ano XIII número 154 janeiro 2010 R$ 9,90
Editoras enganam leitores com plágio
nas traduções
ENTREVISTA
Letícia Sabatella Uma atriz comprometida com as lutas sociais
Irmã Geraldinha Mais uma freira na
mira do latifúndio Partido Pirata
Contra as patentes do capitalismo O Estado terrorista no Rio Grande do Sul
Pedro Alexandre Sanches estreia com a coluna Paçoca
ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ BIANCA COSTA CAMILA ARÊAS CARLOS LATUFF CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA ISADORA ATAÍDE JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO VILELA GUSMÃO MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO MIGUEL ENRIQUE STEDILE PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO DORNELLES TATIANA MERLINO
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SAC CAIXA: 0800 726 0101 Informações, reclamações, sugestões e elogios 0800 726 2492 - Atendimento a deficientes auditivos 0800 725 7474 - Ouvidoria
( ) Paz ( ) Felicidade ( ) Casar ( ) Meu time campeão ( ) Carro novo ( ) Saúde ( ) Promoç
( ) A viagem dos sonhos ( ) Passar no vestibular ( ) Parar de fumar ( ) Minha casa próp concurso ( ) Um novo amor ( ) Casa na praia ( ) Sorrir mais ( ) Engordar ( ) Aprender com o cachorro ( ) Pôr o cinema em dia ( ) Mais chuva no campo ( ) Menos chuva na pr
banho de loja ( ) Correr uma maratona ( ) Criar um blog ( ) Um fim de semana sem celula
cidade grande ( ) Mudar para uma cidade pequena ( ) Mais tempo com a família ( ) Termin
( ) Escrever um livro ( ) Ter um filho ( ) Plantar uma árvore ( ) Começar o regime ( ) Term
( ) Andar mais descalço ( ) Comer jabuticaba no pé ( ) Voltar a jogar futebol ( ) Reform
irritar menos ( ) Um mundo mais sustentável ( ) Mais cooperação entre as pessoas ( ) Mai
( ) Fazer uma coisa diferente ( ) Trocar os móveis da casa ( ) Andar mais de bicicleta ( ) D
( ) Ver mais o pôr do sol ( ) Prosperidade ( ) Esquiar na neve ( ) Perdoar alguém ( ) Ir ao
hábitos ( ) Fé ( ) Esvaziar as gavetas ( ) Aprender um novo idioma ( ) Passar a tarde ve
( ) Contar histórias para os netos ( ) Vencer o medo ( ) Cumprimentar os vizinhos ( ) Reali
inesperada ( ) Rir dos próprios erros ( ) Dar um abraço gostoso na mãe ( ) Ouvir mais mú
a casa de amigos ( ) Agarrar uma oportunidade ( ) Ficar na janela olhando a lua ( ) Fa
( ) Descobrir uma praia nova ( ) Marcar o gol do título ( ) Pagar uma rodada para os amigo
de infância ( ) Fazer as pazes consigo mesmo ( ) Fazer um elogio ( ) Encarar um novo de
do aluguel ( ) Nunca mais usar o despertador ( ) Assistir aos shows que eu gosto ( ) Não
( ) Levar a academia a sério ( ) Ficar zen no trânsito ( ) Menos poluição ( ) Acreditar nos m
( ) Contar novas piadas ( ) Fazer uma boa ação ( ) Um basta na violência ( ) Aprender a
negócio próprio ( ) Melhorar a postura ( ) Escalar montanhas ( ) Mandar flores sem moti
solidário ( ) Fazer um trabalho voluntário ( ) Acordar mais cedo ( ) Ousar mais ( ) Dinh
entre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações ( ) Ir a um concerto ( ) P
filmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa ( ) Realizar o des ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Voar de asa-delta ( ) amigo de infância ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Viver mais aventuras
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( ) Promoção no emprego ( ) Sorte ( ) Acordar mais cedo ( ) O hexa ( ) Ganhar na loteria casa própria ( ) Emagrecer ( ) Aumento de salário ( ) Um emprego novo ( ) Passar no
Aprender a dizer não ( ) Arrumar o armário ( ) Manter a calma ( ) Ler mais ( ) Passear
huva na praia ( ) Rever velhos amigos ( ) Esperança ( ) Começar a malhar ( ) Tomar um
sem celular ( ) O fim das guerras ( ) Mudar o visual ( ) Morar no sítio ( ) Mudar para uma
a ( ) Terminar meu curso ( ) Conhecer a praia ( ) Conhecer outro país ( ) Um país mais justo
me ( ) Terminar um projeto ( ) Dormir mais ( ) Acordar mais cedo ( ) Fazer novos amigos ( ) Reformar a casa ( ) Alegria ( ) Dinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Me
as ( ) Mais entendimento entre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações
icleta ( ) Dar presentes ( ) Ganhar presentes ( ) Pintar um quadro ( ) Caminhar na chuva
m ( ) Ir ao estádio ( ) Ir a um concerto ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de a tarde vendo filmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa
s ( ) Realizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita
vir mais música ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Encher lua ( ) Fazer um churrasco com os amigos ( ) Tirar férias ( ) Visitar a Muralha da China 0?
em 201 a li z(a r) Reencontrar re r a os amigos ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado um amigo e u q cê o v e O qu se , E u s d e se jo s. á s d o sase rr a a trpara m novo desafio ( ) Tomar um banho de sol ( C) oViajar lua ( h)aUma IX Anova ( ) Sair , a C ATV
m ã o z in re ci sa r d e u m a p s fe st a s. um esporte to ( ) Não me preocupar com meu peso ( ) Deixar o cabelo crescer ( o)aPraticar o. B sm e m so is ra a p e st á a í
editar nos meus sonhos ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Respeito à natureza
prender a dançar ( ) Dar afeto ( ) Receber afeto ( ) Abrir uma poupança ( ) Começar um
s sem motivos ( ) Caminhar na praia à luz da lua ( ) Nadar com os golfinhos ( ) Ser mais
is ( ) Dinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Superação ( ) Mais entendimento
certo ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de hábitos ( ) Passar a tarde vendo
lizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita inesperada
-delta ( ) Pescar ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado ( ) Reencontrar um
aventuras ( ) Tomar um banho de sol ( ) Viajar para a lua ( ) Uma TV nova ( ) Acampar
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CAROS AMIGOS ANO XIII 154 janeiro 2010 Foto de capa Jesus carlos
sumário 04 06
EDITORA CASA AMARELA evistas • Livros • Serviços Editoriais R fundador: Sérgio de Souza (1934-2008) Diretor Geral: Wagner Nabuco de Araújo
Sobre lutas e resistências O coronelismo continua vivo, forte e impune. Em Salto da Divisa, município de Minas Gerais na fronteira com a Bahia, no Vale do Jequitinhonha, as famílias de trabalhadores rurais acampadas estão sob permanente ameaça dos latifundiários. A Irmã Geraldinha, freira católica, que atua no acampamento e defende a reforma agrária, está marcada para morrer. A jornalista Lúcia Rodrigues foi até lá para ver a situação dos sem-terra, ouvir os depoimentos sobre as ameaças e fazer um relato sobre a dura vida dos sem-terra e a corajosa resistência da Irmã Geraldinha. Em entrevista para o jornalista Miguel Enrique Stedile, no Rio Grande do Sul, o advogado Leandro Scalabrin, da Comissão de Direitos Humanos da OAB, denuncia o autoritarismo do governo gaúcho e as violências praticadas pela Brigada Militar nos últimos anos. Outra reportagem, de Camila Arêas, mostra a resistência dos imigrantes ilegais na França, que ocuparam prédios públicos para protestar contra o tratamento desumano que recebem naquele país. A atriz Letícia Sabatella conta – em entrevista exclusiva para Caros Amigos – um pouco de sua trajetória profissional, desde a primeira peça de teatro, em Curitiba, até o seu trabalho nas novelas da TV Globo. Conta também por que apóia, há anos, determinados movimentos sociais, inclusive o MST. Ela e outros atores criaram o Movimento Humanos Direitos, que presta solidariedade em várias frentes de luta. A repórter Gabriela Moncau desvenda as atividades e propostas do Partido Pirata, que foi criado na Suécia em 2006, está organizado em mais de 30 países, inclusive no Brasil, defende a liberação dos direitos autorais e faz combate cerrado às patentes do capitalismo. Outras reportagens, artigos e entrevistas completam a presente edição, reforçada também com a estréia da coluna do jornalista Pedro Alexandre Sanches, que promete mostrar as diversidades culturais do Brasil não contempladas pela mídia conservadora. Em frente!
Guto Lacaz. Marcos Bagno lembra que as línguas estão em permanente transformação. Mc Leonardo relata a guerra da audiência na TV em cima da violência urbana.
07 José Arbex Jr. analisa as dificuldades inéditas dos EUA na América Latina. 08 Joel Rufino dos Santos fala sobre José Lins do Rego e a vitória do Flamengo. Guilherme Scalzilli critica a fórmula que elitiza ainda mais o futebol brasileiro.
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Ferréz faz ficção em cima do faroeste preferido na guerra contra os pobres. Glauco Mattoso Porca Miséria: Soneto para uma conga. Eduardo Matarazzo Suplicy defende o projeto de Consolidação das Leis Sociais.
11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: uma viagem nas adversidades culturais. 12 Entrevista com Letícia Sabatella, uma atriz comprometida com as lutas sociais. 17 Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas: alucinaram a Internet. Cesar Cardoso faz um relato profundo sobre o que é lutar o bom combate.
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Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo. Ana Miranda declara todo o seu amor para Filomena Jardelina.
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João Pedro Stedile propõe o debate sobre um projeto para o Brasil em 2010. Emir Sader antecipa o que está em jogo na eleição presidencial de 2010.
20 Marcelo Gusmão fala da pesquisadora que identifica plágio na tradução de livros. 22 Gershon Knispel aponta mais uma falsificação da história na Segunda Guerra. 24 Ensaio Fotográfico de Carlos Latuff sobre “os palestinos da Amazônia”. 26 Lúcia Rodrigues denuncia as ameaças do “coronelismo” em Salto da Divisa (MG). 30 Entrevista com Leandro Scalabrin: “O Rio Grande do Sul vive um Estado de Exceção”. 33 Frei Betto propõe reflexões sobre a realidade e uma nova qualidade de vida em 2010.
Fidel Castro comenta a Revolução Bolivariana, a paz e os ataques do imperialismo.
34 Marcelo Salles entrevista Moacir Gadotti sobre o fórum da educação tecnológica. 36 Anelise Sanchez debate a situação das crianças encarceradas com suas mães na Itália. 38 Camila Arêas relata o esquema de perseguição aos imigrantes ilegais na França. 40 Isadora Ataíde fala sobre o trabalho de Pilar del Río, a mulher de José Saramago. 42 Gabriela Moncau relata a luta do Partido Pirata contra as patentes privadas. 44 Gilberto Felisberto Vasconcellos ataca o vampiro tucano entreguista. 45 Renato Pompeu Idéias de Botequim. 46 Claudius.
EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERes: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves revisora: Mariana Salzstein DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann PUBLICIDADE: Melissa Rigo CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Ingrid Hentschel, Elisângela Santana CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon Sítio: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau Assessoria de imprensa: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Priscila Nunes Alves, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.
JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242) diretor geral: wagner nabuco de araújo
CAROS AMIGOS, ano XIIi, nº 154, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf Redação e administração: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP
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caros amigos
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Caros leitores
Gostaria de parabenizá-los pela matéria sobre os Jogos Olímpicos de 2016 (edição 152) por apresentar o assunto através de uma visão abrangente. Apoiada em dados precisos tais como custos, antecedentes, tensões, interesses e agentes sociais envolvidos, nos permitiu perceber a gravidade da situação que se afigura para a cidade do Rio de Janeiro (e consequentemente para o país) nos próximos anos. Acredito, porém, que a contribuição de seu texto teria sido ainda mais preciosa se houvesse explicitado com mais clareza os vínculos de membros do governo federal com o empresário Eike Batista e a participação de ambos na empreitada dos Jogos Olímpicos. Herta Franco, hfnajm@uol.com.br
Eduardo Galeano É sempre bom ouvir ou ler o genial e criativo Eduardo Galeano (edição 152). Na esteira da sua entrevista, aproveito para corroborar as suas opiniões sobre o caráter belicista e terrorista da política norte-americana e a hipocrisia ianque quando fiscaliza os governos que mostram interesses ou já desenvolvem seus programas nucleares. Ao acenar para o mundo com o temor das armas, querem nos fazer esquecer de que até hoje foram só eles mesmos que jogaram bombas atômicas sobre os adversários. Alberto da Hora, Natal/RN
Ferréz O texto do Ferréz da edição 152 fala da triste situação em que se encontram os moradores do “lugar que um dia foi a favela Portelinha, no Capão Redondo...”. Francamente, quis acreditar algum tempo atrás que talvez existissem alguns bons policiais, mas estou desconfiada da sopa... as pessoas continuam vivas, Ferréz? Sei lá o que houve nesse dia, pois sabemos dos mandos e desmandos da polícia, especialmente nas periferias. Há uns anos atrás, em frente à casa da minha
mãe, houve uma dessas “batidas” e meu sobrinho foi revistado. Minha irmã, que estava perto, interferiu dizendo que ele morava ali naquela casa e perguntou se ela podia ir pegar a identidade. Um dos policiais a mandou se afastar e disse irônico: “seu filho está em boas mãos, está na mão da polícia”. Quando o policial o liberou, abaixou a calça do meu sobrinho, o empurrou na direção de minha irmã e disse “corre lá pra barra da saia da mamãe, sua bichinha”. Ontem, 26/11/2009, esse mesmo sobrinho, que hoje tem 22 anos foi parado de novo pela polícia. Enquanto era revistado, disse que era trabalhador e se eles queriam que fosse até a casa pegar a carteira de trabalho. O policial estendeu a mão para ele, como se fosse cumprimentá-lo e disse “é isso aí, muito bem, trabalhador.”. Ao invés do policial apertá-la, deu um forte tapa no rosto dele. Até quando a periferia será desrespeitada? Até quando a periferia vai ser considerada antro de bandidos? A periferia grita um grito silencioso. Ninguém escuta... Mara Reis, São Paulo/SP
Caros Amigos Há pouco tempo assinei a revista por simpatia à sua linha editorial. Sinto uma desintoxicação mental ao ler as matérias e entrevistas da edição 152. Além da apresentação gráfica refinada em novo papel. Continuem com esse perfil, divulgando um pensamento crítico independente chancelado pela credibilidade que o não alinhamento lhes privilegia. Cumprimento a todos, desejando boas festividades e continuidade nos anos que se aproximam. Silvio Roberto Santos, Canindé/CE
Povo Mapuche Gostei muito de ler sobre “el pueblo mapuche en lucha” na edição 151. Parabéns! A América Latina é esquecida dos jornais, revistas, rádios, televisões e universidades brasileiras. Quando no-
ticiam fatos, de modo geral distorcem a realidade. Também foi muito bom ler a entrevista com Galeano (edição 152). As lutas estão muito fragmentadas, índios lutam por suas cotas, negros do outro lado, proletárias e proletários sem união, sem saúde pública, gays em suas passeatas.. Felipe Silva, felipeluizgomes@terra.com.br
Emir Sader Sem dúvida, oportuna a crônica de Emir Sader, “Fracassomaníacos” (edição 151), ao lembrar a frase mal feita de Fernando Henrique Cardoso, FHC, sobre o Governo Lula: “o governo Lula acabou”. Agora, vem uma afirmação duvidosa e hipócrita, na Revista ISTOÉ, 25.11.2009, p.30, do mesmo FHC: “Que diferença há entre o meu governo e o de Lula? Muito pouco”. Fernando Henrique “pulou” de enfoque? Mas foi “chefe” de um Governo medíocre, que teve o Consenso de Washington mandando, quase matando o país. Felizmente, o Governo FHC não matou o país, pois as privatizações foram estancadas. Além de errada, a venda da Vale do Rio Doce foi feita a preços medíocres. José de Jesus Moreira de Moraes Rego, Brasília/DF
Monopólio do sacro Escrevo para parabenizar a revista, da qual sou leitora assídua, mas ao mesmo tempo me questiono por que é tão preconceituosa e parcial quando se trata de religião, principalmente a católica? Para demonstrar minha indignação com a campanha citada na reportagem “O monopólio do sacro” (edição 152), faço uso das palavras da psicóloga Renate Jost de Morais em seu livro “O inconsciente sem fronteiras”: “Nenhuma filosofia, nenhuma orientação religiosa ou política, nem mesmo as ciências humanísticas conseguem sustentar uma população sadia e alegre se suas bases não se assentarem sobre os princípios que nos foram legados pelo cristianismo...” Josane Manente Melhem, melhem12@brturbo.com.br
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falar brasileiro Marcos Bagno
Informações
Quem ri do quê?
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da guerra Há mais ou menos dois anos a rede Glo-
outras é a da 3a pessoa do singular, que ganha um -s (he lives), enquanto as outras permanecem idênticas (I, you, we, they live). No passado, tudo fica exatamente igual (I, you, he, she, it, we, you they lived). Ninguém se assusta com isso, ninguém ri disso, e muitos até acham bom que seja assim, porque é mais fácil de aprender do que nas línguas (como o português, o alemão etc.) que têm uma morfologia verbal bem mais diversificada. Qual é a reação, porém, desses mesmos brasileiros quando topam com algo do tipo eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, vocês morava, eles morava? O riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos “infelizes caipiras” que “não sabem falar direito”, como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes. Ora, do ponto de vista exclusivamente estrutural, não há nada de melhor em I / you/ he / she / it/ we / you / they lived nem nada de pior em eu / tu / você / ele / ela / nós / a gente / vocês / eles / elas morava... O fenômeno linguístico é o mesmo, a recepção sociocultural do fenômeno — e só ela — é que é diferente. E é aí que a porca torce o rabo!
bo vem perdendo audiência pra rede Record no horário da segunda edição de seu jornal local no Rio. E perde pra um programa apresentado pelo Deputado Wagner Montes, que condena as instituições defensoras dos direitos humanos e diz que polícia tem que “largar o aço” e “sentar o dedo”; entre outras opiniões absurdas, ele lamenta quando o acusado de ter atirado na policia não é morto e faz a festa quando o desfecho é sua morte. Pra não ficar pra trás, a rede Globo contratou no ultimo mês de novembro nada mais nada menos que Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE e agora comentarista da guerra urbana que vive o Rio de Janeiro. No documentário “Diário de uma guerra particular”, Pimentel foi perguntado sobre o que sentia quando matava um bandido na favela. Ele respondeu: “A sensação é só de dever cumprido”. No livro “Elite da Tropa” e no filme “Tropa de Elite” (ambos ele ajudou a escrever), Pimentel mostra algumas características da polícia do Rio de Janeiro: despreparada, torturadora, corrupta e assassina. Mas agora ele volta à cena como porta-voz dessa mesma polícia, legitimando a metodologia de implementação das chamadas UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora). Quem acha que moradores de favela não querem a polícia ali está enganado. O problema é que a polícia que eles veem fora da favela, que respeita as pessoas, nunca foi vista dentro. E as chamadas UPPs estão ignorando todos os tipos de direitos dos moradores das favelas que eles dizem estar pacificando. Na visão deles, os moradores têm que entender o momento de transição que estamos vivendo e aceitar tais abusos e excessos. Bom, tudo o que sabemos sobre o que se passa hoje dentro dessas favelas do Rio é através de cartas da Secretaria de Segurança, que vão pras redações de jornal; eles opinam da maneira que bem entendem. Como em qualquer guerra, quem tá no front não fala: nem o PM nem o favelado; só os senhores da guerra, através de seus poderosos veículos de comunicação.
Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br
Mc Leonardo é presidente da APAFUNK, cantor e compositor.
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
Uma das grandes contribuições da ciência linguística foi provar a existência de traços universais, presentes em todas as línguas humanas. E poderia ser diferente? Afinal, todos os humanos, apesar de diferenças externas, superficiais (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), são biologicamente uma única espécie, dotada das mesmas potencialidades cognitivas, já que o cérebro é o mesmo. Por isso, o grande Lévi-Strauss pôde elaborar uma antropologia que identificava o que há de comum, de similar e de universal nas culturas humanas, apesar das aparentes diferenças. Com isso, aprendemos que as línguas passam pelas mesmas etapas em suas transformações. A mudança linguística é um processo sociocognitivo, isto é, ela se deve a fatores sociais (variação dialetal, contatos entre falantes de línguas diferentes etc.) e a processamentos mentais (analogia, reanálise, metáfora, metonímia, abdução etc.) e ocorre ininterruptamente. Só que ocorre, em cada língua, com ritmos diferentes. Para o senso comum, porém, herdeiro de uma visão arcaica e pré-científica de linguagem, surgida no mundo grego no século III a.C., a mudança linguística representa a “corrupção” e a “degradação” da língua, sempre identificada exclusivamente com a língua escrita dos grandes escritores, como se não existisse a língua falada e como se a escrita não se manifestasse também em outros tipos e gêneros textuais. Essas ideologia preconceituosa impede que as pessoas (inclusive profissionais da linguagem, professores de línguas e, algumas vezes, até linguistas!) percebam fenômenos interessantíssimos que servem (ou deveriam servir) de base para muitas deduções importantes sobre o funcionamento das línguas. A cegueira (e a surdez) linguística se enraizou profundamente na cultura ocidental e os cento e poucos anos de vida de uma verdadeira ciência da linguagem ainda não foram suficientes para abrir as mentes, os ouvidos e os olhos da maioria das pessoas sobre o assunto. Os brasileiros vão estudar inglês e aprendem que nessa língua a morfologia verbal é simplíssima. No presente, a única forma diferente das
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José Arbex Jr.
