordo, então você tem que escolher: ou vota ou vê a final. E o Brasil tá na final, é claro! Você prefere um presidente eleito ou uma seleção campeã? Qual dos dois vai mudar o país? Uma seleção campeã serve pra gente comemorar no maior porre e pra centenas de contratos milionários (nenhum conosco, também é claro!) E um presidente, serve pra quê? Eu, você, todo mundo joga uns dois reais por semana na mega-sena. Mas quanto a gente investiria num presidente? Se a gente fizer uma vaquinha, dá pra comprar um? Ou pra isso tem que ser vaquinha de latifundiário com banqueiro e empresário? E um presidente se vende? É no cheque, no cartão ou em dinheiro? Tem que ser à vista ou rola um crediário? Se a eleição fosse hoje, você votava na Dilma, no Serra ou no Dunga? E se a eleição fosse pra técnico da seleção e o Ricardo Teixeira sozinho escolhesse o presidente? O Brasil melhorava no campo? E na cidade? Afinal, uma eleição serve pra quê? E um presidente, serve a quem? Mas... e se a eleição não fosse hoje? Isso! Nem a eleição nem a final da Copa. Se hoje fosse, por exemplo, o Dia Universal do Líquido Amniótico ou da Proclamação da Escravidão? Ou fosse, digamos, o Dia Mundial da Giárdia ou do Assassinato por Motivo Torpe? Ou pior ainda: se hoje fosse hoje? Só hoje, hoje e mais nada? O que você faria? Nunca é o dia certo, não é mesmo?

Rainer Forst Boitempo Editorial

2003-2010 – O BRASIL EM TRANSFORMAÇÃO

A nova política econômica e a sustentabilidade ambiental Editora Fundação Perseu Abramo

Emir Sader é cientista político.

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Se Cesar Cardoso fosse Cesar Cardoso, seria escritor e teria um blog chamado PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com). Mas...

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

Manoel de Barros, a rosa de maio, E OUTRAS CAPAS

MAIS OU MENOS DURAS “Rosas de maio”, nome de canção gravada nos anos 1940 pelo grande Carlos Galhardo, é a frase que me ocorre para saudar o grande lançamento do mês: a Poesia completa, de mais de 490 páginas, do grande Manoel de Barros, volume lançado pela Leya, com capa dura e magníficas ilustrações coloridas. Estão no livro desde os “Poemas concebidos sem pecado”, de 1937, até o “Menino do mato”, de 2010. Na parte infantil, desde os “Exercícios de ser criança”, de 1999, até o “Poeminha em Língua de brincar”, de 2007. Aqui vão dois “desenhos verbais”: “Sapo é um pedaço de chão que pula”, “Poesia é a infância da língua”. De capa também dura, mas mais mole do que a da Poesia completa, é O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, do famoso sociólogo, já falecido, Gilberto Freyre, publicação da Global. O autor pesquisa os anúncios de compra e venda e de aluguel de escravos e os de busca de escravos fugidos para anotar características dos negros no Brasil na época. Há belas ilustrações. Exemplo de anúncio: “Escravos fugidos. ATTENÇÃO. Fugio desde o dia 13 de agosto do corrente ano o escravo Luiz, com os signaes seguintes: alto e bem feito de corpo, tem dentes limados e perfeitos e o dedo mínimo do pé cortado; quando falla com medo é bastante gago. Este escravo é natural do Sobral e ha toda certeza que seguio para dito lugar por terra. Pede-se por tanto a sua apprehensão a qualquer pessoa, que será bem recompensado: a ntender com o seu senhor na rua Direita n. 112, ou na rua de Apollo n. 43, armazém de assucar”. Por aí ficamos sabendo que se limavam os dentes dos escravos e que deles era amputado o dedinho do pé. Igualmente de capa dura, mas ainda menos dura do que O escravo, é o volume de estudos antropológicos Religiões e cidades – Rio de Janeiro e São Paulo, organizado por Clara Mafra e Ronaldo de Almeida, lançado pela Editora Terceiro Nome. Em discussão, temas como religião e metrópole, pluralismo religioso e espaço metropolitano, o sagrado no tempo e espaço metropolitano, religiosidades japonesas no bairro da Liberdade e pregações na praça da Sé, nos dois casos em São Paulo. Outra bela edição de capa dura, mas desta vez dura mesmo, é a coleção Temas da arte contemporânea, seis livrinhos da escritora e professora Katia Canton, em publicação da WMF Martins Fontes conjunta com o Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Os seis volumes: Tempo e memória, Narrativas enviesadas, Espaço e lugar, Do moderno ao contemporâneo, Da política às micropolíticas, Corpo, identidade e erotismo.

