ano XIII número 153 dezembro 2009 R$ 9,90
Rio de Janeiro
A vingança do helicóptero
REPORTAGEM ESPECIAL
Agrotóxicos
envenenam
nossa comida ENTREVISTA
Carlos Nelson Coutinho
“As condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes”
Guerra do lixo
massacra os catadores José Arbex Jr. detona
o “imperialismo de face humana”
ENTREVISTA
Paulo Vannuchi
“Vamos abrir os arquivos, punição é com o Judiciário”
ANA MIRANDA ARI DE OLIVEIRA ZENHA CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO
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CAROS AMIGOS ANO XIII 153 dezembro 2009 ano XIII número 153 dezembro 2009 R$ 9,90
Rio de Janeiro
A vingança do helicóptero
Foto de capa Jesus carlos
REPORTAGEM ESPECIAL
Agrotóxicos
envenenam
nossa comida ENTREVISTA
Carlos Nelson Coutinho
“As condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes”
Guerra do lixo
massacra os catadores José Arbex Jr. detona
o “imperialismo de face humana”
ENTREVISTA
Paulo Vannuchi
“Vamos abrir os arquivos, punição é com o Judiciário”
ANA MIRANDA ARI DE OLIVEIRA ZENHA CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO
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sumário 04
Guto Lacaz.
06
Caros Leitores.
07
José Arbex Jr. desvenda o “imperialismo de face humana” de Barack Obama.
08
Joel Rufino dos Santos anuncia que a vaga da sub-Evita do Brasil está aberta.
EDITORA CASA AMARELA evistas • Livros • Serviços Editoriais R fundador: Sérgio de Souza (1934-2008) Diretor Geral: Wagner Nabuco de Araújo
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Guilherme Scalzilli alerta a esquerda sobre as apropriações do “neoprogressismo”.
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Cesar Cardoso proclama a construção da sociedade de super-heróis. Ferréz declara o fim da sinceridade e a sua opção pelo sincericídio.
Enfrentamentos necessários Análises laboratoriais realizadas em 33 marcas de feijão vendidas normalmente no comércio das regiões sul, sudeste e centro-oeste, constataram que o alimento mais popular dos brasileiros está seriamente contaminado com resíduos de agrotóxicos nocivos à saúde. Pelo menos um terço das marcas examinadas apresentaram inseticidas proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Atualmente o Brasil é o campeão mundial de uso de agrotóxicos nos alimentos. A maior parte dos produtos consumidos diariamente pela população – frutas, verduras e cereais – carrega venenos que afetam o sistema nervoso, provocam depressão e vários tipos de cânceres. A jornalista Tatiana Merlino visitou lavouras no interior do Estado de São Paulo, testemunhou trabalhadores pulverizando agrotóxico sem equipamentos de proteção, entrevistou especialistas e montou um quadro – real e assustador – sobre esse processo criminoso de envenenamento, comandado por interesses econômicos de grandes empresas estrangeiras. Já a jornalista Lúcia Rodrigues trata de desvendar o que está por trás da disputa que se trava hoje pelo lixo de São Paulo, onde grandes empresas manipulam o poder público para expulsar os catadores de material reciclável das ruas da cidade. Existe atualmente uma verdadeira guerra pelo lixo – e as vítimas, como sempre, são os mais fracos, pessoas que encontraram no trabalho da coleta uma forma única de sobreviver. Apresentamos também na presente edição duas entrevistas exclusivas fundamentais: uma com o ministro Paulo Vannuchi, dos Direitos Humanos, que tem sido um batalhador incansável do esclarecimento dos crimes praticados pelo Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Ele inclusive tem sido o alvo preferido da direita – de dentro e de fora do governo federal. A outra entrevista é com o respeitado professor Carlos Nelson Coutinho, teórico marxista, um dos introdutores e autoridade nos estudos de Antonio Gramsci no Brasil. Um material de alto nível – complementado pela equipe de articulistas e colunistas da Caros Amigos. Vá em frente!
10 Marcos Bagno comenta a diversidade linguística do Brasil.
Mc Leonardo desabafa em “Tá tudo errado” as angústias dos favelados.
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Glauco Mattoso Porca Miséria.
Eduardo Suplicy defende a liberdade de escolha nos programas de renda mínima.
12 Entrevista com Paulo Vannuchi: “Vamos abrir os arquivos da ditadura”. 16
Marcelo Salles entrevista o jurista Nilo Batista sobre a segurança do Rio.
19
João Pedro Stedile explica por que foi criada a CPMI contra a reforma agrária. Gilberto Vasconcellos lembra que nenhum careca chegou à presidência.
20
Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.
Ana Miranda faz um pequeno concerto para o compositor Geraldo Vandré.
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Ari de Oliveira Zenha analisa as administrações equivocadas da Cemig (MG).
24 Ensaio Fotográfico de Joelma Couto - O povo da rua no grande centro urbano. 26
Tatiana Merlino denuncia os agrotóxicos que envenenam a comida dos brasileiros.
31
Frei Betto deseja Feliz Natal à criança que nos habita.
Fidel Castro critica a posição dos Estados Unidos na Conferência de Copenhague.
32 Entrevista com Carlos Nelson Coutinho: “Sem socialismo não há democracia”. 36
Lúcia Rodrigues relata a guerra do lixo em São Paulo e a vida dos catadores.
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Gershon Knispel denuncia as falsificações da história nas revistas da Abril.
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Renato Pompeu Idéias de Botequim.
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Emir Sader prevê período de turbulências com a crise hegemônica mundial.
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Claudius
EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERes: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves revisora: Mariana Salzstein DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann PUBLICIDADE: Melissa Rigo CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Ingrid Hentschel, Elisângela Santana CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon Sítio: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau Assessoria de imprensa: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Priscila Nunes Alves, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.
JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242) diretor geral: wagner nabuco de araújo
CAROS AMIGOS, ano XIIi, nº 153, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf Redação e administração: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP
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setembro 2009
caros amigos
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Caros leitores
Muito importante a entrevista com Ferréz, no último número de Caros Amigos (151). Merecem destaque os seguintes pontos para reflexão: 1) “Eu acho que a escola perdeu o foco total de realidade... os professores também estão ferrados”; 2) “... eu votei num partido que prometeu outras coisas... O PT virou outra coisa...eu acreditava como moleque de favela que a favela ia mudar... Mas eu tive que esperar o PCC chegar para mudar a favela; 3) “... o cara tem acesso agora a comprar um carro importado parcelado... Só que ele não tem onde pôr o carro, não tem garagem, não tem estrutura. O Governo Lula deu estabilidade para todo mundo poder comprar um carro parcelado, uma casa parcelada, uma roupa parcelada, mas você não tem aonde pôr tudo isso; 4) “Medo não se vence. Medo vira ódio...”. Sugiro uma leitura atenta e na íntegra da entrevista. Concessa Vaz, Belo Horizonte/MG Decepcionante a entrevista do Ferréz para a edição 151 da revista. Ele falou, falou e não disse nada. Certamente a periferia tem muito mais a dizer do que disse esse “autêntico representante dos sentimentos e das lutas da imensa população que vive na periferia de São Paulo”. Paulo Jonas de Lima Piva, São Paulo/SP Fico feliz por assinar essa revista de altíssimo nível. Leio tanto as que vão chegando, como também releio as matérias antigas. Meus elogios especialmente para José Arbex Jr, Emir Sader, Renato Pompeu e Frei Betto Procurando despir-me de todo o preconceito possível, acredito que o Ferréz ainda não tem a lucidez transformadora. O processo catártico (literatura transformadora) é incipiente demais para gerar transformação. Acho que ele não conseguiu ordenar o pensamento de uma forma um pouco mais didática para aqueles que “estão de fora” da favela. Gíria é legal, mas sempre quando bem colocada,
no momento certo. A literatura nos transforma. Não entendi direito se ele faz apologia ao ódio e, por exemplo, se ele defende o PCC (fiquei na dúvida). Não ficou claro. Enfim, a principal reportagem de “capa”, foi ruim. Acho que Honduras merecia muito mais páginas. Eraldo
Psol e Marina Silva Caros Amigos já deu sua capa para Heloísa Helena e para Marina Silva. Gostaria que entrevistassem agora a deputada federal Luciana Genro e lhe fizessem a seguinte pergunta: o MES (Movimento de Esquerda Socialista), tendência interna do PSOL da qual Vossa Excelência faz parte, defende que o partido apoie a candidatura de Marina Silva, do PV, para a presidência. Depois de ter feito tanta guerra contra o senador José Sarney, o PSOL agora será aliado do filho dele, Zequinha Sarney? Se não der pra entrevistar a Luciana, gostaria que este meu email fosse publicado na seção de cartas. Edson Amaro de Souza, São Gonçalo/RJ
Previdência Sou leitor assíduo da revista há muitos anos. Minha decisão de leitor é pelo simples fato que a maioria das revistas do país tratar o leitor com desdém, desinforma e não trata as informações de forma isenta. Revistas como a Caros Amigos, que se propõem refletir uma posição crítica da sociedade atual não podem, em hipótese alguma, utilizar os mesmos expedientes que os folhetões da direita golpista. Meu repudio é em relação à matéria intitulada Previdência - governo mantém perdas para 38% dos aposentados, da jornalista Lúcia Rodrigues. Quando a matéria trata das entidades nacionais que repudiaram o acordo das centrais, a jornalista simplesmente ignora que a CTB (Central dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil), NCST – Nova central sindical dos trabalhadores e a Cobap – Confederação brasileira de aposentados e pensionistas
(única citada na matéria) foram desde o início do processo de negociação com o governo contra o acordo de bastidores e exigem que a proposta aprovada no Senado da Republica seja integralmente referendada na Câmara dos Deputados. É injustificável desconsiderar entidades que lutam por uma sociedade mais justa e democrática como é intolerável conviver com uma imprensa manipuladora. Gilson Reis, Presidente da CTB Minas
“Nacionalista, eu” Na edição de outubro da Caros Amigos, ao ler o artigo intitulado ‘Nacionalista, eu”, do historiador Wagner Nabuco, fiquei surpreso com a sua afirmação de que “o Brasil e o Estado tal qual hoje o conhecemos foram uma criação do Vargas”, inserindo nessa criação a Consolidação das Leis Trabalhistas. Como historiador que estuda o período, me permito discordar de Nabuco. Ao que parece, o colunista assumiu como verdade o chamado “mito da outorga”. Ou seja, teria sido Vargas quem “doou” a legislação social para os trabalhadores. Tal visão, além de assumir o discurso do próprio governo à época, simplesmente elimina do processo histórico a luta da classe operária brasileira, iniciada antes mesmo do final do século 19 pela conquista das referidas leis. Antes de ser uma “criação” varguista, a CLT foi uma vitória do nosso operariado. André Vinicius Mossate Jobim, Santa Maria/RS
Cultura na periferia
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Ferréz
Tatiana Merlino, gostaria de felicitá-la pela matéria que você assinou na edição deste mês da Caros Amigos! (A Tropicália da Periferia, edição 151) Excelente texto, profundidade e observação participante acerca da vida na periferia paulistana, sobretudo no que tange ao ativismo cultural frente à omissão do Estado... Além disso, a matéria casou de forma muito interessante com a entrevista do escritor marginal, Ferréz! Fran Yan Tavares, Fortaleza/CE
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caros amigos dezembro 2009
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José Arbex Jr.
Imperialismo
cria o seu universal soldier
Em plena crise, o sistema capitalista mundial encontrou o seu universal soldier, o representante maior dos “valores democráticos ocidentais”, em nome dos quais torna-se palatável a “guerra sem fronteiras” contra o terror, a prática de invasões militares e de matanças indiscriminadas, a intervenção em qualquer parte do planeta. Barack Obama, agraciado com o Nobel da Paz, é o “imperialismo de face humana”, mais ou menos como, nos anos 60, John Kennedy, responsável pela escalada da Guerra do Vietnã, era o ícone glamourizado da barbárie. Obama, aliás, já tem o seu próprio Vietnã: após o gigantesco fiasco no Iraque, a Casa Branca sabe que tampouco pode vencer a Guerra do Afeganistão, como não puderam, antes dela, os impérios britânico e soviético. Pior: a guerra já ultrapassou as fronteiras afegãs e envolve diretamente o Paquistão, país dotado de arsenal nuclear. Apesar disso, Obama estuda o possível envio de novos 60 mil soldados ianques para a região. Um ano após a sua eleição à presidência dos Estados Unidos, Barack Obama mantém, fundamentalmente, a mesma política externa de George Bush, exceto pelo fato de que o atual presidente, ao contrário do troglodita que o antecedeu, aceita manter o diálogo com os governos “aliados” europeus. Obama tem consciência do valor ideológico e estratégico da Otan, uma aliança que perdeu a sua razão de ser com o fim do “bloco socialista” e da Guerra Fria, mas que se mantém como guardiã dos interesses imperialistas dos Estados Unidos e da Europa dita ocidental (particularmente, Grã-Bretanha, Alemanha e França). Como ícone da “sagrada família” imperialista ocidental, Obama faz manobras provocadoras contra a Rússia (sede do império euroasiático eslavo) e cria áreas de atrito até mesmo com a superaliada China. As ameaças de punição contra o Irã e a Coréia do Norte fazem parte desse jogo, assim como a tentativa de instalar mísseis da Otan em antigos países do Leste europeu, na fronteira com a Rússia. Mas o universal soldier Barack Obama sabe promover a escalada com a fala mansa e jeito soft. Numa reunião de cúpula do Oriente Médio, realizada em junho, no Cairo, Obama inicia o seu discurso em árabe, com a tradicional saudação As-Salam Aleikum, e compromete o seu governo com a criação de um Estado palestino viável. Mas, em pouco tempo, a euforia cede lugar à frustração. Obama nada faz para impor ao governo israelense a suspensão total da expansão dos assentamentos nos territórios palestinos ocupados, exceto pelos patéticos apelos de seu assessor George Mitchell, ainda ssim mitigados
pelos elogios ao primeiro-ministro Benyamin Netaniahu, feitos pela secretária de Estado Hillary Clinton. Sequer o já famoso relatório sobre os crimes cometidos pelo exército israelense em Gaza, feito por Richard Goldstone, enviado especial da ONU para a Palestina, é suficiente para levar Obama a adotar medidas efetivas contra Israel. Ao contrário, os diplomatas estadunidenses fazem o possível para evitar a análise do Relatório Goldstone pelo Conselho de Segurança da ONU. A escalada militarista da era Obama atinge diretamente a América Latina. Na Cúpula das Américas, realizada em Trinidad e Tobago, entre 17 e 19 de abril, Obama adota uma postura simpática e amigável, mesmo quando submetido a um bombardeio de críticas. Recebe, com sorrisos, uma cópia do livro As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, das mãos do presidente venezuelano Hugo Chávez. Ouve e anota denúncias de tentativas de assassinato do presidente boliviano Evo Morales, assim como um longo relato, feito pelo ex e atual presidente da Nicarágua Daniel Ortega, sobre as atrocidades cometidas pela CIA, nos anos 80, contra o regime sandinista. Em seu discurso, assegura que já se foram os tempos em que Washington se considerava na posição de determinar os rumos do hemisfério ocidental, e condena explicitamente “qualquer esforço de subversão violenta de governos democraticamente eleitos”. Como no Cairo, seu discurso dá margem a esperanças de mudanças reais. E então, Obama decide, nos meses seguintes, prolongar o boicote econômico de Cuba, manter o Plano Mérida para o México e América Central (isto é, verbas e treinamento de esquadrões da morte), sanciona o acordo com o presidente Álvaro Uribe para instalar sete novas bases militares estadunidenses na Colômbia, e mantém em operação a sinistra Quarta Frota dos Estados Unidos, que integra navios, porta-aviões e submarinos que operam no Caribe, América Central e América do Sul. A Quarta Frota foi criada em 1943, durante a Segunda Guerra, e desengajada em 1950. Retomou as atividades em 2008, com o suposto objetivo de participar da “guerra ao narcotráfico”. Até mesmo o presidente Luís Inácio Lula da Silva, saudado e elogiado por Barack Obama, deunciou os movimentos da Quarta Frota na costa brasileira. Lula vê uma conexão entre a reativação da frota e a descoberta das reservas do pré-sal. Finalmente, coube à administração Obama armar o golpe atrapalhado que, em 29 de junho, de-
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pôs o presidente Manuel Zelaya, em Honduras. Novamente, há uma diferença abismal entre o jogo de cena (a condenação formal do golpe pela Casa Branca) e a realidade bruta dos fatos. Os generais golpistas são todos graduados pela Escola das Américas, centro de formação mantido pelo exército dos Estados Unidos, por onde passaram alguns dos mais célebres ditadores e torturadores latino-americanos durante o período da Guerra Fria. Todos têm relações íntimas com os diplomatas e oficiais estadunidenses baseados em Tegucigalpa, incluindo o general Romeo Vásquez Velásquez, comandante das Forças Armadas de Honduras até as vésperas do golpe (foi destituído por Zelaya dias antes). Ninguém pode imaginar seriamente que os agentes de CIA em Honduras ignoravam os planos. Menos imaginável ainda é a ideia que eles sabiam, mas não informaram a Casa Branca. E mais: o embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llores, é um conhecido agente provocador. Entre outros feitos, ele foi expulso da Bolívia, em setembro de 2008, por sua comprovada participação na tentativa de orquestrar uma guerra civil no país. A mídia burguesa, para variar um pouco, desinformou sobre as reais motivações do golpe. Ele não aconteceu porque Zelaya pretendia “eternizar-se no poder”, mas por ter cometido o grande pecado de associar Honduras à Alba (Aliança Bolivariana das Américas) e ao Petrocaribe. Isto é, aproximou-se do demônio Chávez. Mas, sobretudo, Zelaya anunciou que transformaria a base militar estadunidense de Soto Cano (situada a 30 km de Tegucigalpa) em aeroporto civil, e que faria isso com financiamento venezuelano. A base de Soto Cano era utilizada pela CIA, ao longo dos anos 80, como centro de operações contra o governo sandinista da vizinha Nicarágua, e para treinar soldados e oficiais que lutavam na guerra civil de El Salvador. Honduras, aliás, era conhecida como o “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”. Perder esse “porta-aviões” era inaceitável, especialmente quando Washington sabia que teria que fechar, em setembro, a sua base militar em Manta, na costa do Pacífico equatoriana, por determinação do presidente Rafael Correa. Por uma incrível coincidência, a retirada das tropas estadunidenses do Equador foi, praticamente, simultânea à assinatura do acordo com a Colômbia e... ao golpe em Honduras. Com Obama, a agressividade do imperialismo aumenta. Mas a mídia burguesa estampa o seu sorriso. José Arbex Jr. é jornalista. dezembro 2009
caros amigos
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27.11.09 21:43:18
amigos de papel Joel Rufino dos Santos
Fumaça
PROCURA-SE UMA SUB-EVITA
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oportunista
ma, dizíamos no Ginásio Cavalcante. Também não é. Caetano está mais pra provocador, faz esse papel, às vezes mal, às vezes bem. Alguém tem de mostrar que o rei está nu, o irmão de Betânia é bom nisso. Já Fernando Henrique, que chamou Lula de subperonista, é ou foi bom sociólogo. Como político FHC é difícil de bater, pois tem uma teoria de Brasil, em certa época, chamada de teoria da dependência. Correta ou não, situava o Brasil no conjunto das economias-mundo, permitia elaborar estratégias de governo. A etiqueta subperonista que pôs em Lula faz sentido: controle das lideranças trabalhistas, alta popularidade, política econômica conservadora, distribuição de renda etc. No subperonismo de Lula, a vaga de subEvita está aberta. Joel Rufino é historiador e escritor.
Quando os partidos socialistas converteram-se em forças competitivas nas disputas políticas (não mais isolados e inofensivos graças a miopias dogmáticas), seus adversários impuseram-lhes a pecha do recuo ideológico, da negação de princípios. Assim, a chamada “crise das esquerdas” ganhou utilidade publicitária. Mas ela possui uma face palpável. Com a experiência do poder, a esquerda perdeu monopólio sobre certas plataformas históricas. Enquanto a consolidação do capitalismo sufragista homogeneizava os velhos antagonismos retóricos, importantes demandas sobreviviam à alternância democrática, alcançando um estatuto suprapartidário e criando vácuos de representatividade. O discurso conservador tratou de preenchê-los, incorporando múltiplos itens de agendas alheias. Desnecessário afirmar que ninguém dispõe de exclusividade natural sobre qualquer reivindicação justa. Mas tampouco ignoremos que o “neoprogressismo” disfarça a hipocrisia de agentes políticos convertidos a causas que sempre combateram. Com a característica malícia demagógica, eles souberam reconhecer avanços históricos inexoráveis, abandonando posturas retrógradas antes que virassem entulhos. Um exemplo dessa metamorfose surgiu com Fernando Henrique Cardoso, que recentemente abraçou a defesa da descriminalização da maconha. Ele apenas repete uma obviedade professada há décadas por antigos rivais desacreditados, hoje consagrada como evolução jurídica inevitável por especialistas e governos de várias tendências – até os EUA reveem a estupidez repressiva que eles próprios fomentaram. Cabe à esquerda evitar a armadilha de responder às apropriações combatendo seus objetivos finais, atrasando mudanças necessárias por causa de ressentimentos estranhos ao interesse público. Seria como pular para um navio a pique, apenas porque os piratas o abandonaram.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
Dizem que o presidente não gosta de ler. Não tem importância, muitos dos seus antecessores também não. Me contou um dos escrevinhadores de discurso do JK que, num seu aniversário, assessores discutiram que presente lhe dar. Relógio, quadros, prendedores de gravata... Não, já tinha muitos. Alguém sugeriu lhe dar um livro. Livro não, falou o mais íntimo, ele já tem um. Um grande leitor de livros e apostilas foi Afonso Pena. Tomou posse a 15 de novembro de 1906, morreu a 14 de junho de 1909. Suas últimas palavras, ouvidas por familiares e criadas, foram: “Deus, pátria, liberdade, família”. Como se vê, profundidade de homem que lê. Qual a superioridade, ou vantagem, de ler muito? Compreender como a sociedade de fato funciona. Mas não será possível alcançar essa compreensão pelas ciências sociais? Diversos métodos tentaram, a realidade escapou a todos. A literatura, um Stendhal, um Graciliano Ramos, um Saul Bellow, avança mais um pouco. Claro que a intuição e a sensibilidade, em certa medida, podem compensar o método e a literatura, mas não os substituem. Nos anos mil novecentos e setenta, um repórter perguntou ao sindicalista Lula se ele já lera Marx. Não, respondeu, “mas conheço no ABC uma porção de Marxs”. Ninguém vai ensinar a um trabalhador o que é exploração do trabalho, era o que ele queria dizer, eu acho. Só que a exploração do trabalho não se limita ao contracheque. Sua dimensão essencial só pode se desvelar por alguém, como Marx, que leu muita economia, filosofia, história e literatura. Qualquer metalúrgico sabe a exploração do capital como fato; capital como sistema, só metalúrgicos que leem. Marx se debruçou meses a fio, nas bibliotecas de Londres, sobre relatórios de fadiga de operários, produzidos por engenheiros, mas sem leituras nenhum engenheiro jamais tiraria dali a medida do valor do trabalho sob o capitalismo. Isso vem a propósito de Caetano chamar Lula de ignorante. Como Lula sempre demonstrou ser o contrário e, na presidência, justiça se lhe faça, sempre deu força ao ensino, Caetano é que seria o ignorante – burro é quem me cha-
Guilherme Scalzilli
caros amigos dezembro 2009
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Cesar Cardoso
Ferréz
SHAZAM!