Os infernos de Obama Sem acordo sobre Honduras: Arturo Valenzuela, o novo secretário assistente do Departamento de Estado dos Estados Unidos para o hemisfério ocidental, visitou o Brasil em 14 de dezembro, com o objetivo de forçar um acordo sobre o futuro de Honduras. Queria que o governo brasileiro endossasse a farsa eleitoral, em 29 de novembro, que conduziu Porfírio Lobo à presidência (segundo informações não confirmadas, Lobo é associado ao grupo católico fundamentalista Opus Dei). Ou que, pelo menos, emitisse uma declaração para atenuar sua condenação total do processo. Valenzuela saiu de mãos abanando. Marco Aurélio García, assessor para a política externa do presidente Luís Inácio Lula da Silva, tentou atenuar as discrepâncias em suas declarações à imprensa, mas reiterou a posição brasileira. Sinal dos tempos: historicamente, Honduras sempre foi a típica “república de bananas”. Está sob intervenção militar dos Estados Unidos desde 1904, quando marines foram convocados para esmagar uma revolta de camponeses contra o regime de superexploração da mão de obra imposto pela sinistramente famosa United Fruit e outras empresas que exploravam cultivos tropicais. Ao longo da Guerra Fria, e em particular nos anos 80, Honduras era conhecida como o “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”, pois o seu território era livremente utilizado pela CIA e por militares ianques para combater movimentos “inimigos”, como o governo sandinista da Nicarágua e a luta revolucionária em El Salvador. Hoje, Washington mal consegue articular um golpe de Estado em Honduras. É um fiasco. A “ala combativa” dos governos latino-americanos (Venezuela, Bolívia, Argentina, Paraguai, Equador, Nicarágua e, claro, Cuba) condenou inequivocamente o golpe, ao passo que os governos vassalos (sobretudo, Colômbia e México) se calaram, para em seguida reconhecerem o resultado da farsa eleitoral. A posição do Brasil, nesse contexto, tornou-se muito importante para Washington. A manifestação favorável de Brasília poderia compensar a condenação pela maioria esmagadora dos governos do hemisfério ocidental. Mas Lula, ao menos até o momento, não cedeu. E os atritos com Valenzuela não se limitaram a Honduras. O emissário de Barack Obama foi obrigado a ouvir de García que o Brasil tampouco aprova o recém-assinado acordo de Washington com Bogotá, que permite
aos Estados Unidos manter centenas de soldados e civis em até dez bases militares daquele país, pelos próximos dez anos. No auge da “crise das bases”, Lula pediu a Obama que explicasse o acordo numa reunião de cúpula da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Obama não aceitou. Finalmente, outro ponto da conversa girou em torno da visita ao Brasil, em novembro, do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. A recepção oferecida por Lula produziu ataques histéricos por parte da secretária de estado Hillary Clinton. Independentemente das razões que levam o governo Lula a assumir uma posição de resistência ao imperialismo estadunidense, quando já cedeu tantas vezes ao longo dos últimos seis anos, o fato é que Washington enfrenta dificuldades inéditas para manter a lógica da Doutrina Monroe. Desde 1823, quando o presidente James Monroe anunciou a sua doutrina, o hemisfério sul é tido como uma espécie de “quintal” dos Estados Unidos, sua “área de influência”, fora do alcance das outras potências colonialistas. O único país que desafiou a doutrina e conseguiu manter a sua soberania foi a pequena ilha cubana (e por isso não é perdoada por Washington). Até anteontem, a hegemonia estadunidense absoluta. Há menos de duas décadas, a Casa Branca pôde ordenar a invasão de Granada (1983) e a do Panamá (1989) sem encontrar qualquer resistência. Hoje, até mesmo o governo Lula, saudado por Barack Obama como alguém “da turma”, enfrenta com palavras e atos a petulância ianque. A Doutrina Monroe agoniza, e este é um dado central, especialmente numa conjuntura mundial em que a disputa pelo controle das reservas de petróleo, minérios, água e biodiversidade tende a ser um marco determinante do século 21. A agonia da Doutrina Monroe, com o consequente alargamento das fissuras entre governos latino-americanos e Washington, abre a possibilidade do desenvolvimento do movimento de massas, em escala jamais vista (como já foi anunciado pelo papel de liderança dos povos originários). Além disso, o enfraquecimento da hegemonia estadunidense na região abre o espaço para o surgimento de alianças e diálogos até há pouco impensáveis (por exemplo: o diálogo entre Venezuela e Irã, ou mesmo a relativa autonomia com que o Brasil recebeu o presidente iraniano). Mas afirmar que a Doutrina Monroe agoniza não
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significa, de modo algum, que ela deixou de existir, ou que seus estertores serão breves. Ao contrário. A agonia do Império Romano durou dois séculos, pelo menos, e produziu muitas mortes e sofrimento. Washington não entregará facilmente a rapadura, e tanto o acordo com a Colômbia, a “ressurreição” da Quarta Frota, também denunciada por Lula, e o próprio golpe em Honduras são claros sinais disso. Sob Obama, a política imperialista dos Estados Unidos mantém toda a agressividade exibida sob George Bush. A diferença é o sorriso na cara. Obama acaba de ser agraciado com o Nobel da Paz, uma indicação muito forte de que os governantes europeus tentam reunificar a “sagrada aliança” com os Estados Unidos, única potência capaz, hoje, de assegurar as condições minimamente necessárias ao funcionamento do capitalismo. A permanência da Otan, uma aliança militar que, formalmente, perdeu sua função com o fim da Guerra Fria, é a expressão militar da “sagrada aliança” contemporânea. Obama quer comprometer ainda mais as forças da Otan – isto é, das potências europeias centrais, incluindo Alemanha, França e Ingalterra - no Afeganistão, como usa a Otan como ponta de lança contra a Rússia, encarada pela Casa Branca como grande rival pelo controle da Eurásia. As tentativas de incorporar a Ucrânia e a Geórgia, bem como os acordos militares com a Polônia e a ofensiva contra o Irã são expressões dessa política, que, aliás, não é nova: foi anunciada, em 1992, por Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de segurança nacional no governo Jimmy Carter, no livro “The Grande Chessboard – American Primacy and its Geoestrategic Imperatives”. Mas a reviravolta na América Latina não estava nos planos de ninguém. Nem mesmo Brzezinski, com toda a sua inegável capacidade de estrategista, pôde detectar esse “pequeno imprevisto”: os povos da América Latina, incluindo a pequena Honduras, são capazes de dizer não. Trata-se de uma dessas peças que, de vez em quando, a luta de classes prega nas potências hegemônicas, permitindo que o improvável se torne possível. Obama já enfrenta o inferno no Afeganistão. Ele que se cuide na América Latina. José Arbex Jr. é jornalista. janeiro 2010
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amigos de papel Joel Rufino dos Santos
Time pobre
A maldição chinesa
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não tem vez
A fórmula de pontos corridos represen-
Ele é do tempo de Leônidas e Zizinho, grandes artistas que tiveram popularidade máxima, mas pouquíssimo ganharam. Aquele foi o tempo da “cultura do populismo”, anterior à sociedade do espetáculo, em que havia canais de comunicação entre os poderosos e os de baixo. A sociedade era igualmente injusta, mas ainda as ideias e sentimentos das elites faziam algum sentido para os demais. O rádio não era, como é a televisão, um motor de produzir alienação e humilhação diária dos pobres. Gosto de uma maldição chinesa: “Tomara que vivas numa época interessante”. O leitor sabe que esta coluna é sobre livros. Não crítica de livros, mas um mergulho impressionista no seu interior, o que nos tem levado à Grécia, Rússia, Dores do Indaiá, Medellín, Chicago, Teresina... Às vezes o roteiro é inverso, parto de acontecimentos para livros. Hoje, parti do moribundinho da Providência para uma maldição chinesa. Joel Rufino é historiador e escritor.
ta a definitiva elitização do futebol nacional. Em sua vigência, as melhores colocações do Campeonato Brasileiro serão sempre ocupadas por clubes que receberem os maiores repasses financeiros, enquanto competidores menos favorecidos lutarão contra o rebaixamento e consolações efêmeras. Esse fato inquestionável tem sido minimizado pela crônica das capitais, graças ao título aparentemente imprevisível do Flamengo e a fracassos isolados de outros poderosos. Mas em nenhum caso a tendência geral do modelo foi contrariada. Qualquer processo classificatório permite milhares de métodos, todos sujeitos à interferência de arbitragens tendenciosas, tribunais abjetos, influências diversas. Ainda que houvesse debate aberto e desapegado sobre novas estratégias de competitividade (por exemplo, o sorteio de atletas promissores, nos moldes dos “drafts” da NBA americana), qualquer moralização do esporte passaria necessariamente pela distribuição equitativa das verbas milionárias oriundas de patrocínios e transmissões televisivas. O sistema atual, defendido como o mais “justo”, legitima uma estrutura viciada, onde as cotas definem previamente o encaminhamento da disputa. As disparidades resultantes, imensas e decisivas, inviabilizam qualquer ilusão de equilíbrio: eis o mecanismo que se esconde no elogio à regularidade dos clubes bem sucedidos. Ora, nada contrariará o mito da “competência” dos vitoriosos enquanto os adversários estiverem inferiorizados desde o início. Os privilégios transformam as competições longas e desgastantes em farsas destinadas ao regozijo de uma aristocracia imutável que domina os bastidores da cartolagem. Por isso há tanto medo das surpresas possibilitadas pelo sistema de grupos, ou “mata-mata”, com decisões sucessivas. O monopólio não admite o imponderável. Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
Numa de suas memórias, Zé Lins do Rego conta como se apaixonou pelo Flamengo. Chegado ao Rio, começou a frequentar estádios de futebol, a escrever, aqui e ali, sobre o clube. Uma noite lhe bate na porta um senhor negro com um pedido: o filho estava desenganado pelos médicos e queria porque queria falar com o escritor. Zé Lins estranhou e, embora ainda não vivêssemos a paranoia de hoje, quando o homem lhe disse que morava no Morro da Providência, pensou em recusar. O pedido, porém, lhe pareceu tão insólito, o homem tão sincero, que topou. Era no topo do morro. O garoto estava com a barriga aberta, não viveria muito. “Pedi pra trazer o senhor aqui pra lhe fazer um pedido. Que o senhor mande cobrir o meu caixão com uma bandeira oficial do Flamengo, pra que ao verem meu enterro passar, meus amigos digam: Foi Flamengo até morrer”. Me lembrei dessa história no dia em que o Flamengo foi campeão brasileiro de 2009. Não é triste só porque um menino estava morrendo, mas por revelar (ou esconder, se o leitor preferir) uma forma de dominação espetacular da sociedade brasileira: a paixão popular explorada por empresários, cartolas e comunicadores esportivos – a legião de J. Hawilas, Márcios Bragas e Galvões Buenos. O vídeofutebol é um composto de patrocínio, merchandising, comercialização de jogos e direitos de imagem. Os pioneiros, há cinquenta anos, foram os irmãos alemães fabricantes de calçados, Adolf Dassler (Adidas) e Rudolf Dassler (Puma), o primeiro hábil em se ligar a grandes cartolas como João Havelange (daí a suspeita de que a Copa de 98 teria sido vendida pela Nike, patrocinadora da seleção brasileira, à Adidas, patrocinadora da França), o segundo a grandes estrelas como Pelé. Uma das empresas do ramo se chama Traffic Sports, o nome é ótimo. O que eles compram barato e vendem caro? A paixão do torcedor. A contar do profissionalismo no Brasil já vão perto de oitenta anos. Cada jogo da Champions League, dos campeonatos espanhol, italiano e inglês, da Copa do Mundo, retransmitidos para o mundo inteiro, é um negócio da China. Zé Lins foi um homem apaixonado, fazendo muitos amigos e inimigos. O futebol só se tornou negócio da China após a sua morte.
Guilherme Scalzilli
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Ferréz
Ficcionando A REALIDADE Os carros pretos chegam. Homens mascarados com rostos aparentes, com armas e coletes. A polícia pisa no lixo, passa pelo córrego, corre pelas vielas, avança pelos barracos, patenteia o espetáculo. Também acessível para quem quiser ver em um jogo de Playstation. Ao vivo, ao vivo, chama o moto link! Se fosse em São Paulo, seria só na hora do programa do Datena, o efetivo da policia só trabalha nesse horário. Mas é Rio e é 40 graus. Corpos magros, sem camisa, descalços, não vão abastecer a mercadoria do turista, não vão aliviar a tensão do empresário, não vão fazer rir o futuro arquiteto, não vão deixar mais alegre a festa de formatura, hoje não, hoje eles correm, e enquanto correm pensam em ter artigos da Ecko. Mulheres correm, crianças andam, balas passam, lojas fecham e fazem o balanço do que vão deixar de ganhar. O espetáculo continua, alguns colocam vendas para não ver, outros olham para o mar, outros criam taxas e mais impostos para um dia se mandar. Entulho, madeira queimada, pneus, carros velhos, fumaça, pipas no céu, ameaças, laquê e canetas Mont Blanc. Há alguns meses um jovem corria de um helicóptero, da TV Sony todo mundo assistiu almoçando, como se fosse às olimpíadas... do Faustão. Tiros, o jovem preto-pobre-traficante caiu. Palmas! Está salvo o Brasil. No outro dia o assunto era o clima. Arruda e seus milhões não dão ibope, não parece filme do Rambo.
O desbarrancamento, as mortes, não é culpa do estado rico, é culpa dos moradores, que deixam os esgotos caírem nos morros. O povo é culpado. Você já viu como andam quentes esses dias, Lia? Claro, Alfonso, está infernal. O repórter formado na FAAP não vai mais aproveitar a carona no helicóptero da polícia. A emissora que pertence à LIFE não vai sobrevoar aquele amontoado de tijolos vermelhos vendidos no Armazém Gonsales. As Casas Bahia não vão subir o morro, a Marabraz e seus relógios do Zezé de Camargo e Luciano não vão mais abrir uma filial ali. Tudo isso não será mais feito, pelo menos até as armas, entre elas a Uzzy, serem recolhidas, potentes armas, potentes empresas que sabem distribuir no terceiro mundo, segundo em vendas de cosméticos e primeiro colocado no ranking internacional de combate à fome. Agora a preocupação são as armas, nem pessoas, nem moradores, nem viciados, nem inocentes consumidores que tanto nutrem tudo isso. O perigo são as armas. Indignada, pisando na lama, em volta da fumaça, num calor infernal, com cheiro de pólvora e suor no ar, rodeada por menores e não meninos, por “supostos” bandidos e não por moradores, a repórter com sobrancelha definitiva, vestindo Gucci esbraveja: – O que está acontecendo, por que estão fazendo isso com o Rio de Janeiro, o que há de errado? Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.
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Eduardo Matarazzo Suplicy
porca miséria! Glauco Mattoso
Soneto para uma conga [1733]
sas para as quaes nunca achei solução, seja amarga ou doce, foram os gazes accumulados e a prisão de ventre. Dahi tirei a conclusão de que certos soffrimentos precisam ser encarados como parte da nossa existencia, typo um karma ou estigma. Que nem a classe politica na sociedade: é o cancer inextirpavel e perenne. Mas si nenhum producto faz effeito para alguns males, resta-nos a trilha sonora do annuncio radiophonico. No caso do sal de fructa, era uma conga cuja lettra dizia: “Alka Seltzer, existe apenas um, e como Alka Seltzer não pode haver nenhum...” Até me lembra algo “differente de tudo que está ahi”... E para a propaganda politica, qual seria a trilha? Marcha funebre ou marchinha carnavalesca? Masochismos à parte, prefiro aquella mais facil de dançar...
tou aos seus ministros Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, e Tarso Genro, da Justiça, que apresentem um anteprojeto de Consolidação das Leis Sociais – CLS. O propósito é consolidar o conjunto de normas sociais existentes desde a Constituição de 1988 e, sobretudo, desde o início de seu primeiro Governo, em 2003. A iniciativa guarda relação com a Consolidação das Leis do Trabalho editada, em 1943, pelo Presidente Getúlio Vargas. Em entrevista ao O Estado de S. Paulo, em 11.10.09, o ministro Tarso Genro informou que a CLS englobaria projetos definidos em lei como ProJovem; ProUNI; Bolsa Família; Minha Casa, Minha Vida; Pronasci e outros baseados em decretos e portarias. Esses se tornariam obrigação legal para os próximos governos. O Presidente Lula sancionou, em 8 de janeiro de 2004, a Lei 10.835/2004, que institui a Renda Básica de Cidadania – RBC, cuja proposição foi aprovada consensualmente por todos os partidos no Senado Federal, em dezembro de 2002 e, na Câmara dos Deputados, um ano depois. Essa Lei se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros aqui residentes há pelo menos cinco anos, não importando a sua condição socioeconômica, receberem uma renda que será igual para todos, suficiente para atender as necessidades básicas de cada pessoa, tendo em conta o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias. O parágrafo primeiro da Lei da RBC dispõe que sua implementação será realizada por etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se os mais necessitados. O Programa Bolsa Família constitui o primeiro passo na direção de alcançarmos a RBC para todas as pessoas. Nos próximos dias 30 de junho e 1 e 2 de julho, na FEA-USP, será realizado o XIII Congresso Internacional da BIEN-Basic Income Earth Network, ou Rede Mundial da Renda Básica, ocasião em que estarão presentes pensadores dos cinco continentes que abraçaram esta causa. O presidente Lula fará a palestra de abertura. É grande a expectativa acerca de sua exposição sobre como o Brasil, após consolidar o Bolsa Família para um quarto de sua população, instituirá a Renda Básica Incondicional.
Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.
Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.
Ao Sonrisal, ou algo semelhante, um Eno, um Alka Seltzer, emfim um sal de fructas, antiacido a quem jante demais: é effervescente e não faz mal... Sem contraindicações, esse pó branco não é como a tal dança em solavanco que lhe serviu de rhythmo commercial... A conga embrulha o estomago, si for dançada no seu maximo vigor, mas quem é dado a pós acha normal...
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Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva solici-
De tanto virar thema musical em scenas de comedia, essa dançante e sacudida moda ao Sonrisal foi logo associada, dalli em deante...
Soffrer purifica, segundo os religiosos. Soffrer excita, segundo os masochistas. Para uma creança, que não tem noção de peccado nem de orgasmo, soffrer é só o que vem antes do allivio. Quando eu me machucava e mamãe passava alcohol na ferida, minha reacção era repetir, chorando, o dictado que ella usava: o que arde, cura; o que aperta, segura. Por isso não me conformei quando me disseram que agora o Merthiolate não arde mais. Não sei si eu usaria um remedio que não fosse ruim, como o oleo de figado de bacalháo ou o cha preto sem assucar. Quem sabe a iniciação sexual ou espiritual não estaria na pharmacopéa tradicional? Mas tudo na vida admitte excepções. Ao lado da injecção na bunda e do motorzinho do dentista, sempre existem as compensações, typo xaropes assucarados ou saes effervescentes. Sempre achei que o lado bom das indigestões era o momento de jogar num copo d’agua aquelle pozinho magico que nos faz arrotar de satisfacção... As unicas coi-
A Consolidação das Leis Sociais e a Renda Básica
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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches
O palco está montado sob uma lona de
circo, e a estrutura de picadeiro borra a distinção entre palco e plateia. O palco ainda fica um nível acima (seriam semideuses os astros pop?), mas a plateia a todo momento parece que vai subir, tomar de assalto a ribalta, raptar a esposa do palhaço, roubar o show. Uma moça de pele escura, aspecto hippie e graciosos gestos de bailarina oriental, dança concentrada diante do palco, um degrau abaixo, não importa que estilo musical esteja passando ali por cima. Tece evoluções com o auxílio de uma canga, e na canga, que dança mais que a moça, está inscrita em letras garrafais a palavra Brasil. O circo está armado na cidade de Vitória, e o que evolui no palco é um festival de rock, integrado à programação do II Fórum de Mídia Livre. No picadeiro e nos auditórios da Universidade Federal do Espírito Santo, onde acontece o encontro, alternam-se músicos sem gravadora, jornalistas sem jornalão, fazedores de mídia sem Globo. Um globo da morte faria as vezes de cabine para os DJs, mas, que pena, os circenses donos da lona precisaram dele para outro evento. Jards Macalé sobe ao palco para se apresentar com um jovem grupo capixaba, Sol na Garganta do Futuro. Macalé gosta da molecada, é daqueles artistas que preferem atravessar fronteiras geracionais a morar isolados em globos blindados no centésimo andar. Põe seu clássico “Vapor Barato” na garganta do futuro e retribui com uma versão bem peculiar de “Diz Que Fui por Aí”, sucesso antigo na voz da carioca nascida no Espírito Santo, Nara Leão. Para espanto de meus ouvidos e olhos acostumados com São Paulo, a plateia, formada majoritariamente por jovens, canta em coro os versos do samba de 1964. “Antiarte” é o negócio da banda Vitrola de três, segundo um de seus integrantes, Felipe Costa. “Sempre ouvi música árabe na casa do meu pai e da minha avó, porque eles são libaneses. A percussão é quebrada, é uma música nômade, de cigano, essa coisa toda de circo”, afirma o músico, esmiuçando o número circense-musical de sua trupe. A Vitrola de três vem do interior do Espírito
Santo, mais precisamente de Cachoeiro do Itapemirim. É a cidade onde nasceu um tal de Roberto Carlos – que, a propósito, cantava em circos no início de sua mais tarde platinada carreira. Também capixaba, de Alegre, era o ex-alfaiate Paulo Sérgio, que se tornou ídolo seguindo os passos bregapop de Roberto e morreu precocemente em 1980, aos 36 anos, após um derrame sofrido durante um show num... circo. Ao final da apresentação da Vitrola de três, pergunto a Felipe sobre o fantasma de Roberto Carlos. “Eu esculacho ele um pouquinho... Mas é bom saber que ele é de Cachoeiro”. “Esculacha por quê, em quê?”, “não sei, isso mesmo de o cara... se acovardar talvez... de repente começa a achar que está bom, que vai pro céu, o cansaço que deve dar... mas acho o som dele gostoso, quando ouço”. Rock e homofobia costumam ser primos em primeiro grau, mas cá em Vitória uma travesti subirá ao palco e conquistará no muque um público rock’n’roll. Angela Jackson canta no duro, em geral paródias do tipo transformar o refrão de “A Lua Me Traiu”, da excelente Banda Calypso, em “a peruca caiiiiiiu”. “Eu nunca vi ainda uma travesti médica”, dispara a loirísisma cantora, ensaiando breve atitude de protesto em meio a um show de gargalhadas e aplausos. No auditório, o debate é sobre “a morte do pop star”. À mesa (da qual eu também participo), o produtor Pablo Capilé elabora belas imagens sobre os artistas “midialivristas” espalhados em rizomas horizontais, contra a árvore centenária e decadente chamada indústria musical. E eu penso nas Torres Gêmeas quando o vejo desenhar com as mãos a estrutura vertical caduca, demolida, pisoteada pelo presente efervescente em que vivemos. Pablo, tez de índio matogrossense, celebra o “artista-pedreiro” (“o artista-pedreiro entende que sucesso é pagar as contas”) e rega sua fala com uma frase genial: “Hoje o engajamento não é mais ‘caminhando e cantando e seguindo a canção’. É ‘caminhando e cantando e carregando caixa’.” Paranaense radicado em São Paulo há dezoito anos, me assombro com a constatação recorrente de que lugares que tenho visitado, como Vitória e Belém, respiram um vigor cultural esquecido pelo eixão Rio-São Paulo. Quando um
roqueiro do Sol na Garganta do Futuro empunha de repente um violão, entendo que o pop e o rock, em Vitória, são moldados em MPB. Romperam diques e preconceitos que certas capitais tentam atravessar ainda constrangidas. Entendo em Vitória e em Belém que a adversidade é a grande riqueza brasileira. E torço para que, por isso, a cultura paulista volte em breve a ficar interessante. Afinal, São Paulo se isola cada vez mais e é vista de fora com desprezo e pena, e essas são as condições adversas de que terá de se safar, se não quiser submergir de vez no leito imundo do pobre rico rio Tietê. Um garoto de 18 anos de idade quebra o barraco no picadeiro dos DJs. André Paste é um mestre precoce na arte do mashup – justaposição caótica de estilos, batidas e músicas que, em meia hora de som, se desenvolvem como se tudo fosse uma música só, feita de um milhão de deliciosos farelos. André recombina referências tão diversas quanto Djavú, Michael Jackson, funk carioca, kuduro africano, tecnobrega paraense, Cansei de Ser Sexy, Daniela Mercury, Novos Baianos, Fábio Jr. (a melô “Só Você”, dentro da qual se ouve o grito funkeiro “pau no cu do mundo!”), o hoje cult Luiz Caldas (“Haja Amor”), Wando, Olodum misturado com Guns n’Roses... Nenhuma toca do modo ortodoxo, começo-meio-fim; todas deixam gosto de quero-mais, no refrão que não chega ou passa rápido demais. O espetáculo não pode parar: depois do palhaço virão a trapezista, o domador, a cabra ciclista, a girafa seresteira. Converso com André ao final de sua sensacional aparição. Seu sorriso se estende de orelha a orelha quando explica que, sem exagero, gosta de tudo, de todo tipo de música. Mas ele acha que não, não tem futuro na música, não. Eu duvido, mas deixo-o partir na velocidade da luz – afinal é madrugada e amanhã André tem de acordar cedo para as provas do Enem. O mais surpreendente é que a música para esse menino já não se divide em brasileira e estrangeira, “brega” e “chique”, binômios assim. André desliza numa explosão simultânea de excesso de liberdade e completa ausência de preconceitos. E esta, acredite, é a receita infalível para a grande música brasileira que virá nestes promissores anos 2010. Pedro Alexandre Sanches é jornalista.