As capas mais moles de todas até agora, mas ainda assim espessas e resistentes, são dos livros da Coleção Contemporânea, lançamentos da Civilização Brasileira: Ficção brasileira contemporânea, de Karl Erik Schollhammer, que abarca desde os anos 80 até os anos 00, e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, de Márcio Seligmann-Silva, sobre os famosos pensadores alemães da Escola de Frankfurt. Do mesmo modo, espessa e resistente é a capa de História da riqueza do homem – Do feudalismo ao século XXI, célebre obra do americano Leo Huberman, em 22.a edição revista e ampliada, com dois capítulos sobre a segunda metade do século XX, de autoria da pesquisadora brasileira Marcia Guerra. A bela edição é da Gen-LTC. Grossa como papelão é a capa de Curral da morte – O impeachment de sangue, poder e política no Nordeste, de Jorge Oliveira, obra que, apesar de publicada por uma grande editora, a Record, não teve a divulgação que seria merecida e necessária. Diz a contracapa: “Se olharmos o mapa de Alagoas com atenção, veremos que tem o formato exato de uma pistola. A coronha ao norte, onde está a capital, Maceió; o cano aponta para o sertão pernambucano; e o gatilho fica em Palmeira dos Índios, terra onde vivem os Xucuru, ainda espantados pela colonização litorânea, e os Cariri, fugidos de Pernambuco. A cidade começou com uma capelinha de tijolo e taipa construída por Frei Domingos na Serra Boa Vista em 1773. Eis o cenário ideal dessa história: o gatilho”. O centro do livro é o episódio de 1957, quando ocorreu um tiroteio, com 1.200 tiros e vários mortos, entre os deputados na Assembleia Legislativa de Alagoas, na sessão em que se deveria votar o impeachment do governador Muniz Falcão. Outra brochura de capa resistente retrata a “pós-cidade” e o “pós-urbano”. Trata-se de A condição urbana – A cidade na era da globalização, do pesquisador francês Olivier Mongin, edição ilustrada da França.br e Estação Liberdade. As grandes metrópoles praticamente sem limites de hoje, ainda por cima ligadas pela internet e outras redes, desafiam as noções de identidade cívica herdadas das cidades gregas antigas, das cidades italianas do Renascimento, de Paris como cidade-luz, e das grandes cidades industriais do passado. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

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Ari Zenha de Oliveira

CLASSIFICADOS

AMIGOS ÁGUA: vida e morte A água é fonte e condição de existência do homem no mundo. A Terra dispõe aproximadamente de 1,3 bilhão quilômetros cúbicos de água, mas eles estão distribuídos em mares, lagoas, rios, nas áreas subterrâneas (aquíferos), gelo, neve e vapor. Grande parte da água usada é jogada sem tratamento no sistema hidrológico; um metro cúbico de água usada, contaminada deteriora mais de dez metros cúbicos de água pura. Estima-se que por volta de 2050 mais de quatro bilhões de pessoas de então – quase a metade da população mundial – estarão em países com necessidade efetiva e crônica de água. A indústria é dos maiores usuários de água, consumindo 21% do total da disponibilidade de água no planeta, enquanto o uso doméstico fica em torno de 10%. O planeta Terra dispõe de 1, 386 bilhão de km3 de água, sendo 97,5% salgada, e, somente 2,5% de água doce, das quais 2/3 estão indisponíveis para o uso humano, pois estão localizados em geleiras, neves, gelos e subsolo congelado. Hoje, cerca de 500 milhões de pessoas moram em países com escassez crônica de água e aproximadamente 2,4 bilhões residem em países onde o sistema hídrico está ameaçado. Os povos que habitam as regiões mais secas estão na África e na Ásia. Alguns números da utilização da água no mundo merecem destaque: para cultivar um quilo de arroz são necessários 1.900 litros de água; as carnes de boi e de carneiro têm um volume alto de utilização de água, um quilo de carne consome 15.000 litros de água; um quilo de soja consome 1.650 litros de água; um quilo de batata consome 500 litros de água; um quilo de trigo consome 900 litros de água. A água consumida na indústria, entre as quais podemos citar: a química e petroquímica, as de metal, as de madeira, as de papel e celulose, as de processamento de alimentos e as de máquinas consomem cerca de 21% de toda a água doce do planeta; isto representa 130 m3 por pessoa anualmente. A irrigação é outra questão vital do uso da água. Os países industrializados respondem por cerca de 25% das lavouras irrigadas. Já os países em desen-

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volvimento estão usando até 40% de suas águas doces para irrigação. Acontecimentos desastrosos, não só para o uso da água e do meio ambiente, foi a irrigação que levou ao declínio e perecimento do mar Aral. A partir de 1957, este mar, localizado na Cazaquistão, teve uma redução de 50% de sua área e de mais de 66% em seu volume devido ao desvio dos rios Amu Darya e Syr Darya, levando praticamente à sua extinção. O consumo da água para fins domésticos tem mostrado sinais fortes de desperdício, devido entre outras coisas, à perda em vazamentos chegando a 40%. A água que pinga de torneiras desperdiçam mais do que a utilizada para beber e cozinhar, e mais, cerca de 30% das águas domésticas se perde nas descargas dos vasos sanitários. Enquanto que nos países em desenvolvimento 20 litros de água são considerados um luxo, os habitantes dos países desenvolvidos consomem 20 litros de água para regar seus jardins. Vários governos do mundo estão dando concessão à iniciativa privada para que elas operem e explorem o sistema hídrico como uma mercadoria e empreendimento empresarial/comercial. Neste sentido, a política dessas empresas privadas almeja o lucro oriundo deste recurso vital para a humanidade. Em países que adotaram este modelo, o preço da água mais que triplicou. Tudo que dissemos aqui está consolidado dentro de uma estrutura de produção capitalista que vem impondo, há pelo menos dois séculos, seu imperativo destruidor não só ao ser humano como também à natureza em toda a sua amplitude. É de forma implacável, como podemos constatar, a destruição da natureza pelo sistema capitalista, na sua busca de lucro, de acumulação e reprodução do seu sistema produtivo por meio do crescimento intensivo e permanente de suas forças produtivo-destrutivas, custe o que custar. É isto o que impera neste modo de produção, queiram ou não admiti-lo. Ari de Oliveira Zenha é economista.

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