Sincericídio
E chega o fim do ano. Mas quem ainda precisa de calendários, Papai Noel, décimo-terceiro? Nós é que não. Estamos a um passo da perfeição. Mais do que um novo ano, uma nova era se inicia no planeta. Na noite de Natal, vamos todos assistir ao especial apresentado por William Obama e Fatimadona Bernardes. O Rio foi escolhido cidade-sede do evento. Mais de três milhões de pessoas vão lotar a praia de Copacabana para ver Deus em pessoa passar às mãos de Cristiano Ronaldo, o representante da humanidade e da Nike, não uma tábua, mas um kindle, com o novo e único mandamento que substitui os outros dez e diz: “Não Errarás”. E no site www.novomandamento.com as pessoas poderão votar e escolher o casal que vai passar três meses no paraíso, vivendo do mesmo jeito que Adão e Eva. E mais: Deus e Alá também vão estar lá, ao alcance das câmeras, e concorrendo ao título de melhor divindade. Mas enquanto o Big Father não começa, Deus chama seu filho e Jesus apresenta à humanidade as novas hóstias que serão distribuídas a todos nas igrejas e farmácias. São feitas de prozac e viagra e dispensam receita médica. Quem toma se arrepende de seus erros? Muito melhor: quem toma não erra nunca mais. E ainda há o modelo infantil, de farinha orgânica e ritalina. Seremos finalmente uma sociedade de super-heróis. Que venham os apagões, nós enxergaremos no escuro. Que venham as blitzes no trânsito. Nós gritaremos shazam e voaremos bêbados pelos céus da cidade. Que venham as doenças, as guerras e as mortes. Cada ser humano estará dopado o suficiente para não perceber nada. E eliminaremos para sempre o medo do goleiro diante do erro.
Cesar Cardoso errou de profissão e virou escritor. E ainda por cima tem o blogue PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com).
Há muito tempo a humanidade deixou a sinceridade de lado. O que temos são opiniões certas guiados por erradas, erradas guiadas por cegas. Uma pessoa que é sincera vive sozinha, ou com o ciclo de amizades restrito. É tida por todas como inconveniente, insatisfeita, crítica, amarga, pensativa demais. Numa sociedade que vive um mundo fictício tanto na Avenida Paulista como no Jardim Imbé, ninguém quer ser posto de frente com a realidade. Valha-me Deus, que ver sangue o quê, a gente precisa se divertir também. A pessoa sincera não aguenta conviver com a família muito tempo, não aguenta piadas que na verdade querem dizer outra coisa, não gosta de jogos com palavras, não aguenta cinismo, não tolera mentira, e geralmente não suporta egos inflados. A pessoa que gosta de sinceridade não consegue ver TV, afinal como falar durante semanas de um apagão que durou algumas horas? E ai me vem na mente com quem essa pessoa vai se relacionar. Tudo bem, que tem gente que exagera, num lançamento de livro, um amigo meu comentou que um chegado o chamou de lado e ficou falando dos erros do livro que ele identificou ali na hora, o poeta então virou pra esse “amigo” e disse: - Cara! Vai roubar a brisa do diabo, esse é meu momento, isso que você ta fazendo é covardia cara, esse é meu momento. Concordo com ele, tem hora pra se expressar, você pode continuar sendo sincero, mas com elegância. Vamos a outro exemplo, quando alguém lhe mostra uma música e pergunta o que achou, você deve realmente dizer? Ou falar a frase padrão. – Que legal cara! Você que compôs e cantou? Muito boa mesmo, não tinha ouvido nada parecido! Ou deve ver pelo lado crítico e falar que aquilo não passa de uma mera cópia que a gente tá reproduzindo desde que o primeiro americano fez uma rima sobre sua realidade, ou mesmo uma cópia da primeira música do Caetano quando ele ainda era influenciado por outra cultura, que certamente não foi sincera quando disse que foi inventada pelos mesmos americanos. Nós vemos por eliminação de cores, a árvore que vemos verde na verdade é vermelha, como diz meu amigo Pita, quem se ilude com o céu azul que na verdade só é uma ficção refletindo o azul do mar, pois o céu é negro. 60% da população vendo novela, nos picos isso varia, numa única emissora, onde quem comanda é um grupo chamado Time Life, tempo de vida, o nome combina com o que ela põe na grade de programação, você está vivo enquanto se ilude. Chegamos a um grau de ilusão tão grande, que já vi filas se formarem porque alguém parou numa escada rolante, enquanto eles esperavam, eu descia pela escada comum, lá embaixo eu olhei para a fila e não vi sentido nenhum naquilo. A manipulação é tão grande, que, quem se expressa sobre isso, começa a ser chamado de maluco, de contestador, e mais uma dezena de nomes. Os clips trazem o mundo ideal cheio de carros luxuosos, mulheres perfeitas, curtição, bebidas, sorrisos, mas na rua, no seu quarto, no seu casamento, no seu emprego, tem tanta frustração, nos olhos dos telespectadores tem tanta solidão. Todos somos marionetes, mas acho que ainda vale a pena ser um sincericida, afinal a gente ainda enxerga algumas cordas.
Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.
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falar brasileiro Marcos Bagno
Tá tudo
A falta de senso do censo
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errado No início desse ano fui surpreendido por uma inspiração que partiu de minha indignação com a falta de uma política de segurança pública no Rio que seja capaz de respeitar não só os direitos humanos como também o espaço da favela como parte da cidade. “Tá tudo errado” me veio em um momento em que eu estava precisando muito desabafar e ao mesmo tempo provocar um debate sobre o assunto entre os movimentos sociais, estudantis e, principalmente, entre o movimento Funk, que, sendo um movimento favelado, é o que mais sofre. Espero que em 2010 possa continuar utilizando minha arte como ferramenta de comunicação; assunto e vontade não me faltam e a inspiração a gente pede pro amigo lá de cima. Até o ano que vem!
“Tá tudo errado”
derados bons... mas, depois de tudo terminado (e repito: de gasto de dinheiro público), o IBGE decidiu que não vai mais incluir a pergunta linguística no Censo 2010. Razão alegada: o questionário já estava longo demais, era preciso cortar algumas perguntas... O motivo alegado para a exclusão da pergunta é tão falaz que nem merece comentário, a não ser para dizer que tal alegação esconde, mais uma vez, o receio histórico de reconhecer que o Brasil é multilíngue, que a revelação dessa realidade teria implicações políticas e culturais profundas, como o reconhecimento dos direitos linguísticos dos falantes de línguas minoritárias, a necessidade de prover recursos para a educação bilíngue ou plurilíngue das áreas onde muitas línguas são usadas, de formar professores para essa educação, de exigir que a indústria crie rótulos plurilíngues para os produtos destinados a tais áreas, de criar meios de comunicação em diversas línguas e por aí vai. Vamos ficar, ainda, imersos na mentira monolíngue, que favorece o emudecimento e a baixa-estima linguística de quem não fala português ou não fala só português. Como se isso fosse um pecado ou, pior, um crime...
Comunidade que vive à vontade com mais liberdade tem mais pra colher / Pois alguns caminhos pra felicidade são paz, cultura e lazer / Comunidade que vive acuada tomando porrada de todos os lados / Fica mais longe da tal esperança, “os menó” vão crescendo tudo revoltado / Não se combate crime organizado mandando blindado pra beco e viela / Pois só vai gerar mais ira naqueles que moram dentro da favela / Sou favelado e exijo respeito, são só meus direitos que peço aqui / Pé na porta sem mandado tem que ser condenado, não pode existir Tá tudo errado, é até difícil explicar, / mas do jeito que a coisa tá indo já passou da hora do bicho pegar / Tá tudo errado, difícil entender também / Tem gente plantando mal, querendo colher o bem / Mãe sem emprego, filho sem escola é o ciclo que rola naquele lugar / São milhares de histórias, que no fim são as mesmas, pode reparar / Sinceramente não tenho a saída de como devia o tal ciclo parar / Mas do jeito que estão nos tratando só tão ajudando esse mal se alastrar / Morre polícia, morre vagabundo e no mesmo segundo outro vem ocupar / O lugar daquele que um dia se foi e o pior que depois geral deixa pra lá Agora amigo o papo é contigo, é só um aviso pra finalizar / O futuro da favela depende do fruto que tu for plantar.
Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br
Mc Leonardo é presidente da APAFUNK, cantor e compositor.
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
A ideologia do monolinguismo é uma das mais profundamente entranhadas na nossa cultura e no nosso imaginário. Quantas vezes já ouvimos ou lemos que o Brasil é um “milagre linguístico” (com esses termos, como na proposta de lei sobre estrangeirismos do deputado Aldo Rebelo que, felizmente, foi para o lixo)? Que num território igual ao da Europa ocidental falamos uma “única e mesma língua” e que todo mundo se entende às mil maravilhas? Ora, o Brasil ocupa o quinto lugar entre os países de maior diversidade linguística do mundo! São mais de duzentas línguas faladas em território nacional, entre línguas indígenas (a maioria), línguas de imigração (europeia e asiática), línguas afrobrasileiras e línguas crioulas (de base francesa, no Amapá). E temos também a Libras (língua de sinais brasileira), reconhecida por lei (caso raríssimo). Temos situações linguísticas interessantíssimas, como o caso do pomerano, falado no Espírito Santo, uma língua germânica que desapareceu da Europa e que só existe hoje em território brasileiro. Mas quem sabe disso? Quem fala sobre isso? Impregnados da máxima autoritária “um país, um povo, uma língua”, que remonta à formação dos estados nacionais no século XVIII, estamos muito atrasados com relação a outras democracias do mundo e até a nossos vizinhos (o Uruguai acaba de reconhecer o português uruguaio como patrimônio linguístico nacional, que deve ser encorajado, protegido, ensinado e divulgado – alguém aí sabia que existe um português uruguaio, falado por lá desde antes da independência deles e nossa?). Numa tentativa de derrubar essa muralha ideológica, alguns linguistas (entre os pouquíssimos que consideram que sua profissão deve ter um mínimo impacto social e político) propuseram ao IBGE que incluísse no Censo 2010 uma pergunta sobre a língua que o entrevistado fala habitualmente em casa. O IBGE topou, a equipe formada levou um bom tempo formulando a pergunta de modo que ela não deixasse brechas para ambiguidades e contradições, aplicou-se o questionário junto a uma população-piloto para testar a justeza cognitiva da pergunta (ou seja: gastou-se dinheiro público), os resultados foram consi-
Mc Leonardo
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Eduardo Matarazzo Suplicy
SONETO DA PIZZA COSMOPOLITANA [1195]
do agora de “pizzaiolo” o insultava. Restaria perguntar aos pizzaiolos profissionaes si elles se offendem com a resposta do senador. Commigo occorreu algo parecido, na epocha em que me mudei para outro condominio. Certa vez, no elevador, fui interpellado pela vizinha de cima, que perguntou si era verdade que sou escriptor. Confirmei, e ella: “Ah, é? E o que é que você escreve?” “Poesia...”, respondi, ao que ella commentou: “Ai, que gracinha!”. Quando, noutra occasião, fui egualmente perguntado pela vizinha de baixo, respondi mais seccamente: “Pornographia...”, ao que a digna senhora commentou: “Ai, que horror!”. Sempre achei que o primeiro commentario tinha sido mais offensivo que o segundo. Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.
Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.
Embora “portugueza” e até “caipyra” figurem no cardapio, na verdade tomate e queijo à nacionalidade alludem: italiana de mentira. Politicos preparam-na dum jeito que não nos appetece. Na cantina, porem, a massa em disco tem proveito. Fatia-se em triangulo, e allucina seu cheiro de tempero! Eu me deleito que meu pedaço venha sem propina!
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ou Liberdade de Escolha O Ministro das Comunicações, Hélio Costa, apresentou para a consideração, em novembro último, uma proposta de oferecer, às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (em 2010 serão 13 milhões, segundo estimativas do Ministério do Desenvolvimento Social), aparelhos celulares. As famílias receberiam os celulares e um crédito mensal de R$ 7,00. As empresas de telefonia móvel, que forneceriam os aparelhos e os créditos, teriam como contrapartida a isenção da contribuição para o FISTEL, Fundo de Fiscalização das Comunicações, estimado em cerca de R$ 2 bilhões. Um aparelho celular sem dúvida é extremamente útil para cada ser humano. Amplia sobremaneira a sua capacidade de se comunicar, auxilia nas necessidades de trabalho e no acesso a informações importantes para o desenvolvimento do conhecimento de cada pessoa. Mas será mesmo que o governo deveria distribuí-lo? Não seria melhor aumentar a renda da família beneficiária do Bolsa Família, ou a renda de cada pessoa, como prevê a lei 10.835/2004, que institui a Renda Básica de Cidadania? Recordemos que os programas de transferência de renda, em especial o Bolsa Família, foram precedidos de inúmeros programas de transferência de bens: o Programa do Leite, a distribuição de Cestas Básicas, o Auxílio-Gás, o Cartão Alimentação e assim por diante. Em outubro de 2003, o Governo do Presidente Lula racionalizou e unificou os diversos programas de transferência de renda e de bens, inclusive o BolsaEscola e o Bolsa-Alimentação, no Programa Bolsa Família. Confiou-se que cada família saberia melhor qual sua necessidade mais premente e resolveu-se assegurar a cada uma a liberdade de escolher no que gastar. Foi muito instrutivo, a propósito, o episódio lembrado por Márcio Moreira Alves, em “O Globo” (A coragem de sorrir-04/06/1995), quando chamou a atenção para a estranheza das assistentes sociais em Campinas, ao se depararem com a senhora que havia gasto sua primeira Renda Mínima numa dentadura. Ela então respondeu: Para mim era a minha primeira necessidade, pois até para arrumar um emprego, namorar, eu queria ter o direito de voltar a mostrar a minha boca e sorrir. Claro que ninguém sabia, melhor do que ela, qual a sua primeira necessidade.
“Redonda”, como a chamam, ella vira synonymo de “accordo” e “impunidade”, e fazem, si dividem-na à metade, caber cada sabor que se prefira.
Diz a lenda que tudo começou entre cartolas que se oppunham na directoria do Palmeiras. Como a colonia italiana herdou a fama de exaggerada, o clima de briga parecia mafiosamente ameaçador, mas, como são “tutti” gente “buona”, a raiva passou logo e as partes fizeram as pazes. Para commemorar, confraternizaram numa cantina, onde tudo teria “acabado em pizza”. Dahi nasceu a expressão que, migrando do futebol para a politica, passou a ser applicada quando alguma denuncia gerava escandalo mas accusadores e accusados pactuavam uma sahida “honrosa” que não affectasse ninguem e só deshonrasse a propria pizza. Quando, recentemente, Lula allegou que os oppositores são tão “pizzaiolos” quanto os governistas, muitos se offenderam. O senador Christovam Buarque chegou a dizer que ja tinha sido pejorativamente chamado de “communista” pela dictadura, mas que isso só o dignificava, emquanto ser chama-
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porca miséria! Glauco Mattoso
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entrevista paulo vannuchi
“Vamos abrir os arquivos, punição é com o Judiciário” Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Figueira de Mello, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Renato Pompeu, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos
a
tual titular da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o ministro Paulo de Tarso Vannuchi tem sob a sua responsabilidade assuntos delicados e fundamentais para o povo brasileiro, entre os quais a abertura dos arquivos da ditadura civil-militar (1964-1985), o esclarecimento das mortes praticadas por agentes do Estado, a constituição de uma Comissão de Verdade e Justiça, além de todas as outras violações dos direitos humanos que ocorrem cotidianamente pelo país afora, em especial as violências policiais contra os movimentos sociais e as populações pobres – jovens e negros – das favelas e das periferias das grandes cidades. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, o ministro Vannuchi fala um pouco sobre a sua trajetória de vida e o que pensa das questões mais candentes da atual conjuntura dos direitos humanos no Brasil. Vale a pena conferir.
com um pedido tradicional, que é você falar um pouco da sua trajetória, onde nasceu, estudou, qual a profissão, como chegou a ministro dos direitos humanos. Paulo Vannuchi - Bom, eu sou paulista de São Joaquim da Barra, cuja maior glória é Rolando Boldrim. É uma cidade da região de Ribeirão Preto. Sou filho de um professor de português muito erudito, com longos anos de seminário, e minha mãe era do lar. O meu pai era uma figura que, no tempo da missa em latim, ele transmitia, ia traduzindo a missa pela rádio local. Ele era muito querido, é nome de uma praça hoje lá. Vieram com ele os rudimentos de um humanismo cristão, e muito precocemente eu comecei a ter a preocupação com a questão política e social, muito precocemente.
do Kennedy. Em seguida comecei a ver nas festas, tinha 12 ou 13 anos, o debate, o Brizola, o Grupo dos 11, e nas festas dos adultos, eu do lado, comecei a ter simpatia pela turma dos brizolistas. Eles eram muito exaltados, na cidade, muito poucos, mas eu percebia que eles eram uma novidade ali. Um ou outro professor da escola, ligado ao PSB da época, colocou algumas idéias, então veio esse despertar. Eu lembro que, quando eu voltava de bicicleta da 4ª série, um amigo me pára pra contar que o João Goulart tinha sido deposto, e eu fui pra casa, chorei, me tranquei no banheiro. Meses depois veio a notícia de que meu tio Aldo foi preso, padre, irmão do meu pai, 11 irmãos, o mais querido, bem mais novo do que meu pai, ficava na idade do meio, mas preso por quê? Preso como comunista, era da JOC (Juventude Operária Católica) de Sorocaba. Hoje ele é reitor da Uniso, não é mais padre, e então acho que aí nasceu a consciência política inicial minha, do meu irmão, do meu primo Alexandre, ele é de 1950, como eu, eu sou de maio e ele de outubro.
Lúcia Rodrigues - Com quantos anos?
Tatiana Merlino - Quando você saiu de São
Hamilton Octavio de Souza - A gente começa
De um jeito confuso, mas eu chorei no dia da morte
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Joaquim da Barra?
Em 1967 foi meu último ano de colegial, já querendo vir pra São Paulo, onde eu comecei a fazer o cursinho de medicina, o Cursinho do Grêmio, que pertencia ao grêmio da Faculdade de Filosofia. Era um bom cursinho para humanas, e que tinha acabado de sofrer o racha que gerou o Equipe. O Equipe sobreviveu e o do grêmio morreu. Eu fui o único aluno do cursinho do grêmio que entrei na medicina da USP. E logo me liguei ao Centro Acadêmico, que, coincidentemente, começava uma nova gestão afinada com a nova UEE, que tinha sido liderada pelo Zé Dirceu. A AP (Ação Popular) tinha a hegemonia nacional. E aí eu já entro logo pro Centro Acadêmico, na eleição daquele ano eu já vou ser eleito secretário. O presidente do centro foi preso antes de mim, o presidente seguinte foi morto. Na medicina nós fazíamos um trabalho muito interessante, não foi fazer só luta armada.
Tatiana Merlino - Você esteve um mês na
clandestinidade? É. Eu consegui escapar, vejo que estão atrás de mim, tento ir atrás para descobrir e descubro de um amigo que a organização tinha pedido um carro em-
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prestado, um carro legal, a organização clandestina tinha carros ilegais. Dez dias depois eu devolvi o carro e ninguém me contou o que foi feito com ele, o meu amigo foi preso porque esse carro tinha sido visto na Belém-Brasília, em alguma região de trabalho rural, de campo, com alguma prisão ocorrendo por lá, e aí quando ele foi preso, logicamente, disse que tinha emprestado o carro para mim, e eu tava no período de conversar com a organização o que eu ia fazer, se eu ia me engajar na militância clandestina ou não, ou se eu ia sair do país, na época era uma alternativa clara, né?
Lucia Rodrigues - Qual era sua função? Minha função era pequena, de um militante de uma organização que, em novembro, o Marighella é morto. E começa um fluxo de prisões que rigorosamente não param mais. Em outubro de 70 o substituto dele, Câmara Ferreira, é localizado e morto, e o que aconteceu neste ano e sobretudo depois da morte dele, três meses meus de liberdade, é que havia uma aceleração muito clara do engajamento. Você ficava chamando pessoas que estavam há poucos meses na organização para assumir tarefas. Então nesse momento em que fui preso estava começando a participar dos primeiros treinamentos de operação armada, nenhuma operação de envergadura, nenhum cofre do Ademar, nenhum seqüestro, nada disso, coisinhas pequenas. Eu fui preso em 71, fiquei preso até 76.
Hamilton Octavio de Souza – Quando passou a atuar na campanha do PT? No governo paralelo o Instituto Cidadania foi o espaço de começar a pensar concretamente a idéia de “vai ser governo”. Então, rigorosamente, o programa de 89 tinha sido um grande improviso que já está todo permeado do sentido de mudança, mas tem coisas do tipo “estatização do sistema financeiro”. Ou seja, a gente acreditava, ali em 89, que seria possível ter um banco só chamado Banco do Brasil, e não tinha Bradesco, não tinha Itaú, e tal. Não sei se seria possível, no caso de vitória, mas da campanha de 89 o Lula saiu com duas coisas: primeiro a idéia de que a gente podia ganhar a eleição. Que, depois de 94, ela caiu um pouco, eu participei muito de conversas se o Lula. Ele passou dois anos querendo que eu fizesse uma carta para ele, para explicar porque ele não iria ser candidato mais. Até 98 ele não era, na hora “agá” o partido o convenceu a ser, numa eleição que estava perdida e eu sabia, eu achei um erro cabal. Depois mudei, porque talvez ele não tivesse vencido a de 2002 se ele não tivesse sido candidato, tem esse fenômeno de recall. Mas aí, depois de 98, ele ficou atazanando e eu falei “Lula, você não devia ser candidato nessa agora, porque o Fernando Henrique ia ganhar, mas na próxima você tem de ser, porque não vai mais ter Fernando Henrique e tal”. E ele, de vez em quando, “e a car-
ta? E a carta?” E em 2000, a eleição municipal deixou claro que – a imprensa escondeu e nós também não soubemos mostrar bem – foi a primeira eleição que o número absoluto de votos no PT ganhava a eleição se fosse federal, e era uma coisa claríssima, porque a eleição de um presidente é mais favorável ao PT do que uma eleição de prefeitos.
Hamilton Octavio de Souza - Como convencer
as Forças Armadas a esclarecer o que aconteceu durante a ditadura? Eles fizeram a transição e tiveram a oportunidade de se meter em crises políticas no Brasil, mas não se meteram. No Collor, ficaram quietos e isso tem que ser levado em conta, não no sentido de querer festejar, mas mostrar a análise fria da sociedade que não é um conjunto de Força Armada que esteja com atitudes de desafio à constitucionalidade, à tentativa de golpe de Estado. Bom, mas agora o que acontece? Quando chega nesse tema de apuração da verdade, é que provavelmente o sentimento corporativo se fecha. Provavelmente quem está no comando hoje não tem a mão suja de sangue, mas foi aluno de, foi subordinado de... Então, nesse sentido é que é preciso fazer essa transição, o esforço dos direitos humanos sem espírito revanchista e de tratálos como inimigos. Pelo contrário, quando eu posso, no meu discurso, eu digo, falo “nós temos que fazer essa transição, esse processamento para nos orgulhar de nossas Forças Armadas”.