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“Caminhando e cantando e carregando caixa”
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entrevista Letícia Sabatella
Uma atriz comprometida com as lutas sociais Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos
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onhecida por seu trabalho de atriz, no teatro, no cinema e nas novelas da TV Globo, Letícia Sabatella tem também uma sólida história de compromisso com os movimentos sociais, em especial o MST, e com as lutas em defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Em 2003 participou do lançamento do jornal Brasil de Fato, no Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre; em 2007 foi solidária com a luta de Dom Luíz Flávio Cappio contra a transposição do Rio São Francisco; em 2008 dirigiu o documentário “Hotxuá” sobre os índios krahôs, no Tocantins. Participa de várias entidades e do Movimento Humanos Direitos, que reúne artistas, jornalistas e outros profissionais comprometidos com as questões sociais. Nesta entrevista exclusiva para a revista Caros Amigos, Letícia Sabatella fala sobre a sua carreira e o que pensa do Brasil. Vale a pena conhecer as suas posições.
Tatiana Merlino - Vamos começar por onde você nasceu.
Letícia Sabatella - Eu nasci em Belo Horizonte,
e com dois anos fui morar em Volta Grande. Meu pai trabalhava lá ajudando a construir a usina de Foz do Areia. Meu avô também era engenheiro e ajudou a construir o teatro Guaíra, em Curitiba. Meu pai veio de lá e conheceu minha mãe no sul de Minas, em Itajubá. Ela vem de uma família muito ligada à fazenda.
va e trazia uma semente diferente de algum lugar e sempre com a memória das avós que ainda estão vivas e trazem essa tradição. Em Curitiba, o quintal da casa da minha avó é o teatro Guaíra e em Itajubá, quando a gente ia para Minas mesmo, era a fazenda da família.
Hamilton Octávio de Souza - A família toda é
Hamilton Octávio de Souza - Onde foi a tua
de Minas? De Minas... E sempre tinha essa questão, da saudade de terra, de fazenda, de natureza e eu sempre gostei. Meu pai conta que ele passou a infância em um sítio, com música, plantando... A tia que o criou atendia os pobres da região com homeopatia. Eles eram kardecistas. Ainda tem essa tradição na família do meu pai, na da minha mãe é católica, mas com esses valores. Meus pais sempre me levaram muito para a natureza, a gente sempre recolhia muito bicho em casa. Minha mãe tem uma habilidade enorme com plantas. E eles criavam plantas, pesquisavam flores, meu pai viaja-
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A atriz Letícia Sabatella, concede entrevista à Caros Amigos no dia do lançamento do Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, no Sesc Paulista, em São Paulo.
infância? A minha infância foi nesses universos, de Curitiba e sul de Minas. Muita música, dança...
Hamilton Octávio de Souza - Você estudou
onde? Em Curitiba. Fiz formação de teatro e dança lá.
Hamilton Octávio de Souza - Você fez ensino
fundamental lá? Tudo lá. Fiz um pouco em Belo Horizonte, até os 2 anos e em Volta Grande a gente estudou na vila com os operários. Minha mãe dava aula lá.
Tatiana Merlino - Você disse que tinha muita
música e dança. Você estudou muita música e dança ou tinha na sua casa? Tinha muita música em casa, minha mãe e meu pai sempre cantando. Minha mãe canta muito. Ela também dava aula para crianças da minha idade. Eles adoravam minha mãe porque era uma pessoa que sempre estimulava essa coisa de turma. Tinha esse colorido, em Itajubá a família também tinha um bloco de carnaval enorme, assim de rua. Cidade de interior, com muita coisa na rua, muita festa na rua.
Tatiana Merlino - E teatro, quando você
começou a estudar? Teatro foi em Curitiba, com 14 anos. Entrei em um grupo de teatro chamado “Alma Nua” que acontecia no colégio de uma tia minha, o Dom Bosco.
Hamilton Octávio de Souza - A tua carreira de atriz começa com este grupo de teatro?
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A primeira peça que eu fiz foi com o grupo “Alma Nua”, o diretor era o Luiz Carlos Teixeira da Silva. Eu só cantava na peça. Foi em 85, eu tinha 14 anos, depois fui para o colégio para fazer teatro. Aí comecei a fazer aula no coral sinfônico do Paraná, depois a fazer faculdade de teatro e com dois anos de faculdade eu já sai de Curitiba para trabalhar.
Gabriela Moncau - Trabalhar onde? Eu fui fazer “Os homens querem paz”, um especial da Globo.
Tatiana Merlino - E foi aí que você entrou para a Globo? Foi. Primeiro a gente tinha um grupo também. A gente tocava em um bar e estava juntando dinheiro para tocar lá em Itapema. Aí me chamaram para fazer o teste para Teresa Batista, uma minissérie, que depois virou um especial. Depois eu tive que fazer uma novela, e tive que mudar para o Rio mesmo. Tatina Merlino - Você sempre quis trabalhar na
televisão? Não era o que eu tinha como objetivo não. Como eu estava em Curitiba e havia uma distância, não é uma coisa que você pensava: “ah televisão é ali”. Para mim não era assim. Era bem distante. Mas a gente tinha influência de grandes artistas, de músicos, de escritores, de poetas, de teatro, de cantores de ópera. Então eu acho que a gente perseguia um pouco essa formação. Mas acho que antes de pensar em televisão, perseguíamos algumas pessoas que tinham lá mesmo, como atores bons e montagens que a gente via, trabalhos que tinham na assinatura um sotaque cultural de lá. Tinha uma coisa bastante universal, como as óperas que a gente fazia o coro, os balé, muita música clássica... Era impressionante o quanto lotava o Guaíra para assistir ópera.
Hamilton Octávio de Souza - Quem era a tua referência de atores? Ah! A gente tinha montagens lindas, o Marcelo Marchioro é um diretor que fez coisas que influenciaram muita gente, o Raul Cruz, um artista plástico impressionante que também fazia teatro, a Laura Schneider já era musa lá e tinha as montagens do Dalton Trevisan, de textos dele. Tínhamos muitas cantoras de ópera... Hamilton Octávio de Souza - E na televisão quando foi que você começou? Em 90. Tatiana Merlino - E a primeira novela que você
fez qual foi? Foi o “Dono do Mundo”, em 91.
Gabriela Moncau - E você tinha quantos anos na época? 20 anos.
Tatiana Merlino - E como é que foi entrar para
Globo? Como era a sua relação com os outros artistas e com os autores das novelas? Neófito, coisa de quem estava vendo pela primeira vez e descobrindo aquilo. Eu sei que quan-
do eu comecei a fazer o especial, que a gente foi para o Nordeste por 12 dias. Eu achei bem difícil, mas achei muito mágica a linguagem. Comecei trabalhando com o Luiz Fernando Carvalho e ele tinha uma proposta séria com televisão, super exigente. A novela foi muito interessante de fazer, mas eu não queria fazer ela naquele momento porque exige uma agilidade, porque o ritmo é de indústria. Tem uma qualidade dramatúrgica interessante. Muitas vezes tem novelas que questionam coisas que movimentam de um jeito a cabeça do grande público, e você pensa: “Nossa, é uma arte”. Só que o ritmo de se fazer é muito acelerado, né? Eu comecei fazendo a novela, aí no começo eu fazia cinco cenas por semana. Depois, na segunda semana eram 20 cenas por dia, muda completamente. Não existe aquilo que você pensava de: “vou fazer uma peça, estudar meses, ler todos os livros daquele autor, ver filmes, vou me inspirar, ouvir música, vou me alimentar de coisas para entrar nesta personagem, construir esta história junto”. Fazer televisão é outra mágica. E é muito Commedia dell’arte, eu brincava com isso. Algumas novelas foram assim. Em “O Clone”, a gente montou uma trupe de Commedia dell’arte no começo e aí o texto entrava e a gente só ia brincando e improvisando. Ás vezes você consegue aproveitar dessa agilidade para fazer alguma coisa com essa linguagem. O Amir Haddad até fala que tem certas personagens na televisão para as quais tem que se pagar taxa de insalubridade. Você adentra em uns universos em um ritmo e com um tratamento que fica às vezes até superficial em virtude do que exige de conhecimento.
Tatiana Merlino - Quantas novelas você já fez? Não sei, tem que contar...
Tatiana Merlino- Mais ou menos, 15? Não, deve chegar a 10.
Gabriela Moncau - Você disse que tinha o teatro muito mais como referência. Por quê você fez essa escolha de entrar para a TV? Era uma situação de que para ter uma independência como ator você não recusa personagem. Surgiu um trabalho em uma minissérie, que é uma coisa legal. Então eu pensei: vou fazer uma minissérie e depois volto e continuo estudando, e aí outro dia eu vou lá e faço outra minissérie. Só que aí não foi assim, né? Eu acabei tendo um contrato, tive que cumpri-lo, e aí virou uma novela e não foi uma minissérie. Mas depois disso eu parei, fiquei com um contrato só com obras que eu fizesse e parava mesmo, por conta própria, para estudar. Claro, tem momentos legais fazendo a novela e eu tive condição de estudar com esse dinheiro. Tatiana Merlino - O que você estudou nestes intervalos? Ah, de tudo que eu pude. Todas as oficinas que apareciam que dava para fazer de pessoas legais de voz, de corpo, várias coisas, de palhaço. O próprio documentário foi um estudo, né? Ir até a tribo lá, terminar a faculdade que não tinha terminado.. [Letícia dirigiu o documentário “Hotxuá”,
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filme sobre a tribo indígena Krahô, localizada no estado de Tocantins]
Gabriela Moncau - Que época você foi lá para
Tocantins? Quando eu fui lá pela primeira vez, a minha filha Clara tinha dois anos. Foi 95 ou 96, eu acho. Aí depois eu fui para filmar em 2000 e alguma coisa.
Gabriela Moncau - Você foi direto para a tribo dos índios krahô? Dos índios krahô... Gabriela Moncau - E por que você foi a primeira vez? Para conhecer, e a gente foi fazer uma peça de teatro também. A gente ficou em um sítio trabalhando, estudando, trabalhando butô e fazendo estudos. E fomos estudar temas indígenas. Daí tivemos a oportunidade de conhecer esta tribo dos krahô. Passei por vários rituais. Foi uma experiência fascinante ver uma cultura milenar, que na época estava extremamente abandonada. Eles estavam perto de uma cidadezinha, Itacajá, e os índios eram muito malvistos como pedintes, mendigos... Eles não sabiam quem éramos, então passamos despercebidos até que as pessoas da cidade descobriram que estávamos lá e começaram a querer ir para a aldeia. Aí eles começaram a perguntar: “vocês aparecem na televisão, vocês são artistas?” Só que eu estava ali diante de uma cultura milenar, aquilo doía de ver. As coisas mais utilitárias deles têm bomgosto. Tudo é arte, o tempo inteiro é arte. Quando tem que fazer um ritual para comer uma comida em conjunto são três dias de cantoria seguida. Você vai até entrando em transe de ouvir aquilo. Hamilton Octávio de Souza – É um
documentário, é isso? É um documentário.
Hamilton Octávio de Souza - Qual é o nome do documentário? “Hotxuá”, que é o palhaço sagrado da aldeia.
Gabriela Moncau - Você pode contar um pouco dessa experiência? Vocês foram para lá já para filmar o documentário com essa ideia? Não, a primeira vez não. Fui para conhecer a aldeia e conhecer danças sagradas indígenas. Hamilton Octávio de Souza - Isso foi iniciativa de quem? Isso foi iniciativa minha. Eles me pediram ajuda para fazer registros. Hamilton Octávio de Souza - Foi você quem
dirigiu o documentário? Eu e o Gringo Cardia.
Hamilton Octávio de Souza - E esse
documentário passou em algum lugar? Ele está percorrendo festivais em vários lugares fora do Brasil e aqui também já foi para alguns festivais. Foi até para um festival muito bacana agora, o de Cuiabá, que é um festival com indígenas. Fomos para janeiro 2010
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a Bahia, para Tiradentes, agora eu estou indo para Porto Velho onde eu vou encontrar outras etnias.
Hamilton Octávio de Souza - E essa
experiência, o que significa? Até como atriz eu aprendi fazendo esse documentário. Você vai pesquisar o palhaço originário de uma tribo e ao mesmo tempo faz a edição disso. Você vai lidar com ilha de edição, tecnologia de HD que é alta definição. Então você junta dois pontos, consegue compreender e amplia horizontes também. Em uma experiência destas você aprende muito. Também é uma contrapartida social poder fazer isso. E para mim é um ganho. Fazer este documentário que é um estudo fantástico.
Tatiana Merlino - Você tem outros projetos
paralelos ao seu trabalho como atriz na televisão? Eu acho que sim. Existe vida em toda parte, fora da Globo. Mas tem várias coisas que de algum modo, ali eu tive a sorte de também ter um canal para explorar, como quando a gente fez o “Hoje é dia de Maria” que também tinha um trabalho de corpo, de voz, assim como o do teatro... Mas todos os projetos que eu tenho são relacionados a isso. Eu gosto muito de trabalhar com as comunidades, de juntar essa relação do trabalho da terra junto com o trabalho artístico, mas usar também para preparação para algum trabalho de canto, ou de corpo, ou de teatro. Então eu acho que no futuro eu tenho vontade de juntar essas coisas.
Tatiana Merlino - Qual você acha que é a
função social do artista? Ah, essa é uma pergunta superlegal. O palhaço da aldeia é tão importante quanto o cacique ou o pajé para a sobrevivência da aldeia. Eu gosto muito de usar o “Hotxuá” como referência. Ali a autoestima da aldeia se preserva graças à ação dele e é um espaço de transcendência das dificuldades, de transcender os limites que você acaba tendo que absorver na sua existência, assim como os limites de você conviver numa estrutura social. E o ator, mesmo com a proposta do entretenimento do palhaço, do humor, ele vai propor essa transcendência de muitas opressões também. Ele ter um senso crítico sobre várias autarquias e muitas posturas autoritárias podem ser quebradas ou bloqueadas. Eu acho que pode ser espaço para reflexão. Na Grécia Antiga eles receitavam até peças de teatro para os doentes. Na aldeia, o documentário mostra isso muito claro: ensinar você a absorver coisas difíceis para a sociedade. O palhaço às vezes ensina você a amar coisas que são muito diferentes. Muitas vezes ele é a figura que vai encarnar esse não tão bem visto, ensina o certo através do errado, acho que mantém a integridade em manter a auto estima.
Hamilton Octávio de Souza - Esse tipo de
trabalho tem grandes contradições? Como você vê o papel da telenovela? Agora eu fiz uma novela com uma autora que não vê sentindo em fazer novela que não tenha alguma campanha, alguma proposta social que é a Glória Perez. Nas duas novelas que eu fiz com ela, “O Clone” e
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essa de agora, em algum momento ela vai propor reflexão. Quando ela foi falar dos intocáveis da Índia, ela pensou em casos de esquizofrênicos que vê como casos de intocáveis também. Eu vejo ali um potencial conscientizador muito forte em uma novela, ou alienador. Eu acho que é como tudo na nossa sociedade, a gente tem as duas possibilidades.
Hamilton Octávio de Souza - Dos vários
papéis que você fez, qual te agrada mais? Qual novela você acha que tem uma mensagem que combina mais contigo? Quando eu fiz “O Clone” foi muito legal fazer humor. Eu tinha mais vontade de fazer comédia de costume também, e achei muito legal fazer. Nessa novela especificamente aumentaram o número de pessoas que procuraram se tratar de dependência química.
Hamilton Octávio de Souza - Eu não me
lembro do “Clone”. Que personagem você fazia? Eu fazia uma mulçumana que tinha uma identificação enorme com as donas de casa, com as mulheres brasileiras. Apesar dela ser mulçumana, vivia com problema com relação ao marido poder ter outras esposas.
Tatiana Merlino - E como foi fazer essa última personagem que era uma vilã? Ah, deu trabalho.
Tatiana Merlino - É a primeira vilã da sua
carreia? De uma novela é. Recentemente eu fiz uma diaba sexual no “Hoje é dia de Maria”, mas era um papel muito pequeno.
Tatiana Merlino - Então foi muito trabalhoso? Foi. Tinha que pensar demais, e eu não penso muito. A personagem pensava muito mais que eu para fazer as coisas, então eu tinha uma baita dor de cabeça. Acho que era um personagem para fazer em duas horas ali, como no teatro. Mas nesse ritmo assim de TV, ter que controlar as emoções para poder ter a frieza da personagem, isso era muito difícil, bem difícil.
Tatiana Merlino - Queria voltar a falar daquilo
que conversávamos sobre o papel social do artista. Como é que você vê hoje a atuação social dos artistas no Brasil? Bom. Eu acho que tem trabalhos incríveis. Os próprios movimentos sociais têm artistas fantásticos. Acho que o tempo inteiro você vê a arte de um jeito sutil, de um modo poético, metafórico que seja. Mas você vê a arte, você vê muitos artistas, muita música, transformando e fazendo os movimentos caminharem... Não sei se você está perguntando sobre...
Tatiana Merlino - Os artistas do “mainstream”. Aí é uma faixa estreita do que é o artista.
Hamilton Octávio de Souza - O artista tem um
papel bastante privilegiado, ele é reconhecido, é uma figura pública, alguém que pode, dependendo da posição, influenciar em um sentido ou no outro… Qual a tua visão dos artistas hoje na sociedade que a gente vive? Eu acho que é reflexo da sociedade que a gente vive, que tem de tudo. Eu conheço vários artistas lá no Humanos Direitos que estão se formando, buscando conhecer as coisas não só pelo meio de comunicação mais imediato.
Hamilton Octávio de Souza - Como nasceu o
Movimento Humanos Direitos? O Padre Ricardo Rezende, que é uma pessoa que eu conheço há vários anos, levou a gente até Rio Maria, Araguaia, até o sul do Pará e ajudou a gente a entrar em contato com a realidade do trabalho escravo. Algumas pessoas de algum modo participavam dessas campanhas para a extinção do trabalho escravo no Brasil e questões relacionadas a direitos humanos também, então acabavam conhecendo mesmo os movimentos sociais que estão trabalhando nessa dimensão. Até que um dia o Marcos Winter [ator e integrante do movimento] virou e falou: “Puxa vida, por que a gente não faz um movimento, uma ONG em que a gente possa sempre estar se encontrando, se informando e se alimentando destas informações e quando acontecer alguma coisa a gente já está apoiando, já dá visibilidade”. É um grupo que na verdade serve para dar visibilidade às pessoas que estão precisando de apoio, que estão ameaçadas. A ideia é trazer essas pessoas para serem homenageadas. Uma vez por ano a gente faz uma premiação, levamos essas pessoas que vem de vários lugares...
Hamilton Octávio de Souza - O grupo é
grande? O grupo tem aumentado, não tem só artistas conhecidos, ele tem formadores de opinião em geral, jornalistas também. E sempre que alguém de algum movimento quer colocar uma causa ou uma questão, a gente faz uma reunião para ouvir essa pessoa lá, acaba integrando, acaba fortalecendo alguns outros movimentos.
Hamilton Octávio de Souza - Dê alguns
exemplos de apoio que vocês deram.. As próprias ações do MST, a questão da greve do Frei Luíz Cappio, a questão da transposição, foi um apoio que o Movimento Humanos Direitos deu em conjunto. Não fui só eu, não foi uma coisa personalizada, eu fui representando eles, levando as assinaturas das pessoas e tudo. Já fomos várias vezes ao Senado em momentos em que era votada a PEC que pune com expropriação das terras quem pratica
“Eu vejo um potencial conscientizador muito forte em uma novela,ou alienador. Tudo na nossa sociedade a gente tem as duas possibilidades”.
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Tatiana Merlino - Além do Frei Betto quais
são as outras figuras públicas que tenham te influenciado politicamente? Frei Betto, Leonardo Boff, Marina Silva, Gandhi. O Frei Betto já vai mais longe, para mudar o Brasil tem que ter a coragem de entrar para morrer... Quando você perguntou sobre esse medo de se expor ou em tomar posições é porque quando você vai mesmo em um lugar como Rio Maria, você conhece uma pessoa da Comissão Pastoral da Terra que já levou um tiro na cara e você conversa com ela e ela tem uma leveza de espírito, tem alegria de viver. Não é um suicida, não é uma pessoa louca, é uma pessoa muito com pé na realidade e muito a serviço do amor verdadeiro. E aí você dizer que apoia tal causa, tal movimento, não é nada grave diante dessa realidade, onde você encontra atos realmente heróicos.
Tatiana Merlino - Você já foi constrangida ou questionada alguma vez por causa dos seus posicionamentos políticos? Já.
Tatiana Merlino - E isso atrapalhou no seu trabalho? Já atrapalhou.
trabalho escravo. Ainda é uma luta do movimento. Tem o caso também de uma fábrica de fogos de artifício que explodiu na Bahia, esperamos que agora vá ser julgado, mas é uma pressão, de algum modo a gente faz essa vigília.
Hamilton Octávio de Souza - Como funciona, vocês se reúnem e decidem dar apoio a uma causa? É, a gente vai se mantendo informado, de algum modo é um movimento que ajuda movimentos também. Gabriela Moncau - De onde surgiu a sua
militância? Ah, de estudante.. Com alguns professores marxistas, os amigos...
Hamilton Octávio de Souza - Lá no Paraná
ainda? No Paraná mesmo. Eu acho que o teatro te coloca em contato com o lado mais questionador, mais conscientizador. O teatro tem também esse princípio que tem na nossa sociedade, de trazer este outro olhar menos pragmático para vida, de pensar em construir a sua carreira e ganhar o seu dinheiro. Busca-se voos mais altos. Com isso também começa a pensar em uma política, lógico, pensar em um mundo mais igualitário.
Tatiana Merlino - Você se considera uma
militante política? É que eu não sou uma coisa assídua. Mas acho que sou uma cidadã, uma militante cidadã, sou uma cidadã, exerço a cidadania.
Hamilton Octávio de Souza - Desde quando você toma posição? Você manifestou várias
posições que normalmente quem trabalha para a Globo procura não manifestar. Você sempre agiu com independência? Eu sempre tive muita paz de espírito com os meus posicionamentos, porque eles são feitos de verdade, de ir lá conhecer. Eu, por exemplo, me identifico mais com o movimento dos sem-terra do que com os do sem-teto, mas é uma relação minha com a terra, é realmente um princípio meu. Questão filosófica mesmo, de buscar na terra o alimento.
Tatiana Merlino - Como você conheceu o MST?
Como você se aproximou do movimento? Eu não lembro, acho que foi com o Frei Betto. A primeira vez que eu fui em uma marcha foi com ele. Eu e o Ângelo [Antônio, ator e ex-marido de Letícia] a gente foi com o Frei Betto...
Gabriela Mocau - Qual é a tua relação com o Frei Betto? A gente conheceu ele aqui em São Paulo quando faziamos uma peça de teatro, Frei Betto foi assistir e nos conheceu. Gabriela Moncau - Ele te influenciou na tua
formação política? Ah sim, ele é de fato uma pessoa muito importante, acho que pro Brasil, para muitos jovens e o reconhecimento disso fez a gente se aproximar do Frei Betto, claro.
Gabriela Moncau - Você tem alguma religião? Eu fui bem capturada pelo cristianismo, mas não sei mais se é só. Minha avó é kardecista, eu vou lá no centro espírita, com fé. Vou também na igreja católica rezar com bastante fé e vou no Gantois também, cantei com elas.
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Tatiana Merlino - Atrapalhou como; de não
conseguir um trabalho ou ser constrangida? Ser constrangida.
Tatiana Merlino - Como é para você, que apoia
o MST, trabalhar numa emissora de televisão que criminaliza diariamente o MST, que chama os militantes de bandidos, de invasores Eu não sei se essa emissora só faz isso. Também não falo da emissora quando digo que já fui constrangida. Não estou falando da Globo, não foi isso que eu quis dizer. Mas eu já via assim também, a Globo tem muitos artistas verdadeiros ali dentro. Acho que a gente faz trabalhos, como por exemplo “Hoje é dia de Maria”... Era um trabalho que trazia uma consciência bem legal, recuperava um valor que muitos trabalhos trazem, como este valor da terra. Eu já vi também o programa que eu apresentava na Globosat, um programa sobre educação que falava sobre ensino rural e das novas leis de diretrizes e bases e quem mudou a lei foi o MST. Mostrava como exemplo o MST. Eu nunca participei dessa criminalização, eu não vejo isso como exclusividade dessa emissora, mas eu acho que a gente tem uma sociedade que criminaliza o MST mais do que deveria e não criminaliza tanto o latifúndio ou o trabalho escravo quanto deveria. Então realmente a gente tem essa questão social sim. E eu acho que se temos uma emissora que ainda pode melhorar nesse sentido, a gente também tem uma sociedade que reflete isso e também precisa ser olhada, também precisa ser questionada sobre esses valores.
Tatiana Merlino - Qual você acha que deve ser
a postura dos artistas, dos atores, para ajudar a desmistificar isso? Conhecer, primeiro, a realidade do país, conhecer janeiro 2010
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um assentamento, conhecer a proposta do MST. Acho que cobrar também amadurecimento do movimento em vários aspectos, mas conhecer, não ter preconceito. Saber que em um país tão grande, onde 1% das pessoas possui a maioria das terras, essa justiça social tem que ser feita mesmo. E que quando essas pessoas se reúnem em um movimento, é uma solução para isso, não estão formando quadrilhas, não é isso. Não pode ser comparado a isso. É um movimento social que tenta defender esse direito mais humano.
Hamilton Octávio de Souza - Qual a tua visão
política do Brasil? Eu acho que não está tudo bem. A gente ainda segue um modelo de desenvolvimento que dá vontade de mudar logo, que está falindo. Acho que tem que mudar isso mesmo, e tem propostas para isso, tem matriz energética para se fazer isso. Há mais condições que outros países chamados de “em desenvolvimento”. Mesmo pensando em desenvolvimento do Brasil para poder ser sustentável, dá para você desenvolver sustentavelmente. Eu acho que o fato da Marina Silva ter se candidatado pode ser uma posição importante. Quem sabe a Dilma Rousseff agora coloque como colocou para a COP 15 essas metas. De qualquer modo, algumas metas surgiram; a princípio, pelo que a gente via, não tinha uma preocupação ambiental a contento mesmo. Eu participei de reunião de sete horas de duração com lideranças indígenas de quatro etnias que vão ter terras alagadas, movimento de atingidos por barragens, de ribeirinhos, MST e sete horas de duração contra a barragem de Estreito e todos dizendo: “Vocês vão ser ouvidos, vocês vão ser ouvidos”. Já tinha passado por várias instâncias, e eles barravam a barragem, mas faz parte de um projeto de mais 34 barragens ao longo do Tocantins para a extração basicamente de alumínio. E no dia seguinte o Lula anunciando que ia fazer uma política de aceleração do crescimento. Então eu questiono isso, esse PAC, dessa maneira, questiono mesmo.
Tatiana Merlino - E como é que você avalia o
governo Lula hoje? Eu votei nele. Acho que a política econômica dele ainda coloca muitas famílias na miséria em relação ao número que a política assistencialista diz que o governo está tirando. Na verdade, coloca muitas famílias na miséria... Ouvimos falar de algumas mudanças até relacionadas a ganhos mesmo dos movimentos. Relacionado a trabalho escravo, parece que houve um progresso mais do que no governo FHC, bem mais. Houve medidas que foram implementadas em algum momento, mas eu não sei porque os movimentos são tão vinculados a este governo. Eu sinto que este governo também é absorvido por este Estado, que pensa o desenvolvimento dessa maneira. É difícil mesmo mudar de uma hora pra outra e a gente pode ponderar vários fatores. Não sei se vocês
tem uma avaliação extremamente justa deste governo, mas eu não vejo como política de governo de mudança, aquilo que a gente esperava. E quando você coloca a transposição, não pensam em um modelo de desenvolvimento para o semiárido, que lida com a condição do semiárido como é, que favorece a cultura do semiárido, que dá poder ao pobre e não para o empresário.
Hamilton Octávio de Souza - Qual a tua perspectiva na eleição presidencial? Ah, eu vejo uma luz na Marina. Pelo menos é uma pressão maior para essas questões. Acho que o desmatamento também começou a diminuir. Acho que é uma pressão positiva a candidatura da Marina. Eu me identifico com ela com certeza. Hamilton Octávio de Souza - Você se liga mais no modelo ambiental de preservação, não é? Sim, sabe por quê? Lá na tribo, quando tinha um ritual importante na tribo as crianças estavam recebendo falta na escola. Eles têm um lugar que preservam e que é um santuário ecológico. Sempre existiu isso, a gente sabe que a floresta tropical que temos no Brasil surge do movimento migratório, das tribos, precisa de uma ação humana equilibrada para poder existir esta floresta. Depende do ser humano também para que ela sobreviva e sempre existiu alguma cultura, extrativismo, santuários ecológicos, nos arredores de onde a tribo se localizava. Mesmo ela mudando de lugar, sem-
“Acho que a gente tem uma sociedade que criminaliza o MST mais do que deveria e não criminaliza tanto o latifúndio ou o trabalho escravo quanto deveria”. 16
pre existiram estes lugares respeitados e até hoje os krahô tem. Eles tem um lugar onde eles não vão caçar, porque é lá onde nascem os bichos, um lugar que preservam onde não tocam, porque se não acaba com o equilíbrio. Só que a monocultura da soja está vindo pelo outro lado, barragens estão alagando terra do outro e aí? Cadê o equilíbrio disso? Onde é que se pensa nessa palavra? E a monocultura da soja acaba com a diversidade do cerrado, com a diversidade linguística de um povo também. O índio nomeia aquilo que está ali, aquilo que ele tem alcance, como o buriti, o jabuti. E aí você põe soja, acabou com a língua também. Então se formos pensar em cultura, temos que pensar em meio-ambiente. O livro do índio é o cerrado, então é colocar um ponto de cultura, fazer um documentário, mas também é preservar, está tudo interligado.
Gabriela Moncau - O que você acha da
cobertura que a mídia faz em relação a questões sociais? Eu vejo muitas deturpações. A marcha do MST que eu vi lá em Brasília foi um exemplo de cidadania. O próprio Lula reconheceu no dia seguinte. A gente esteve com ele e ele nos falou isso: “Que exemplo de cidadania nos deu o MST”. E o que saiu no jornal foi a pancadaria que teve no final... E eu ouvi da boca do próprio presidente que aquilo foi uma infiltração, que houve uma provocação para que aquilo acontecesse. E depois foi colocado como se fosse um tumulto provocado pelo MST na frente do Planalto. Isso é uma deformação. Foi uma marcha onde havia cursos de filosofia, eles levaram coisas que plantaram um ano antes. Era extremamente ecológico, eles levantavam acampamento, recolhiam tudo.
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entrelinhas a mídia como ela é Hamilton Octavio de Souza
Cesar Cardoso
UM HERÓI Alucinaram a internet
TUCANARAM O HERZOG Criado pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo ainda em plena ditadura civil-militar (1964-1985), para premiar os jornalistas que denunciam as violações dos direitos humanos, o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos e Anistia está agora sob o controle do tucanato paulista, coordenado por uma ONG de captação de recursos e patrocinado por empresas que nada têm a ver com a defesa dos direitos humanos. Privatizaram a luta histórica dos jornalistas!
CENSURARAM O ESTADÃO O Poder Judiciário tem sido um aliado exemplar da imprensa neoliberal e oligárquica, especialmente para apoiar a criminalização dos movimentos sociais e impedir o direito de resposta de quem é ofendido pelos meios de comunicação. Mas, para proteger a oligarquia Sarney, o Judiciário acabou censurando até mesmo o jornal O Estado de S. Paulo, que foi proibido de noticiar as negociatas do filho do senador maranhense apuradas pela Polícia Federal na Operação Boi Barrica. Abaixo a censura do Judiciário!
VAIARAM O MINISTRO A imprensa neoliberal tentou esconder, mas a grande estrela da noite de abertura da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro, em Brasília, foi mesmo o ministro das concessionárias de rádio e TV, Hélio Costa, que levou a maior vaia do ano no evento. Ele e muita gente nos poderes da República continuam defendendo a concentração dos meios de comunicação nas mãos de algumas poucas famílias. Quem pensa seriamente nessa questão, sabe muito bem que sem derrubar o oligopólio midiático não existe democratização do setor. E isso não acontecerá sem confrontos. Pela redistribuição total das concessões de rádio e TV!
EMPASTELARAM A CRISE Os cofres públicos injetam fortunas nos setores financeiros e produtivos; os bancos, a indústria e o comércio facilitam o crédito do consumo a perder de vista; a inadimplência aumenta consistentemente, desde a mensalidade da TV paga até a escola das crianças; crescem os serviços de recuperação de bens vendidos no crediário do varejo e não pagos. A fragmentação do noticiário embaralha a visão do conjunto. A grande mídia continua martelando todos os dias que a crise econômica está superada, que o Brasil atravessou as turbulências sem sofrer grandes estragos. Todos se sentem seguros e corretamente informados? Hamilton Octavio de Souza é jornalista. hamilton@uol.com.br
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Lutei o bom combate. E ele era tão bom e justo e nobre, que eu seguia lutando mesmo com a chegada da noite, dos ventos, das tempestades. E, em meio às trevas, só reconheci meu próprio irmão quando o trespassei com a espada, julgando ser um inimigo. Aquilo caiu sobre mim como uma maldição. Eu derramara o sangue do meu sangue! Mas o bom combate precisava de mim. E voltei a lutálo. E dessa vez matei meu pai. Para melhor lutar o bom combate, ele se disfarçara de árvore. Como era uma árvore que não crescia em nossa floresta, tomei-a por uma vegetação inimiga e trespassei-a com a espada. Quando a árvore me disse: “filho, o que fizeste?”, tive consciência de minha nova tragédia. Sem poder encarar os companheiros e a família, parti. Mas nem o coração dilacerado me impediu de seguir lutando o bom combate. Disfarçado, invadi o território inimigo aleijando, trucidando e matando. Mapeei, uma por uma, as nascentes de água que abasteciam sua capital. E numa só noite, mesmo com a chegada dos ventos e das tempestades, envenenei toda a água. De madrugada escutei os gritos dos que morriam. E ao amanhecer entrei, triunfante, na cidade dominada. Corpos e mais corpos jaziam nas ruas. E pude reconhecer ali minha mãe, minhas irmãs, meus filhos e meus vizinhos. Todos mortos, envenenados. Eu não sabia que nós havíamos ganhado a guerra e invadido a cidade uma semana antes. Me deixei ficar para ser capturado pelo inimigo que voltava. Eles me pegaram, me carregaram pelas ruas cheias de sangue enquanto davam vivas ao seu salvador. Agora sou o maior herói da História. Pelo menos da História que eles repetem diariamente em seus livros escolares. Ilustração: Koblitz
Alguns jornalistas blogueiros descobriram o “meio” ideal para seus negócios privados, em especial para conseguir “patrocinadores” não revelados ao público. Muitos estão mamando nas férteis tetas do governo federal sem pagar pedágio às empresas jornalísticas de antes. Adotaram o discurso chapa-branca ufanista, a crítica superficial à mídia neoliberal, mas continuam defensores incondicionais do capitalismo. É gente de direita que se passa por “independente” no novo papel de “orientador” virtual do lumpezinato de classe média. O que importa é cacifar o próprio caixa, não o jornalismo comprometido com a transformação social e a melhoria das condições de vida do povo. Os “pastores” da nova seita pregam a “revolução” internética da comunicação, criam a ilusão de que o novo “meio”, nas mãos deles, tem tudo a ver com a construção de uma nova sociedade mais democrática; e de outra realidade na qual a “participação” virtual dos seguidores substituirá em definitivo o conflito social real e a luta de classes. O mundo é mesmo dos espertos!
Cesar Cardoso foi dispensado de lutar o bom combate por ter pé chato. E montou o blogue PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com) janeiro 2010
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“Eu sou do tempo do motor amaciando”
Lembranças de Sérgio Pompeu Está fazendo dez anos que, a primeiro de janeiro de 2000, morreu numa clínica psiquiátrica em Jaú-SP, o jornalista Sérgio Pompeu, meu irmão mais velho, ex-diretor-adjunto da revista Veja, nascido em Campinas a 24 de janeiro de 1938 e autor do romance “Dança, Carmela, Dança”. Depois de ter hesitado entre ser jogador de futebol (médio-apoiador de postura clássica, dos times de várzea pelos quais passou, saíram profissionais como Valdemar Carabina, defensor do Palmeiras; Battaglia, ponta do Corinthians e do Guarani; Joel, defensor do Palmeiras e do Rosário Central da Argentina, e Aldo, goleiro do Corinthians e do Fluminense), engenheiro ou advogado (formou-se na Faculdade de Direito da USP) e de ter iniciado uma carreira brilhante no Banco do Brasil, Sérgio entrou na Folha da Manhã, hoje Folha de S. Paulo, por concurso, em 1960. Logo se enturmou com os jovens que pretendiam renovar o jornalismo, encabeçados pelos falecidos Murilo Felisberto e Sérgio de Souza. Destacou-se como líder prático dos jornalistas paulistas na greve de 1961, quando, no piquete diante dos Diários Associados, ao perceber que as granadas de “efeito moral” demoravam para explodir, tomou a iniciativa de chutá-las de volta para os policiais, entre os quais elas passaram a explodir. Seu exemplo logo foi seguido por outros, e os policiais passaram a lançar contra nós potentíssimos jatos d’água, das mangueiras dos Brucutus, carros semelhantes aos Caveirões de hoje. Os jatos ameaçaram nos dispersar e permitir a saída dos caminhões de jornais, mas Sérgio
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outra vez teve a iniciativa de se agarrar a uns canos incrustados no chão que havia na calçada, outro se agarrou a seus pés, outro se agarrou aos pés do segundo, e assim fomos circulando pelos ares, levados pelos jatos d’água, como se fôssemos elos de uma corrente indestrutível. Finalmente, o governador Adhemar de Barros mandou sustar a operação policial. O resultado foi a instauração do piso salarial – até então o salário mínimo dos jornalistas era o mesmo dos trabalhadores em geral. Logo depois, na Copa de 1962, Sérgio Pompeu participou da primeira experiência prática de inovação do jornalismo em São Paulo (tinha havido experiências anteriores no Rio, no Diário Carioca e no Jornal do Brasil), o caderno especial da Copa da Folha. Posteriormente, participaria da fundação do jornal Notícias Populares, do Jornal da Tarde e da revista Veja. Nesta, depois do afastamento de Mino Carta, diretor que era crítico do regime militar, Sérgio passou a nadar contra a corrente da nova direção, favorável ao regime militar, até que foi afastado da revista. Entre suas coisas, após seu falecimento, encontrei dossiês sobre arbitrariedades e atrocidades do regime, que nunca conseguiu publicar. Renato Pompeu é jornalista e escritor. rrpompeu@uol.com.br
Ana Miranda
Gatos literários: Filomena Minha gata se chama Filó, nome tênue que representa sua infinita delicadeza. Encontrei-a assim, ao acaso, quando procurava uma siamesa para comprar. Na loja, uma gatinha híbrida estava sobre uma mesa, e quando me viu ficou em pé, levantando as patas dianteiras numa dança, saudação, ou entrega amorosa. Custava pouco mais que um litro de leite. Comprei-a, e eu passei a lhe pertencer. Seu nome completo é Filomena Jardelina Arena della Luna, que observadores lhe foram adjetivando. A pelagem é da cor da areia, com algumas manchas escuras, o ventre de alvo algodão. Ela é extremamente elegante em todos os momentos, mais do que outros gatos que tive, talvez por ser tão delgada. Lânguida em todos os gestos e ademanes, num curvar-se, num saltar, num virar o rosto, atende sensualmente a minhas necessidades estéticas. Seus olhos quase líquidos, ambíguos vidros que contenham um mar cambiante, reflexivos como os de uma poetisa triste a procurar uma palavra, acompanham-me às vezes com uma confortável intimidade. Mas em outros momentos ela parece divagar dentro de um leve desprezo, com os olhos impassíveis, todavia sem jamais aparentar superioridade ou arrogância, tampouco humildade ou submissão. Quem pode acreditar que não há alma atrás desses olhos luminosos? Seus miados expressam palavras abstratas, numa linguagem de carícias. Aprendi a amar os gatos em criança, quando os tive na minha casa, meus telhados, ou vendo-os nas fábulas. Eram maliciosos, porém leais, e o astuto gato de Cheshire, com truques espantosos, como tirar a própria cabeça, ou ficar subitamente invisível, indicava à menina Alice-Ana o caminho a seguir, entre elementos do mundo dos mistérios. Por ação da simples ternura, nós nos aproximamos, portanto eu amo a felinidade, e ela, a literatura. Numa mútua, longa e incompleta domesticação, Filomena refestela-se sobre meus dicionários, examina longamente in-fólios, ou se posta diante de meu texto como uma deusa egípcia, parecendo por vezes recusar uma vírgula, pesar uma palavra, ou aprovar certa expressão. Guardiã da noite, encarnação das emoções maternas, Filó vela a minha cama, o meu sono e a minha fecundidade. Não precisamos uma da outra para nada. Apenas nos amamos. Provavelmente acreditamos ambas que somos nossas mães. Ana Miranda é escritora.