Tatiana Merlino - A criação de uma Comissão
de Verdade e Justiça não seria pra fazer isso? É a oportunidade e é o passo indispensável, é o sine qua non. Então, o centro da minha atividade, até do ponto de vista pessoal, íntimo, sem eu querer, porque eu sei da minha biografia. Porque eu sei que ao me dedicar a um tema desses haverá quem diga: “esse cara é um ressentido, ele tá preocupado com a tortura que ele sofreu”. Nesse sentido, a alegria que eu tenho quando eu estou nesse processo agora da 8ª Conferência Nacional de Criança e Adolescente, Direitos Humanos é isso. Quando eu estou na 1ª Conferência LGBT, Direitos Humanos é isso. Quando eu tô com as pessoas com deficiência, agora, o que eu tenho consciência é que esses temas todos, o Estado, na sua democratização, veio processando, e o outro não, ficou com bloqueio, ficou com recalque, que nós podemos conversar longamente sobre ele, o meu esforço é pra fazer isso e convencer as Forças Armadas de que se a Justiça mandar pra cadeia uma dúzia, duas dúzias de torturadores, como a Argentina, o Chile, o Uruguai fizeram, o Paraguai, talvez faça agora, mas muito longe, muito oposto de isso representar uma vergonha para as Forças Armadas. Representará para o Brasil a manifestação de que as Forças Armadas aprenderam a distinguir até porque, no período mais terrível do regime, que certamente o Alto Comando de Brasília sabia
“Meu esforço é convencer as Forças Armadas de que se a Justiça mandar pra cadeia uma dúzia de torturadores é melhor para ela” Novo sítio: www.carosamigos.com.br
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do que se passava e autorizava, cuidava de não botar nenhuma regra de acusação para tortura.
Lúcia Rodrigues - Quem mais no governo tem
que ser convencido disso? Eu acho que muita gente no governo precisa ser convencida, porque tem muita gente no governo Lula que tem essa característica, que talvez os próximos governos ainda tenham. Enquanto não houver uma profunda reforma política que viabilize isso, os governos serão de coalizão. Porque na aposta da via democrática parlamentar, em que o parlamento não é visto, e daí eu volto a Norberto Bobbio e ao comecinho de Gramsci que, fala sobre o estado ampliado que se abre à disputa entre o interesse de classe no seu interior. Então, o Brasil de 2009 é um exemplo claríssimo do Estado ampliado, ampliadíssimo, o sujeito que veio de pau-de-arara, que foi preso e tal, virou presidente. Você precisa ter maioria no parlamento, a não ser que você queira romper com a regra e fazer outro tipo de enfrentamento.
Tatiana Merlino - É por isso que os arquivos
não foram abertos? Existe outra proposta de fazer o enfrentamento. Era legítima, eu já defendi isso quando eu tinha 19 anos. Tenho o maior respeito pelo jovem que eu fui. Eu tenho muita certeza de que em muitos aspectos ele foi um jovem melhor do que eu sou. E em outros aspectos eu acho que estou melhor. No fundo não acreditam que será possível qualquer transição com o parlamento, ele vai se aperfeiçoar, terá que ser visto, ele é uma tribuna de debate, de denúncia, para em algum momento criar uma alternativa da ruptura. Pode ser que só a história mostrará isso. Eu não acredito nisso, eu acho que nesse momento a estratégia é de ir avançando à democracia. Para isso, precisa de ter maioria parlamentar. E o eleitor, nesse momento, racha o voto no meio. Ele dá metade para o Lula e metade para o anti-Lula. Em termos matemáticos, ele põe 100 deputados do Lula e 400 anti-Lula. Então obriga a ter um ministério em que o PMDB tem virado o fiel da balança, talvez saia de novo e que vai ter áreas como Comunicação, Hélio Costa, Agricultura, Stephannes, Defesa, Jobim, que são figuras que têm uma história de vida, um acúmulo inteiramente diferente do Lula, do PT etc. Então nesse sentido é presidencialismo de coalizão. E o presidente Lula, a quem cabe o papel de arbritrar, ele vai definir essa discussão? Ele tem sobre esse tema, em primeiro lugar, uma cabeça, uma visão, uma cultura muito diferente da minha. No meu longo período de assessor nunca tive confusão sobre isso. Até a cabeça do irmão dele Frei Chico, comunista, torturado. Eles sempre tiveram opiniões diferentes. Segundo, nesse momento o Lula é uma figura política que tem em suas preocupações centrais as ideias de moderação e intermediação. Às vezes eu brinco dizendo que, nesses 30 anos de trabalho com o Lula, posso ter ajudado ele em alguma coisa.Eu me sinto muito aluno, brinco muito. Já disse isso pra ele. O Lula quer mudar completamente o Brasil, profundamente, sem deixar nenhuma injustiça em pé. Só que ele gostaria muito de fazer isso sem desagradar ninguém. dezembro 2009
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Lúcia Rodrigues - Esses arquivos foram
depurados? Não, tem tratamento. Tem pulos, tem momentos ali que as pessoas estão, foram verificar para apagar os rastros. A imprensa, no auge da crise de 2005, os movimentos sociais, que estavam muito indignados com o não trabalho do tema, com o recurso do governo na sentença de 2003 sobre o Araguaia, e vários outros episódios, isso não foi nada aberto, desistiu. Bom, agora volto a julho de 2008. O ministro e o presidente da comissão de anistia fazem um seminário no térreo do Ministério da Justiça, sobre os limites e possibilidades do processo judicial dos torturadores, ou da lei da anistia, não lembro como que era o título. Então, isso deu uma explosão dentro do governo em que houve uma discussão com o ministro Tarso Genro, dizendo que aquele tipo de evento devia ser feito pelo menos com o presidente sendo avisado antes. Eu não recebi nenhum puxão de orelha, embora tenha percebido naquele evento a falta do contraditório. Não tinha ninguém para defender o ponto de vista oposto. E no processo democrático o contraditório é importante. Seria levar um José Gregori ou um José Carlos Dias para defenderem a lei da anistia de 79 como lei que impede o processamento. Eles estão tão convencidos disso como nós estamos convencidos de outra opinião. Então ali houve uma discussão, o ambiente ficou tenso, a partir daí, com mais dificuldade,
Hamilton Octavio de Souza - Que tipo de
dificuldade? Eu tinha dúvida num certo momento na discussão com o Toffoli na ação do Ministério Público de São Paulo, em que eu disse que a posição dos direitos humanos era aquela era que estampei e disse ao Toffoli que entendia que o governo podia ter uma opinião diferente da minha. Se prevalecesse a posição diferente, que prevalecesse, mas sem desqualificar. E eu não sei o que aconteceu, se foi alguém que fez por ele, e ele não quis reconhecer, mas aí então realmente, quando ele anuncia qual era a posição, eu tive que dizer publicamente qual era na entrega do prêmio Vladimir Herzog daquele ano, que se aquela posição prevalecesse eu deixaria o governo e voltaria para a sociedade civil para manter a minha luta.
Renato Pompeu - Existem todas essas dificuldades do governo ser de coalizão, mas há um cidadão comum, sem recurso, que acabou de fazer um filme sobre o regime militar e conseguiu entrevistar alguém que disse que o deputado Rubem Paiva foi esquartejado. Por que nós temos essa informação de um particular e não da Secretaria dos Direitos Humanos do governo? Por que não dá pra se mexer nisso? Onde é
que está a comissão da verdade? As questões das informações que a Secretaria de Direitos Humanos tem nós colocamos no livro “Direito à Memória e à Verdade” antes do filme. A história de esquartejamento, a história de David Capistrano, a história de Rubens Paiva, nós temos os processos... Nesse sentido, é claro que se trata de um exercício pra tentar de obrigá-los a falar. O problema como se obriga uma pessoa a falar? Num sistema constitucional, de observância dos direitos humanos, o que fizemos com o Curió? Fizemos a convocação dele, passei alguns dias ali ajudando a equipe a fazer algumas perguntas. Ele senta lá, ele tem o direito constitucional, o direito humano, né? O mais hediondo torturador tem direitos humanos. Nós não podemos prender, torturar... Então o cara nega, ele mente, o Ustra e o Aldir Santos Maciel nesta ação estão dizendo que Vladimir Herzog cometeu suicídio, que o Alexandre [Vannuchi] cometeu suicídio, que houve manipulação. Então, a minha aposta vai muito nesse sentido, que pode parecer quixotesco, ingênuo, do convencimento. Mais dia menos dia isso vai ter que aparecer, as pessoas vão contar. E existe uma atitude das Forças Armadas que formalmente eu chamaria de silêncio planejado e premeditado, porque na hora que o coronel Pedro Correa Cabral, aviador, na Câmara dos Deputados fala que participou dessa missão, e que dizia que, por usar instrumentos de navegação ele não podia usar a máscara, ele disse que tinha um cheiro insuportável de corpos que estavam enterrados há meses, e aí tem uma espécie de violência como violação de sepultura, questão de mortes. Ou seja, ele faz o depoimento, aparece na imprensa, a Aeronáutica não o processa, não aplica nenhum castigo disciplinar, porque a pessoa, mesmo sendo da reserva, pode ser alvo de algumas punições disciplinares. Existe aí uma espécie de conspiração do silêncio apostando na idéia de que se não tocar no assunto ele vai acabar sumindo. Mas não vai. Se não tocar no assunto, ele vai crescer como está crescendo nos últimos meses. Comparem o volume de matérias ou mesmo filmes de trabalhos como esse, está crescendo e isso vai crescer, de dentro e fora do Brasil, na ONU e OEA ao ponto de, se o governo, nesse momento de definição, o que vai fazer. Então o meu argumento também é de ganhar tempo, fazer logo. Vamos resolver, mergulhar nisso, se doer, doeu, se chorar, chorou, se arranhar a imagem, arranhou. A Alemanha hoje tem a capacidade de discutir no seu sistema escolar o nazismo, que, como proporção, é muito maior do que a violência aqui praticada, tem museus sobre o nazismo lá em Berlim, então o Brasil tem que se espelhar nesse exemplo e fazer...
“O Lula quer mudar completamente o Brasil, sem deixar nenhuma injustiça em pé. Só que ele gostaria muito de fazer isso sem desagradar ninguém”. 14
Tatiana Merlino - Fazer uma comissão da
verdade e da justiça? Inclusive a comissão da verdade e da justiça, o nome que tiver, o que eu não vou fazer é a briga sobre o nome da comissão. A comissão na África do Sul se chamava Verdade e Reconciliação, e ela foi melhor do que da Colômbia que se chamava Justiça e Paz. Se ela for instituída com o nome de Comissão da Verdade, haverá um setor das famílias que vai considerar que a guerra foi perdida. E eu não penso assim. E um setor das famílias não acha assim, escuta, não é um nome, é o que essa comissão vai fazer. Provavelmente os setores das famílias e dos movimentos de direitos humanos gostariam que essa comissão fosse uma decisão por decreto presidencial com poderes de investigar e de punir. Não tem como. Tem de passar pelo Legislativo. Se ela for uma comissão que não passe pelo Legislativo ela sai com poderes desse tamanhozinho. Missão especial de mortos e desaparecidos, que é isso aqui, que eu acabei de falar, e a comissão de anistia passaram pelo Legislativo. Porque tem que haver uma lei. Eu não acho provável que no Legislativo haja condição pra dizer que na Constituição, essa comissão tenha poderes de punição. O que ela fará como a Argentina e outros países fizeram? Ela apresenta um relatório ao Judiciário, ao MPF, que já tem figuras como o Marlon Weichert e a Eugênia Fávero que receberão e vão fazer o processamento, e aí nós vamos cair na mesma encrenca que acabamos de assistir do Supremo. É o Brasil que nós temos, o governo que nós temos, o Legislativo que temos e o Supremo que temos. Com Gilmar Mendes, com oposição, com o voto ao fim ao cabo confuso, que saiu ao caso do Cesare Battisti.
Hamilton Octavio de Souza - Qual é o prazo
da comissão? Então, nesse momento a discussão que está se fazendo, é claro, o projeto de lei tem que estar apresentado até o começo do ano, né? Agora, a tramitação legislativa ela tem a certeza que terá a discussão complicadíssima, porque uma coisa é o público representado muito bem, esse grupo aqui por este veículo, e outro é qual é a opinião que a sociedade brasileira terá do tema. Eu não sei, então pode ser que o Brasil comece a reagir numa linha que seja um horror pra mim que era “não, esse assunto morreu”. Tá, então a aposta de que “nós vamos mobilizar as universidades, a Igreja, a OAB...” E estou fazendo visitas a bispos e agora com uma carta formal ao presidente da CNBB perguntando por que a Igreja Católica não abre a boca sobre esse assunto? A OAB está na parada, as universidades, os movimentos estão, agora, eu não vejo ainda uma massa crítica com condição de ir pra cima do parlamento e exigir que seja apurado rapidamente, e com poderes de investigação, apuração, localizar documentos e abrir, e encaminhar para o Judiciário a punição. E nesse sentido, a minha conversa no governo é essa de que o governo Lula acaba em dezembro do ano que vem, são 13 meses, então ele tem de mandar o projeto de lei em março/abril, para deixar claro o empenho do governo
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Equipe da Caros Amigos na entrevista com o ministro
no sentido de que quer que aprove. Será um caminho do meio, será uma coisa pela metade, porque é muito fácil num ano eleitoral o Legislativo não terminar de apurar o tema até dezembro do ano que vem. O Brasil vai ter a comissão, então, nesse sentido preciso trabalhar para que o conteúdo dela seja pra valer. Aí eu posso errar, sou falível como qualquer ser humano, mas eu não vou conciliar com o cargo de aprovar uma comissão da verdade de mentirinha.
Bárbara Mengardo - A respeito da campanha pela TV, uma crítica que se faz é que ela daria uma responsabilidade para o cidadão e tiraria a responsabilidade de outros setores da sociedade, por exemplo, não tocaria na abertura dos arquivos da ditadura. Essa pergunta pressupõe isso que tem um arquivo que está lá e não está sendo aberto por decisão nossa, do presidente Lula, isso. Pode ser isso? Pode. Mas pode não ser também. Ninguém está autorizado a ter certeza absoluta de que os arquivos estão lá intactos em algum lugar, e eles não entregam porque não vão manter. Eles podem ter queimado, podem ter destruído, mas podem ter queimado pequenas partes significativas. Por isso é que eu disse que trabalho há 40 anos e nunca recebi nenhuma informação do tipo “olha, essa questão de arquivos pode ser procurada em tal lugar”. Essa crítica que você lembrou, de que pode estar passando para civis, no fundo é como podemos lidar com a idéia de que nós podemos obrigar os militares que sabem a falar e eu, Paulo Vannuchi, certamente, não posso. Eu não tenho como. O Lula pode? Então nós precisaríamos de ver um formato à luz da constitucionalidade brasileira, e que isso seja apresentado a mim e que venha trabalhar. O que eu sei é que o trabalho de sensibili-
zação e convencimento pode ser feito e está sendo feito. A campanha tenta fazer o quê? Ela tenta fazer o sujeito tenha participado de uma coisa, alguém tenha sido empregado na casa do general e que lembra que no sítio ficou guardado... Tem que chegar no militar, e eu pessoalmente posso ser Dom Quixote, sonhar um sonho impossível. Mas eu sonho e acho que muitos militares, antes de morrer vão falar. No caso do Curió, andei dizendo e repito, que eu acho mais provável a decisão de ele mostrar essa pasta vermelha, mesmo com o recuo posterior de em juízo não ter falado nada, por que ele apresentou aquela pasta vermelha? E uma das minhas teses e eu volto ao começo da nossa conversa. É a primeira vez que eu vejo a demonstração importante do bom resultado que pode haver da crença na existência do inferno. Então, um cara como ele e muitos outros podem acreditar que o inferno existe, e antes de morrer querer falar. Eu quero que, na comissão da verdade apareça a lista das pessoas, os vizinhos do andar de baixo, andar de cima, quem joga tênis no clube, a filha chega para o pai e pergunte: “mas pai, você participou disso mesmo?” Deixa ele mentir, falar “não, não participei, etc.” isso já é um pouco de Justiça. Já é quebrar o ciclo da impunidade.
Hamilton Octávio de Souza - Em relação
às violações que ocorrem hoje de norte a sul do Brasil, com relação a trabalho escravo, extermínio de negros e pobres nas favelas, as PMs espancando e humilhando a população. Existe hoje uma violação de direitos humanos muito forte, no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo, no Rio Grande do Sul. O que a secretaria pode fazer nesse tipo de enfrentamento? As violações são rotineiras, generalizadas. E violações todo santo dia numa escala que não é ad-
“O que eu digo é que eu defendo que o Batistti fique no Brasil. O Brasil tem uma longa tradição de asilo”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br
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ministrável. Meu trabalho lá é uma secretaria pequena, periférica. É uma das poucas no mundo com status ministerial, mas é status, ela não tem aparelho, não tem um corpo. Nós temos uma comissão nacional de erradicação do trabaho escravo. Sobre a polícia no Rio de Janeiro, eu fiz um enfrentamento com o Sérgio Cabral na questão Complexo do Alemão. Os oito mortos, mandamos fazer perícia alternativa, dois pelos menos eu falei. Fui pra imprensa dizer. “Aqui tem tiro na nuca, de projeto descendente, chamuscado de pólvora que é típico de 10 cm”. Aí começam a dizer: “ah, mas ele é aliado...”. Dane-se. Se eu não fizer isso, eu não cumpro o meu papel. Morro da Providência, eu fui lá, subi no dia seguinte, eu vi as fotos dos corpos, pé amputados, ou seja, sofreram tortura. É evidente que cheira a contaminação do oficial do Exército. Então, são coisas gravíssimas. A violência das polícias militares, Espírito Santo, eu fui em 2006, fiz uma briga com o governador. O sistema prisional está em colapso. Tenho consciência que a atuação está muito longe do desejável. Tínhamos que ter uma ouvidoria com 60 funcionários, mas temos 2, 3. Então é manter dentro do governo a pressão, e vou ficando porque vão me convencendo. A sociedade precisa fazer esse trabalho com a obrigação de sempre exigir mais. Não tem que ficar aplaudindo o que o governo faz, tem que cobrar.
Lúcia Rodrigues - O Lula vai optar pela
permanência do Batistti? Não sei, não participo do núcleo duro, não sei direito. O que eu digo é que eu defendo que o Batistti fique no Brasil. O país tem uma longa tradição de asilo. E se serve para nazista, para ditador, torturador, vale para uma pessoa de esquerda. A minha convicção é de que ele acabará ficando. Pela minha intuição, na relação que o Lula tem comigo, se ele estivesse numa posição de que o cara tem que ir embora, seria altamente provável que ele dissesse, assim pra mim: “esse cara tem que ir embora”. O teor geral da ideia ele não passou para ninguém, se é que já tenha formado uma convicção. Mas a minha impressão é de que o cara não vai embora. dezembro 2009
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Marcelo Salles
Do céu ao inferno
Apresentado como a sétima maravilha no combate ao crime, helicóptero da polícia do Rio de Janeiro é derrubado por bandidos. Governo carioca insiste na idéia da guerra.
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o dia 17 de outubro de 2009 o Rio de Janeiro parou. Todo o contingente policial do Estado foi mobilizado, incluindo quem estava de folga. Quarteirões inteiros foram fechados. Motivo: a derrubada de um helicóptero da Polícia Militar por integrantes do Comando Vermelho, entre os bairros de Vila Isabel e Engenho Novo, na Zona Norte da capital. Tudo com direito a transmissão ao vivo de rádio, tevê e internet. Naquela madrugada, dezenas de bandidos tentaram invadir o Morro dos Macacos, atualmente controlado pela empresa Amigos dos Amigos (ADA). Foram cerca de seis horas de intenso tiroteio. Dezenas de famílias foram obrigadas a abandonar suas casas e a esticar colchonetes na Praça Sete, a dois quarteirões do pé do morro, onde passaram o resto da noite sem saber quando poderiam retornar. No início da manhã, por volta das oito horas, a polícia começou a chegar. Ainda que tardia, a ação foi bem recebida pelos moradores – fato raro no Rio de Janeiro. A tentativa de invasão foi rechaçada, mas o helicóptero foi derrubado por bandidos em fuga, já na altura do Morro São João – vizinho do Macacos. A versão oficial dá conta de que o aparelho estava sendo usado para socorrer policiais encurralados, mas moradores da região dizem que na verdade ele servia como ponto avançado de ataque: estava atirando. Assim como há exatos dois anos, em 17 de outubro de 2007, um outro helicóptero perseguiu e executou pessoas em fuga na favela da Coréia. A derrubada do helicóptero (e não o sofrimen-
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to dos moradores) colocou novamente a cidade no noticiário nacional e internacional e mais uma vez o debate foi direcionado para o “combate ao narcotráfico”, a “guerra contra as drogas” e congêneres. O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, disse que o episódio foi o “11 de setembro” carioca. O jornal O Globo manifestou preocupação com a realização das Olimpíadas – mais ou menos como quando diante de um tiroteio na favela da Maré estampa algo como “Pânico entre motoristas na Linha Vermelha”. O governo Sérgio Cabral (PMDB) apostou, de novo, na repressão violenta: nos dias seguintes à queda da aeronave houve pelo menos 40 mortes informadas oficialmente, em decorrência de ações da polícia – no dia da queda do helicóptero, morreram três policiais e um número não informado de bandidos durante a troca de tiros entre as facções rivais. A solução apresentada pelo governo não é nova, e nem eficaz. Basta lembrar da megaoperação realizada no Complexo do Alemão, há dois anos. Dois meses de ocupação e sessenta mortos depois, a favela continua sendo o principal bunker do Comando Vermelho, segundo reconhece a própria polícia. E mais: ninguém se sente mais ou menos seguro no Rio de Janeiro após essa e outras ações violentas do governo – a situação segue igual ou pior. Apesar disso, medidas repressivas são sempre elogiadas pelas corporações de mídia. É como se essas empresas clamassem por sangue, como se viu no diálogo entre dois apresentadores da TV Record a respeito dos acontecimentos no Rio: “Enquanto as armas da polícia fa-
lham, os traficantes têm poder até para derrubar um helicóptero”. Quem ouve até pensa que os vendedores varejistas de drogas ilícitas estão em posição de vantagem bélica em relação à polícia. “Não é verdade”, diz, categórico, Nilo Batista. Um dos maiores juristas do país, professor titular da UFRJ e da UERJ, fala com conhecimento da causa. Basicamente por dois motivos: participou dos governos Leonel Brizola (como secretário de Justiça e Polícia e vicegovernador, além de ter chegado a governar o Estado durante dez meses); e atualmente preside o Instituto Carioca de Criminologia, centro de pesquisa reconhecido no Brasil e no exterior. O professor propõe reflexões que, invariavelmente, são ignoradas pela mídia hegemônica. A diferença entre as facções criminosas, por exemplo, poderia esclarecer muito. Por que as ações policiais nos últimos anos têm sido direcionadas contra as favelas controladas pelo Comando Vermelho, se o Terceiro Comando (TC) e Amigos dos Amigos (ADA) praticam os mesmos ilícitos? A mobilização da polícia no dia da queda do helicóptero foi para proteger a população local ou para impedir que o Comando Vermelho retomasse dos rivais o antigo ponto de venda, que abarca todo o entorno do Maracanã e adjacências? Nesta entrevista, o professor faz duras críticas às ações policiais, acusa as corporações de mídia de incentivarem a violência e chama a responsabilidade política das ações de extermínio para o governador Sérgio Cabral. “Foi nele em quem a população votou”.