Ilustração: Koblitz
Memórias De um jornalista não investigativo Renato Pompeu
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João Pedro Stedile
Emir Sader
É preciso debater um
BRASIL 2010
PROJETO PARA O BRASIL Não podemos
ficar apenas entre o retrocesso da volta dos tucanos, e o “melhorismo” da continuidade. Os verdadeiros problemas do povo somente se resolverão com mudanças estruturais. E para haver mudanças estruturais na economia e no Estado é necessário um projeto para o país. Um projeto que não apenas elenque ideias e propostas, mas que conscientize as massas, aglutine forças e motive o povo a lutar por ele. O povo brasileiro enfrenta graves problemas de falta de emprego: quase 60% da população economicamente ativa está no trabalho informal, sem direitos trabalhistas e previdência social. A renda continua se concentrando, aumentando as diferenças entre a renda do capital e a renda do trabalho. O ensino superior continua sendo um privilégio para apenas 10% da juventude. Faltam 11 milhões de moradias decentes. Não há acesso à terra para quatro milhões de famílias de trabalhadores rurais, enquanto a concentração da propriedade se amplia. E embora o sistema único de saúde (SUS) seja uma conquista, aos pobres restam as filas e um sistema público degradado, enquanto a classe média paga cada vez mais caro por sistemas privados. E os meios de comunicação continuam como oligopólio de sete grandes grupos econômicos, que seguem manipulando as mentes e ganhando muito dinheiro. A taxa de investimento da economia brasileira é ridícula, enquanto a maior parte da poupança nacional se destina a pagar os juros da dívida interna, que alimenta a especulação financeira e a concentração de renda nos bancos. As empresas transnacionais ampliaram seu controle sobre nossa economia, setores estratégicos e sobre as riquezas naturais. Nossos gastos em tecnologia são pífios. E nenhuma sociedade consegue resolver seus problemas sem investir na produção de conhecimentos (técnicas) para resolvê-los. Vamos aproveitar o ano de 2010 para fazer um verdadeiro mutirão nacional que levasse o maior número possível de brasileiros a debater quais são os principais problemas, quais são suas causas e quais as verdadeiras saídas. Somos a nona sociedade do mundo em volume de riqueza produzida. Mas estamos em 75º lugar no nível das condições de vida da população, e somos a sétima pior sociedade do planeta em desigualdade social. As soluções para esses problemas não são econômicas ou administrativas. O Brasil não precisa de bons gerentes. Precisa de povo organizado, consciente, que se mobilize para resolver seus problemas. E de lideranças políticas comprometidas com as mudanças.
Recém-eleito FHC, a Folha de S. Paulo lançou um caderno que anunciava “A Era FHC”. Utopia dos Frias – e de toda a elite branca paulista -, chegava o iluminismo caboclo ao poder. Atribui-se a Roberto Marinho, no momento da queda de Collor, ter dito que “a direita já não mais poderá eleger um presidente”, o que significava que teria que buscar um nome no campo da esquerda ou da oposição à ditadura. FHC adaptou-se ao figurino. Como dizia José Luís Fiori, o plano de estabilização monetária, na sua versão brasileira, já existia, faltava quem vestisse o terno. FHC olhou para seus próceres – François Mitterrand e Felipe González - e lhe pareceu que poderia assumir o mesmo papel no Brasil. Um (até então) intelectual saiu diretamente da campanha de Lula para um ministério do novo governo. Outro disse que “se esse programa poderia ser aplicado bem, levando em conta as necessidades sociais, seria aplicado pelo governo de FHC”. Isto é, do adesismo ao benefício da dúvida. A imprensa entrou em êxtase: poderia atacar a esquerda como jurássica, reformas agora pertenciam ao receituário neoliberal, quem se opusesse se tornaria conservador. Era o Brasil de 1994. Desde então, os dois mandatos fizeram com que FHC se tornasse o político mais odiado do Brasil. (O PT já cogita reservar-lhe um espaço nos seus horários políticos, porque ninguém alavanca mais o governo Lula e a candidatura de Dilma, enquanto a oposição busca um lugar suficientemente grande para tentar esconder o ego do ex-presidente). O Brasil em 2010 permitirá uma reflexão sobre o quadro político atual, e como se projeta para o futuro. O governo Lula começou com a “Carta aos Brasileiros”, Palocci como virtual primeiro ministro, ajuste fiscal duro, Meirelles no Banco Central, “contingenciamento” dos recursos, subordinação das políticas sociais ao equilíbrio monetário, reforma da previdência e primeiro grande choque com os movimentos sociais. Essa primeira etapa terminou coincidindo com a crise de 2005, que desembocou em mudanças que alteraram a composição e a orientação predominante no governo. A entrada de Dilma Rousseff e a substituição de Palocci não por alguém da sua equipe, mas por um desenvolvimentista como Guido Mantega, marcaram essa inflexão. Os resultados aí estão, para quem não siga brigando com a realidade: no ritmo de desenvolvimento da economia, nos efeitos das políticas sociais, na política internacional, no papel recuperado para o Estado de indutor do crescimento econômico e promotor das políticas sociais, entre outras. Há quem diga que nada de importante se decide em 2010. Seria o mesmo que tivesse Alckmin ou Lula em 2006? Será o mesmo a volta da equipe tucano-demoníaca ou o aprofundamento do governo atual com Dilma? Por essa linha passa o futuro do Brasil. sugestões de leitura Caim
José Saramago Cia das Letras Revoluções
Michael Lowy Boitempo Editorial Nietzsche, o rebelde aristocrático
João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.
Domenico Losurdo Editora Revan
Emir Sader é cientista político.
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Marcelo Villela Gusmão
Plagiato, plagiat...
PLÁGIO
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á pouco mais de dois anos, a tradutora Denise Bottmann tem pesquisado os meandros obscuros do mercado livreiro nacional e revelado algumas práticas nada ortodoxas. A principal delas se esconde por entre as obras estrangeiras aqui publicadas: o plágio de tradução. Até o mês de outubro deste ano, Denise já havia denunciado em seu blog “Não Gosto de Plágio” (www.naogostodeplagio.blogspot.com) uma centena deles. No Brasil, a tradução é um ofício significativo para a cultura. Segundo a Abrates (Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes), mais de 80% das publicações em formato de livro são traduções. Ao transpor uma obra literária, artística ou científica para o português, o tradutor passa a ter certos direitos sobre a nova criação. Basicamente, quando utilizada para fins comerciais, o profissional responsável deve ser remunerado e ter seu nome estampado em cada exemplar da obra. O que tradutores e leitores meticulosos começaram a perceber é que algumas traduções, principalmente de obras literárias, estavam sendo publicadas em nome de tradutores desconhecidos. Mas não demorou para que descobrissem que, na verdade, eram cópias de antigas traduções, com os nomes dos tradutores originais substituídos por outros.
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Denise é historiadora, ex-docente da Unicamp e tradutora do inglês, francês e italiano desde 1984. Assina 70 traduções de livros e artigos das áreas de ciências humanas, teoria e história literária e história da arte. Ela tomou conhecimento desta prática em meados de 2007, após ler a denúncia de Saulo von Randow Júnior, tradutor diletante que achou curioso o fato de a tradução do romance Ivanhoé atribuída a Roberto Nunes Whitaker, e publicada pela editora Nova Cultural na coleção ObrasPrimas em 2002, ser idêntica à feita por Brenno Silveira e publicada pela Martins Editora cinco décadas antes. Algumas denúncias já circulavam entre interessados em literatura e tradução. Em 2002, o tradutor Ivo Barroso relatou na revista eletrônica Agulha as impressionantes semelhanças entre a tradução atribuída a Fábio M. Alberti da peça Cyrano de Bergerac, feita para a Nova Cultural, e o trabalho de Carlos Porto Carreiro, cuja primeira edição data do início do século passado. A versão copiada manteve inclusive erros tipográficos das edições autênticas.
Semelhanças A possibilidade de haver versões idênticas de uma mesma obra é uma façanha praticamente inconcebível para qualquer tradutor com um míni-
mo de bom-senso. As semelhanças podem se limitar a uma ou outra palavra, talvez uma frase. Denise logo constatou que outros títulos da editora Nova Cultural apresentavam o mesmo problema. Somente na coleção ObrasPrimas, suas pesquisas identificaram que vinte dos cinquenta volumes tiveram os nomes de seus tradutores originais substituídos ou apagados. O mesmo se repete com livros das coleções Imortais da Literatura Universal e Os Pensadores, publicadas pela editora. Ao esmiuçar o volume dedicado a Platão, por exemplo, Denise constatou que a tradução atribuída a Enrico Corvisieri é semelhante à tradução de Jaime Bruna, publicada sob licença pela Abril Cultural. Contudo, para que a cópia não mostrasse sua aparente literalidade, a edição apresenta sinais do que se chama de “tradução por sinonímia”, ou a substituição de vocábulos por outros de mesmo sentido, mas mantendo a estrutura gramatical da outra tradução. Desta forma, “exerceram” é trocado por “tiveram”, “cautela” se torna “precaução” e assim por diante. Tais mudanças não provam se tratar de outra tradução, mas apenas retratam o leque de artimanhas empregadas. Conforme mostrou Denise, elas vão da simples cópia literal, passando por alterações revisórias no início dos parágrafos e chegando à reunião de trechos de traduções diferentes.
ilustração koblitz
Pesquisadora denuncia publicação de cópias de traduções
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Prova desta última proeza ela encontrou, com ajuda da tradutora Joana Canêdo, no Dicionário Filosófico de Voltaire publicado pela editora Martin Claret. As duas edições mais conhecidas, publicadas no século 18, possuem 73 e 134 verbetes. Mas a editora brasileira conseguiu adicionar outros dois verbetes ao dicionário, séculos após a morte do iluminista francês. A curiosa edição ampliada, com tradução atribuída a Pietro Nassetti, baseia-se na tradução de Líbero Rangel de Tarso, feita para a Atena Editora em 1937, bem como na de Bruno da Ponte e João Lopes Alves para a portuguesa Editorial Presença em 1966 e aqui publicada pela Abril Cultural. Segundo Denise, a Martin Claret utilizou os 73 verbetes publicados pela Atena Editora e complementou com os da Abril Cultural. Mas ao fazer isto, a editora esqueceu-se de que uma tradução é diferente de outra. Assim, enquanto a Atena Editora publicou o verbete “bêtes” como “irracionais”, a Abril Cultural o traduziu como “animais”, apresentando também diferenças de tradução no texto. A Martin Claret, acreditando se tratar de verbetes diferentes, publicou ambos. O catálogo da editora, composto segundo sua página na internet por cerca de 500 títulos, possui ainda outras controvérsias. Para Denise, 158 obras apresentam problemas relacionados à tradução, sendo que 49 delas já foram analisadas e tiveram o plágio confirmado. Curiosamente, 137 foram aparentemente traduzidas por apenas três profissionais: Alex Marins, Jean Melville e Pietro Nassetti.
Obras esgotadas Denise explica que as denúncias de plágios exigem dela horas diárias em pesquisa. É necessário adquirir um exemplar da obra acusada e encontrar outro da obra plagiada, o que requer certa obstinação, pois, na grande maioria dos casos, os prejudicados são tradutores falecidos, autores de obras esgotadas e publicadas por editoras extintas. Seguem-se então horas analisando as edições antes de tudo ser documentado no blog. Além disso, Denise entra em contato com as editoras, alerta tradutores e herdeiros, reivindica maior atuação dos órgãos públicos, envia e-mails a docentes, pesquisadores e entidades de livros, para que todos estejam cientes das “irregularidades cometidas em livros publicados por algumas editoras de projeção”. Até o momento, o saldo da pesquisadora é de 89 tradutores que tiveram suas produções apropriadas sem os devidos créditos por mais de uma
dúzia de editoras. Obras acusadas de plágio, de acordo com Denise, ainda constam no acervo de bibliotecas, licitações e compras do governo, bibliografias de cursos universitários e trabalhos acadêmicos.
O desenrolar jurídico A atual Lei do Direito Autoral (9.610), criada em 1998, define que somente tradutores, herdeiros e editoras podem reclamar na justiça a violação de seus direitos autorais, incluindo plágios de tradução. No entanto, Paulo Oliver, presidente da Comissão de Direito da Propriedade Imaterial da OAB-SP, aponta que há um empecilho financeiro: “não são todos os autores que possuem verba para manter uma ação indenizatória, que pode surgir após uma busca e apreensão, perícias e a competente ação ordinária de indenização”. O papel do Estado no setor autoral foi sensivelmente reduzido nas duas últimas décadas. Em 1973, a antiga Lei de Direito Autoral (5.998) estabelecia a criação do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), “órgão de fiscalização, consulta e assistência, no que diz respeito a direitos do autor e direitos que lhes são conexos”, dizia o texto da lei. O Conselho foi efetivamente criado três anos depois e sobreviveu até 1990, extinto oficialmente com a legislação em vigor. “A questão do direito autoral, se não foi abandonada, ficou num plano totalmente secundário dentro do governo, naquela filosofia do Estado mínimo, em que o Estado não tem que atuar em áreas que não são da sua alçada. É algo equivocado, pois o direito autoral envolve a defesa do patrimônio cultural brasileiro”, critica José Vaz de Souza Filho, da Diretoria de Direitos Intelectuais, vinculada à Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura. Desde fins de 2007, o Ministério da Cultura trabalha para retomar sua atuação. Em conjunto com profissionais do setor autoral, tem arquitetado uma revisão na atual legislação. As reivindicações baseiam-se em três áreas: melhor relação entre criadores e investidores, maior acesso da sociedade às produções culturais e ampliação da presença do Estado, que se consolidaria na recriação do CNDA, agora sob o nome de Instituto Brasileiro de Direito Autoral (IBDA). Segundo Souza Filho, a previsão é que o IBDA, além de ter competência fiscalizadora e supervisora, tenha uma instância administrativa de resolução de conflitos, auxiliando autores e tradutores sem condições de assumir o custo de uma briga judicial. Durante o III Congresso de Direito de Autor
“Não são todos os autores que possuem verba para manter uma ação indenizatória, que pode surgir após uma busca e apreensão, perícias e a competente ação ordinária de indenização”
e Interesse Público, realizado em São Paulo no início de novembro deste ano e último passo antes que o anteprojeto de lei seja submetido à consulta pública, o Ministério da Cultura apresentou uma proposta que pode desestimular o plágio de tradução. Sugere que seja criado um mecanismo de licenças não-voluntárias para três hipóteses, duas delas relacionadas ao livro: obras cujas edições estão esgotadas e obras órfãs, das quais se desconhece os detentores dos direitos. Nestes casos, se uma editora manifestar intenção em reeditar determinada obra, e for constatado existir interesse público por ela, o IBDA poderá conceder uma licença, ficando a editora interessada responsável por remunerar o detentor dos direitos.
Resistência O governo espera com isso ressuscitar obras há muito tempo longe das livrarias, seja por resistência dos detentores dos direitos em republicá-las, seja por completo desconhecimento de quem são eles. Assim, a licença não-voluntária permitirá fazer dentro da legalidade o que as editoras acusadas de plágios de tradução fazem ilegalmente. E com sanções mais adequadas sendo discutidas na revisão da lei, a prática pode ser desencorajada, como acredita Denise Bottmann. Por ora, a tradutora já formalizou cerca de dez denúncias, entre elas a que fez o Ministério Público Estadual solicitar que fosse aberto um inquérito contra a editora Martin Claret por violação de direitos autorais. Segundo Luiz Antonio Ribeiro Longo, delegado titular do 23º Distrito Policial, responsável pela investigação, a perícia está analisando as obras. Procurada, a editora se manifestou através da advogada Maria Luiza de Freitas Valle Egea. Segundo ela, a Martin Claret não confirma que nenhum de seus títulos é plágio, mas afirma que a editora “realizou alguns pagamentos para editoras sobre traduções apontadas como plágio”. A editora Nova Cultural afirmou que, após averiguação, “determinou a retiradas de circulação e venda de todas as obras nas quais se constatou qualquer suspeita de problemas”, mas não informou o número de títulos com problemas. Afirmou ainda que conversou com os tradutores Hernâni Donato e Luiz Costa Lima, cujas traduções de “A Divina Comédia” e “O vermelho e o negro” haviam sido publicadas em nome de outros tradutores. Entretanto, ainda há muitos tradutores a serem ressarcidos, obras a serem retiradas de circulação e outros plágios a serem confirmados. Em janeiro deste ano, Denise escreveu em seu blog: “eu fico meio assim, sentindo-me uma espécie de Denise, a caçadora de fraudóides. Mas aí penso: não é possível uma coisa dessas; alguém tem de fazer algo a respeito”. Quando tudo terminar, as pilhas de livros plagiados que hoje abarrotam sua estante não poderão ser doados. Talvez ela faça uma fogueira. Marcelo Villela Gusmão é jornalista
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Vinte anos da queda do Muro de Berlim Rosa Luxemburgo, criadora da República de Weimar
Combatentes das brigadas internacionais da guerra civil espanhola barrados na fronteira com a França
Marlene Dietrich pede asilo nos Estados Unidos para fugir dos nazistas
Queima de livros em Berlim
A FALSIFICAÇÃO DA HISTóRIA - 3 A mídia varreu para debaixo do tapete a 2a Guerra, festejando a queda do Muro como o maior acontecimento da história do século 20. Será?
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ma frase se repete há vinte anos em Berlim Oriental e não perde atualidade: “Aquilo que nossos líderes comunistas contavam sobre nosso bem-estar foi uma mentira grosseira. Mas aquilo que eles contavam sobre o mundo ocidental foi uma verdade absoluta”. No Festival da Juventude em Moscou, em agosto de 1957, como membro da delegação de Israel, encontrei meus colegas, jovens artistas da RDA, a Alemanha Oriental. E fui convidado a visitar a Academia de Belas-Artes em Dresden. Cheguei a Berlim Ocidental, uma vitrina de luxo brilhante, para provocar a inveja dos cidadãos da Alemanha Oriental, que ainda gozavam de movimento livre, pois o metrô era o mesmo para os dois lados de Berlim, naquele tempo do pré-Muro. Deixando Berlim Ocidental, peguei a famosa avenida Unter der Linden e a primeira surpresa já me esperava: a placa da rua Rosa Luxemburg, uma travessa da avenida, e embaixo uma reprodução da frase escrita por Brecht para a lápide dela no cemitério antigo de Berlim: “Uma combatente judia polonesa, pioneira da luta do proletariado alemão”. Na sede da organização dos artistas plásticos, o decano da Academia de Dresden, gravador Georg Kötner, me pediu para ir a Dresden, como professor de desenho e pintura. Era uma oportunidade que eu não podia perder. Nasci na Alemanha e, perseguido com os meus pais pelos nazistas, fugimos num navio italiano para a Palestina. Lá chegamos em 1935, antes que eu tivesse três anos de idade. Seis tios meus foram exterminados em Auschwitz. As dificuldades de aprender o hebraico impediam nossa absorção na cultura judaica palestina e continuamos a festejar a cultura da Alemanha. Descobrimos os brilhantes escritores Stefan Zweig, Thomas Mann e, naturalmente, Brecht, atores como Peter Lorre, Marlene Dietrich; diretores de cinema como Fritz Lang, compositores como Kurt Weil, expressionistas como Georg Gross e Max Beckmann, cujas
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obras foram proibidas de serem expostas na Alemanha Nazista, os livros dos escritores foram queimados. Essa formação não me deixou fazer parte da maioria dos israelenses, com acusações coletivas contra os alemães. Eu queria ver as diferenças entre as duas Alemanhas. Filas, filas, filas – essa era a primeira coisa que chamava a atenção na Alemanha Oriental, em especial nas lojas de livros, livros de arte, vitrolas e instrumentos musicais. Eram milhares de jovens do Ocidente. As montanhas dos livros de arte foram praticamente sequestradas num tempo inacreditavelmente acelerado. Tudo feito pela editoria oficial da Alemanha Oriental, Aufbauverlag. Quando perguntei a assistente de arte de Munique, como explicar essa blitz cultural, ele respondeu: “A edição completa da história da arte de Habermann está aqui ao preço subsidiado de 25 marcos alemães orientais. Na Alemanha Ocidental, custa 95 marcos alemães ocidentais. Quando você for para Berlim Ocidental, trocará três marcos orientais por um marco ocidental.”.
Subsidiando o Ocidente Os visitantes do Ocidente, com tudo de bom que havia lá, vinham fazer fila de madrugada na Alemanha Oriental. Quando um livro era lançado, sumia imediatamente. Os cidadãos da própria Alemanha Oriental só podiam ir às lojas depois do trabalho, à tarde, e se viam frustrados. E o que não foi subsidiado na Alemanha Oriental? Treze anos depois do fim da guerra, que transformou Berlim numa montanha de ruínas, havia duas ou três famílias em cada apartamento dos grandes conjuntos habitacionais na Berlim Oriental, enquanto os grandes bairros de moradia foram construídos na periferia, mais baratos. Os produtos de consumo, roupas, sapatos, padronizados, eram produzidos em enormes quantidades, para estarem ao alcance de toda a população, a preços subsidiados, a um terço do preço do produto um
pouco mais luxuoso de Berlim Ocidental. Para o aluguel, o governo alemão oriental descontava dez por cento do salário da família. A educação era gratuita da creche à universidade. A saúde pública era gratuita e o transporte público era muito eficiente. Só havia um tipo de carro particular, o Trabant, de motor de dois tempos, muito econômico em combustível. Para não encher as ruas de carros, só eram fabricados em quantidade limitada e controlada. Já nesse tempo as autoridades alemãs orientais que eu encontrava estavam preocupadas com que, com a passagem livre entre as duas Berlins, os produtos subsidiados não fossem parar nas mãos dos berlinenses ocidentais. Um dos meus objetivos era encontrar os que haviam militado contra o nazismo. A maioria deles foram liquidados em 22 mil campos de concentração na Europa ocupada. A liderança comunista da RDA tinha registros muito significativos. O enorme material de documentos que sobrou, os testemunhos dos combates de rua entre os camisas pardas (nazistas) e os vermelhos (comunistas) no fim dos anos 1920, quando o Partido Comunista tinha mais votos do que o Partido Nazista no Reichstag; já nos anos 1930, os grandes cartazes comunistas clandestinos, dizendo “Hitler é a guerra”; a Brigada Tellermann, cujo nome homenageia o secretário-geral do PC alemão, preso no dia seguinte à posse de Hitler, torturado até ser morto em 1944. Essa foi a maior entre as brigadas internacionais na defesa do governo legítimo republicano espanhol. Com a derrota terrível na Espanha, resultado da indiferença do “mundo livre”, ainda cego ante o perigo do nazismo, os sobreviventes da Brigada Tellermann não podiam voltar para a Alemanha e nem entrar nos países vizinhos, e foram obrigados a atravessar o Mediterrâneo rumo ao Bósforo para chegar ao porto de Odessa, na Ucrânia soviética, onde entraram no Exército Vermelho, na luta para não deixarem os invasores nazistas entrarem em Moscou,
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Ruínas de Berlim após a guerra
Orson Welles no filme “Terceiro Homem”, que expressa a difícil situação de Berlim após a guerra
Leningrado e Stalingrado. Os líderes comunistas, como Wilhelm Pieck, deram o exemplo perseguindo os nazistas até o bunker em 9 de maio de 1945; ele foi nomeado o primeiro presidente da RDA. No Museu da História Alemã, em Berlim Oriental, havia uma exposição muitorica, documentando a saga alemã no início do século 20: a República de Weimar, o assassínio dos líderes do Movimento Spartakus, de Karl Liebeknecht e Rosa Luxemburg; os combates de rua, a posse de Hitler como chanceler, as Leis de Nurembergue, as queimas de livros, a Noite dos Cristais, as terríveis cenas dos campos da morte, documentos de identidade de personalidades judaicas famosas, com o carimbo “Judeu”. Tive a oportunidade de atravessar durante décadas, para cima e para baixo, a Alemanha Ocidental, mas nunca vi lá um material como esse de Berlim Oriental. Na Alemanha Ocidental essa coisa vergonhosa foi varrida para debaixo do tapete. Tudo isso foi para mim bem mais importante do que o fato lamentável de que, quando eu queria comprar um creme dental em Berlim Oriental, só podia escolher entre duas marcas. Eu não me tornei uma vítima normal da loucura consumista da moda. Enquanto os ambientalistas estão hoje reunidos em Copenhagen, não vai ser essa reunião que vai acabar com a histeria do consumo em nosso mundo, enquanto a concorrência entre as multinacionais em defesa dos seus produtos toma a maior parte das horas da televisão, ao mesmo tempo em que empurram para um canto escondido, com seus enormes anúncios, os artigos dos repórteres dos jornais e das revistas. O Trabant não precisava de anúncios e foi produzido em proporção com a malha viária, enquanto o transporte público proporcionava viagens rápidas para casa e para o trabalho. As multinacionais de carros estão jogando nas ruas uma quantidade de carros que não deixa ninguém andar, a não ser a pé, sem contar o veneno que lançam ao ar. As organizações nazistas não podiam funcionar na Alemanha Oriental. Quem quisesse defender a pureza racional não gozava de liberdade de expressão. Agora, o nome da rua que foi dedicado à judia polonesa não existe mais. A 8 de novembro, nos vinte anos da queda do Muro, a Folha de S. Paulo publicou várias reportagens interessantes. Anotei uma delas:
Mulheres buscam lenha no inverno mais frio de Berlim, em 1945
“Pesquisa citada pela Bloomberg aponta um crescimento de 55 por cento da violência contra os estrangeiros no Estado da Saxônia”. “Em fevereiro, para marcar o aniversário da destruição de Dresden na Segunda Guerra, grupos neonazistas atraíram 6 mil pessoas para uma passeata anti-imigrantes (4 por cento da população é de imigrantes, diz Hilbert; em 2001, eram 2,5 por cento”. “Quanto mais se vai para o Leste, rumo à Polônia, onde o setor se calcava na indústria energética a carvão, mais esse niilismo cresce. Se em Dresden cerca de 10 por cento da população foi embora – parte disso acabou voltando -, mais ao Leste há pequenas cidades inteiras sumindo do mapa. Com um alto índice de emigração de jovens, sobretudo mulheres, o que resta nelas é uma massa de homens de meia idade desempregada que sobrevive da rede de seguridade social estatal e da agricultura de subsistência. “Lugares como Hoyerswerda e Zittau perderam metade dos habitantes e estão desaparecendo”, afirma Hilbert. “O governo já não consegue nem mais achar médicos para mandar para lá, ninguém quer ir. Escolas e creches estão fechando’. Em cidades assim, os índices de alcoolismo e de doenças psíquicas cresce. “Carolin e Sven refletem isso. Os pais dela perderam o emprego e tiveram de aprender a poupar. ‘Eles nunca haviam pensado que teriam de guardar dinheiro ou temer pelo emprego – no velho sistema o emprego estava lá”.
Euforia por quê? Vinte anos depois da queda do Muro, os cidadãos da antiga Alemanha Oriental ainda se sentem cidadãos de segunda classe. Mas, também em sentido internacional, o balanço do resultado da queda do Muro de Berlim não é auspicioso. O Muro, ao cair, não levou ao desmantelamento da Otan, que tinha sido fundada por causa da “ameaça soviética”. Já é rotina que os Estados Unidos e seus seguidores utilizem um espantalho para criar medo, usando forças sem limites para alimentar seu enorme apetite de expansão. Assim é com o balão que sempre se vai soprando para ele inflar, fazendo a “ameaça islamita” aparecer em tamanhos irreais. Quando a coalizão de Bush utilizou isso para a terrível aventura sangrenta de oito anos para acabar com o regime de Saddam Hussein,
Checpoint Charlie Bradenburger para separação de Berlim Ocidental e Berlim Oriental
que era antifundamentalista, a situação acabou reforçando os sócios fundamentalistas iraquianos, os xiitas que hoje governam o Iraque, aliados dos xiitas que hoje governam o Irã. Isso quando a alegação dos Estados Unidos foi de que enviaram seus soldados para salvar os iraquianos e afegães da ignorância cultural que os levaria aos braços dos iranianos e para ensinar, no Iraque e Afeganistão, o que é democracia. Junto com a liquidação do Iraque, Washington e seus sócios europeus conseguiram liquidar a própria ONU, que sobrou como uma coisa vazia, sem significado. Ficou claro que, ainda no tempo do Muro, se conseguia observar as regras do jogo, por causa do equilíbrio do medo, entre as duas superpotências. A Guerra Fria, que não era uma guerra quente e sangrenta, era quase um benefício, um oásis no deserto, comparada à situação de hoje, em que o mundo está em chamas e a guerra se espalhou por vários países e ocorreu a divisão da Iugoslávia e da Tchecoslováquia. Agora a União Europeia dá um ultimato à antiga Europa Oriental, como herança de seu colonialismo de “divide e impera”. Ela, a Otan e os EUA exigem que os territórios da Europa Oriental sirvam de bases para mísseis – voltados contra quem? Enquanto a maioria dos americanos deu os seus votos ao primeiro candidato negro que conseguiu entrar na Casa Branca, prometendo mudar Washington pela base, em menos de um ano Washington mudou Obama. E meu amigo José Arbex tinha razão quando classificou Obama, ainda no meio da campanha eleitoral, como “o falso brilhante”. Quando Obama consente, pelo silêncio, a ampliação das colônias judaicas na Cisjordânia, parece que a construção de um Estado palestino é menos real do que nos tempos de Bush. Menos de dois meses depois que a maioria das nações do mundo não reconheceram o golpe em Honduras, Obama deu o seu apoio tácito ao governo golpista e Zelaya foi atirado aos cães. Os neonazistas aumentam sua votação no mundo inteiro. Qual precisarão ser a altura do muro, ou melhor, do dique, que vai frear esses tsunamis de catástrofes que chegam para nós umas atrás das outras. E se pergunta de novo: essa euforia pela queda do Muro, será que tem justificação? Gershon Knispel é artista plástico.
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ensaio Latuff A convite do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (CEBRASPO), passei uma semana na companhia de lavradores nos acampamentos da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), no interior de Rondônia. Nestes dias, tive a honra de conhecer suas necessidades e sonhos. Povo forte, que sofre o diabo, mas que não tem medo dele. São trabalhadores rurais armados de uma força de vontade poderosa. Mas não são os rigores da selva amazônica os maiores inimigos desse povo, e sim fazendeiros com exércitos formados por assassinos de aluguel e policiais. Como em tais áreas o supermercado mais próximo pode estar a 80 km, é natural que os camponeses tenham de caçar para comer, o que justifica a posse de velhas espingardas. Operações constantes do IBAMA e das polícias tentam tomar estes armamentos, impedindo os lavradores de se defenderem. Estes, no entanto, seguem resistindo como podem. Não se entregam nunca. São os palestinos da Amazônia. Dedico este ensaio a Elcio Machado “Sabiá” (que conheci pessoalmente) e Gilson Gonçalves, ambos sequestrados, torturados e assassinados por pistoleiros em Buritis, no interior de Rondônia, no dia 9 de dezembro de 2009, dois meses depois de ter produzido estas fotos.
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Lúcia Rodrigues
Marcada para MORRER
Geralda Magela da Fonseca, a Irmã Geraldinha: ameaçada de morte pelo latifúndio, não dorme todas as noites no mesmo barraco.
Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, pode ser a próxima vítima do terror imposto pelos latifundiários que querem impedir o avanço da reforma agrária no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país. A única plantação de alimentos que existe em Salto da Divisa é a do acampamento do MST. No restante das terras, só capim e poucos bois. Fotos: Lúcia Rodrigues
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luta pela terra no Brasil ainda representa risco de morte para quem defende sua divisão. Reforma agrária são duas palavras que quando conjugadas se tornam malditas nos rincões controlados pelo latifúndio. O poder dos coronéis é lei nesses lugares. Domina tudo: desde a política local à rádio que veicula as notícias. Tudo, absolutamente tudo, é subjugado à lógica de uma oligarquia rural que atravessou séculos intacta e permanece com praticamente a mesma força discricionária do passado. A pequena Salto da Divisa, município localizado no nordeste mineiro do Vale do Jequitinhonha, é o exemplo gritante dessa realidade. Latifúndio e terror se conjugam contra aqueles que ousam se levantar em defesa da reforma agrária. O pavor de retaliações fez com que vários entrevistados pedissem para não ter os nomes
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revelados. A reportagem acatou a solicitação e decidiu atribuir nomes fictícios a todos os entrevistados ligados ao MST, menos a Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, ameaçada de morte pelo latifúndio. A freira dominicana que vive há mais de três anos no acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Dom Luciano, onde residem 75 famílias, se transformou no alvo preferencial dos latifundiários. É dela a principal voz que se ergue para denunciar as arbitrariedades dos donos da terra na região. A atitude corajosa rendeu a ira dos que teimam em perpetuar a situação de injustiça. Irmã Geraldinha convive há meses com o medo de ser assassinada a qualquer momento. No princípio, as ameaças chegavam pelo celular. Em um único dia, recebeu três ligações no aparelho. Do
outro lado da linha, a pessoa não identificada transmitia sempre a mensagem de morte. O terrorismo psicológico fez com que a freira quebrasse o chip do celular. Agora poucos possuem seu novo número, e as ameaças deixaram de ser feitas por via telefônica. Chegam por companheiros que moram no acampamento e que ouvem dizer na cidade que ela está marcada para morrer. No latifúndio brasileiro, ameaça de morte é quase a certeza de concretização. Foi assim com Chico Mendes, irmã Dorothy Stang, Margarida Maria Alves e tantos outros que tombaram na luta por justiça social no campo. Como nos outros casos, o medo não afugentou a freira da resistência aos poderosos. Apenas a fez mudar seus hábitos. Irmã Geraldinha não repete, por exemplo, o pernoite no mesmo barraco. Alterna o sono em vários locais dentro do acampamento, para impedir
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que o inimigo invada sua casa e a torne presa fácil da morte. A reportagem de Caros Amigos acompanhou a via crucis da freira durante quatro dias. Dividiu com ela, inclusive, os mesmos barracos. estado de tensÃo
Um acontecimento em particular deixou a freira temerosa de que um eventual atentado pudesse ocorrer. Era noite, e a informação de uma companheira do acampamento, que havia visto um feixe de luz vindo do mato próximo do local onde foram erguidos os barracos, deixou a irmã Geraldinha apreensiva. Olhares mais atentos não identificaram o alerta, mas também não conseguiram tranquilizar a irmã. Qualquer barulho do lado de fora do barraco era motivo para um sobressalto sobre o colchão. A ausência de iluminação, o único ponto de energia elétrica no acampamento é o do centro comunitário que também é a única construção em alvenaria, joga contra a segurança dela. A noite sem luar torna o ambiente sombrio. Nos barracos, com paredes feitas de folhas de coqueiro ou de taipa (barro prensado entre canas de bambu) e cobertura com a tradicional lona preta, apenas a luz das velas, que se acendem e se apagam rapidamente para neutralizar o alvo de possíveis ataques. O esquema de segurança do MST no acampamento foi reforçado desde que a freira passou a sofrer ameaças. Na entrada do acampamento da Fazenda Manga do Gustavo, localizada a aproximadamente 6 km da cidade, uma corrente de ferro impede a passagem dos carros que se aproximam. Ali, há sentinelas 24 horas por dia. Mas os únicos instrumentos de proteção de que os vigilantes dispõem para combater uma eventual invasão de agressores são alguns foguetes, que serão prontamente disparados para mobilizar os companheiros que vivem no acampamento e atrair a atenção da polícia na cidade. As mulheres participam do turno das 6h às 18h, os homens assumem a partir das 18h e vão até a manhã do dia seguinte. De uma em uma hora, o turno é trocado. Ninguém passa pela portaria sem a autorização da segurança, mas as condições geográficas da área não ajudam no trabalho. Por se tratar de uma fazenda, há inúmeros pontos vulneráveis dos quais os possíveis assassinos podem se valer, para chegar a pé ao local. À noite, a segurança é reforçada por uma equipe de 24 homens que cuidam da vigilância da área. Além da portaria, uma ronda percorre o acampamento com lanternas para verificar se não há invasores que coloquem em risco a vida da freira. A segurança dos companheiros que dividem o acampamento com ela é a única proteção que irmã Geraldinha tem durante a noite. De dia, além da segurança dos sem-terra, a Polícia Militar também vai ao acampamento, de duas a três vezes, conversa com a religiosa e retorna à cidade. “A nossa proteção é de 24 horas”, frisa Daniel Monteiro, chefe da segurança do acampamento, para destacar a importância do trabalho desempenhado pelos acampados na proteção à freira. O comando do policiamento militar da cidade foi trocado recentemente. O sargento Clóvis Bonfim de Morais é o novo responsável pela área. Veio
do município de Teófilo Otoni e traz no braço o brevê de direitos humanos. “Só quem tem muita formação na área (de direitos humanos) usa o brevê”, comenta. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República interveio para mudança no policiamento em Salto da Divisa, segundo o coordenador do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, Fernando Matos. Antes, o poder fardado não falava em direitos humanos e era caudatário dos interesses do latifúndio. Nem mesmo o ataque de um grupo que tentou incendiar o acampamento do MST demoveu os policiais de uma ação contrária aos acampados. rotina de ameaÇas
“Hoje vou comer bolo na sua casa”, dizia a voz de um homem que se identificou como Ilton Guimarães, ex-vereador e muito próximo aos latifundiários da cidade. Ele ligou para o celular da acampada Cristina Soares, no dia 27 de julho, um dia após a eleição para a Prefeitura de Salto da Divisa e que deu a vitória a Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto (DEM). A eleição aconteceu fora de época devido à cassação pelo TRE do prefeito anterior. Ronaldo faz parte de uma das duas famílias que dominam as terras da região. O número oculto registrado no identificador de chamadas impediu que Cristina soubesse de onde partira a ligação. A frase, aparentemente sem sen-
Os sem-terra protegem a entrada do acampamento do MST 24h por dia.
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tido, ganharia lógica no dia seguinte, 28 julho. Um grupo de quatro homens, em um carro, atearia fogo no acampamento do MST. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito e presidente da Fundação Tinô da Cunha, a quem pertencem as terras da Fazenda Manga do Gustavo, onde estão acampados os sem-terra, além da Fazenda Monte Cristo, que os trabalhadores rurais haviam ocupado inicialmente e onde pretendem ser assentados pelo Incra. Paulo Roberto é o locutor da Rádio Aracuã, controlada pela família Cunha Peixoto. A rádio é uma das trincheiras de ataque da família contra a freira e o MST. Irmã Geraldinha é chamada de bruxa por Paulo Roberto. Ele também xinga as mulheres sem-terra de vagabundas, além de afirmar que o acampamento é local de prostituição. A conivência do antigo policiamento com a prática truculenta dos latifundiários se evidenciou na condução do caso. Os policiais demoraram horas para atender ao pedido de socorro, segundo relato dos acampados. Além disso, quando chegaram, inverteram a situação contra os sem-terra, que de vítimas, passaram a réus. O boletim de ocorrência registrado pelos policiais militares coloca a freira, que nem estava no local no momento do incidente, como sendo responsável por sequestro e cárcere privado dos quatro homens. Para desfazer a mentira, irmã Geraldinha teve de viajar 50 km até Jacinto, cidade mais próxima a Salto da Divisa, com delegacia de polícia, para registrar um boletim de ocorrência relatando o que de fato havia ocorrido. Mas o município de Jacinto não está imune ao poder da família Cunha Peixoto. O Fórum da cidade carrega o nome do pai de José Alziton da Cunha Peixoto. A pressão contra a freira se intensificou a partir de 28 de outubro, logo após a realização de uma audiência contra o falso boletim de ocorrência da PM, que a transformava em sequestradora. No dia 30, um automóvel marca Corsa aparece próximo à entrada do acampamento. Nesse dia, a freira estava na cidade e voltaria sozinha de ônibus para o acampamento. Desceria na estrada e enfrentaria uma longa caminhada até os barracos. Certamente cruzaria com o carro que estava na tocaia. Mas o frei capuchinho Emílio Santi Piro, padre da cidade, achou perigoso ela voltar de ônibus e emprestou o seu carro. A solidariedade cristã permitiu que ela cruzasse o ponto de encontro, antes que o veículo que esperava por ela chegasse. Quando irmã Geraldinha recebeu um telefonema informando que um carro estava na tocaia à sua espera, ela já estava no acampamento. O mesmo veículo foi visto posteriormente na cidade: o motorista queria saber se a irmã estava no município. Na sequência, em 1º de novembro, a freira recebeu os três telefonemas a ameaçando de morte e resolveu quebrar o chip para atenuar a tormenta. janeiro 2010
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Pelo menos dois homens que já ameaçaram a freira várias vezes são conhecidos: são dois exsem-terra que foram expulsos do movimento pelos acampados porque eram violentos. Admilson e Caboclo passaram a trabalhar na administração do prefeito Ronaldo. Um é fiscal da varrição de ruas, o outro vigia em uma escola. Coronelismo
José Alziton é outro que persegue os sem-terra desde o primeiro dia em que o acampamento foi formado. Irmã Geraldinha conta que logo após os sem-terra terem realizado a ocupação, Alziton apareceu na fazenda com duas armas na cintura, fazendo questão de mostrá-las e gritando que aquela fazenda era sua. “Quem mandou vocês entrarem, isso aqui é meu!”, afirmava, furioso. Ao que os sem-terra respondiam em coro: “MST, a luta é pra valer”. Alziton não é o dono da fazenda ocupada. Ele presidia, até maio deste ano, o conselho da Fundação Tinô da Cunha, proprietária da Fazenda Manga do Gustavo e Monte Cristo, mas foi afastado do cargo por má administração. Em seu lugar, o Ministério Público nomeou um interventor. Além de Alziton, o prefeito Ronaldo também fazia parte do conselho da Fundação. Os recursos gerados pelas duas fazendas, e por mais três propriedades que pertencem à Fundação deveriam custear os gastos do único hospital da cidade que atendia à população. Os recursos desapareceram e aproximadamente 2 mil cabeças de gado
sumiram do pasto. As dívidas com o INSS atingem a cifra de quase 2 milhões de reais, segundo o promotor de Justiça da Comarca de Jacinto, Bruno César Medeiros Jardini. “O hospital era utilizado para fazer política, angariar votos, mas o atendimento era precário”, critica o promotor. O hospital praticamente fechou as portas, só atende casos de urgência. O prefeito não revela para a reportagem que fazia parte do conselho da Fundação Tinô da Cunha, responsável pela administração do hospital. Antes da eleição que o levou ao cargo de prefeito, o primo José Alziton chegou a encaminhar petição ao juiz da Comarca de Jacinto para se manter à frente da Fundação, argumentando que a posse de Ronaldo reduziria o problema financeiro do hospital. O prefeito Ronaldo nega à Caros Amigos que pretenda destinar recursos da prefeitura para o hospital. No entanto, ele tentou confundir a reportagem ao afirmar que a prefeitura pagava o salário de três médicos que atendiam no hospital. “O hospital está funcionando porque a prefeitura está pagando três médicos.” Na verdade, os médicos pagos pela prefeitura não atendem no hospital, mas na unidade básica de saúde. “Ficam de plantão no celular”, reconhece o prefeito. Ele não sabe explicar como ocorre a convocação dos médicos pelo celular, quando alguém passa mal. O hospital só atende casos de urgência. O prefeito nem ao menos sabe quantos enfermeiros trabalham no local. “Saúde é uma coisa muito cara”, afirma o prefeito, que tem um salário mensal de 8 mil reais.
Na região, a diferença de renda entre pobres e ricos é abissal. O próprio prefeito reconhece isso. “Ninguém nega que o município de Salto da Divisa tem uma distribuição de renda muito maldosa, muito maléfica”. O poder econômico dos latifundiários é que permite, por exemplo, que se contrate o elemento-chave e decisivo no meio agrário para que o terror persista no campo: os pistoleiros ou jagunços, como são conhecidos os matadores de aluguel. Essa tradição do coronelismo também permeou a família Cunha Peixoto, segundo apurou a reportagem. O avô do prefeito Democrata, Ronaldo, tinha vários jagunços para eliminar desafetos. A companheira de um desses pistoleiros que matava a mando de Orozimbo da Cunha Peixoto, o coronel Zimbu, concordou em conversar com a Caros Amigos. Seu verdadeiro nome, por motivos de segurança, também será alterado e o de seu marido, omitido. “Os chefes da matança eram o coronel Zimbu, avô desse demônio que está na Prefeitura, dona Inhá, Maria da Conceição Pimenta da Cunha e seu Tinô, Manoel Soares da Cunha Peixoto”, conta Alzira Borges. Os dois últimos eram tios-avôs do prefeito. Alzira sente segurança para contar essa história porque o marido já morreu, mas tem um pouco de receio de que sua identidade seja revelada. “Ele falava que se eu contasse alguma coisa, me matava”, recorda. Ela também revela a estratégia utilizada pelos coronéis de Salto da Divisa, que torna compreensível o processo de enorme concentração de terras nas mãos dessas famílias. “Essas fazendas foram tomadas na marra. Eles mandavam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria também”, conta. Alzira afirma que seu marido foi matador do coronel Zimbu por mais de 20 anos. Ela conhece de perto essa história, mora em Salto da Divisa há mais de 50 anos. O império conquistado pelos Cunha Peixoto ao longo de gerações é vastíssimo e invade também o Estado da Bahia. Segundo os sem terra, só em Salto da Divisa esses latifundiários dominam mais de 90% das terras. O prefeito Ronaldo nega a versão. “Sei lá, mas deve girar em torno de 20%, 25 %, no máximo 30% das terras. A minha família tem 23 mil hectares, juntando irmão, irmãs, primos, tios, todo mundo junto, não passa de 30%. Você pode levantar, pode passar no cartório para olhar”, afirma para minimizar a indagação. A reportagem entrou em contato com o Incra para obter detalhes sobre as propriedades, mas alterações no sistema de consulta aos dados impediram qualquer tipo de detalhamento sobre as propriedades. “Não sei quantas fazendas a minha família tem. Acho que são 25, 30 fazendas, são fazendas grandes”, desconversa o prefeito. Ele afirma ser proprietário de duas fazendas, que totalizam aproximadamente 900 hectares: Chácara Baiana e Atalaia. Em toda essa terra, nenhuma plantação. Só capim e aproximadamente 1.500 cabeças de gado de corte espalhadas pelo pasto.