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“Há uma política de apartação social pela violência” Pode comentar a política de segurança a partir da derrubada do helicóptero e da reação do governo? Nilo Batista – Pra ser sincero, eu não reconheço nessas atividades uma política pública na qual eu veja objetivos, métodos, metas. O que eu vejo é uma implacável carnificina no entorno do comércio varejista de drogas. O aproveitamento desse fracasso da política de drogas, cuja única utilidade hoje é facultar as oito bases dos EUA na Colômbia, permitir que o comandante da IV Frota afirme candidamente que o único motivo de sua reativação é o narcotráfico, aí todo mundo fica feliz, não há nenhum olhar crítico sobre isso, não tem nada a ver com o pré-sal, com os acontecimentos econômicos do Atlântico Sul, e sim com o narcotráfico. Então, tá. Aliás, qual é mesmo o narcotráfico entre Brasil e África que tá preocupando? Qual é o foco, então? Internamente, trata-se da contenção da pobreza urbana, que é o problema que a desigualdade obscena da sociedade brasileira coloca. Infelizmente, mesmo entre setores da esquerda, acaba prevalecendo um olhar moral, fruto de um preconceito inercial sobre o lumpesinato, que no capitalismo industrial era completamente explicável, mas no capitalismo sem trabalho, no capitalismo onde predomina o trabalho morto, eu não sei como pode permanecer. As esquerdas acham que as violências policiais contra os inúteis da economia neoliberal nada tem de político. Os desempregados, os inempregáveis, os irremediavelmente alijados, cujas estratégias de sobrevivência são criminalizadas implacavelmente, seriam eles os vilões da história que não acabou? Atrás das trombetas higienistas do “Choque de Ordem” está a mcdonaldização da orla, a repressão do comércio informal popular, dos cocos, picolés, das quitandeiras do Galo ou do Pavão, que serão substituídas até o grande evento turístico-olímpico por assépticos sanduíches transnacionais. Como a privatização se liga com a repressão? No Pan, mataram 60 no Alemão. Aqueles 19 no último dia e antes. Nas Olimpíadas quantos vão ser? O prefeito só fala em “vender o Rio”. Qual a idéia para os favelados? É só essa? Estamos falando de política, do destino da juventude pobre, de um sistema penal que participa intensamente da acumulação capitalista, que descrendencia o debate político pelo tolo debate das representações jurídico-penais do fato político. Não se discute, por exemplo, toda a economia da pena, que está presente nas penitenciárias privadas (construção e gestão) ou nas tecnologias de segurança – por trás dessa proposta há um precioso nicho de mercado. Quando eu tinha responsabilidades de comando sobre as polícias do Rio de Janeiro, delegadas pelo governador Leonel Brizola, ele não fazia isso que hoje se faz: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Como não? Como o governador do Estado não tem? Como ele entrega a uma
gestão tecnocrática um poder que pode matar 20 pessoas num dia, e que mata pelo menos 1.500 pessoas por ano, da mesma faixa etária e extração social? Beltrame é um delegado de polícia. Mas quem votou nele? Não é dele a responsabilidade política por estar um helicóptero a disparar sobre uma população indefesa. Eu aprendi, nos anos que passei na polícia, que, salvo honrosíssimas exceções, a notícia “policiais estavam acuados no morro tal” significa que um entendimento não deu certo.
O secretário José Mariano Beltrame dizia que isso é um problema de médio a longo prazo, que só vai ser resolvido a partir da instalação de mais UPPs. Olha aqui, a coisa precursora das UPPs era chamada PPC – Posto de Policiamento Comunitário. O que a experiência comprovou é que, se você bota o PPC ali, ele vai ter que dialogar, e se estamos falando de uma atividade econômica importante para aquela comunidade, ou o PPC se incorpora ou ele vai ter que fechar o olho, não vai ter jeito. Se a idéia é como ocupação colocar permanentemente uma força nessas comunidades, a proposta é completamente autoritária. Você quer acabar com a infância dessas crianças? Elas moram num país, numa cidade ocupada? É uma experiência que não está avaliada, que sempre começa muito mal, sempre de maneira sangrenta, porque a Pacificação começa com os óbitos, e depois fica aquela coisa de fachada, a capitã boazinha... Até quando vamos apostar em soluções policiais? Quando foi, onde foi que soluções policiais resolveram problemas? Havia, nos anos 1930, nos EUA, uma enorme crise de segurança pública. Foi uma solução policial ou foi a legalização da droga ilícita que deu uma acalmada? Então, essa declaração de que a queda do helicóptero foi nosso 11 de setembro... Dá uma idéia disso que estou falando. Totalmente despropositada. Parte da direita costuma usar muito o exemplo do programa de Tolerância Zero, de Nova York. Quem dá esse exemplo é um ignorante. Nos EUA todo houve estabilização dos indicadores criminais nos anos noventa graças a cinco fatores: pleno emprego, redução demográfica da população de 15 a 24 anos... Os outros estão explicados em Loic Wacquant, quem quiser é só pegar pra ler. Isso foi nos EUA todo, só em Nova York o Giuliani ficava falando em Tolerância Zero. O único efeito comprovadamente ligado a essa bobagem do Tolerância Zero foi o aumento do controle e da violência policial contra os pobres. Vi uma reportagem na TV Record mostrando uma arma de um policial que falhou, ele pedia ajuda, e a câmera filmando tudo. Quando voltou para os apresentadores, eles comentavam o absurdo de armas obsoletas, que situação a da polícia,
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Nilo Batista critica as ações policiais
e o poder dos traficantes cada vez maior, até derrubaram um helicóptero. Levando a crer que os traficantes varejistas têm um poder muito maior que a polícia. Esse discurso é tão velho... Eu já ouvi mais de cem vezes. É uma maneira de chamar mais violência contra as classes populares, essa coisa de dizer que os grupos são mais armados que a polícia. Isso não é verdade, nunca foi. O problema é que eles conhecem mais o terreno, eles têm mais a simpatia da população – nem sempre, mas majoritariamente. Mas até no Alemão, se o Bope quiser ele entra. O resultado vai ser um grande número de crianças mortas, velhos mortos, mas entra. Agora, a Constituição, no seu artigo 144, determina o compromisso da polícia com a vida, e não com a morte. Aquele pessoal que se reuniu em 1988: “A segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e para a incolumidade das pessoas”. Não é pra matar, não. É pra salvar. Só que no Rio de Janeiro parece que vigora a Constituição de outro país. Por que esse debate sobre as facções não está nas corporações de mídia? Porque esclareceria tudo, ajudaria a análise. É preciso estudar essas organizações populares ilícitas. Em São Paulo, a academia está estudando o PCC, que tem responsabilidade direta no decréscimo dos homicídios. Não é tudo igual. O fato de disputarem o mesmo negócio ilícito não significa que sejam todas a mesma coisa. A coisa que mais me surpreendeu, quando eu tava no governo, foi descobrir quem é o cara que decidia: “agora a polícia vai nesse morro”. Qual o critério? Procurei estabelecer critérios objetivos. Que resistência... Que resistência. Tem que ter critérios objetivos. Caso contrário, sequer compreenderemos os conflitos em curso. Marcelo Salles é jornalista e coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. salles@carosamigos.com.br dezembro 2009
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TÃO REBELDES QUE VOLTARAM ÀS BANCAS
Coleção
REBELDES BRASILEIROS - Volumes I e II
Uma galeria de rebeldes que desafiaram o poder em nome de um Brasil melhor. Zumbi, Olga Benário, Pagú, Marighella, Chico Mendes, Plínio Marcos, Bento Gonçalves, Antonio Conselheiro, João Saldanha, Paulo Leminski, Tiradentes, Frei Caneca, Santo Dias, Carlos Lamarca, Luis Carlos Prestes, entre outros.
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João Pedro Stedile
Gilberto Felisberto Vasconcellos
Uma CPMI Contra
Sem-Serra
A REFORMA AGRÁRIA Vejamos o censo agropecuário feito pelo IBGE em dezembro de 2006 e recém-publicado: - Cerca de um por cento dos proprietários de terra no Brasil controla 46% das terras. - Apenas 15 mil fazendeiros, com áreas acima de 2.500 hectares, são donos de 98 milhões de hectares (4 Estados de São Paulo juntos). - A concentração de terras continua aumentando. E se desnacionalizando. Nos últimos anos as transnacionais compraram mais de 20 milhões de hectares de terra, água, minérios, etanol, usinas, madeira e biodiversidade. - O índice de gini, que mede a concentração de terras, no Brasil é de 0,856, é o segundo país de maior concentração de terras do mundo. - O Banco Opportunity, que opera recursos norteamericanos, comprou em três anos 56 fazendas e mais de 600 mil hectares, no sul do Pará. - A Cutrale monopolizou a produção de sucos de laranja e levou à miséria milhares de pequenos e médios agricultores paulistas que tiveram que destruir 280 mil hectares de laranjais, em dez anos. Ela acumulou 60 mil hectares, em 36 fazendas. Detém 80% da produção de suco do país, exporta 90% e controla 30% do comércio mundial de suco, em parceria com a Coca-Cola. - Os fazendeiros do agronegócio produzem 100 bilhões de reais por ano. Mas tomam emprestados todos os anos 90 bilhões de reais nos bancos. - Essa produção é fruto do trabalho de três milhões de assalariados permanentes e temporários. É revendida para apenas 20 empresas (a maioria transnacionais). - Essas 20 empresas faturam 115 bilhões de reais por ano. Ou seja, toda aquela riqueza vai parar nas mãos delas. - O agronegocio dá emprego para apenas 15% da população economicamente ativa (PEA), os outros 85% trabalham na agricultura familiar. Há 18 milhões de trabalhadores rurais adultos, e, destes, 15 milhões estão na agricultura familiar. - A agricultura familiar produz 85% dos alimentos que vão para a mesa do povo brasileiro. Já o agronegócio produz apenas para exportação. - Graças à aliança dos grandes fazendeiros com as transnacionais, em 45 milhões de hectares, são aplicados 700 milhões de litros de venenos. Seis transnacionais produzem: Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Shell, Bunge. Matam o solo, a biodiversidade, contaminam as águas e viram câncer no seu estômago. - O Brasil é a nona economia mundial. Está em 75.o lugar nas condições de vida, e é o sétimo pior país em desigualdade. - Desde 1985, foram assassinados no campo mais de 1.600 lideranças de trabalhadores. Apenas 80 assassinos chegaram aos tribunais, 15 foram condenados e uns 5 estão na cadeia. Diante disso, decidiram: Vamos convocar uma CPMI para impedir a reforma agrária!!! João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.
Desde 1989
há o consenso: eleição se ganha – não com ideias, argumentos e propostas – mas com dinheiro e televisão. O chamado voto-cabeça-racional-convicto não é suficiente para eleger ninguém. O que decide as eleições é o voto comprado. No capitalismo o voto é valor de troca, e não valor de uso. O povo sabe disso. Sem pirão não há eleição. Aí está o candidato. Ah é? Quanto você vai me dar em troca do meu voto? É por isso que, entre outros motivos, o capitalismo é contra a democracia. A regra geral é a seguinte: quem tem dinheiro se elege. O pobre não tem nada, a não ser o voto para vender, que nem o proletário que só tem a sua força de trabalho para ser vendida em troca de um salário. Tratando-se de uma população miserável, a hora do voto é a oportunidade de se descolar um troco; nada mais natural do que vender o voto por uma camiseta, uma cerveja, um prato de lentilha. Nas eleições presidenciais também vinga essa lógica da troca, mas isso não quer dizer que a ideia que orienta a campanha deva ser jogada no lixo. As condições sociais e econômicas do país não deixam de interferir na preferência eleitoral. Lula já ganhou de Serra. Em 2010 Lula terá de escolher alguém para disputar com o Serra, que é forte, porque vem com a grana da São Paulo multinacional. Quem as corporações multinacionais vão escolher como candidato? E o Obama terá preferência junto com os investidores estrangeiros? As corporações multinacionais estarão divididas entre um e outro candidato? A burguesia nativa (indústria e latifúndio) seguirá a escolha eleitoral das corporações multinacionais? As eleições estarão internacionalizadas como a coca-cola, sobretudo do lado dos tucanos, que são os agentes do capital estrangeiro. Qual será o discurso dos tucanos ou eles não terão discurso algum em 2010? Eles estão sem discurso depois do fracasso da era FHC. Depois da telenovela como a principal agência socializadora da cabeça do povo brasileiro, o candidato tem de ser telegênico, José Serra é careca e até hoje nenhum careca chegou na presidência da república. O tucanismo durante 8 anos no poder é a doutrina (made in Reagan, Thatcher, Blair e Clinton) do capitalismo desregulado. É o adiós Keynes e a consagração de Milton Friedman, o economista neoliberal que fez as privatizações de Pinochet. Tudo, tudo vem de fora para Serra. A euforia dos ricos com Thatcher e Blair abandonou o keynesianismo. A madame Thatcher e a boneca Blair foram ajudados pela mídia de Murdoch e pelo Partido Comunista inglês, divulgando a prosápia sobre o fim da história e o pós-modernismo. Thatcher cunhou a expressão “capitalismo popular” e propagou outra pérola de direita: “mercado de trabalho flexível”.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.
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Memórias De um jornalista não investigativo Renato Pompeu
Ana Miranda
Pequeno concerto para Vandré “Eu sou do tempo que rego a gente só via do encanador”
Daniel Cohn-Bendit e Jochka Fischer, sim o neoliberalismo a que esses líderes posteriormente aderiram. Mas voltando ao jornalismo: vocês já viram algum jurista “exarar” um parecer? Vocês já ouviram algum ministro “acentuar” alguma coisa, a não ser quando está escrevendo e põe acentos nas palavras deles necessitadas? Já viram algum deputado “salientar” alguma coisa, a não ser a barriguinha ou barrigona? E agora que estão todos desorientados quanto aos hífens, convém lembrar uma história edificante de uma revista brasileira, nos anos 1980. O editor de internacional tinha escrito um texto em que grafou “anti-nuclear” com hífen. O revisor, um rapazinho novo, foi ao editor e disse que, pela regra, era “antinuclear” e não tinha hífen. O editor respondeu irado: “Que língua a nossa! Em todas as línguas civilizadas do mundo anti-nuclear tem hífen. Deixa com hífen! Vamos civilizar este país”. Com a revista nas bancas, o diretor foi se queixar ao editor: “Saiu anti-nuclear com hífen na sua seção, embora antinuclear não tenha hífen”. Respondeu o editor: “Deixa ver, foi revisada por fulano de tal”. O rapazinho foi demitido, por não ter cumprido sua obrigação de tirar o hífen.
do Geraldo Vandré, desde criança escuto falar nele, meu pai, também paraibano, falava nos parentes Vandregislo, nome que meu pai dizia ser, provavelmente, corruptela de Van der Gislo, quem sabe nome de descendentes do sueco Jacob Van der Gislo, de 1592, quiçá nome de holandeses que teriam passado pela Paraíba fundando engenhos de cana-de-açúcar, e meu pai, que tinha os mesmos olhos de canaviais sob as águas, que tinha na história de sua família os engenhos, dizia, quando Vandré começou a aparecer compondo e cantando, este menino deve ser o filho do Zé Vandregislo, que era um médico na Paraíba, casado com dona Eugênia, linda moça muito talentosa ao piano, tocava música clássica, o menino deve ter passado a infância a escutar as interpretações da mãe que ecoavam pela casa, tanto que ficou marcado pela música clássica, como em “Pequeno concerto que virou canção”, ou o belo “Réquiem para Matraga”, sons soturnos, tristonhos como os rios negros margeados por engenhos da Paraíba, em viola, violão e triângulo, um sentimento que foi dar, também, em Augusto dos Anjos, e em meu pai, Vandré gostava de ouvir Villa-Lobos, Wagner, “Só ouço música clássica”, disse, menino nascido sob o signo da guerra, tinha quatro anos quando começou a Segunda Guerra Mundial, apaixonou-se por caças, e essa mistura de caças com música clássica deu em uma música poética e combativa, canção de rua com canção refinada, Vandré cantou sua alma e seu tempo, cantou um amor abstrato pelo outro, pelo tempo, “fica mal com Deus quem não sabe dar, fica mal comigo quem não sabe amar... Quem quiser encontrar o amor vai ter que sofrer, vai ter que chorar”... E agora o herói popular, afetado pelos sofrimentos de sua vida, não tem pressa, vive em outro mundo, cada vez mais distante, dizem que vive num antigo prédio no centro de São Paulo, cercado de livros, um violão, agora ele compõe canções em espanhol, espera renascer nos Pampas, ama a Argentina, o Uruguai, nunca foi cantor de protesto, nunca foi o que disseram ser, não quer falar do passado, prefere mexer no motor de um carro a compor músicas, na penumbra, cercado de livros, “os amores na mente, as flores no chão, a certeza na frente, a história na mão”, porque, ele disse, a vida não se resume em festivais...
Renato Pompeu é jornalista e escritor. rrpompeu@uol.com.br
Ana Miranda é escritora.
Sobre microssaias e outras curiosidades Agora que vivemos em tempos em que a minissaia de uma universitária causa escândalo entre seus – e suas – colegas, vamos lembrar dos anos 1960, em que as minissaias se tornaram tão comuns, sem causar escândalo nenhum, que as moças passaram a usar a microssaia, perto da qual a minissaia era um longo para ocasiões formais. A microssaia também não causou escândalo nenhum, naquela década em que, isso sim, verdadeiramente se sonhava que outro mundo era possível. Tanto se sonhava que uma série especial, publicada em 1970, pela antenada revista “Veja” de então, sobre os anos 1960 – a revista percebeu na hora que aquela década tinha sido muito diferente das que a antecederam e das que viriam depois – se queixou, num pequeno trecho, que se tinha passado da saia à minissaia e desta à microssaia, mas um pudor inexplicável impediu que se fosse ainda mais adiante. A série, dirigida por dois brilhantes jornalistas ainda hoje atuantes, para o bem do bom jornalismo, conceituados por todos, Zuenir Ventura e Dorrit Harazim, ainda hoje é uma fonte de informações úteis sobre aqueles anos em que o sonho ainda não tinha acabado, e é uma fonte de inspirações para os jovens de hoje, tão desprovidos de perspectivas. Mui de passagem lembremos que várias das exigências daqueles tempos, como a mudança de costumes, sexualidade mais liberada, e liquidação do reformismo da socialdemocracia e do socialismo stalinista, foram plenamente concretizadas, só que não veio o socialismo libertário sonhado na época por líderes como
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Ilustração: Koblitz
Tantas saudades
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CHEGOU O FASCÍCULO Nº 3
Brasileiros
G CA RÁT PA IS DU N° 8 RA
1. CARLOS CHAGAS E JOHANNA DÖBEREINER 2. CESAR LATTES E FLORESTAN FERNANDES 3. MILTON SANTOS E CRODOWALDO PAVAN 4. CELSO FURTADO E MAURÍCIO ROCHA E SILVA 5. OSWALDO CRUZ E NISE DA SILVEIRA 6. MÁRIO SCHENBERG E GILBERTO FREYRE
7. ADOLPHO LUTZ E PAULO FREIRE 8. SÉRGIO BUARQUE DE HOLLANDA E FRITZ FEIGL 9. CÂMARA CASCUDO E GRAZIELA M. BARROSO 10. DARCY RIBEIRO E VITAL BRAZIL 11. JOSÉ BONIFÁCIO E JOSUÉ DE CASTRO 12. HENRIQUE MORIZE E ANÍSIO TEIXEIRA
A nova série de fascículos da Editora Casa Amarela conta a trajetória de vida e as descobertas de 24 grandes cientistas brasileiros, homens e mulheres que contribuíram para a ciência e para a construção de um mundo melhor – são cientistas e humanistas, biografados em 12 fascículos, dois personagens a cada número quinzenal, formando, ao final da coleção, uma obra de referência de 384 páginas. GRANDES CIENTISTAS BRASILEIROS. UMA COLEÇÃO BRILHANTE. FASCÍCULO Nº 3 JÁ NAS BANCAS!
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Ari de Oliveira Zenha
A administração questionável da Cemig
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Cemig, depois de passar por várias etapas em sua gestão como empresa energética, foi se tornando uma empresa comprometida em termos de gerenciamento, de estratégia, de uma política de crescimento e de sua estrutura primordial;enveredando por caminhos extremamente tortuosos que vamos procurar esclarecer neste texto. Primeiramente, não há como não retroceder na história para clarear o atual momento em que a Cemig vive, pois as raízes da situação presente estão alicerçadas num passado não muito distante. Inicialmente, temos de tratar a privatização da Cemig na gestão do então governador Eduardo Azeredo. Este senhor, como é de conhecimento de todos,
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colocou a Cemig nas mãos de grupos estrangeiros e parceiros nacionais, que simplesmente desmantelaram a empresa praticamente em todos os níveis. Estes grupos implantaram uma administração nos moldes de uma empresa privada capitalista qualquer, onde se passou a privilegiar, acima de tudo, o lucro a qualquer preço e de qualquer forma. A questão relativa ao tipo de atividade em que a empresa está inserida no sistema produtivo foi tratada como se fosse um ramo produtivo comum; o fato da Cemig pertencer à população mineira nem sequer foi questionado ou aventado; e o patrimônio e o legado de seus trabalhadores, construídos ao longo de décadas, foram simplesmente ignorados pelos novos controladores.
Instalou-se um verdadeiro desmanche da Cemig, sob o patrocínio do senhor Eduardo Azeredo, que entregou a empresa aos capitalistas estrangeiros e seus aliados nacionais. Instaurou-se, desta forma, no nosso Estado, uma política econômica neoliberal patrocinada não só pelo governo federal como pelos organismos imperialistas internacionais, FMI à frente. Estes demoliram os setores de pesquisa e desenvolvimento. Engenheiros, analistas de sistemas, administradores, economistas, contadores e profissionais de nível médio altamente qualificados foram sumariamente “convidados compulsoriamente” a se aposentarem, mesmo que não tivessem o tempo máximo de serviço integralizado. A grande maioria, que não preenchia todos os
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requisitos acima, foram “incentivados” a aderir aos famosos PDVs (Programas de Desligamento Voluntário) e os PDIs (Programas de Desligamento Incentivado). Instalou-se na Cemig um verdadeiro campo de guerra, onde cada um se defendia como podia. O ambiente entre os funcionários virou um verdadeiro campo de batalha, e isto em todos os níveis da empresa. Boatos de toda ordem surgiam a todo o instante; ninguém tinha mais segurança, nem para trabalhar e muito menos emocionalmente. Instaurou-se um verdadeiro inferno na empresa, e isto das superintendências aos eletricistas; ninguém escapava da espada do neoliberalismo patrocinada por Eduardo Azeredo. A Cemig, que já chegou a contar em todo o Estado de Minas Gerais e em todos os níveis de sua atividade com cerca de 20 mil funcionários, hoje não chega próxima aos 10 mil. As conquistas salariais e os benefícios sociais simplesmente foram, a bem dizer, eliminados, sob o pretexto de serem regalias absurdas dos trabalhadores. Eram conquistas resultantes de muitos anos de luta de seus trabalhadores que, num passe de mágica, foram sendo eliminadas como mordomias e privilégios inadmissíveis.
Com essas atitudes de “gerenciamento”, a Cemig passou de uma empresa com credibilidade pública a uma empresa comprometida com os interesses do grande capital, afetando seu corpo técnico e a garantia da eficiência na geração, transmissão e distribuição de energia. No governo do atual governador Aécio Neves, a Cemig tem adotado uma política de expansão, crescimento e investimento altamente questionável. O projeto do atual governador, desde o seu primeiro mandato, é megalomaníaco, ou seja, o senhor Aécio está imbuido de transformar a Cemig numa megaempresa energética, não só no Brasil, mas na America Latina, custe o que custar. Para realizar este projeto faraônico, o governador, com a complacência do governo federal e da diretoria da empresa, vem realizando investimentos com endividamento e parcerias com empresas, notadamente grande grupos nacionais de construtoras e de outros ramos, para viabilizar seu projeto “grandioso” de governador. A Cemig, através de sua diretoria e de um fortíssimo marketing, vem ampliando suas atuações em setores como telefonia, transmissão de dados via internet, gás natural (Gasmig) e investindo pesadamente na
“A atual gestão da Cemig compromete o futuro da empresa”
compra de empresas de energia, linhas de transmissão, construções de barragens, energia eólica, como também no exterior. Não se sabe quantos trabalhadores terceirizados e empresas também terceirizadas, estão envolvidos nesse projeto megalomaníaco. A qualidade dos serviços prestados já está sendo comprometida, basta notarmos quantas vezes inúmeras cidades, mesmo Belo Horizonte, ficam sem energia. A direção da empresa está atrelada a este projeto de “abraçar o mundo”, crescer sem sustentação, com endividamento elevadíssimo e parcerias duvidosas e, ao mesmo tempo, manter um serviço com eficiência e qualidade. Haja empréstimos, haja parcerias, haja terceirização, haja enxugamento de funcionários e haja aumento de tarifa de energia para bancar esta política “grandiosa” em que a empresa está encalacrada! Estes são questionamentos e constatações sobre o que está ocorrendo com a Cemig, a respeito dos quais a sociedade mineira deve se posicionar democraticamente e de forma organizada no sentido de participar da gestão do seu patrimônio, que, afinal, não pertence nem ao senhor governador nem muito menos a meia dúzia de diretores e seu presidente. É bom lembrar, para quem não sabe, que a tarifa de energia da Cemig é uma das mais altas do Brasil! Ari de Oliveira Zenha é economista.
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ensaio Joelma Couto “Antes de o sol sair já estou na rua com minha carroça e meu cachorro do lado. Quando o sol vai dormir é hora de catar o papelão das lojas.” Muito deles dormem no meio do dia ou no meio da noite. Sua vida nunca foi muito fácil. Na maioria das vezes, convive com histórias difíceis e relações complexas. Arranjou na catação uma saída para a dignidade. Nem pedir e tão pouco roubar, mas trabalhar! Para isto, conta com a cabeça, um saco, uma caixa, mas é a carroça de tração humana que garante um pouco mais de recurso. A vida já foi mais tranqüila, mas agora está enfrentando os gigantes do capitalismo que produziram o que chamavam de lixo e agora chamam de matéria prima. Querem pegar o “lixo” do catador! O lixo virou ouro, material reciclável, mas o catador se organiza e luta no Movimento Nacional do Catadores de Material Reciclável..
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Tatiana Merlino
O veneno
no pão nosso
de cada dia
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o lado esquerdo da estrada de terra vermelha, uma cerca viva impede a visão da fazenda. Do lado direito, é diferente: é possível ver o pomar repleto de árvores de laranja, embora a maioria não dê mais frutos. A época da colheita já passou, foi em agosto. Estamos em outubro. Mais alguns metros percorridos de carro pela estrada da área rural do município de Lucianópolis, interior paulista, ouve-se um som vindo por detrás do pomar. Parece o ronco de um motor. Descemos do carro e cruzamos o limite da fazenda. O som se aproxima. Primeiro quarteirão, nada, segundo, terceiro, quarto. Lá pelo quinto quarteirão de árvores o barulho fica forte e avistamos o trator vermelho, pilotado por um homem que pulveriza um produto no laranjal. É Luiz Andrade de Souza, que trabalha e mora com a família na fazenda. Ele trabalha sem nenhum Equipamento de Proteção Individual – EPI, dispositivo exigido pela legislação do Ministério do Trabalho para a aplicação de defensivos agrícolas.
O Brasil é líder mundial no uso de agrotóxico. As empresas transnacionais comemoram, enquanto o prejuízo fica para os trabalhadores rurais e os consumidores. Fotos Jesus Carlos
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Luiz Andrade é uma vítima potencial de problemas de saúde decorrentes da manipulação dos agrotóxicos. De acordo com dados divulgados no começo de novembro pelo Censo Agropecuário 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve, em 2006, pelo menos 25.008 casos de intoxicação de agricultores. Os dados também indicam que herbicidas, fungicidas e inseticidas foram usados em 1,396 milhão de fazendas. A pesquisa mostra que mais de 1,5 milhão, das 5,2 milhões de propriedades rurais do país, utiliza agrotóxicos. E que 56% destas não recebem orientação técnica. A aplicação manual dos venenos, por meio do pulverizador costal – que é o equipamento que apresenta maior potencial de exposição aos agrotóxicos – é a mais utilizada, presente em 70,7% dos estabelecimentos agrícolas que fazem uso de algum tipo de defensivo. O Censo aponta também que 20% (296 mil) destas propriedades não utilizam proteção individual. O Rio Grande do Sul é o Estado que mais aplica agrotóxicos, com 273 mil propriedades.
Campeão mundial Tal cenário é do país que, em 2008, foi “consagrado” com o título de campeão mundial de uso de agrotóxicos. Foram 673.862 toneladas de defensivos, o equivalente a cerca de 4 quilos por habitante. De acordo com o Sindicato Nacional da Indústria de Defesa Vegetal (Sindag), o faturamento da indústria química no ano passado no Brasil foi de US$ 7,125 bilhões, valor superior aos US$ 6,6 bilhões do mesmo setor dos Estados Unidos. Atreladas ao tamanho da área plantada, as maiores aplicações se deram nas culturas de soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e cítricos. De acordo com Gabriel Fernandes, da organização não governamental Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), tais números deveriam servir “como um grande sinal de alerta que indica a falência do modelo agrícola das monoculturas. Quanto mais veneno se usa, maior será o desequilíbrio ambiental. E quanto maior o desequilíbrio ambiental, mais veneno se usa”. As consequências do uso dos agrotóxicos são inúmeras: coloca-se a saúde dos trabalhadores e consumidores em risco, e se contaminam o solo e a água. No caso da saúde dos trabalhadores, os riscos variam de acordo com tempo e dose da exposição a diferentes produtos. Assim, os efeitos podem ser agudos ou crônicos. O principal efeito agudo são intoxicações, dores de cabeça, alergias, náuseas e vômitos. “Dependendo do tempo de exposição, pode haver uma intoxicação aguda completamente reversível, mas também pode haver efeitos subagudos que deixarão lesões neurológicas periféricas que podem comprometer tanto a parte da sensibilidade quanto a parte motora”, explica a médica Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde
À esquerda, Luiz de Souza em fazenda no interior de SP. Acima, Janaína que sofreu intoxicação provocada por agrotóxicos.
Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). De acordo com ela, os efeitos crônicos são mais difíceis de se identificar porque podem ser atribuídos a outros quadros clínicos, “mas vão desde infertilidade masculina, má formação congênita, abortamento precoce, recém-nascido com baixo peso, cânceres – especialmente os linfomas –, leucemias, doenças hepáticas crônicas, alterações do sistema imunológico, possibilidade de mutagênese – que é a indução de mudanças genéticas que vão resultar em processos de cânceres ou em filhos com má formação congênita –, problemas de pele e respiratórios, até praticamente todas as doenças neurológicas, tanto centrais quanto periféricas. É um amplo leque de patologias”, explica.
Dor de cabeça, olhos ardendo Quem tem como rotina receber denúncias de trabalhadores reclamando de problemas de saúde decorrentes do manuseio de agrotóxicos é Abel Barreto, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Duartina, cidade paulista localizada na região de Bauru. “Temos muita reclamação de gente que vai trabalhar na laranja e se sente mal. Eles ligam e dizem: ‘Estamos aqui trabalhando na laranja e o trator está na rua de cima passando veneno’. A maioria fala em dor de cabeça e ardor nos olhos”, relata. Um dos casos que chegou ao sindicato de Duartina foi o das trabalhadoras Lindalva Zulian, de 38 anos, Rosimeire de Araujo, de 35, e Janaína Silva, de 25. As três trabalhavam numa fazenda de laranja no setor de inspeção, buscando localizar as plantas doentes para serem eliminadas. Nascida em Duartina, Lindalva morou em São Paulo por muitos anos. Mas, nos últimos cinco, trabalhava em fazendas de laranja, alternando as fun-
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ções de colheita e inspeção. O emprego, no entanto, rendeu-lhe problemas de saúde. Durante uma manhã do mês de junho deste ano, Lindalva e suas colegas faziam inspeção numa fazenda de laranja na cidade paulista de Espírito Santo do Turvo, quando o trator que aplica veneno passou pulverizando a mesma quadra onde as mulheres trabalhavam. “Eu comecei a ter tontura, dor de cabeça, ânsia de vomito. Comecei a chorar de tanta dor. As outras também começaram a vomitar”. Depois de muita insistência, o funcionário da fazenda atendeu o pedido de levar as mulheres ao hospital. “A dor de cabeça era demais, muita ânsia de vomito, o nariz e a boca queimavam por dentro. Falta de ar, não conseguíamos respirar. Na hora, o médico disse: ‘tira essa roupa, toma um banho, nem eu estou aguentando o cheiro de vocês’. A gente estava toda envenenada”. As mulheres ficaram três dias internadas, e, quando tiveram alta, foram dispensadas pela fazenda. “O médico falou que a gente tinha que fazer tratamento, que não podia voltar a trabalhar onde tinha veneno dentro de três meses”. Desde então, Lindalva está sem trabalhar. “Não posso mais com o cheiro de veneno. Qualquer coisa já começa a me queimar o nariz, me dá tontura e a cabeça começa a doer. O médico disse que a gente pode ter sintoma dentro de vários anos, que pode aparecer algum tipo de doença porque fica tudo no sangue. A gente não sentiu só o cheiro, a gente inalou mesmo”. Assim como Lindalva, Rosemeire também não voltou a trabalhar. “Não quero nem ver laranja”, diz. Já Janaína voltou para a colheita. “Não tem jeito, tenho que trabalhar. Mas até hoje eu sinto muita dor nos olhos. Nossa, quando eu forço a vista, dói para caramba”, diz, tentando segurar seu filho, que brinca com o gravador da reportagem. dezembro 2009
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As consequências do uso dos defensivos agrícolas vão de riscos para a saúde dos trabalhadores e consumidores a contaminação do solo, água e ar
Lista negra Apesar de terem denunciado o caso, que está sendo investigado pelo Ministério Público, as mulheres estavam receosas de dar entrevista e serem perseguidas depois. “O medo é de entrar para a ‘lista negra’ das fazendas e nunca mais conseguirem emprego”, relata Abel Barreto, presidente do sindicato de Duartina. Segundo ele, a região é dominada por Cutrale, Coimbra, Citrosuco e Citrovita, as quatro maiores empresas do setor de citricultura. “Se você for nas fazendas dessas empresas, vai ver todo mundo com equipamento de proteção. O problema é que a precariedade está nas fazendas que fornecem laranja para elas. Essa é a maneira de se isentarem de ficar com o nome sujo”, alerta. O sindicalista aponta que uma das dificuldades para sistematizar as denúncias de intoxicação por agrotóxicos ocorre porque, quando as empresas têm equipe médica na fazenda, “muitas vezes os profissionais escondem os exames dos trabalhadores, dão um atestado de um dia quando deviam dar de dois”, explica. “E mesmo alguns médicos da cidade cedem à pressão das fazendas e amenizam os problemas, argumentando com a gente que as empresas são responsáveis por milhares de empregos”, relata. Estudos relacionados aos impactos do manuseio
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dos agrotóxicos por trabalhadores indicam que mesmo com a utilização dos equipamentos de proteção individual, a aplicação não é segura. “Além do EPI, há uma série de outras exigências que qualificam aquilo que se chama de ‘uso seguro de agrotóxicos’, mesmo que eu esteja falando isso com várias aspas de cada lado, porque eu não acredito nessa possibilidade”, explica Raquel. Um dos pré-requisitos é o respeito ao que se chama de “período de reentrada”
Lindalva, envenenada ao trabalhar numa fazenda de laranja
após a aplicação do veneno, quando ninguém pode ingressar na área. “Para alguns venenos, o tempo é de três horas; para outros, são sete dias, isso varia. E quando a gente pergunta aos trabalhadores como se trabalha com esse período, que é uma exigência da legislação trabalhista, eles dizem que isso não é respeitado pelas empresas”. Além disso, segundo a médica, a segurança dos equipamentos de proteção individual é muito relativa. “Eles são muito desconfortáveis e, quanto mais baratos, mais mal acabados. Incomodam, espetam, arranham. Nos climas quentes, são ainda mais difíceis de usar. É também muito complicado para as indústrias estabelecerem o ritmo correto da troca dos filtros das máscaras”, avalia. Outro problema recorrente é a absorção dos produtos pela pele: “O uniforme fica encharcado de agrotóxicos. E, em vez de ser levado para a casa do trabalhador e lavado junto com a roupa da família, como acontece muitas vezes, ele deveria ser lavado pela empresa. A família corre grandes riscos de ficar contaminada. Essa proposta do uso seguro é muito relativa”, alerta Raquel. Exemplo dos limites do “uso seguro” dos agrotóxicos é o trabalhador Paulo Sérgio, morador de Duartina. Aos 37 anos, muitos de corte da cana e cinco de colheita de laranja, ele teve uma experi-
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ência complicada recentemente. Contratado pela empresa de laranja Coimbra para aplicar defensivos agrícolas, no terceiro dia de trabalho, ao aplicar o veneno Temic, Paulo passou mal. “Eu estava com todos os EPIs”. Mesmo assim, os equipamentos não impediram que o trabalhador sentisse muita ânsia de vômito, aumento da salivação e dor de cabeça. “Passei no médico e ele disse que eu estava intoxicado”, conta.
Limite de tolerância Se, para os trabalhadores, os prejuízos do contato com agrotóxicos são alarmantes, estes tampouco deixam de ser graves para os consumidores de alimentos que trazem resíduos de tais produtos. “Os problemas são análogos aos dos trabalhadores”, explica a médica Raquel Rigotto. “A intoxicação aguda é mais rara, mas a lista dos efeitos crônicos é a mesma. A exposição do consumidor é menor, mas, mesmo assim, ele entra em contato com uma ampla gama de princípios ativos”, alerta. Segundo ela, a quantidade de alergias que cresce no mundo, o aumento dos casos de câncer e de doenças imunológicas são um alerta para que se discuta o conceito “limite de tolerância”, ou seja, “o paradigma do uso seguro, que pressupõe que haja uma certa quantidade de cada um dos produtos químicos que poderia ser absorvida diariamente pelo organismo sem que isso cause danos irreversíveis à saúde. Isso não existe”, enfatiza. O “bom uso” dos agrotóxicos também é questionado por Wanderlei Pignati, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e estudioso do tema. “Não existe uso seguro de agrotóxicos. Isso não é só para quem manuseia o
produto, é para toda a população das cidades pequenas. Quando se pulveriza no entorno, o ar leva o veneno para a cidade, a água fica contaminada...”, explica o médico, que, juntamente com a Fiocruz, prepara um estudo sobre os impactos dos defensivos na saúde e no meio ambiente nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. “Há resíduos de agrotóxicos em poços artesianos, córregos, rios, lagos. E o ar das cidades fica contaminado pela chuva”. O professor, que possui doutorado na área de toxicologia, afirma que, nas cidades do Mato Grosso onde há plantações que usam venenos, nos últimos dez anos houve um aumento da incidência das intoxicações agudas, de casos de câncer, mau formação e de distúrbios neurológicos. “O consumidor também encontra resíduos de agrotóxico na água. Conforme a população vai bebendo e cozinhando, virão os efeitos crônicos. E, depois, vem os resíduos nos alimentos, como soja, milho, arroz, feijão”. O professor também questiona a existência de um limite máximo destes resíduos que são permitidos nos alimentos. “Para nós, que somos da saúde, não era para ter nenhum limite máximo de resíduo permitido. Esses estudos são feitos em animais, e nos seres humanos há diferenças de sensibilidade”. Pignati também cita o aumento de casos de trabalhadoras grávidas que apresentam problemas de mau formação dos fetos, o que, em muitos casos, leva à perda do bebê. “Por isso, o aumento dos índices de aborto é muito grande”, revela.
Veneno no prato De acordo com a última pesquisa realizada pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos
Mesmo com a utilização de equipamentos de proteção, a aplicação dos agrotóxicos não é segura
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em Alimentos (PARA), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2008, o pimentão foi o alimento que apresentou o maior índice de irregularidades em resíduos de agrotóxicos. Mais de 64% das amostras de pimentão analisadas tinham problemas. O morango, a uva e a cenoura também apresentaram índices elevados de amostras irregulares, com mais de 30% cada. Foram monitoradas 17 culturas (abacaxi, alface, arroz, banana, batata, cebola, cenoura, feijão, laranja, maçã, mamão, manga, morango, pimentão, repolho, tomate e uva). Das 1.173 amostras coletadas, 15,29% estavam irregulares quanto aos resíduos de venenos agrícolas. Um dado preocupante do resultado da pesquisa é a existência de agrotóxicos não permitidos em todas as culturas avaliadas. Substâncias proibidas em muitas partes do mundo, como acefato, metamidofós e endossulfam, foram encontradas de forma irregular nas culturas de abacaxi, alface, arroz, batata, cebola, cenoura, laranja, mamão, morango, pimentão, repolho, tomate e uva. De acordo com Juliana Ferreira, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “o fato de o Brasil ter se tornado um grande consumidor de agrotóxico foi um alerta para os consumidores, que cada vez mais estão preocupados com as doenças que podem surgir com o tempo”. Segundo ela, uma das maiores dificuldades do consumidor é que “ele é muito mal informado, nem sabe o que está consumindo porque não há informação sobre a existência de resíduos de agrotóxicos nos rótulos dos produtos”, explica. Em outubro, o Idec divulgou uma pesquisa realizada nas regiões sul, sudeste e centro-oeste com o alimento mais popular da cesta básica brasileira: o feijão. O resultado foi catastrófico. O Instituto analisou 33 marcas do alimento vendidas em diversas partes do país e constatou que quase um terço (nove delas) não poderiam ser comercializadas. Os produtos apresentavam resíduos de agrotóxicos proibidos pela Anvisa, e em sete deles foram encontrados insetos ou larvas vivas misturados aos grãos. “Numa das marcas, foi encontrado o endossulfam, agrotóxico proibido na lavoura de feijão, e o inseticida clorpirifós em níveis acima do limite estipulado por lei. Como o feijão é um dos principais ingredientes da alimentação dos brasileiros, há uma grande preocupação em constatar isso e tentar divulgar para que os consumidores fiquem alertas”, avalia a advogada do Idec. Segundo ela, a entidade defende a reavaliação periódica de agrotóxicos: “Os estudos se renovam, novas descobertas acontecem e, por conta disso, novos problemas causados pelos defensivos são constatados. Não é possível que o agrotóxico, que não é um insumo, mas sim um veneno, seja liberado e nunca mais revisto”. dezembro 2009
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Após uma briga judicial ocorrida no ano passado entre a Anvisa e setores do ramo dos agrotóxicos, o órgão do governo está reavaliando 14 tipos de defensivos utilizados no Brasil. Destes, 12 já foram proibidos em países da União Europeia e da África, além dos Estados Unidos e China. Apesar do mercado europeu exigir o certificado EurepGap, pré-requisito das redes varejistas locais para assegurar a qualidade dos produtos agropecuários destinados ao consumo humano, “não há mudanças efetivas na prática das empresas. O que temos visto em outros é que esses selos têm um papel mais cartorial”, relata a pesquisadora Raquel Rigotto. Assim, para driblar a certificação, “as empresas tendem a usar produtos que têm uma ação rápida sobre as pragas, mas que apresentam uma degradação, uma meia vida rápida, de modo que não são mais identificadas quando elas chegam no importador. O problema é que as consequências ficam aqui”, comenta. No caminho oposto, o Brasil importa produtos que são rejeitados no exterior, como é o caso dos inseticidas metamidofós e paration metílico, registrados como substâncias altamente tóxicas e usados em vários produtos comerciais. O primeiro foi encontrado irregularmente em culturas de alface e de morango nas últimas avaliações da Anvisa, além de em quantidade excessiva no tomate, onde tem uso permitido. Outro dado que indica que o Brasil segue na contramão dos países desenvolvidos nessa questão é que, enquanto a União Europeia proibiu a pulverização aérea, o Brasil continua utilizando tal expediente, apenas com a exigência de que se mantenha uma distância de 500 metros de comunidades e 250 metros de mananciais de água. Um caso exemplar dos danos causados como resultado da pulverização aérea ocorreu durante um acidente ambiental em março de 2006 no município mato-grossense de Lucas do Rio Verde, o segundo maior produtor de grãos do Brasil. A área urbana do município sofreu com uma pulverização que provocou prejuízos a produtores rurais e problemas na saúde da população. “Os aviões passam em cima das nascentes dos rios, dos córregos, afetando as casas, as cidades. E o vento leva todo o agrotóxico para dentro da cidade”, explica Wanderlei Pignati.