O sargento da PM Clovis Bonfim de Morais é o responsável pela proteção policial à irmã Geraldinha.
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Dom Tomás Balduíno se solidariza com a freira O bispo emérito de Goiás, Dom Tomás Balduíno, afirma que as ameaças contra a vida de Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, acontecem devido à sua destacada atuação para a efetivação da reforma agrária na região. Ele fez questão de ir a Salto da Divisa para prestar solidariedade à freira. “A Geraldinha dá apoio aos trabalhadores e se torna um obstáculo ao latifúndio.” O bispo, de 86 anos de idade, ressalta que a freira tem seu apoio. “Ela não está sozinha, conta, inclusive, com apoio internacional importante. Vão pensar mais de uma vez antes de praticarem alguma repressão”, conclui, ao se referir a um eventual atentado contra a irmã. Além de bispo, Dom Tomás também é conselheiro da CPT, a Comissão Pastoral da Terra. A participação do clero progressista na luta pela divisão da terra dá calafrios nos latifundiários da região. As petições encaminhadas por José Alziton da Cunha Peixoto ao juiz da Comarca de Jacinto revelam a ira dos latifundiários contra os religiosos que defendem a reforma agrária. “Esses simpatizantes, aliados e defensores da ditadura do proletariado, transvestidos de grupos religiosos ou de pretensos defensores dos direitos do cidadão ou de defesa do meio ambiente, infelizmente têm influenciado o digno promotor”, afirma uma das passagens. Em outro trecho, a ideologização avança. “Alicerçados na Teoria da Libertação e amparados pelas Comunidades Eclesiais de Base, estes segmentos pífios, embora barulhentos da Igreja Católica – desprezados e condenados pelo Papa Bento XVI e a maioria do clero contemporâneo, considerados os responsáveis pelo êxodo dos fiéis – tem de forma irresponsável, sob o discurso da proteção aos excluídos, causado a cizânia em diversas regiões do país. No caso em pauta, trabalharam decisivamente para a invasão das terras da Fundação pelo MST”, enfatiza o texto. Em uma outra passagem, cita explicitamente a freira. “Como confessado pela irmã Geralda Magela da Fonseca e seus seguidores... demonstram à sociedade seu caráter ideológico de viés e iminentemente político, toda esta discussão a respeito da Fundação tem como objetivo único manchar a imagem da família Cunha Peixoto.” O primo de José Alziton e irmão do prefeito Ronaldo, Paulo da Cunha Peixoto, também tem verdadeiro pavor da irmã Geraldinha. “Essa freira não presta, só fica ensinando o que não deve para os acampados”, conta um dos entrevistados que prefere não ter o nome revelado por medo de possíveis retaliações em função do que ouviu.
Os ataques contra o clero progressista não intimidam Dom Tomás. Ele argumenta que a luta pela reforma agrária deve ser ainda mais ampla do que a mera conquista de um assentamento. “Deve ter o objetivo de mudar a estrutura fundiária deste país”, salienta. O sacerdote destaca que o Brasil é o recordista em concentração de terras. “Já superou Serra Leoa (na África). É preciso levar democracia ao campo.” Democracia é tudo o que os coronéis não querem que chegue à zona rural. Eles querem continuar mandando. Por isso, perseguem todos aqueles que representam entraves a esse objetivo. Além dos sem-terra, os latifundiários também perseguem os posseiros. José Alziton chegou a levar a polícia para sequestrar os animais dos posseiros que moram na Fazenda Monte Cristo, da Fundação Tinô da Cunha, que ele presidia até ser destituído do cargo pelo Ministério Público por má administração. “Pegaram os animais sem a nossa ordem e levaram. Trouxeram soldados para nos intimidar”, conta um dos posseiros que teve os animais roubados na presença da PM. O nível das arbitrariedades que são cometidas nos rincões mais distantes do país impressiona. Latifúndio improdutivo
A Fazenda Monte Cristo de 1.400 hectares é um latifúndio improdutivo, conforme atesta o laudo do Incra de julho de 2005. O presidente Lula chegou a assinar o decreto declarando a área de interesse social para fins de reforma agrária. A assinatura do decreto presidencial é o último passo para que a área seja desapropriada pela Justiça. Mesmo assim, a fazenda está sendo vendida com o consentimento do Ministério Público Estadual. O ex-presidente da fundação, José Alziton, estaria, portanto, descumprindo uma determinação presidencial ao vender a propriedade. No entanto, os representantes da Fundação Tinô da Cunha deram uma cartada de mestre contra os sem-terra. Valendo-se das brechas da legislação, os advogados entraram com uma ação cautelar, para se prevenir da desapropriação. Eles sabiam que o laudo do Incra só poderia dar no que deu: a terra foi considerada improdutiva. Mesmo assim o juiz acolheu a ação. “Normalmente não se suspende um processo governamental por qualquer coisa”, frisa o procurador do Incra, Luzio Horta de Oliveira. Ele conta que a argumentação que sustenta a peça afirma que a renda do imóvel sustenta um hospital, “e o juiz se sensibilizou com o argumento.”
“Não quero um pedaço de terra. Meu objetivo é acompanhar essas pessoas”, declara Dom Tomás Balduíno Novo sítio: www.carosamigos.com.br
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O bispo Dom Tomás Balduíno apoia a luta por reforma agrária.
O Incra recorreu da decisão, mas o tribunal manteve. A baixa celeridade da justiça fez com que o decreto assinado pelo presidente Lula caducasse. A ação cautelar deverá ser julgada na 12º Vara Federal de Belo Horizonte. A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com o juiz titular da Vara, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. São injustiças como essa que motivam irmã Geraldinha a continuar na luta contra o latifúndio. A vocação para estar do lado dos oprimidos veio desde cedo. “Com dez, onze anos eu ouvia no rádio notícias sobre as irmãs missionárias que iam pelo mundo evangelizar, e gostava.” Mas os pais pobres acreditavam que para formar uma filha freira era preciso dinheiro. Geraldinha é mineira de São Domingos e tinha 14 irmãos. Deixou o sonho adormecido por algum tempo e teve dois namorados antes de se tornar a irmã Geraldinha. Cresceu no ambiente rural e apesar de ter muitas afinidades com a vida religiosa só fez a primeira comunhão aos 16 anos. Com 22, foi crismada. Foi durante o curso preparatório para o crisma que ela percebeu que poderia se tornar freira. Foi para Salto da Divisa em 1993. Primeiro para morar na cidade, e nestes últimos três anos vivendo sob uma lona preta no acampamento do MST. “Não quero um pedaço de terra. Meu objetivo é acompanhar essas pessoas”, revela. Ela também milita na área de direitos humanos. É vice-presidente do GADDH (Grupo de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos). Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br janeiro 2010
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O advogado Leandro Scalabrin foi o primeiro a denunciar o pedido do Ministério Público Estadual de extinção do MST.
“O RS vive um
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Ações do governo gaúcho retomam métodos das ditaduras militares brasileira e chilena.
echamento de escolas, áreas restritas de manifestações, cancelamento de títulos eleitorais, monitoramento ilegal e classificação de “terroristas” para os movimentos sociais. Em entrevista, o advogado Leandro Scalabrin afirma que as violações do governo gaúcho retomam métodos das ditaduras militares brasileira e chilena. Integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renaap) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB em Passo Fundo (RS), Scalabrin foi a primeira pessoa a denunciar a existência da ata do Ministério Público Estadual pedindo a extinção do MST e as normas da Brigada Militar para despejos, no ano passado.
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Como definir a situação dos movimentos sociais e dos direitos humanos no Rio Grande do Sul? Leandro Scalabrin - O Rio Grande do Sul pode ser considerado um Estado de Exceção porque restringe o direito de reunião, de ir e vir, de livre manifestação e de liberdade de imprensa; mantém banco de dados com informações referentes às convicções ideológicas de cidadãos; viola o sigilo das comunicações telefônicas; realiza prisões ilegais em massa, tortura, desaparecimentos temporários e usa arbitrariamente a força contra protestos. A Constituição Federal dispõe que só o Presidente da República poderia restringir os direitos de reunião e sigilo de comunicações, após decre-
tar o Estado de Defesa e depois de ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. A Constituição Estadual gaúcha proíbe registros e bancos de dados com informações referentes à convicção política, filosófica ou religiosa. O Estado de Exceção vigora no RS desde a promulgação da Instrução Operacional nº 006.1 (IO-6) de outubro de 2007 pelo Estado Maior da Brigada Militar. Esta “instrução” promulgada e aplicada pela Brigada Militar restringe o direito de manifestação, reunião, ir e vir e de liberdade de imprensa, cria um aparato militar para monitoramento e manutenção de banco de dados com convicções ideológicas de opositores do governo e mo-
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vimentos sociais; e estabelece o uso da violência contra manifestações. O governo do RS se coloca acima da Constituição e das convenções internacionais de direitos humanos ao se auto-atribuir o poder soberano e imperial de definir novas regras excepcionais para a sociedade gaúcha, arbitradas por ele mesmo.
Há paralelos na história brasileira com esta situação no RS hoje? O paralelo mais recente para a situação do Rio Grande do Sul, onde um general comanda a Segurança Pública e os coronéis estão nas ruas dizendo o que o povo pode fazer ou não, é a ditadura civil-militar brasileira implantada com o golpe de 1º de abril de 1964 e que rompeu uma estabilidade democrática de 19 anos. Desde a redemocratização em 1985 os militares não detinham tamanho poder em suas mãos. De que forma esta situação articula diversas instituições do Estado? De duas formas, sendo a primeira através da aceitação do que vem ocorrendo pelo Ministério Público Estadual (MPE), que deveria exercer o controle externo sobre a polícia e não o exerce. O CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) recomendou ao MPE que ingressasse com ação judicial para revogar a IO-6, mas a recomendação não foi acatada, ou seja, não se trata de mera omissão, mas de aceitação do Estado de Exceção. Isto não é gratuito: o governo estadual possui vários integrantes do Ministério Público em seu primeiro escalão e não se submeteu ao resultado da eleição para o cargo de Procurador Geral de Justiça nomeando a segunda mais votada. A segunda forma de articulação decorre da criação de uma “força especial” dentro do Ministério Público Estadual, que atua de forma integrada com a Brigada Militar, Poder Judiciário e o Serviço de Inteligência. Esta “força especial” foi criada a partir da elaboração de um relatório e da aprovação do voto do Procurador Gilberto Thums pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), onde o caráter do maior movimento social do Estado, o dos trabalhadores sem terra, é considerado “paramilitar”. Somando-se a isto uma procuradora do Ministério Público Federal ingressou com ação alegando que a organização dos trabalhadores é uma organização terrorista. Quais são as consequências práticas desta decisão? Ao considerar este movimento social como uma organização paramilitar e terrorista, o MPE e aquela procuradora federal praticamente deram sinal verde para a repressão militar ao movimento, que é atacado como se fosse um “inimigo” interno do Estado. Mas não é só, a partir da deliberação do CSMP, foram propostas quatro ações civis públicas contra os principais acampamentos de sem-terra no Estado que através do deferimento de medidas liminares do Poder Judiciário criaram uma “zona de restrição do direito de manifestação” numa faixa de dois quilômetros ao redor da Fazenda Southal (13.207 hectares) em São Ga-
briel, Fazenda Guerra em Coqueiros do Sul (8.000 hectares), Granja Nenê em Nova Santa Rita (1.246 hectares) e Fazenda Palma (3.029 hectares) em Pedro Osório. Através de um TAC - Termo de Ajustamento de Conduta – firmado entre a Secretaria Estadual de Educação e o MPE, foram fechadas as Escolas Itinerantes localizadas nos acampamentos de sem-terra no Estado do RS, a partir do ano letivo deste ano. E por fim, uma ação civil pública dissolveu o MST na Comarca de Sarandi, onde ele surgiu 25 anos atrás, onde a decisão liminar proibiu ocupação “por integrantes do MST, de qualquer outra área localizada há menos do que 5 km de rodovia, seja a via federal, estadual ou municipal. Todas estas ações são encaminhamento da política do MPE. Anteriormente a aprovação da política institucional pelo CSMP, já haviam sido encaminhadas ações na Comarca de Carazinho para cancelar a transferência dos títulos eleitorais de 60 sem-terra acampados em Coqueiros do Sul e impedir as marchas de sem-terra de ingressarem na comarca de Carazinho, jurisdição que abrange os Municípios de Carazinho, Almirante Tamandaré do Sul, Coqueiros do Sul e Santo Antônio do Planalto (uma área de 2.108 km2).
Trata-se, então, de uma articulação entre o Poder Executivo e o Ministério Público? A articulação é mais ampla: envolve os grandes proprietários rurais representados pela FARSUL, empresas multinacionais, a bancada ruralista na Assembleia Legislativa e os grandes meios de comunicação do Estado, todos unindo forças para manter a absurda concentração de terras no RS que coloca a maioria das terras na mão de muito poucos. Este é o objetivo da articulação: manter a disparidade na distribuição de terras e os privilégios dos proprietários que através delas conseguem acessar fundos públicos. E como tem sido o comportamento da Brigada Militar no RS? A Brigada Militar possui bancos de dados com informações ideológicas de partidos políticos, deputados, diretórios acadêmicos, sindicatos e movimentos sociais. Monitora as sedes de entidades, lideranças e locais de possíveis manifestações; apreende equipamentos e carros de som de sindicatos nas portas de fábrica. Quando identificam pessoas que irão participar de protestos, as pessoas são impedidas de ir e vir, com a detenção dos veículos onde estão (ônibus). Se a Brigada não consegue impedir os protestos, os reprime com uso imoderado de violência, cavalaria, cães e bombas, contra protestos e manifestações de bancários, professores, metalúrgicos, comerciários, estudantes, movimentos sociais. Nestes casos a Brigada já quebrou a perna de uma professora, causou hemorragia interna num pequeno agricultor, atirou pelas costas contra dois trabalhadores sem-terra tendo matado um deles, além de causar inúmeros ferimentos em cerca de trezentos manifestantes nos últimos dois anos. Além da violência, usa algemas arbitrariamente e existem casos de desaparecimento temporário de manifestantes, caso de um estudante da UFRGS. Ocorreram vá-
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rios casos de prisão temporária em massa de duzentas, trezentas pessoas, da mesma forma como ocorria no Chile de Pinochet. Durante os despejos a liberdade de imprensa e as prerrogativas de advogados são desrespeitadas. Além de tudo existem dois casos comprovados de tortura em caráter coletivo contra manifestantes. O ex-ouvidor da Secretária de Segurança Pública denunciou o uso de grampos ilegais com finalidade política e existe um fato novo vinculado ao uso de armas de choque como forma de torturar manifestantes. Outro fato digno de nota foi a dissolução do Encontro Estadual do MST, com cerca de mil pessoas, na Fazenda Annoni, em 2008, exatamente 40 anos depois das forças armadas terem feito o mesmo com o congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo.
O Governo gaúcho pode alegar que estas ações são legais? As prisões em massa violam a presunção de inocência prevista na Constituição. A dissolução do congresso do MST, apreensão de carros de som de sindicatos, ameaças públicas, violência contra passeatas, violam o direito constitucional de livre manifestação e reunião. O “aparato militar” criado pela Brigada, com atuação na investigação de sindicatos e partidos, na repressão e na articulação via imprensa e ministério público, viola o princípio constitucional da separação de esferas de atuação das polícias, colocado na constituição para evitar o surgimento de um novo Dops, como este que surgiu no RS. Os grampos ilegais violam o direito de inviolabilidade das comunicações. A política de “ações rígidas”, ou seja, violentas, em manifestações, viola o Código de conduta para os encarregados da aplicação da lei, adotado pela ONU através da Resolução 34/169 de 17/12/1979; e os Princípios Básicos para utilização da força e armas de fogo, adotado pela ONU em 07/07/1990. As deliberações do CSMP violam o princípio constitucional e a garantia à sociedade de independência funcional dos Promotores. O que é possível prever hoje sobre esta situação? A criminalização dos movimentos sociais irá se acentuar? O aparato militar de repressão política poderá ser adequado ao Estado de Direito com a mudança do comandante supremo da Brigada Militar , o Governador do Estado. Todavia, a deliberação do CSMP que caracteriza o MST como uma organização terrorista, independente da mudança de governo, continuará sendo executada nas comarcas onde promotores locais, a despeito de sua independência funcional, se submeterem à deliberação superior ilegal e encaminharem as ações ali propostas, como de fato vem ocorrendo em Carazinho, Canoas, Pedro Osório, São Gabriel, onde foram criadas as zonas de restrição de direito (onde não pode haver manifestações), Sarandi (onde o MST foi dissolvido através da proibição de acampar) e Porto Alegre (onde foi firmado o TAC que fechou as escolas). Miguel Enrique Stedile é jornalista. janeiro 2010
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Bianca Costa e Roberto Dornelles
Resistência
no campo e na cidade Em 2009, foram mais de dez protestos contra o governo de Yeda Crusius (PSDB). As manifestações pediam desde o esclarecimento sobre casos de corrupção envolvendo o governo até o impedimento da governadora. Tem sido assim ao longo dos três anos de governo. Em um dos protestos mais contundentes contra a governadora, organizado pela Via Campesina em 2008, mais de 17 pessoas ficaram feridas. Na ocasião, cerca de 400 policiais militares da Tropa de Choque da Brigada Militar (a polícia militar gaúcha) foram mobilizados para reprimir três mil manifestantes. Em julho de 2009, uma manifestação organizada pelo Fórum dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul, em frente à casa da governadora, expôs o lado autoritário de Yeda Crusius. Na ocasião, a chefe do executivo acusou os professores de “torturadores de crianças”. Além disso, a polícia gaúcha algemou e deu voz de prisão à presidente do Sindicato dos Professores do Estado (CPERS-Sindicato), Rejane de Oliviera e à vereadora Fernanda Melchionna (Psol). As manifestações representam o descontentamento de grande parte da população gaúcha, que não concorda com as políticas de “choque de gestão” do governo Yeda. Um governo que começou contrariando a expectativa dos seus eleitores ao tentar aumentar impostos antes mesmo de assumir o mandato. A oposição na Assembleia Legislativa tenta resistir aos projetos que chegam do Executivo e que priorizam as grandes empresas em detrimento dos interesses da população. No entanto, há uma dificuldade da oposição em combater e investigar as ações do governo. Para o deputado Raul Pont (PT), a CPI da Corrupção não conseguiu cumprir seu papel, pois a maioria de seus integrantes é da base governista. “Os membros da comissão taparam os ouvidos, se recusaram a ouvir provas. Então, foi a Anticomissão Parlamentar de Inquérito quando os próprios parlamentares se recusaram a ter acesso às provas é porque aquilo foi uma farsa”, denuncia. Segundo Raul Pont, outra forma da oposição contestar as políticas e as ações do governo, é denunciar para a imprensa suas falhas e contradições. Entretanto, conforme Pont, a grande imprensa não repercute as denúncias, e mais do que isso, dissemina a versão oficial. “A política neoliberal do governo só não é desmascarada para quem não conhece e graças à cumplicidade dos meios de comunicação que sustentam a versão do governo”, afirma. Em agosto do ano passado o sem-terra Elton Brum da Silva foi assassinado em uma ação da Brigada Militar de reintegração de posse da Fazenda
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Southal, em São Gabriel, na fronteira oeste. O assassinato do sem-terra faz parte de uma política de repressão que levou a Brigada Militar a ser a única polícia do país a não adotar as “Diretrizes Nacionais para Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva”, propostas pela Ouvidoria Agrária Federal. Antes disso, em 2007, Yeda extinguiu o Gabinete da Reforma Agrária da Secretaria Estadual de Agricultura, deixando claro que no estado a Reforma Agrária se tratava apenas de um caso de polícia. Para tentar conter o avanço dessas determinações, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) aposta na educação como um meio de resistência. Nina Tonin, da coordenação estadual do MST, acredita que a educação é um dos instrumentos mais eficazes para resistir às políticas excludentes do governo Yeda Crusius. “Nós defendemos a necessidade do conhecimento para os trabalhadores e mesmo com o fechamento das escolas pela governadora, e a repressão aos movimentos sociais populares, em condições mais precárias nós temos recebido apoio de entidades e de movimentos sociais em geral, para garantir as condições mínimas de escolarização nos acampamentos, e seguimos nesse processo. Também temos criado e aberto outros espaços formativos e educativos formais e informais como nunca na história do MST. Nesses 25 anos nunca tivemos tantos camponeses e camponesas jovens e adultos estudando de alguma forma para que o campo gaúcho seja um lugar bom de se viver.” O setor que mais sofreu com as políticas de “choque de gestão” foi justamente a educação. Em 2008, a Secretaria da Educação colocou em prática o projeto de “enturmação”, em que turmas foram extintas para a formação de salas de aulas com mais alunos nas escolas. Ainda neste mesmo ano, o governo alugou contêineres de lata para suprir a falta de salas de aula. Escolas que funcionavam em prédios antigos, que precisavam de reformas, foram substituídas pelas “escolas de lata”. Até o momento, uma ação que deveria ser emergencial, se transformou em uma rotina insalubre para professores e estudantes, em diversas cidades do estado. A presidente do CPERS, Rejane de Oliveira, afirma que o governo representa o projeto neoliberal. Para ela, a proposta de Yeda tem na sua matriz o ataque aos direitos dos trabalhadores, a corrupção e a criminalização dos movimentos sociais. “Nós tomamos uma decisão política de fazer o enfrentamento político com este governo. Entendemos que a única forma que o movimento tinha de barrar as
políticas de sucateamento e extermínio das áreas sociais do Estado, como também o ataque frontal aos nossos direitos, era fortalecermos a denúncia do tema da corrupção e enfraquecermos o governo a ponto de ele não ter força para votar projetos na Assembleia Legislativa que atacassem os direitos dos trabalhadores”, explica. Ainda conforme Rejane, após as denúncias de corrupção tomarem grandes proporções no Estado, os sindicatos e movimentos sociais passaram a ser perseguidos. “Todas as denúncias que nós fizemos geraram, por parte do governo, grandes mecanismos de tentar calar a voz do movimento através de ações na Justiça, indiciamentos, perseguições políticas, ameaças e a instituição do medo nos locais de trabalho. Isso fez com que o governo evitasse o processo de mobilização”. Mas a pressão do governo não teve o efeito desejado. Neste ano, o CPERS protagonizou o movimento “Fora Yeda”, que percorreu as cidades do estado para denunciar os casos de corrupção. Uma pesquisa realizada pelo Fórum dos Servidores Públicos mostrou que 94% dos 94 mil pesquisados afirmaram que a governadora Yeda é culpada pelos casos de corrupção no Estado. A administração tucana no RS também tenta desmontar a legislação ambiental do Estado. Atualmente, tramita na Assembléia o projeto de lei 154/2009, de autoria do deputado Edson Brum (PMDB), que flexibiliza o Código Ambiental e beneficia o agronegócio. Para tentar reverter esse quadro, ambientalistas, sindicatos e os movimentos sociais se uniram para discutir a situação. De acordo com o ambientalista Felipe Amaral, a partir da organização desses setores foi possível levar para a sociedade informações a respeito das intenções do governo. “Quando a gente identificou essa estratégia do governo, os ambientalistas buscaram articulação com outros setores da sociedade. Uma das características que a gente vem construindo é a articulação com os movimentos sociais urbanos e do campo na tentativa de fortalecer a luta dos ambientalistas. Essa perspectiva de trabalhar em bloco com os movimentos sociais e sindicatos, possibilitou que a gente desse uma maior visibilidade para a discussão ambiental,” relata. Os metalúrgicos também criticam o governo por não propor políticas de alternativa à crise financeira mundial. Conforme o secretário geral da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, Jairo Carneiro, desde o início da crise, o estado perdeu 50 mil postos de trabalho. Para ele, o governo não enfrentou a crise com a seriedade necessária. “Nós observamos que é uma administração que fica se gabando do déficit zero, mas fazer déficit zero é fácil, pois é só não investir, não pagar aumento salarial dos trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo em que se gaba do déficit zero, o executivo concede incentivos para a GM. Até quando essas empresas vão ficar sem pagar impostos? A GM faz 10 anos que não paga e agora vai ficar mais 15?”, questiona. Bianca Costa e Roberto Dornelles são jornalistas.