mOdelO agrOeXpOrtadOr O uso abusivo de defensivos está relacionado ao modelo de monocultura agroexportadora adotado pelo Brasil, explica Raquel Rigotto. “Esse modelo depende dos agrotóxicos porque, quando se opta pela monocultura, ao mesmo tempo que se destrói a biodiversidade, se oferece às pragas todas as condições de elas se expandirem”. Gabriel Fernandes, da AS-PTA, avalia que o aumento do uso de defensivos também está direta-
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mente ligado ao aumento da utilização de plantas transgênicas fabricadas para serem mais resistentes à aplicação dos herbicidas. “Há uma questão intrínseca do modelo. Desde quando os agrotóxicos começaram a ser utilizados até hoje, houve um aumento no número de pragas, insetos e doenças que causam danos à agricultura”, analisa. Segundo Fernandes, o uso intensivo dos defensivos não dá conta de controlar esses fatores, que interferem na produção justamente porque tais produtos vão aumentando o desequilíbrio ambiental: “O agrotóxico gera insetos, doenças mais resistentes. E outros insetos que não causavam danos passam a causar, por conta desse desequilíbrio ambiental”, avalia. Não por acaso, as maiores empresas que produzem herbicidas e inseticidas são as mesmas que controlam o mercado de transgênicos. “A tendência da indústria de agrotóxicos é casar as coisas, porque elas mesmas produzem as sementes e os agrotóxicos”. É o caso da Monsanto, Basf, Dupont, Bayer, Bunge e Syngenta. “A Monsanto, que é a produtora do glifosato e que fabrica o Roundup, é a mesma que produz a soja transgênica, que vai usar mais glifosato. É a mesma indústria, que depois vai cobrar royalties. Tem todo um interesse de seleção mundial de sementes que precisa de agrotóxicos e fertilizantes químicos”, alerta Wanderlei Pignati. Por exemplo, em 1994, foram consumidas cerca de 800 toneladas de herbicidas no Brasil e, em 1998, aproximadamente 1.400, coincidindo com o período de introdução da soja transgênica no país. Gabriel Fernandes afirma que o fato de que “a cada 4 hectares de transgênicos plantados no mundo, três serem de sementes transgênicas feitas para uso casado com agroquímicos, explica como as empresas ampliam e mantêm tanto seu mercado de sementes quanto o de agrotóxicos”. Segundo ele, as sementes transgênicas foram desenvolvidas exatamente para necessitarem da aplicação de agrotóxicos. “Como o mercado de sementes é altamente controlado, aos poucos, essas empresas vão tirando as sementes convencionais do mercado e colocando as transgênicas. Essa é a jogada de mercado”. O fato de o Brasil ter se tornado o maior consumidor mundial de defensivos agrícolas foi comemorado pelas empresas transnacionais, que “acham que a utilização dessa enorme quantidade de fertilizante é sinônimo de progresso. Isso indica que tem algo errado no rumo que as coisas estão tomando”, acredita Fernandes. Segundo ele, como o poder público estimulou a utilização desses insumos pela agricultura nas últimas quatro décadas, “ele tem responsabilidade de tentar minimizar seus impactos e, por outro lado, estimular outro modelo de agricultura que não seja tão dependente desse produto”. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br
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reavaliaçãO
OS NÚMEROS DOS AGROTÓXICOS • O Brasil é o campeão mundial em consumo de agrotóxicos. Em 2008, foram utilizados 673. 862 toneladas de defensivos, e a indústria química movimentou US$ 7,125 bilhões. • Mais de 1,5 milhão, das 5,2 milhões de propriedades rurais do país utiliza agrotóxicos. • 1,396 milhão de estabelecimentos agrícolas utilizam herbicidas, fungicidas e inseticidas • Cerca de 56% dos que recorrem a produtos químicos na agricultura não seguem orientação técnica. • 70,7% usaram pulverizador costal para aplicação de agrotóxicos, equipamento que apresenta maior potencial de exposição aos trabalhadores. • Em cerca de 20% das propriedades que aplicaram agrotóxicos não se utilizava equipamento de proteção • Houve ao menos 25.008 casos de intoxicação de agricultores. • O pimentão é o alimento que apresenta maior índice de agrotóxicos. 64% das amostras analisadas por pesquisa da ANVISA apresentaram problemas • Morango, uva e cenoura aparecem na sequência, com mais de 30% de resíduos cada • Substâncias proibidas em muitas partes do mundo foram encontradas em abacaxi, alface, arroz, batata, cebola, cenoura, laranja, mamão, morango, pimentão, repolho, tomate e uva. Fontes: Sindicato Nacional da Indústria de Defesa Vegetal (Sindag), Censo Agropecuário 2006, IBGE
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Frei Betto
Fidel Castro
Feliz Natal
Os problemas de Obama
À CRIANÇA QUE NOS HABITA Natal, misto de ansiedade e frustração. Em algum recanto de nossas nostalgias inconscientes, emerge um gosto de sol. Os símbolos da árvore, o presépio com o Menino Jesus, a Virgem e os pastores, ressoam na criança que já não somos e, no entanto, nos habita. Há também um gosto de sal. A reificação das relações humanas, o consumismo compulsivo e o medo ao dom de si, fazem-nos gravitar em torno do espectro de Papai Noel. Dar algo para não se dar, reter o afeto hermeticamente embrulhado, mil cordas a amarrar-nos ao próprio inferno que, como definia Dostoiévski, é o sofrimento de não poder mais amar. Cada presente atesta o quanto se sonega a si mesmo. A festa de Natal originou-se no século II, quando teólogos pretenderam determinar a data do nascimento de Jesus, não indicada nos Evangelhos. João Batista teria sido concebido no equinócio de outono e nascido no solstício de verão. De acordo com Lucas 1, 26, Jesus teria sido concebido seis meses antes de João, ou seja, no equinócio da primavera do hemisfério Norte (25 de março). Teria, pois, nascido a 25 de dezembro, quando no Oriente o Sol retorna a seu movimento de ascensão. A segunda hipótese, mais provável, faz do Natal a versão cristã da festa pagã do “deus sol invencível” (= natale solis invictus), introduzida no ano 274 pelo imperador Aureliano e fixada no solstício do inverno europeu, a 25 de dezembro. Para o prólogo do evangelho de São João, Cristo é “a luz do mundo”. Assim, a fé cristã resgata a comemoração pagã ao reforçar, nas primeiras comunidades da Igreja, a convicção de que celebravam a festa do verdadeiro Sol. Hoje, novo resgate é operado pela figura pagã e mercantilista de Papai Noel, que sacramenta a desigualdade social ao ofertar presentes às crianças bem nascidas e deixar as pobres de mãos vazias (exatamente o inverso do canto de Maria no Magnificat, onde o Senhor “despede os ricos de mãos vazias e sacia de bens os famintos”). O Natal cristão herda o espírito de justiça e de reconciliação do sistema sabático e do ano jubilar judaicos, nos quais as dívidas eram perdoadas, os escravos libertados, as terras equitativamente redistribuídas. Herança hoje deturpada pela troca de presentes a camuflar a resistência ao encontro de pessoas. Deixa-nos essa amarga nostalgia que perdura Natais afora, sequiosa de alegria sincera e de efusão do espírito. Vinhos, nozes e perus não aplacam essa fome de beleza que abre um oco no centro do coração. Natal é renascer, a começar por si mesmo, a partir desse núcleo do plexo solar onde a intuição capta a nossa verdade mais íntima. Nada mais desafiador do que a fidelidade a si mesmo. No entanto, tememos a solidão porque ela nos traz o silêncio e, de dentro dela, ressoa a voz que repete o verso de Antônio Maria: “Não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”. E é “por aí” que temos ido, sem forças para mudar de rumo. Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.
Como pretende Obama resolver os problemas climáticos se a posição de sua representação nas reuniões preparatórias da Cúpula de Copenhague sobre as emissões de gases de efeito estufa foi a pior de todos os países industrializados e ricos, tanto em Bangcoc como em Barcelona, por que os Estados Unidos não assinaram o Protocolo de Kyoto, nem a oligarquia desse país está disposta verdadeiramente a cooperar? O teólogo brasileiro Leonardo Boff — que não é discípulo de Marx, mas católico honesto, desses que não estão dispostos a cooperarem com o imperialismo na América Latina — disse recentemente: “arriscamos nossa destruição e a devastação da diversidade da vida.” “Quase metade da humanidade hoje vive abaixo do nível de pobreza. Os 20% mais ricos consomem 82,49% de toda a riqueza da Terra e os 20% mais pobres têm que se sustentar com um ínfimo 1,6%.” Cita a FAO e adverte: “nos anos próximos, haverá entre 150 e 200 milhões de refugiados climáticos.” E acrescenta por sua conta: “Hoje, a humanidade está consumindo 30% a mais da capacidade de restituição... A Terra está dando sinais inequívocos de que já não aguenta mais.” O que Boff afirma é certo, mas Obama e o Congresso dos Estados Unidos ainda o ignoram. O que Obama nos está deixando no hemisfério? O problema vergonhoso de Honduras e a anexação da Colômbia, onde os Estados Unidos instalarão sete bases militares. Em Cuba estabeleceram também uma base militar há mais de 100 anos e ainda a ocupam pela força. Nela instalaram o horrível centro de tortura, mundialmente conhecido, que Obama até hoje não pôde fechar. Eu considero que, antes que Obama termine o seu mandato, haverá de seis a oito governos de direita na América Latina que serão aliados do império. Em breve, o setor mais de direita dos Estados Unidos tentará também limitar seu mandato a um período de quatro anos de governo. Um Nixon, um Bush ou alguém parecido com Cheney serão novamente presidentes. Então, vai se ver às claras o que significam essas bases militares absolutamente injustificáveis que hoje ameaçam todos os povos da América do Sul, sob pretexto do combate ao narcotráfico, um problema criado pelas dezenas de bilhões de dólares que nos Estados Unidos são injetados no crime organizado e na produção de drogas na América Latina. Cuba tem demonstrado que para combater as drogas o que faz falta é justiça e desenvolvimento social. No nosso país, o índice de crimes em cada cem mil habitantes é um dos mais baixos do mundo. Nenhum outro do hemisfério pode mostrar índices tão baixos de violência. É sabido que, apesar do bloqueio, nenhum outro tem tão elevados níveis de educação. Os povos da América Latina saberão resistir às agressões do império!
Fidel Castro Ruz é ex presidente de Cuba
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entrevista Carlos Nelson Coutinho
“Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”
Participaram: Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Fotos: Coletivo Favela em Foco
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arlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos em seu apartamento no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos da esquerda brasileira, sua decepção com o governo Lula e as possibilidades de superação do capitalismo. Estudioso de Antonio Gramsci, Coutinho defende a atualidade de Marx e reafirma o que disse em seu polêmico artigo “Democracia como valor universal”, publicado há 30 anos: “Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”
Hamilton Octávio de Souza- Queremos saber da sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira..
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Carlos Nelson Coutinho - Nasci na Bahia, em uma cidade do interior chamada Itabuna, mas fui para Salvador muito pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me formei em Salvador, e as opções que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tornei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava
ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois anos porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, aí eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia.
Renato Pompeu - Mas quais eram as suas referências intelectuais? Em primeiro lugar, Marx, evidentemente, mas também foram muito fortes na minha formação intelectual o filósofo húngaro George Lukács e Gramsci. Eu tenho a vaidade de ter sido um dos primeiros a citar Gramsci no Brasil, porque aos 18 anos eu publiquei um artigo sobre ele na revista da faculdade de Direito. Aí eu vim para o Rio e fui trabalhar no Tribunal de Contas. Me apresentei ao João Vieira Filho para trabalhar e ele me falou: “meu filho, vá pra casa e o que você precisar de mim me telefone”. Eu fiquei dois ou três anos aqui sem trabalhar, mas a situação ficou inviável. Pedi demissão e fui, durante um bom tempo, tradutor. Eu ganhava a vida como tradutor, traduzi cerca de 80 ou 90 livros. Em 76, eu fui para a Europa. Passei 3 anos fora, não fui preso, mas senti que ia ser, foi pouco depois da morte do Vlado. Então morei na Europa por três anos, onde acho que aprendi muita política. Morei na Itália na época do florescimento do eurocomunismo, que me marcou muito. O primeiro texto que publiquei é exatamente este artigo da “Democracia como valor universal” que causou, sem modéstia, um certo auê na esquerda brasileira na época. Até hoje há citações de que é um texto reformista, revisionista. Enfim, voltei do exílio e entrei na universidade, na UFRJ, onde eu estou há quase 28 anos. Passei por três partidos políticos na vida. Entrei no PCB, como disse antes, aos 17 anos, onde fiquei até 1982, quando me dei conta que era uma forma política que tinha se esgotado. Nesse momento, surge evidentemente uma coisa que o PC não esperava e não queria, que é um partido realmente operário, no sentido de ter uma base operária. O mal-estar do PCB contra o PT no primeiro
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momento foi enorme. Eu saí do PCB, mas não entrei logo no PT. Só entrei no PT no final da década de 80, entrei junto com o [Milton] Temer e o Leandro Konder. Fizemos uma longa discussão para ver se entrávamos ou não, e ficamos no PT até o governo Lula, quando nos demos conta que o PT não era mais o PT. Saí e fui um dos fundadores do PSOL, que ainda é um partido em formação. Ele surge num momento bem diferente do momento de formação do PT, de ascensão do movimento social articulado com a ascensão do movimento operário. E o PSOL surge exatamente em um momento de refluxo. Nessa medida, ele é ainda um partido pequeno, cheio de correntes. Eu sou independente, não tenho corrente. Podemos dizer o seguinte: eu tinha um casamento monogâmico com o PCB, com o PT já me permitia traições e no PSOL é uma amizade colorida.
Tatiana Merlino - Em uma entrevista recente
o senhor falou sobre o avanço e o triunfo da pequena política sobre a grande política dentro do governo Lula. Você pode falar um pouco sobre isso? Gramsci faz uma distinção entre o que chama de grande política e pequena política. A grande política toma em questão as estruturas sociais, ou para modificá-las, ou para conservá-las. A pequena política de Gramsci é a política da intriga, do corredor, a intriga parlamentar, não coloca em discussão as grandes questões. Durante algum tempo, o Brasil passou por uma fase de grande política. Se a gente lembrar, por exemplo, a campanha presidencial de 89, sobretudo o segundo turno, tinha duas alternativas claras de sociedade. Não sei se, caso o PT ganhasse, ia cumpri-la, mas, do ponto de vista do discurso, tinha uma alternativa democrático-popular e uma alternativa claramente neoliberal. Até certo momento, no Brasil, nós tivemos uma disputa que Gramsci chamaria de grande política. A partir, porém, sobretudo, da vitória eleitoral de Lula, eu acho que a redução da arena política acaba na pequena política, ou seja, que no fundo não põe em discussão nada estrutural. Eu diria que é a política tipo americana. Obviamente o Obama não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de que o Obama vai mudar as estruturas capitalistas dos Estados Unidos, ou propor uma alternativa global de sociedade. Então, o que está acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando Serra não vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política brasileira “americanalhou”, virou essa coisa... Então, neste sentido eu entrei no PSOL até com essa ideia de criar uma proposta realmente alternativa. Infelizmente o PSOL não tem força suficiente para fazer essa proposta chegar ao grande público, mas é uma tentativa modesta de ir contra a pequena política.
Renato Pompeu - Você não acha que esse
americanalhamento aconteceu na própria pátria do Gramsci? Ah, sem dúvida. A predominância da pequena política é uma tendência mundial. Me lembro que logo depois da abertura eu escrevi uns dois ou três artigos em que dizia que o Brasil se tornou uma so-
ciedade complexa. O Gramsci a chamaria de ocidental, que é uma sociedade civil desenvolvida, forte e tal. Mas há dois modelos de sociedade ocidental um modelo que eu chamava de americano, que é este onde há sindicalismo, mas o sindicalismo não se põe nas estruturas, há um bipartidarismo, mas os partidos são muito parecidos, e o que eu chamava de modelo europeu, onde há disputa de hegemonia. Ou seja, se alguém votava no partido comunista na Itália, sabia que estava votando em uma proposta de outra ordem social. Se alguém votava no Labour Party na Inglaterra durante um bom tempo, pelo menos o programa deles era socialista, de socialização dos meios de produção. E quem votava no partido conservador queria conservar a ordem. O Brasil tinha como alternativa escolher um ou outro modelo. Por exemplo, havia partidos que são do tipo americano, como o PMDB, mas havia partidos que são do tipo europeu, como o PT. Havia um sindicalismo de resultado e um sindicalismo combativo (CUT, por exemplo), mas tudo isso era naquela época. Depois a hegemonia neoliberal, em grande parte, americanalhou a política mundial. A Europa hoje é exatamente isso, são partidos que diferem muito pouco entre si. Há um “americanalhamento”. É um fenômeno universal e é uma prova da hegemonia forte do neoliberalismo.
Tatiana Merlino - Então o avanço da pequena
sobre a grande política está sendo mundial? É um fenômeno mundial, não é um fenômeno brasileiro. Mas veja só, começam a surgir na América Latina formas que tentam romper com este modelo da pequena política. Estou falando claramente de Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, ainda que eu não seja um chavista, até porque eu acho que o modelo que o Chávez tenta aplicar na Venezuela não é válido para o Brasil, que é uma sociedade mais complexa, mais articulada. Mas certamente é uma proposta que rompe com a pequena política. Quando o Chávez fala em socialismo, ele recoloca na ordem do dia, na agenda política, uma questão de estrutura.
Tatiana Merlino - Então é um socialismo novo,
do século 21. Que socialismo é esse? Eu não sei, aí tem que perguntar para o Chávez. Olha, eu não gosto dessa expressão “socialismo do século 21”, eu diria “socialismo no século 21”.
Renato Pompeu - E como seria o socialismo no século 21? Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma
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nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tornaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem.. Será que este cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos estes segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?
Renato Pompeu - Aí tem o problema dos
excluídos... Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do “Capital”, diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro “A Ideologia Alemã” que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz crítica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego para todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar. Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado “socialismo real” fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o dezembro 2009
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que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, “Democracia como valor universal”, não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vínculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão “marxista-leninista”, o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido.
Marcelo Salles - E nesse “Democracia como valor universal”, você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia... Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase. Hamilton Octávio de Souza - Nós saímos de
um período de 21 anos de ditadura militar, essa chamada democracia que nós vivemos, qual é o limite? O que impende o avanço mesmo que não se construa uma nova sociedade? Eu acho que temos uma tendência, que me parece equivocada, de tratar os 21 anos da ditadura como se não houvesse diferenças de etapas. Eu acho, e quem viveu lembra, que, de 64 ao AI-5, era ditadura, era indiscutível, mas ainda havia uma série de possibilidades de luta. Do AI-5 até o final do governo Geisel, foi um período abertamente ditatorial. No governo Figueiredo, há um processo de abertura, um processo de democratização que vai muito além do projeto de abertura da ditadura. Tem um momento que os intelectuais mais orgânicos da ditadura, como o Golbery, por exemplo, percebem que “ou abre ou pipoca”. O projeto de abertura foi então atravessado pelo que eu chamo de processo de abertura da sociedade real. Eu não concordo com o Florestan Fernandes quando ele chama a transição de conservadora. Eu acho que ocorreu ali a interferência de dois processos: um pelo alto, porque é tradicional na história brasileira as transformações serem feitas pelo alto, o
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que resultou na eleição de Tancredo. Mas também houve a pressão de baixo. A luta pelas “Diretas” foi uma coisa fundamental, também condicionou o que veio depois. Esta contradição se expressa muito claramente na Constituição de 88, que tem partes extremamente avançadas. Todo o capítulo social é extremamente avançado, embora a ordem econômica tenha sido mais ou menos mantida. Mas a Constituição é tanto uma contradição que o que nós vimos foi a ação dos políticos neoliberais, dos governos neoliberais de tentar mudá-la, de extirpar dela aquelas conquistas que nós podemos chamar de democráticas. Eu acho que o Brasil hoje é uma sociedade liberal-democrática no sentido de que tem instituições, voto, partidos e tal. Mas, evidentemente, é uma democracia limitada, sobretudo no sentido substantivo. A desigualdade permanece.
Hamilton Octávio de Souza - Mas hoje o que está
mais estrangulado para o avanço na democracia ainda no marco de uma sociedade capitalista? Eu acho que a ditadura reprimiu a esquerda, nos torturou, assassinou muitos de nós, nos obrigou ao exílio, mas não nos desmoralizou. Eu acho que a chegada do Lula ao governo foi muito nociva para a esquerda. Ninguém esperava que o governo Lula fosse empreender por decreto o socialismo, mas pelo menos um reformismo forte, né? Eu acho que a decepção que isso provocou, mais toda a história do mensalão e tal, é um dos fatores que limitam o processo de aprofundamento da democracia no Brasil. Entre outras coisas porque o governo Lula, que é um governo de centro, cooptou os movimentos sociais. Temos a honrosa exceção do MST que não é assim tão exceção porque eles são obrigados... tem cesta básica nos assentamentos e tal, eles são obrigados também a fazer algumas concessões, mas a CUT... Qual a diferença da CUT e da Força Sindical? Eu acho que essa transformação da política brasileira em pequena política, que se materializou com o governo Lula, que não é diferente do governo Fernando Henrique, foi o fator que bloqueou o avanço democrático. Até 2002, havia um acúmulo de forças da sociedade brasileira que apontava para o aprofundamento da democratização, e o sujeito deste processo era o PT, o movimento social. Na medida em que isso se frustrou, eu acho que houve um bloqueio no avanço democrático na época. O neoliberalismo enraizou-se muito mais fortemente na Argentina do que no Brasil porque aqui havia uma resistência do PT e dos movimentos sociais. Com a chegada ao governo, essa resistência desapareceu. Então, de certo modo, é mais fácil a classe dominante hoje fazer passar sua política em um governo petista do que em um governo onde o PT era oposição.
Tatiana Merlino - Então a conjuntura seria um
pouco menos adversa se estivesse o José Serra no poder e o PT como oposição? Eu não gostaria de dizer isso, mas eu acho que sim. Mas isso coloca uma questão: e se demorasse mais quatro anos para o PT chegar ao governo, ia modificar estruturalmente o que aconteceu com o PT? Até um certo momento, é clara no partido uma concepção socialista da política. A partir de um certo momento, porém, antes de Lula ir ao governo, o
PT abandonou posturas mais combativas. Ele fez isso para chegar ao governo. Mas se demorasse mais quatro anos, ou oito anos, não aconteceria o mesmo? Não sei. Não quero ser pessimista também, não era fatal o que aconteceu com o PT.
Renato Pompeu - Você é professor de qual
disciplina? De teoria política.
Renato Pompeu - Você é um cientista político ou um filósofo da política? Não, não. Filósofo tudo bem, mas cientista político não. Porque ciência política para mim é aquela coisa que os americanos fazem, ou seja, pesquisa de opinião, sistema partidário, a ciência política é a teoria da pequena política. Eu sou professor da escola de Serviço Social. Hamilton Octávio de Souza - Que projeto que você identifica hoje no panorama brasileiro: a burguesia nacional tem um projeto? As correntes de esquerda têm um projeto? Existe um projeto de nação hoje? Isso é um conceito interessante, porque este é um conceito criado em grande parte pela Internacional Comunista e pelo PCB, de que haveria uma burguesia nacional oposta ao imperialismo. Eu me lembro quando eu entrei no partido, eu era meio esquerdista e vivia perguntando ao secretário-geral do partido na Bahia: Quem são os membros da burguesia nacional? E um dia ele me respondeu: “José Ermírio de Moraes e Fernando Gasparian”. Olha, duas pessoas não fazem uma classe. Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, estes partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista. Do ponto de vista das classes dominantes, eu acho que eles têm um projeto que estava claro até o momento da crise do neoliberalismo. Foi o que marcou o governo Collor e o governo Fernando Henrique e o que está marcando também o governo Lula, com variações. Evidentemente, há diferenças, embora a meu ver, não estruturais. Esse é o projeto da burguesia. Com a crise, eu acho que algumas coisas foram alteradas, então, uma certa dose de keynesianismo se tornou inevitável, mas sempre em favor do capital e nunca em favor da classe trabalhadora. Tenho um amigo que diz. “Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital”. No fundo, é essa a proposta do neoliberalismo: desconstrução de direitos, concessão total de todas as relações sociais ao mercado, subordinação do público ao privado, ao capital internacional. Não há burguesia anti-imperialista no Brasil, definitivamente. Pode haver um burguês que briga com o seu concorrente e o seu concorrente é um estrangeiro, mas nem assim ele vai ser anti-imperialista.
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Hamilton Octávio de Souza - Você vê alguma alteração a curto prazo? O que poderia mudar isso seria um fortalecimento dos movimentos sociais, da sociedade civil organizada sob a hegemonia da esquerda. E pressionar para que reformas fossem feitas e se retomasse uma política econômica mais voltada para as classes populares. Tem um mote de Gramsci que eu acho muito válido, que é: “pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. A esquerda não pode ser otimista numa análise do que está acontecendo no mundo porque a esquerda tem perdido sucessivas batalhas. Então ser otimista frente a um quadro desses é difícil. Quanto mais nós somos pessimistas, mais otimismo da vontade temos de ter, mais a gente deve ter clareza que só atuando, só dedicando todo o nosso empenho à mudança disso é que essa coisa pode ser mudada. Então, a esperança de mudança seguramente há, há potencialidades escondidas na atual sociedade que permitem ver e pensar a superação do capitalismo. O capital não pode perdurar. A alternativa ao socialismo, como dizia a Rosa Luxemburgo, é a barbárie. Se o capitalismo continuar, teremos cada vez mais uma barbarização da sociedade que nós já estamos assistindo.
vida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada. Marcelo Salles - Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialis-
mo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único... Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo, marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique, dizia o seguinte: liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão.
Hamilton Octávio de Souza - Por conta
do neoliberalismo, tivemos um aumento do desemprego estrutural, a informalidade do trabalho, o desrespeito à legislação trabalhista, estamos numa condição de perdas de conquistas, direitos. Como é que se explica a fraqueza do movimento social diante disso? A certeza que nós temos de que o capitalismo não vai resolver os problemas nem do mundo nem do Brasil nos faz acreditar que, primeiro, a história não acabou, e, portanto, ela está se movendo no sentido de contestar a independência barbarizante do capital. Onde eu vejo focos, no Brasil de hoje, é no MST. Uma coisa que funciona muito bem no MST é a preocupação deles com a formação dos quadros. Eu fui de um partido, o PCB, que tinha curso, mas as pessoas iam para Moscou, faziam a escola do partido. O PT nunca se preocupou com formação de quadros, não tinham escolas, e o MST tem. Eu acho que o MST tem uma ambiguidade de fundo que é complicada. Ele é um movimento social e, como todo movimento social, ele é particularista, defende o interesse dos trabalhadores que querem terra. Essa não pode ser uma demanda generalizada da sociedade. Eu não quero um pequeno pedaço de terra, nem você. O partido político é quem universaliza as demandas, formula uma proposta de sociedade que engloba as demandas dos camponeses, proletários, das mulheres... O MST tem uma ambiguidade porque ele é um movimento que frequentemente atua como partido. Eu acho que isso às vezes limita a ação do MST.
Marcelo Salles - O termo “Ditadura do
Proletariado” que vez ou outra algum liberal usa... Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resol-
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A R R E GU DO LIXO A R C A S MAS CATADORES
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Lúcia Rodrigues
A reciclagem do lixo pode ser uma fonte de geração de emprego e renda para milhares de pessoas. O governo federal disponibilizou R$ 5.9 milhões para a construção de 10 cooperativas na capital paulista, mas o projeto não sai do papel porque a Prefeitura de São Paulo emperra o empreendimento. Fotos Jesus Carlos
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iver do que os outros descartam tem sido a rotina de milhares de pessoas espalhadas pelo país e que fazem da coleta de material reciclável a fonte do próprio sustento e de seus familiares. Retirar o ganha-pão do que é jogado fora nada tem de humilhante e pode trazer dignidade para muita gente, dependendo da forma como o poder público encaminha essa questão. É preciso o empenho das prefeituras, que são as responsáveis diretas pela destinação dos resíduos produzidos pela sociedade. Assegurar a infraestrutura básica para a manutenção das cooperativas de reciclagem e a criação de novas unidades de triagem é elemento decisivo para que esse trabalho deixe de ser penoso e adquira o status de uma profissão como qualquer outra. Se engana quem considera, no entanto, que o lixo garante apenas a sobrevivência dos pobres. Ao contrário do que muitos imaginam, ele é fonte de riqueza para uma parcela expressiva do empresariado. Na cidade de São Paulo, duas concessioná-
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rias, EcoUrbis Ambiental S/A e Loga Ambiental de São Paulo S/A, dividem os recursos gerados pelo espólio do lixo que é produzido pela população. Mensalmente, a Prefeitura da capital paulista desembolsa R$ 48 milhões que são repassados a essas duas empresas pelos serviços prestados. A EcoUrbis, responsável pelo lixo das regiões leste e sul, tem entre seus acionistas majoritários a Construtora Queiroz Galvão, a mesma que participa da construção das linhas dois e quatro do Metrô paulista. A empreiteira era uma das responsáveis, junto com a Camargo Corrêa e OAS, pela obra da estação Pinheiros do metrô que desmoronou, em janeiro de 2007, matando sete pessoas, além de destruir a moradia de inúmeras famílias que residiam no entorno da construção. A outra concessionária, a Loga, é uma sociedade entre a Vega Engenharia Ambiental S/A, que possui 62,347% de participação acionária, e a Cavo Serviços e Meio Ambiente, que detém 37,653%. A Vega Engenharia surgiu a partir do
esfacelamento da Vega Sopave envolvida no escândalo de corrupção que ficou conhecido como a máfia do lixo da cidade de São Paulo, na década de 90. Em sua página na rede mundial de computadores a Vega Ambiental informa que foi constituída em 1997 e que herdou a experiência de sua antecessora, embora não faça alusão à Vega Sopave, apesar de ter mantido sua logomarca. A Vega Sopave possuía ligação com a construtora OAS, a Cavo pertence à empreiteira Camargo Corrêa. A promiscuidade nas relações entre concessionárias de lixo e empreiteiras se estende a uma fatia do poder público. Os dois segmentos empresariais, ao lado dos bancos, são identificados no cenário nacional como os principais agentes financiadores de campanhas políticas nacionais. Contra a Camargo Corrêa pesa ainda outra grave acusação: a construtora é identificada como uma das empresas responsáveis pelo financiamento da tortura e da repressão política contra os opositores da ditadura militar. Segundo relatos
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Concessão pública
Tanto a Loga quanto a EcoUrbis têm concessão da Prefeitura de São Paulo para operar os serviços na cidade até 2024. Em seu sítio na internet, a Ecourbis informa que é uma das maiores empresas do segmento na América do Sul nas áreas de coleta, transporte e destinação de resíduos. A empreiteira Queiroz Galvão encabeça a lista dos principais acionistas da empresa. Juntas, as duas concessionárias recolhem 15 mil toneladas do lixo que é produzido diariamente na capital. Deste total, 9.630 toneladas são de resíduos domiciliares. De acordo com dados apresentados pela Secretaria de Obras da prefeitura paulistana, ao qual está vinculado o Departamento de Limpeza Urbana, Limpurb, apenas 20% desses resíduos são passíveis de reciclagem. Mas o percentual efetivamente processado na reciclagem está muito aquém deste índice. A Prefeitura informa que 7% do lixo reciclável recolhido é destinado ao processo de triagem. O baixo percentual, mesmo assim, é questionado e desmentido por especialistas e pessoas que atuam na área de reciclagem. “Esse número não é real, chega muito menos material para os cooperados reciclarem”, sustenta a presidente da Cooperativa Granja Julieta, Mara Lúcia Sobral Santos. “A base de cálculo da Prefeitura de São Paulo está errada. O cálculo deve ser feito em outro patamar. Para se chegar ao percentual que uma cidade efetivamente recicla de seus resíduos, deve-se levar em conta o total do lixo produzido naquele município”, comenta Ana Maria Luz, do Instituto Gea – Ética e Meio Ambiente, organização da sociedade civil que presta assessoria na implantação de programas de coleta seletiva e reciclagem. A Prefeitura de São Paulo possui 16 centrais de triagem, ou cooperativas como os catadores preferem chamar, espalhadas pela cidade, onde aproximadamente mil pessoas trabalham na separação do material reciclável na condição de cooperados. Os números são irrisórios, perto da demanda de trabalhadores que querem atuar nessa área e das dimensões geográficas da capital paulista. As cooperativas, geridas pelos próprios trabalhadores, funcionam como agentes catalisadores na geração de renda. Antes da crise, algumas cooperativas chegaram a distribuir entre seus associados em torno de R$ 1.200 mensalmente. Mas a falta de vontade política por parte da Prefeitura de São Paulo na efetivação de novas centrais de triagem, inviabiliza o acesso de outras pessoas a essa possibilidade de trabalho e renda. A Prefeitura não se dispõe nem mesmo a receber os recursos que são oferecidos pelo Executivo federal para a implantação de novas cooperativas de reciclagem. O governo federal disponibilizou para a Prefeitura de São Paulo R$ 5.965 milhões do Orçamento
Geral da União, vinculados ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), para a construção de 10 galpões, equipados com prensas enfardadeiras, balanças mecânicas, carrinhos plataforma e empilhadeiras, mas a Prefeitura paulistana não demonstrou interesse em receber esses recursos. Em ofício encaminhado ao prefeito Gilberto Kassab, em 5 de maio de 2008, o secretário nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski, solicita que a Prefeitura entregue os projetos de engenharia e os respectivos planos de trabalho para a Gerência de Desenvolvimento Urbano da Caixa Econômica Federal, para a agilização dos empreendimentos. Além de não tomar as medidas necessárias para a efetivação das cooperativas, a Prefeitura de São Paulo solicitou que o governo federal reduzisse de 10 para cinco, o número de galpões a serem construídos e equipados. A Prefeitura também quer reduzir o tamanho das áreas dos terrenos onde serão construídas as novas cooperativas de reciclagem. O diretor de Desenvolvimento e Cooperação Técnica do Ministério das Cidades, Manoel Renato Machado Filho, em ofício encaminhado, em 23 de junho de 2009, à Caixa Econômica Federal, onde os recursos estão depositados à disposição da prefeitura paulistana, esclarece que o governo federal não aceita a proposta de redução do número de galpões, apresentada pela Prefeitura de São Paulo. “O Ministério das Cidades em momento algum abriu mão da quantidade de galpões a serem construídos.” Ele registra que o número de novas cooperativas foi acordado com o Movimento Nacional de Catadores. A única concessão feita é em relação à área dos terrenos. “Será aceita a redução máxima de 5% na área do galpão, desde que mantida a capacidade de processamento da unidade e a capacidade de inserção dos catadores anteriormente prevista”, enfatiza o texto. A contrapartida da prefeitura paulistana exigida pelo governo federal, para a efetivação do empreendimento, é a de que o Executivo municipal entre com R$ 228 mil. Os recursos federais conti-
FOTO Elza FIÚZA/ABr
de ex presos políticos, a Camargo Corrêa financiou, por exemplo, a implantação da Oban (Operação Bandeirante), embrião do famigerado DOICodi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um dos centros de tortura mais temidos do país, no final da década de 60 e início dos anos 70.
O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) critica a Prefeitura.
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nuam à disposição do município, mas a construção dos galpões não saiu do papel. Um número considerável de pessoas que poderia extrair o sustento dessas 10 novas cooperativas, se já estivessem em funcionamento, continua a ser penalizado pela falta de vontade política e até mesmo desprezo com que o Executivo municipal trata essa questão. “São Paulo está fora de seu tempo, não priorizou esse tema”, critica o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) ao se referir à ausência de uma política pública consistente por parte da Prefeitura de São Paulo, para a reciclagem do lixo da cidade. Teixeira teve um projeto de lei vetado em 2005, pelo então prefeito José Serra, quando o petista ainda era vereador na capital paulista. O projeto previa a possibilidade de contratação dos catadores pela Prefeitura. Se a lei tivesse sido aprovada, os catadores teriam o direito de receber um valor mensal da Prefeitura pelo trabalho que desenvolvem nas centrais de triagem de material reciclável. “A Prefeitura de São Paulo, ao invés de ajudar essas pessoas, só trabalha contra”, desabafa o deputado. Ele conta que o Executivo federal apresentou projeto para criar um marco regulatório nessa área e que em breve deve ser aprovado pela Câmara dos Deputados, em Brasília. Pela lei de saneamento, os catadores também podem ser contratados pelo Executivo, com dispensa de licitação. O descaso da prefeitura paulistana é total, não leva em consideração nem mesmo o papel de agentes ambientais que os catadores desempenham na cidade. Apesar de imprescindíveis, essas pessoas se tornaram invisíveis aos olhos do poder público municipal e da maioria da sociedade. Convivem lado a lado com os mais sofisticados automóveis, nas principais vias da cidade, puxando suas pesadas carroças sem chamar a atenção. Só são notados quando o peso excessivo de seus carrinhos abarrotados de material teima em fazêlos manter um ritmo mais lento do que o habitualmente tolerado nos tradicionais congestionamentos que paralisam o fluxo na cidade. “Às vezes somos xingados por alguns motoristas que acham que estamos atrapalhando o trânsito”, revela a catadora Vilma Conceição Lopes, de 42 anos e mãe de 11 filhos, sobre o comportamento de alguns condutores que se irritam com a presença das carrocinhas à sua frente. Vilma não está associada a nenhuma cooperativa de reciclagem. Ela recolhe o material individualmente pelas ruas do Grajaú, bairro pobre da zona sul, onde reside. “É tudo o que eu mais queria”, ressalta, enquanto puxa a carroça, ao se referir ao desejo de se tornar uma cooperada. Vilma mantém a família com a venda do que recolhe pelas ruas e com as doações que recebe. O marido faz bicos. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas vivem às expensas do lixo paulistano, em circunstâncias semelhantes à de Vilma, mas se considera que esse número não é pequeno. É uma legião de famélicos, que aumenta dia a dia em função das dificuldades impostas pela crise econômica. Trabalhar como catador é uma das únicas alternativas que restam para conseguir o sustento da família. dezembro 2009
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Atravessadores exploram trabalho de catadores A principal dificuldade enfrentada pelos catadores que não estão associados a nenhuma cooperativa e atuam de maneira isolada, recolhendo material pelas ruas, é conseguir superar a exploração do trabalho imposta pelos atravessadores, que intermedeiam a relação comercial entre eles e a indústria que processará os produtos recolhidos. A falta de escala (quantidade expressiva do mesmo tipo de material para ser vendido), aliada à ausência de um local para depositá-lo, torna essas pessoas reféns dos atravessadores, popularmente conhecidos como ferros-velhos. O nível de exploração da força de trabalho a que são submetidos esses catadores atinge índices inimagináveis e revoltantes. O preço pago pelo quilo da imensa maioria dos materiais recolhidos nas vias da capital paulista gira na casa dos centavos. Pelo quilo das latinhas de cerveja ou refrigerante, mais valorizadas, os donos de ferro-velho desembolsam R$ 2. São necessárias 75 latinhas para se conseguir atingir um quilo. A disputa pelo material nobre é acirrada. A crise econômica atingiu em cheio esses trabalhadores. O valor pago pelo preço do quilo dos produtos recolhidos, caiu drasticamente. O das latinhas despencou pela metade. “A latinha já chegou a R$ 4 o quilo”, relembra a catadora Vilma da Conceição Lopes. “Se não tivesse o atravessador, daria para ganhar mais”, conclui. Uma tarde de trabalho árduo percorrendo vários quilômetros de ruas e avenidas do bairro do Grajaú, debaixo de sol e chuva, rendeu a Vilma apenas R$ 3,50. O peso excessivo da carroça abarrotada de materiais impressiona os mais desavisados, mas ela sabe que o esforço não renderia grande coisa. Vazio o equipamento de trabalho, que antigamente era puxado por burros e não por seres humanos, pesa em torno de 20 quilos. A baixa remuneração não a faz desistir do serviço. Vilma recolhe até mesmo o material que é descartado pelo ferro-velho, só para não desagradar as pessoas que fornecem o material. “Senão o morador pode se aborrecer e não querer entregar mais nada”, enfatiza. Ela conta que consegue tirar em torno de R$ 100 por mês. Esse é o mesmo valor pago pelo aluguel do cômodo apertado, localizado praticamente dentro da Favela Rubi, no Grajaú, que ela divide com o marido e cinco filhos do casal: Taiane, de 2 anos, Tainá, de 5, Maria Ângela, de 6, Talita, de 8, e Ronaldo, de 10. O aluguel do mês passado está atrasado. “Meu armário estava vazio. É um sufoco danado”, afirma para justificar o porquê do atraso na conta. Enquanto a reportagem da Caros Amigos conversa com Vilma, ela recebe a doação de uma cesta básica e vibra. Corre para pegar o café e o açúcar que haviam acabado. “Não passo sem um cafezinho”, brinca.
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Ela percebe que não tem fósforos para acender o fogão, que fica do lado de fora do cômodo, por absoluta falta de espaço no interior da moradia. Vilma pede um isqueiro emprestado para um dos vizinhos. As crianças se divertem com as figuras de bichinhos de um dos pacotes de biscoitos que vieram na cesta. A ausência constante das guloseimas não as torna menos solidárias: oferecem os mimos para a reportagem. Antes da doação, na geladeira que funciona como armário, poucos alimentos para saciar a fome dos filhos: uma maçã, uma cenoura, um ovo, um pouco de farinha de mandioca, um pouco de aveia, meio saco de macarrão, quatro fatias de pão de forma, um garrafa de óleo, um pote com um pouco de arroz, uma travessa com comida preparada, uma pequena quantidade de linguiça e bife, dois litros e meio de leite e um potinho com tempero. Jornada dupla
A vida da mulher catadora é ainda mais difícil do que a do homem que atua nessa função. Além de recolher o material pelas ruas, elas têm uma segunda jornada no lar. Vilma não descuida da atenção com os filhos e o marido e da organização da casa, no caso um único e pequeno cômodo, que não possui mais do que 10 metros quadrados levando-se em conta um cubículo interno transformado em banheiro, que nem ao menos porta tem.
Tudo é improvisado. O cano da descarga é sempre uma incógnita e pode se transformar de uma hora para outra em um chuveiro quando a válvula é acionada. Uma das paredes do banheirinho representa uma ameaça bem mais perigosa e pode desmoronar a qualquer momento devido a uma enorme rachadura nos tijolos. “Morro de medo dessa parede cair. Meu sonho é ter a minha casinha”, revela. O antigo fogão também representou uma ameaça real à vida da família. Apesar de localizado do lado de fora do cômodo, por absoluta falta de espaço, vazava muito gás. “A mulher que doou tinha colocado durepox para fechar o furo”, afirma. Desse problema Vilma já se livrou, conseguiu outra doação para poder preparar as refeições. O cômodo em que vive é extremamente insalubre, praticamente não tem ventilação. Localizado vários metros abaixo do nível da rua, é preciso descer uma escada íngreme para se ter acesso à moradia, que conta com uma única porta e um pequeníssimo vitrô, além de ficar comprimida entre altas paredes e uma lona preta que ela colocou para impedir que a água da chuva avance para dentro da residência, já basta a goteira em cima da lâmpada que condena a família a permanecer no escuro quando chove, para se evitar que a fiação entre em curto. “Quando chove temos de ficar com a luz apagada”, ressalta. O ventilador, fruto de doação, torna o ambiente um pouco menos abafado.
A catadora Vilma Conceição Lopes caminha pelas ruas do Grajaú, na zona sul, a procura de material reciclável
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Praticamente ela ganhou tudo que tem dentro de casa. As exceções são a TV de 29 polegadas, que ela comprou com o dinheiro do Bolsa Família, programa do governo federal, e o DVD, comprado pelo marido. Além da geladeira adquirida de segunda mão por R$ 50 em uma igreja evangélica. “Comprei naquela igrejinha safada, que os pastores lavavam dinheiro. Queriam me cobrar R$ 100”, critica. O videogame doado pelo tio das crianças faz a festa do menino, que recebeu o nome em homenagem ao craque Ronaldinho Gaúcho. Ao saltar do andar de cima do beliche, onde dorme sozinho - três irmãs dividem a cama debaixo e a caçula dorme entre os pais no colchão jogado no chão - Ronaldo vai imediatamente para a frente da TV jogar videogame. Vilma não gosta de misturar os filhos. “Ele é homem”, reforça a preocupação da mãe, a menina Talita. O menino improvisa uma banqueta a menos de um metro da TV e se diverte sozinho com os jogos. Mesmo que quisesse não conseguiria ficar mais afastado do aparelho, sobra pouco espaço dentro do cômodo. Normalmente ele estuda de manhã, mas perdeu a hora nesse dia, porque ficou ajudando a mãe nos afazeres de casa durante a madrugada. “Eles nunca repetiram na escola”, fala com o orgulho de uma mãe coruja, enquanto prepara a caçula para levá-la para a creche. Vilma faz questão de levar todos os filhos na escola. A caçula é conduzida no colo por uma longa e íngreme subida. Só é colocada no chão na entrada do centro de educação infantil. “Eu subia esta ladeira puxando a carroça quando estava grávida de nove meses”, recorda, para demonstrar que não custa nada carregar a menina no colo. Além das cinco crianças, Vilma é mãe de mais seis filhos de dois relacionamentos anteriores. Um deles foi doado pelo ex-marido, sem que ela soubesse. “Eu estava em cima de uma cama de tanto que ele me batia”, afirma ao exibir marcas de cicatriz provocada pelas queimaduras do álcool seguido de fogo que o ex-marido ateou em seu corpo. A criança não havia nem sido registrada. A única informação de que ela dispõe é de que o menino mora em Santos. “Não lembro nem o nome que eu coloquei.” Vilma também não se recorda do nome da mulher que levou seu filho. “Sei que ela estava louca para ter uma criança.” Reciclando a vida
Vilma torce para que a Cooperativa Granja Julieta seja reaberta pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM) conforme ele prometeu na presença do presidente Lula, em outubro, durante a Expocatadores . A catadora sabe que sua vida poderá mudar radicalmente se conseguir trabalhar como cooperada. “A Vilma vai ganhar um salário digno e vai ter um horário de trabalho, não vai ser essa loucura que é hoje”, frisa a presidente da Cooperativa Granja Julieta, Mara Lúcia Sobral Santos. Mara é uma guerreira. Sua história de vida faz
jus ao nome da cidade onde nasceu na Bahia há 40 anos: Vitória da Conquista. A menina foi violentada pelo padrasto quando tinha oito anos de idade. Os abusos persistiram por quase um ano porque a mãe não acreditava no que ela falava. “Minha mãe achava que eu estava mentindo”, conta. Quando a mãe morreu, ela vai viver com as tias, mas a convivência não dá certo, e Mara vai parar nas ruas da região central da capital paulista, próximas à Praça da Bandeira. Perambula pelas ruas dos 11 aos 17 anos. Entra nas drogas, fuma maconha, cheira cocaína. A reciclagem foi a porta de entrada para que Mara resgatasse sua dignidade. Largou as drogas e nunca mais passou fome, depois que começou a trabalhar na cooperativa, que ela também preside. A vitória da conquista faz com que a baiana se emocione e chore por causa da recusa da Prefeitura de São Paulo a reabrir do local de trabalho. Mãe de 12 filhos, três biológicos e os demais adotados, ela conta que primeiro são servidas crianças e depois os maiorezinhos. Os mais velhos e ela só comem quando os demais estão alimentados e se sobrar comida. “Pensei que nunca mais fosse passar fome, depois que entrei para a reciclagem”, afirma, com lágrimas nos olhos. “Não vou aguentar outro final de ano como o de 2008. Ano passado dei uma panela de arroz para meus filhos comerem e eles foram dormir. Isso fere demais. O pobre não tem direitos. Eu odeio essas datas.” Lésbica e atéia, Mara enfrenta o preconceito na favela de maneira altiva. “A minha alma é de menino, só nasci no corpo de mulher.” A casa onde Mara mora com a família, na Favela Rubi, também é fruto de sua luta. Ela ocupou o terreno sobre um córrego, onde foi erguida a residência. Construiu parte da moradia, que desmoronou com o tempo. Apelou então para a solidariedade de um amigo que a ajudou a erguer os cômodos. O grau de consciência adquirido leva a pensar que ela tem nível superior em humanas. No entanto, Mara só estudou até o segundo ano do ensino fundamental. “A religião serve para fazer com que o pobre se conforme. Está assim porque Deus quer. Mas não é porque Deus quer, mas porque o governo não faz nada por você. Não acredito nesse Deus ditador, que condena as pessoas a serem pobres. A religião ensina a ser um conformado. A resposta não está em um Deus, mas sim no Estado”, teoriza. Dentro da favela, no entanto, Mara é quase uma voz isolada. A maioria das pessoas busca refúgio, para agruras do dia a dia, nas inúmeras igrejas que existem dentro da comunidade. A amiga Vilma acredita em Deus. “Sem ele nós não somos ninguém.” Em cima da estante improvisada de sua casa repousam quatro imagens de Nossa Senhora Aparecida. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br
“A Prefeitura de São Paulo, ao invés de ajudar essas pessoas, só trabalha contra”, desabafa o deputado Paulo Teixeira Novo sítio: www.carosamigos.com.br
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Gershon Knispel
A mentira e a verdade nas mãos da imprensa Hiroshima, 1945: Ameaça dos EUA aos futuros adversários
Enquanto soviéticos abraçam americanos, os EUA já haviam planejado o ataque atômico contra a URSS
O mundo todo protesta contra o armamento atômico dos EUA e seus aliados
A resposta do povo corajodo do Vietnã contra o “blitz” dos EUA
A FALSIFICAÇÃO DA HISTóRIA - 2 “A Guerra Fria e suja nos bastidores que reúne espionagem, corrupção e assassinatos da temida KGB”. Será?
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Abril lançou a revista “Aventuras na História” com três gigantescas letras metálicas na capa, para apresentar episódios relacionados à KGB, apontada como responsável pelo desencadeamento da “Guerra Fria” e suja. Mas no próprio roteiro da revista apareceram fatos reais que mudam o quadro completamente. Já no início se diz: “Desde que chegaram ao poder, os comunistas sempre enfrentaram a ameaça e, às vezes a tentativa direta de intervenção militar estrangeira. Britânicos e americanos patrocinaram os esforços de restauração do czar e as ações militares da revolta anticomunista detida por Lenin em 1919, e armaram o Exército Branco, na guerra civil de 1921.” Mais um parágrafo da revista, intitulado “Os espiões de Cambridge”: “Ainda nos anos 20, começou um plano do NKVD para infiltrar espiões no serviço de inteligência britânico. Jovens estudantes que seguiriam carreira diplomática ou nos órgãos de segurança e que manifestavam simpatia pelas idéias marxistas eram identificados e recrutados. Membros do Partido Comunista local eram descartados, pois nunca teriam acesso a dados internos do governo. Assim surgiu o grupo conhecido como os Espiões de Cambridge, quatro jovens que por quase 30 anos passaram segredos importantes aos contatos soviéticos na Europa. Guy Burgess (1910-1963), Anthony Blunt (1907-1983), Ronald Maclean (1915-1983) e Kim Philby (1912-1988) atuavam no Escritório de Contrainteligência e no Serviço Secreto de Inteligência britânico e foram responsáveis por revelar os projetos sobre a bomba atômica aos soviéticos. Permitindo o rápido acesso da URSS ao armamento nuclear, quando o presidente americano Harry Truman tinha sobre a mesa um plano de bombardeio a 32 cidades soviéticas, os espiões de Cambridge acabaram ajudando a salvar o mundo de uma catástrofe, já que os
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EUA desistiram da idéia temendo as consequências igualmente desastrosas”. O que vocês iam esperar dos dirigentes soviéticos diante dessa notícia de que estava sendo planejada uma guerra atômica contra a URSS e de que o destino dos habitantes dessas 32 cidades soviéticas estava em jogo? Incrível que planos desses já tenham sido planejados na mesma época dos abraços famosos entre oficiais aliados e soviéticos em Berlim. Há pouco tempo tivemos a oportunidade de acompanhar o famoso documentário do secretário de Estado Robert McNamara no tempo da crise dos mísseis cubanos, iniciada durante o governo de John Kennedy e que se agravou depois do assassínio de Kennedy, com a subida de seu vice Lyndon Johnson. McNamara descreveu, de uma forma que deixa os cabelos em pé, a facilidade chocante de pôr o dedo no botão que desencadeia o lançamento de bombas atômicas, já que a bomba atômica já tinha sido experimentada duas vezes, levadas por aviões B-52, contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Ethel e Julius Rosenberg Os responsáveis pela reportagem da revista da Abril preferiram ignorar o caso Rosenberg. A lembrança desse casal judeu americano, culpado dos mesmos delitos dos professores de Cambridge, não vou esquecer nunca. Não vou esquecer a noite de vigília que passamos a 19 de junho de 1953, quando enormes manifestaçõess de milhares de pessoas nas principais capitais do mundo protestavam contra a pena de morte na cadeira elétrica, exigindo do presidente Eisenhower a comutação da pena. Mas de tudo isso não resultou nada e o casal foi eletrocutado naquela noite. Se fala muito na revista da falsa acusação aos médicos judeus do Kremlin no mesmo ano. Mas esse episódio do casal judeu condenado nos EUA não é mencionado pela Abril.
Direitos da “Guerra Fria” Três causas deram origem à Guerra Fria: a primeira, o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, que era uma advertência para qualquer adversário dos Estados Unidos. Segunda, o mccarthismo. Ainda no fim dos anos 1940 o senador pelo Wisconsin, Joseph McCarthy, histericamente perseguindo dirigentes importantes do governo americano, intelectuais, professores de universidades, atores e diretores do teatro e cinema, escritores, poetas, maestros, os acusou de atuações comunistas e atividades contra os Estados Unidos, que punham em risco a “democracia americana”. Utilizando a Comissão Contra Atividades Antiamericanas, McCarthy liquidou a cidadania e os direitos de permanência no país de grandes personalidades, como o dramaturgo alemão Bertholt Brecht, asilado do nazismo, o escritor Prêmio Nobel Ernest Hemingway, o grande cantor e autor afroamericano Paul Robeson, Charles Chaplin, Orson Welles e muitos, muitos outros, que tinham a escolha entre serem expulsos do país, ou terminarem na prisão, ou se suicidarem. Do outro da barricada, o cineasta Elia Kazan e o ator Ronald Reagan entregaram os seus amigos na mão desses inquisidores, que foram chamados de “caçadores de bruxas” pelo dramaturgo Arthur Miller em uma sua peça. O grande jornalista Edward R. Murrow, com sua coragem fantástica, desmascarou McCarthy: “Sua grande conquista foi confundir a mente do público, bem como confundir a ameaça interna e a externa do comunismo. Não podemos confundir a dissidência com a deslealdade. Precisamos sempre lembrar que uma acusação não é prova e que a condenação depende das provas e do devido processo legal. Não seremos levados pelo medo a uma era de desrazão, se cavarmos fundo na nossa história e na nossa doutrina e lembrarmos que não descendemos de homens medrosos. (...)
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A expulsão de Chaplin e seus colegas dos EUA
“Nós nos proclamamos, como de fato somos, os defensores da liberdade, onde quer que continue a existir no mundo, mas não podemos defender a liberdade no exterior abandonando-a em nossa própria casa. As ações do jovem senador de Wisconsin têm causado alarma e desgosto entre nossos aliados no exterior, e reconfortado consideravelmente os nossos amigos. E de quem é a culpa? Não realmente dele. O senador não criou essa situação de medo: ele meramente a explorou – e com bastante êxito”. A terceira causa que deu origem à Guerra Fria remete a quem começou a organizar os blocos militares. Também nesse campo a iniciativa partiu de Washington. Diz a própria revista da Abril, citando Dmitry Trofimov, professor do Centro de Relações Internacionais da Universidade de Moscou: “Segundo ele, a polarização militar global ficou evidente em 1955, com a criação da Otan e, em seguida, do Pacto de Varsóvia. ‘Uma das primeiras atribuições da KGB foi atuar dentro dos aparelhos dos Estados satélites do bloco socialista, não só junto aos serviços secretos, mas também imprensa e organizações de trabalhadores’, diz Trofimov”. E a Guerra Fria, como qualquer guerra, avançou. Afirma a Abril: “Nem tudo acabava em perseguição e morte, mas tudo era guerra e o lançamento, em 31 de dezembro de 1968, do avião supersônico Tupolev TU-144 foi uma tremenda vitória anotada no caderninho da KGB. Dois meses antes, espiões soviéticos tiveram acesso aos planos do Concorde e colocaram o protótipo no ar antes que o modelo capitalista ficasse pronto. Assim, em 5 de junho de 1969, o Tupolev se tornava a primeira aeronave comercial a ultrapassar a barreira do som. “Nem todas as ações da KGB eram secretas. Em 1972, cerca de 100 consultores militares soviéticos foram enviados ao Afeganistão para treinar as forças armadas locais. Em 1978, os dois países já assinavam o acordo que permitia o envio de outros 400 militares. Em dezembro do mesmo ano, mais um papel que garantia a amizade e a cooperação mútua. Em 1979, o Exército Vermelho invadiu o país. ‘O presidente Hafizullah Amin, considerado incapaz de resistir aos rebeldes que lutavam contra o regime comunista local, foi morto durante a tomada do palácio presidencial pelas tropas trei-
O jogo muda: agora é a CIA quem espiona os segredos dos russos na conquista da corrida espacial
nadas pelo KGB’, diz Roger McDermott, professor da Universidade de Aberdeen”. E prossegue a revista: “A invasão foi um fiasco. Em 1986, a ajuda militar estrangeira já havia equipado os rebeldes com armamento pesado, inclusive os mísseis que tiraram dos soviéticos o controle sobre o espaço aéreo”. Ajuda militar “estrangeira”? Quem são esses “estrangeiros”? Bin Laden? A quem a revista quer enganar? Tudo isso sem mencionar os Estados Unidos no fracasso soviético no Afeganistão, enquanto o (ex?) agente da CIA Bin Laden, com forte apoio em armas sofisticadas, em conselheiros militares, levou para esse resultado terrível de fazer os talibãs triunfarem no país. Mais que isso, os próprios talibãs, com sua ação brutal no Afeganistão, e a decisão de Bin Laden de destruir as Torres Gêmeas em Nova York em 2001, deram aos americanos a oportunidade de mudar o espantalho do “comunismo” para o espantalho do “terrorismo muçulmano”, aguçando o seu apetite insaciável de conquistar o mundo. Essa tentativa de perseguir histericamente Bin Laden se tornou uma cruzada nova contra o terror islâmico e foi a desculpa para a blitz pirata de Washington e seus aliados, contra a posição da ONU, para liquidar a infraestrutura total do Iraque, com centenas de vítimas civis, e deixar como bandeja a presidência do país nas mãos dos xiitas, que têm a mesma visão dos xiitas que dominam o Irã, retirando do cenário os mais moderados sunitas, como Saddam Hussein. Afinal, debaixo das ruínas do Iraque jaz o petróleo, que é o que interessa para os Estados Unidos. Mas o alegado objetivo principal dos EUA – capturar Bin Laden – não se concretizou. Talvez nem mesmo fosse um objetivo americano.
Operação Condor Esse projeto nos é muito familiar, a nós sulamericanos. Apesar disso foi ignorado pela revista, embora faça parte da “Guerra Fria e suja”. Imediatamente depois do fracasso americano na invasão de Cuba em 1963, começou o plano da Operação Condor. Como num jogo de dominó, o plano da CIA era derrubar um atrás do outro os governos sulamericanos que haviam sido eleitos democraticamente, e pôr em seu lugar regimes militares. Começa-
Ethel e Julius Rosenberg: vítimas da “caça às bruxas” do maccarthismo
ram no Brasil em 1964, continuando em 1973 no Chile, com o assassínio do presidente eleito Salvador Allende, substituído pelo criminoso Pinochet: mais tarde na Argentina e em seguida no Uruguai. O projeto glorioso da CIA, de assassinar o Che Guevara na Bolívia, envolveu centenas de vezes de tentar liquidar Fidel Castro em Havana. Só no último mês foi divulgado como a CIA trabalhava nos bastidores em Cuba. Em livro recém-lançado, a irmã de Fidel Castro, Juanita Castro, radicada há décadas nos EUA, confessa que foi agente da CIA durante anos, sabendo que a agência pretendia matar seu irmão.
Agentes condenados na Itália O egípcio Osama Mustafá Hassan Nasr foi sequestrado em 2003 em Milão por agentes da CIA que o mandaram para uma base americana na Itália, depois para a Alemanha e para o Cairo, onde foi torturado. No mês passado, a Justiça italiana condenou 23 agentes americanos que participaram do sequestro a entre cinco e oito anos de prisão e 1,5 milhão de euros de multa. Se precisássemos de provas sobre a orquestração dos meios internacionais de comunicação para esquecer os crimes de Hitler e pôr todo o foco no demônio Stalin, essas provas estão hoje abundantes, quando começou a operação da euforia internacional, envolvendo a mídia do mundo inteiro na comemoração dos 20 anos da queda do Muro de Berlim, com isso reabilitando a Alemanha como vítima da separação “terrível”. Essa comemoração apresentou a queda do Muro como “o evento mais importante do século 20”. Os 70 anos da blitz alemã que começou na Alemanha e a destruição da Alemanha em maio de 1945, alguns meses antes que os EUA aprontassem as suas bombas atômicas, e a própria bomba atômica, a criação da ONU – tudo isso foi esquecido, como acontecimentos menos importantes do que a queda do Muro. Sobre o caráter do “mundo democrático” depois da queda do Muro, faremos comentários num próximo artigo. Gershon Knispel é artista plástico.
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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu
TEATRO, POLÍTICA, BELAS-LETRAS
– o que mais você quer para o Natal? No Natal deste ano em que faleceu Augusto Boal, não podemos nos esquecer de seu livro “Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas”, lançado originalmente em 1973, e depois recentemente relançado pela Civilização Brasileira, que reúne ensaios escritos pelo famoso e combativo diretor, ator e dramaturgo sobre seu modo de fazer teatro, inclusive teatro de rua com a participação dos transeuntes, sempre em defesa dos oprimidos. Seu teatro do oprimido foi mundialmente consagrado como maneira de tornar mais conscientes os oprimidos da origem das dificuldades que enfrentam na vida, e de tornar mais conscientes os opressores, que em muitos casos ignoram como seu estilo de vida e suas ações contribuem para arruinar a vida da maioria da população. Outro lançamento imperdível sobre teatro é “Bendito maldito – Uma biografia de Plínio Marcos”, publicado pela Leya, de autoria do diretor, ator e dramaturgo Oswaldo Mendes, também jornalista. Plínio Marcos foi um dos criadores brasileiros mais importantes do século 20 – também defendia tanto os oprimidos que seu coração vibrava pelo Jabaquara, time de Santos de história épica e trágica. Autor de “Navalha na Carne”, “Nas Quebradas do Mundaréu” e outros clássicos da arte popular no sentido mais nobre do termo, Plínio Marcos, que foi colaborador da Caros Amigos, desfila em toda a sua grandeza de vida e obra de grande autor perseguido pelos poderes vigentes, nestas 500 páginas bem documentadas e bem escritas por Mendes. Também não se pode perder “O teatro da morte”, publicado pelas Edições Sesc-SP e Perspectiva, com textos fundamentais do importante criador polonês Tadeusz Kantor, que deste o tempo em que fazia teatro clandestino de resistência na Polônia ocupada pelas tropas alemãs nazistas, revolucionou o teatro, com inovações como os passeios dos atores entre o público, transformando o auditório em extensão do palco, e a mistura de bonecos com atores vivos. O ex-marinheiro Moacir C. Lopes está comemorando 50 anos do lançamento de seu primeiro livro de ficção, “Maria de cada porto”. Talvez o ficcionista mais qualificado no Brasil para falar sobre os homens e as coisas do mar, dele estão disponíveis, pela Quartet do Rio (quartet@quartet.com.br), os romances “As fêmeas da Ilha da Trindade”, sobre o tumulto causado entre os marinheiros, únicos habitantes da remota ilha de nosso litoral, pela chegada de uma única mulher, a esposa de um desavisado tenente, e “Por aqui não passaram rebanhos”, onde entre as formações pétreas que lembram seres vivos, no Par-
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que das Sete Cidades, no Piauí, um homem encontra numa caverna uma mulher que o espera há três mil anos, e por ali passa um aguadeiro levando um jegue que carrega tonéis furados, dos quais jorram águas de que nasce uma floresta, abrigo de crianças que ficam adultas em poucos minutos. O primeiro é para quem gosta de situações extremas, mas verossímeis, o segundo é para quem tem saudades do realismo mágico. Um mal que vem para bem: o livro “Fascismo de esquerda – a história secreta do esquerdismo americano”, de Jonah Goldberg, editado pela Record, em que o autor procurou desmoralizar a esquerda em geral e o governo Obama em particular, por terem os mesmos programas sociais levados à frente por Mussolini e Hitler – saúde e educação públicas e gratuitas, aposentadoria garantida, pleno emprego, proteção à natureza, estatismo, etc. Goldberg dá pouca ênfase ao fato de que, no nazifascismo, grande parte das populações ficavam excluídas desses programas, os nãonacionais, como os judeus, comunistas, esquerdistas em geral, liberais, ciganos, imigrantes e seus descendentes, homossexuais, etc. etc., e que no nazifascismo esses programas sociais eram subsidiados por uma economia de guerra que fatalmente levaria à guerra. A esquerda tem repulsa pela exclusão e pela guerra. Se os objetivos de Goldberg são tortuosos, as informações que presta – sobre por que o nazifascismo tinha, e continua tendo, um apelo de massa – são muito úteis, principalmente porque a atual crise estrutural do capitalismo recria as mesmas condições que no passado fizeram o nazifascismo triunfar. Agora que transcorreram vinte anos da queda do Muro de Berlim, é particularmente útil refletir sobre “A reunificação da Alemanha”, relançamento da Editora Unesp, do cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira, brasileiro radicado na Alemanha e mais conhecido por seus trabalhos sobre as relações entre o Brasil e os Estados Unidos. Ele conta como as polícias políticas da União Soviética e da própria Alemanha Oriental colaboraram para o desmoronamento, por pressão popular, do regime comunista alemão, por este se opor às reformas propostas por Mikhail Gorbatchev. Tudo isso foi fartamente documentado por Moniz Bandeira em entrevistas com os principais atores do drama. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.
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Emir Sader
DEPOIS DA QUEDA A queda do Muro de Berlim e o fim do campo socialista provocaram uma das maiores transformações históricas – a passagem de um mundo bipolar a um mundo unipolar, sob hegemonia norteamericana. Fechava-se o período em que o socialismo, a partir da vitória da Revolução Soviética, tinha passado a ser alternativa real para setores crescentes da populacão mundial. O triunfo dos EUA na “guerra fria” trouxe outras consequências: - A vitória da interpretação ocidental sobre a história contemporânea: triunfo da democracia liberal sobre o “totalitarismo”; - O triunfo do “modo de vida norteamericano” sobre formas alternativas; - O predomínio das teorias do “fim da história”, isto é, de que já não haveria nada que superasse os marcos da democracia liberal e da economia de mercado; - O debilitamento da ideia de socialismo, mas também do Estado, das soluções coletivas, das formas de organização social – partidos, sindicatos, etc. – e da própria política, substituída pelo mercado. O socialismo saiu da agenda como alternativa concreta. Diante das mudanças radicalmente regressivas em escala mundial, a China avançou na direção de uma economia de mercado, enquanto Cuba tratou de se defender, com o “período especial”, para não retroceder. O Fórum Social Mundial se define como um espaço que luta contra o neoliberalismo e não contra o capitalismo.
No entanto, a passagem do modelo regulador ao modelo neoliberal promoveu a hegemonia do capital financeiro, que não conseguiu retomar um novo ciclo longo expansivo da economia capitalista, tampouco conseguiu estabilizar sua dominação, porque não gera as bases sociais de seu apoio e legitimação, dado seu caráter eminentemente especulativo. As crises regionais e nacionais se sucederam – na América Latina, as do México (1994), do Brasil (1999) e da Argentina (2001-2002) – até desembocar na crise global atual. Vinte anos depois, o mundo, sob hegemonia imperial norteamericana e do modelo neoliberal, não se apresenta como um mundo estabilizado e com expansão econômica. Ao contrário. Os EUA não conseguem fazer duas guerras ao mesmo tempo, o modelo neoliberal revela seu esgotamento. No entanto, não surge ainda no horizonte outra superpotência ou bloco de países que possam substituir a hegemonia imperial norteamericana, nem tampouco um modelo que possa substituir o modelo neoliberal, em escala global. Podemos prever que entramos em um período mais ou menos longo de instabilidade, em que uma hegemonia se esgota, mas outras têm dificuldades para se afirmar. Um período de turbulências – econômicas, militares -, até que se gerem as condições – progressivas ou repressivas – de superação da crise hegemônica em escala mundial. Emir Sader é cientista político
UM ROMANCE QUE MOSTRA O RIO DE JANEIRO POR DENTRO Faustini inaugura com Guia Afetivo da Periferia um novo gênero de literatura: a literatura memória do presente. Um conceito novo onde ele não mais representa suas lembranças de menino, mas atua no presente com uma viagem que se abre em infinitas possibilidades do percorrer, do transitar e do agir. Com a vantagem suplementar e deliciosa de ser extremamente bem escrito. Heloisa Buarque de Hollanda O movimento do texto de Faustini é sinuoso como suas trajetórias urbanas, e tortuoso como seu percurso existencial. A “realidade” flagrada por seu relato é reescrita ou mapeada pela memória, aqui menos caudalosa que em nossos memorialistas consagrados, como Pedro Nava, e mais sincopada, trincada, batida, trabalhada em ilha de edição, “sampleada”, talhada a marteladas rítmicas e descontínuas por um narrador-DJ. Luiz Eduardo Soares Faustini, com seu belo livro, nos guia nos universos da palavra, do corpo e do território; nesses movimentos singelos, ele nos encanta com sua humanidade, e enriquece a nossa. Jaílson Souza e Silva Este livro é mais que um “guia”, é uma espécie de GPS afetivo na mão de um jovem da periferia tomando posse da cidade. Ele caminha com as pernas “pensantes” de Leminski. E caminha atento ao que ela tem de ordinário, comum e, não obstante, de uma beleza visceral. É um livro para ser lido e/ou vivido. Écio Salles Guia Afetivo da Periferia é a Comédia humana que Balzac escreveria se andasse de 484 por Olaria, tomasse sol na pracinha de Inhaúma ou visse o pôr do sol de algum quintal da rua Aurora, ali na Penha. Rodrigo Fonseca Com Guia Afetivo da Periferia, Marcus Faustini vai ao ponto, colocando luz sobre uma geração que juntou Althusser com Stevie B., AC/DC e Machado de Assis, punks e cultura de massa; da Baixada à Barra, de Santa Cruz à Ipanema. Um universo poético, cruel – um flâneur altamente contemporâneo cruzando a Avenida Brasil. É um guia pra ler e experienciar. Heraldo HB
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Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2009
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Categoria: Região Norte
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Farmácia Nativa
Prefeitura Municipal de Belém
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PA
Telinha de Cinema – Modernização da Educação
Casa da Árvore
Palmas
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Categoria: Região Nordeste A Reserva Natural Serra das Almas e seu Modelo Integrado de Conservação da Caatinga
Associação Caatinga
Fortaleza
CE
Abordagem Sistêmica Comunitária
Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim
Fortaleza
CE
Cultivo Sustentável de Algas Marinhas
Fundação Brasil Cidadão para Educação, Cultura, Tecnolgia e Meio Ambiente
Fortaleza
CE
VENCEDORA
Categoria: Região Centro-Oeste Adolescentes Protagonistas
Instituto de Estudos Socioeconômicos
Brasília
DF
Canteiro Bio-Séptico
Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado
Pirenópolis
GO
Conexão Cheiro Verde – Modelo de Comércio Justo
Instituto Centro de Vida
Cuiabá
MT
VENCEDORA
Categoria: Região Sudeste
VENCEDORA
A Célula ao Alcance da Mão
Instituto de Ciências Biológicas da UFMG
Belo Horizonte
MG
Balde Cheio
Embrapa Pecuária Sudeste
São Carlos
SP
Vovô Sabe Tudo
Prefeitura Municipal de Santos
Santos
SP
Categoria: Região Sul
VENCEDORA
Caprichando a Morada
Cooperativa de Habitação dos Agricultores Familiares
Chapecó
SC
Produção e Preservação de Sementes Crioulas
União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu
Canguçu
RS
Trupe da Saúde
Universidade Livre da Cultura
Curitiba
PR
Categoria: Direitos da Criança e do Adolescente e Protagonismo Juvenil
VENCEDORA
Comunicação Participativa Juvenil para o Desenvolvimento Comunitário
Associação Imagem Comunitária
Belo Horizonte
MG
Método Quadros
Instituto Fonte para o Desenvolvimento Social
São Paulo
SP
Rádio pela Educação
Diocese de Santarém
Santarém
PA
Categoria: Gestão de Recursos Hídricos Barragem Subterrânea com Lona Plástica
Cooperativa de Serviços Técnicos do Agronegócio
Natal
RN
Pingo d’Água – Água para Beber e Produzir
Instituto Sertão Vivo
Quixeramobim
CE
Tanques em Lajedos de Pedra
Centro de Educação Popular e Formação Social
Teixeira
PB
VENCEDORA
Categoria: Participação de Mulheres na Gestão de Tecnologias Sociais
VENCEDORA
Gerando Renda e Transformando Relações de Gênero
Associação Difusora de Treinamentos e Projetos Pedagógicos
Curitiba
PR
Rede de Mulheres para Comercialização Solidária
Casa da Mulher do Nordeste
Afogados da Ingazeira
PE
Rede Industrial de Confecção Solidária
Guayi
Porto Alegre
RS
Parceria Institucional:
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Patrocínio:
Realização:
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