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Frei Betto
Fidel Castro
ANO NOVO,
A Revolução Bolivariana
VIDA NOVA
Chegamos a 2010! Terminou a primeira década do século XXI.
e a paz
A Revolução na Venezuela
Estamos a nos aproximar mais perto de nós mesmos? Há uma abissal distância entre o que somos e o que queremos ser. Um apetite de Absoluto e a consciência aguda de nossa finitude. Olhamos para trás: a infância que resta na memória com sabor de paraíso perdido, a adolescência tecida em sonhos e utopias, os propósitos altruístas. Agora, nas atuais circunstâncias, o salário exíguo num país tão caro; os filhos, sem projeto, apegados à casa; os apetrechos eletrônicos que perenizam a criança que ainda resta em nós. Em volta, a violência da paisagem urbana e nossa dificuldade de conectar efeitos e causas. Como se meninos de rua fossem cogumelos espontâneos e não frutos do darwinismo econômico que segrega a maioria pobre e favorece a minoria abastada. O mesmo executivo que teme sequestro e brada contra bandidos, abastece o crime ao consumir drogas e corromper o poder público. Ano novo, vida nova. No fundo da garganta, um travo. Vontade de remar contra a corrente e, enquanto tantos celebram a pós-modernidade, pedir colo a Deus e resgatar boas coisas: a oração em família, o amor sem pressa, a leitura dos místicos, o diálogo amigável com os filhos, a solidão entre matas, o gesto solidário capaz de amenizar a dor de um enfermo. Reencontrar, no ano que se inicia, a própria humanidade. Despir-se do lobo voraz que, na arena competitiva do mercado, nos faz estranhos a nós mesmos. Ano novo de eleições. Olhemos a cidade, o estado, o país. As obras que beneficiam empreiteiras trazem proveito à maioria da população? Melhoram o transporte público, o serviço de saúde, a rede educacional, o saneamento? Nosso bairro tem um bom sistema sanitário, as ruas são limpas, há áreas de lazer? Participamos do debate sobre o orçamento municipal? Os políticos em quem votamos têm desempenho satisfatório? No combate à violência, eles remetem às áreas de conflito policiais ou professores? Em política, tolerância é cumplicidade com maracutaias. Voto é delegação e, na verdadeira democracia, governa o povo através de seus representantes e de mobilizações diretas junto ao poder público. Quanto mais cidadania, mais democracia. Ano de nova qualidade de vida. De menos ansiedade e mais profundidade. Aceitar a proposta de Jesus a Nicodemos: nascer de novo. Mergulho em si, abrir espaço à presença do Inefável. Braços e corações abertos também ao semelhante. Recriar-se e apropriar-se da realidade circundante, livre da pasteurização que nos massifica na mediocridade bovina de quem rumina hábitos mesquinhos, como se a vida fosse uma janela da qual contemplamos, noite após noite, a realidade desfilar nos ilusórios devaneios de uma telenovela. Feliz homem novo. Feliz mulher nova. Como filhos das núpcias de Teresa de Ávila com Ernesto Che Guevara.
encara problemas completamente novos que não existiam quando, há 50 anos, triunfou a Revolução em Cuba. O tráfico de drogas, o crime organizado, a violência social e o paramilitarismo mal existiam. Nos Estados Unidos ainda não havia surgido o enorme mercado atual de drogas que a sociedade de consumo criou naquele país. Para a Revolução, não significou um grande problema combater o tráfico de drogas em Cuba e impedir sua produção e consumo internos. Para o México, a América Central e a América do Sul, estes flagelos significam hoje uma crescente tragédia longe de ser ultrapassada. Ao intercâmbio desigual, ao protecionismo e ao saque de seus recursos naturais, somaram-se o tráfico de drogas e a violência do crime organizado que o subdesenvolvimento e o gigantesco mercado de drogas dos Estados Unidos criaram nas sociedades latino-americanas. A incapacidade daquele país imperial para impedir o tráfico e o consumo de drogas deu lugar em muitas partes ao cultivo de plantas, cujos valores como matérias-primas para as drogas ultrapassavam muitas vezes os dos demais produtos agrícolas. Os paramilitares da Colômbia constituem hoje a primeira tropa de choque do imperialismo para combater a Revolução Bolivariana. Precisamente por sua origem militar, Chávez sabe que a luta contra o narcotráfico é um pretexto vulgar dos Estados Unidos para justificar um acordo militar que responde inteiramente à concepção estratégica desse país, para estender seu domínio do mundo. As bases aéreas e a impunidade total dada pela Colômbia a militares e civis ianques no seu território não têm nada a ver com o combate às drogas. Este é hoje um problema mundial; estende-se não apenas pela América do Sul, mas também pela África e por outras áreas. No Afeganistão já reina, apesar da presença em massa das tropas ianques. A droga não deve ser um pretexto para instalar bases, invadir países e levar a violência, a guerra e o saque aos países do Terceiro Mundo. É o pior ambiente para criar virtudes cidadãs e levar educação, saúde e desenvolvimento a outros povos. Enganam-se os que acreditam que dividindo colombianos e venezuelanos terão sucesso em seus planos contrarrevolucionários. Muitos dos melhores e mais humildes trabalhadores da Venezuela são colombianos e a Revolução lhes deu educação, saúde, emprego, direito à cidadania e outros benefícios para eles e seus entes mais queridos. Todos eles juntos, venezuelanos e colombianos, defenderão a grande Pátria do Libertador da América; juntos lutarão pela liberdade e pela paz. Os milhares de médicos, educadores e outros cooperadores cubanos que cumprem seus deveres internacionalistas na Venezuela estarão junto a eles!
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.
Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba
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Marcelo Salles
Construindo uma
educação técnica e libertadora Primeiro fórum temático sobre educação tecnológica reúne 15 mil pessoas de 18 países. O pedagogo Moacir Gadotti resume a importância do encontro: “Nenhum país pode se desenvolver sem uma base tecnológica”.
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agência brasil
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ebates, atividades culturais e gastronômicas, feira tecnológica e até o julgamento da anistia de um dos mais importantes educadores do planeta (Paulo Freire), entre outras coisas. Imagine isso com a participação de 15 mil pessoas de dezoito países, em plena capital da República, com direito à presença do presidente Lula na conferência de abertura, e será possível ter uma ideia do que foi o Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, realizado na última semana de novembro. O Centro de Convenções Ulisses Guimarães, no alto de seus 10 mil m2 ficou pequeno, parecia o Maracanã em dia de jogo do Flamengo. Moacir Gadotti, doutor em Ciência da Educação pela Universidade de Genebra e um dos organizadores do evento, relacionou outros países que já sediaram o Fórum: Bolívia, Colômbia, Chile, Uruguai e Venezuela. Espanha e Palestina serão os próximos. Em Brasília, o professor elogiou bastante a realização deste que foi o primeiro fórum temático sobre educação tecnológica. (Veja entrevista). Durante a abertura do fórum, Eliezer Pacheco, Secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, ressaltou: “Educação técnica não é formação de mão-de-obra para o capital. O jovem pode ser mecânico, como também pode ser filósofo ou poeta”. A propósito, Paulo Freire, no livro “Pedagogia do Oprimido”, havia anotado: “A formação técnico-científica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente e de sua humanização”. E o presidente Lula anunciou: nos sete anos de sua gestão foram inauguradas 96 escolas técnicas e 38 institutos federais; até o final do mandato, 214 novas unidades terão sido implantadas e a rede contará então com 354 escolas. Entre os debates, um dado em especial causou repercussão: dois terços dos que produziram os campos de concentração nazistas tinham doutorado. E aí ficou evidenciado o caráter paradoxal da educação, que tanto pode contribuir para o desen-
Moacir Gadotti, Marina Silva e Leonardo Boff participam do primeiro fórum temático sobre educação tecnológica.
volvimento quanto pode ser útil à destruição. Depende de como o conhecimento é aplicado, e neste ponto chegamos a Paulo Freire, fundador da “Pedagogia do Oprimido”. Seu método de educação libertadora – do educar “com” e não “para”, do todos aprendem juntos, educador e educando – esteve presente neste fórum, sobretudo quando representantes do governo brasileiro analisaram, publicamente, o processo de anistia política do educador brasileiro. A Comissão de Anistia fez o julgamento diante de milhares de pessoas que lotaram o auditório principal do Centro de Convenções. Um breve histórico de Paulo Freire foi recuperado: a extinção de seu Plano Nacional de Alfabetização foi uma das primeiras medidas da ditadura civil-militar, levada a cabo apenas duas semanas depois do golpe. O ato Institucional nº 1 obrigou o professor a abandonar as funções que exercia na então Universidade do Recife, Paulo Freire ficou preso por 70 dias e, em seguida, foi para o exílio. Durante 16 anos, esteve privado de viver em sua pátria, regressando em
1980. Enquanto esteve fora, até documentos básicos, como passaporte, foram-lhe negados. A viúva, Ana Maria Freire, fez um discurso emocionado. Conjugou a atuação político-pedagógica de Paulo Freire com fragmentos de sua intimidade, do amor por Recife, a quem dedicou até poesias. “A cidade é como uma dama que se entrega aos poucos”, citou. “Paulo levava a educação libertadora pros quatro cantos do continente, enquanto no Brasil era proibido de pisar (...) Hoje, Paulo, finalmente você pode descansar em paz”. Fez muita gente chorar. O advogado Edson Pistori, relator do processo, leu seu parecer: “A perseguição que Paulo Freire sofreu, mais do que qualquer outro caso que já julgamos nessa comissão, constitui um caso de perseguição política coletiva, que teve implicações para milhares de brasileiros”. A decisão teve apoio unânime dos membros do colegiado, que, além do título de anistiado político a Paulo Freire concederam ainda uma reparação no valor de 100 mil reais à Ana Maria Freire.
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ENTREVISTA: MOACIR GADOTTI
“O oprimido precisa de uma pedagogia para entender a opressão” Organizador do Fórum Mundial de Educação, Moacir Gadotti nasceu no interior de Santa Catarina e tem 68 anos. Pedagogo e filósofo, é doutor em Ciência da Educação pela Universidade de Genebra, doutor honoris causa pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e presidente do conselho deliberativo do Instituto Paulo Freire.
O que é o Fórum Mundial de Educação? Nós nascemos dentro do Fórum Social Mundial (FSM), em janeiro de 2001. Havia pouco debate relacionado à educação, então as poucas entidades de educação que estavam lá propuseram a realização de um Fórum Mundial de Educação com base na mesma filosofia do FSM. O primeiro foi em outubro de 2001, o segundo em 2003, o terceiro em 2004. Depois, a partir de 2005, os fóruns sempre foram feitos dentro do FSM ou uns dias antes, para aproveitar o espaço e também para não dispersar esforços e custos com deslocamentos. Sobre o que foi essa edição, em Brasília? A edição desse ano foi temática, sobre educação tecnológica profissional. Na Bolívia, houve um sobre Educação Bolivariana, também em Cartagena, na Colômbia, no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Venezuela, além da Espanha, que vai sediar um temático Educação para a Paz. Na Palestina também está previsto um para outubro de 2010, com o tema Educação Sem Fronteiras, Educação como diálogo. Querem mostrar uma outra Palestina, da universidade, do estudo, da arte, da comunicação, das crianças que não aparecem. Só aparece um país desestruturado, mas tem um outro lado também. Esse vai ser um grande desafio para nós. Queremos que o Fórum também seja um espaço ligado aos movimentos sociais. O direito à educação é defendido não como um direito setorial, mas integrado a outros direitos. Por isso, a metodologia proposta é a integração da agenda da educação com as agendas da luta urbana, da Via Campesina, de outros movimentos sociais, direito à água, à terra, à moradia, à cultura... Por que a Finlândia tem os melhores indicadores de desenvolvimento e educação? Também ela conta com as pré-condições: a moradia está resolvida, saúde está resolvida... O Fórum se diz organizado em torno de uma alternativa ao projeto neoliberal. O que significa isso? Fundamentalmente, a concepção do projeto
político-pedagógico do neoliberalismo é a visão mercantilista da educação. O neoliberalismo tem a visão de que a educação não é um direito, mas um serviço, ao qual tem acesso aquele que pode pagar. Então essa mercantilização tem sido um combate central por parte do FME, porque a educação é um direito. Como a educação é considerada um direito humano, tornar a educação mercadoria é a negação desse direito. Como disse o Leonardo Boff em sua palestra no Fórum, essa crise não é mais uma crise financeira, econômica, ou simplesmente uma convergência de crises. Estamos diante de uma crise civilizatória. Estamos necessitando de uma outra forma de produzir e reproduzir nossa existência no planeta. O capitalismo, no fundo, por sua ganância pelo lucro, leva à destruição do planeta. Isso Marx já havia previsto, que o capitalismo não destruiria só o ser humano, destruiria a natureza também.
O que seria uma educação libertadora? Alguns acham que isso está superado, que Paulo Freire está superado. Primeiro devemos reconhecer a humildade de que qualquer contribuição é sempre limitada. Mas dizer que está superada é dizer que não há mais oprimido no mundo. O oprimido precisa de uma pedagogia para entender a opressão e superar essa opressão. Então ela é muito válida. A antropologia dele é que o ser humano está em constante mudança. A teoria do conhecimento é que para você se completar como ser humano precisa ser curioso para completar o conhecimento. Ele era muito rigoroso, dizia que o conhecimento verdadeiro só é objeto quando é compartilhado. Foram 15 mil inscritos, pessoas de 18 países. Queria que você destacasse os pontos mais importantes. Foi o primeiro Fórum temático sobre educação tecnológica. Mostra o resultado de um governo que levou a sério o ensino técnico e profissional. Há dados impressionantes do número de escolas tecnológicas sendo construídas durante o governo Lula. Vão quadruplicar o número que existia anteriormente. Por que isso é importante? Porque nenhum país no mundo pode se desenvolver sem uma base tecnológica, de quadros que são preparados já no ensino médio. Só a realização foi o resultado de um avanço impressionante nessa área no Brasil. Em segundo lugar, temos a concepção do ensino profissional
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tecnológico, pois foi realçada a importância de uma formação geral, humanista. A formação tecnológica não é para o mercado, mas para o ser humano. Não basta hoje apertar um parafuso. O tecnólogo não é quem domina o pedacinho da tecnologia, mas tem uma formação geral que lhe permite migrar entre as áreas. Porque as profissões evoluem muito rapidamente. Às vezes você começa um curso de quatro anos numa profissão e, quando termina, essa profissão já desapareceu. Então a formação politécnica é muito importante. Isso ficou muito evidente nos debates. E hoje existem mais de 15 mil profissões de nível médio, mas há pouquíssimas ofertas de ensino.
Tive a oportunidade de viver na Bolívia e pude acompanhar a erradicação do analfabetismo nesse país. Por que o Brasil, com tantos recursos, não consegue? Você sabe que temos o mesmo número de analfabetos de quando Paulo Freire foi exilado? Em torno de 15 milhões. E o triste é que aumentou o número de analfabetos adultos, acima de quinze anos. A taxa caiu de 9,9 para 9,8%, isso dos que se declaram analfabetos, dos que se declaram. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, apenas 26% dos brasileiros entendem o que lêem. Aí você vê que de cada quatro brasileiros, três são analfabetos. Essa pesquisa do Instituto Paulo Montenegro foi feita com dados do IBGE, com todo o seu rigor. Então alguma coisa está errada. Por que não diminuímos, mesmo num governo que se declara tão favorável à educação? Mesmo num governo que tem tido os melhores índices em quase todas as áreas? O Cristovam [Buarque, primeiro ministro da Educação do governo Lula] disse que iria zerar o analfabetismo em quatro anos. Não conseguiu os recursos. No dia 14 de abril de 1964, na ditadura militar, ainda sob o governo de Ranieri Mazzili... Com duas semanas de ditadura... Exatamente. Duas semanas depois foi extinto o decreto do Programa Nacional de Alfabetização do Paulo Freire, que já tinha dois mil núcleos previstos. Então acho que se não fosse isso, hoje estaríamos melhor. Então, hoje, acho que não fizemos tudo. Palavras do próprio Lula. O governo gastou com o grupo Abril 719 milhões de reais em publicidade. E o programa Brasil Alfabetizado tem apenas 350 milhões de reais. Menos da metade. Pra mim, o essencial é, seguindo Paulo Freire, que dizia que é preciso envolver a sociedade: empresários, igreja, sindicatos, os parlamentos, tudo. Mas nós não temos, no Brasil, um movimento de alfabetização na sociedade. Falta o papel indutor do Estado. Concordo com tudo o que o Lula vem fazendo, menos na alfabetização de adultos. Nisso aí não avançamos. Marcelo Salles é jornalista e coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. salles@carosamigos.com.br janeiro 2010
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Anelise Sanchez
Infância
roubada ROMA – Sábado, 1º de novembro de 2009. Diante da penitenciária feminina de Rebibbia, na periferia da capital italiana, uma ambulância pede passagem para ingressar nos pavilhões do presídio. Do lado de fora, duas senhoras distintas e aparentemente alheias à cena atenuam a espera conversando entre um cigarro e outro. Enquanto isso, divertem-se lembrando os nomes bizarros dos menores que permaneceram sob sua guarda. Um dos últimos era o pequeno Alcapone. Ambas acompanham um casal de crianças bem vestidas em uma visita à própria mãe na casa de reclusão romana, que hoje abriga cerca de 360 mulheres, 200 delas estrangeiras. Segundo os dados divulgados pelo Ministério de Justiça, atualmente a Itália possui cinco penitenciárias exclusivamente femininas, além de 52 seções para mulheres nas unidades prisionais masculinas. São nove da manhã e, pouco a pouco, os dez voluntários da associação A Roma Insieme reúnem-se e começam os preparativos para acolher os pequenos que deixarão temporariamente a prisão feminina para viver mais um sábado de liberdade. É difícil aceitar a ideia de que o cenário de inocência da primeira infância seja uma penitenciária. No entanto, atualmente 70 crianças com menos de três anos de idade vivem encarceradas, dividindo diariamente uma cela com a própria mãe. Na maioria dos casos, trata-se de mulheres de origem estrangeira ou nômades, que graças a uma lei promulgada em 1975 para tutelar o direito à maternidade, podem permanecer com os próprios filhos na prisão até que completem três anos de idade.
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Mais recentemente, com a chamada lei Finocchiaro, em vigor desde 2001, o governo italiano tentou minimizar o drama das crianças reclusas, permitindo que as detentas não reincidentes e com filhos menores de 10 anos pudessem usufruir de penas alternativas após cumprir um terço de sua condenação ou o período de 15 anos para os casos de prisão perpétua. No entanto, como muitas mulheres não possuem residência fixa, não podem cumprir a pena em prisão domiciliar ou em regime especial de semiliberdade.
A grande carruagem Por volta das 9h30, um ônibus colocado à disposição dos voluntários pela prefeitura de Roma entra no pátio do instituto para apanhar seus passageiros mirins. Aos olhos de um adulto, aquele é apenas um meio de transporte coletivo. Mas para as crianças de Rebibbia é uma enorme carruagem pronta a explorar um mundo desconhecido. “Para mim, este tipo de voluntariado é uma espécie de pequena revolução”, comenta Giovanni Giustiniani, de 63 anos e voluntário de A Roma Insieme desde 2004. Por motivos de saúde e porque alguns ainda necessitam de amamentação, somente seis dos 26 menores residentes em Rebibbia puderam acompanhar o grupo no passeio até Formello, ao norte de Roma. Entre as cinco meninas do grupo, Esmeralda é aquela que vive dentro do instituto há mais tempo; desde os seus 17 dias de vida. Está prestes a completar 3 anos de idade, e assim que apagar as velinhas, sofrerá o trauma da separação da figura materna. Quando as detentas possuem uma famí-
lia na Itália, a criança permanece sob os cuidados de seus próprios parentes. Caso contrário, a segunda opção é colocá-las sob a guarda temporária de uma família italiana. Sobre esta delicada questão, as opiniões são divergentes. Leda Colombini é presidente da associação A Roma Insieme. Ela relata que o voluntariado com as crianças reclusas teve início há aproximadamente quinze anos. “Muitas detentas temem a guarda e às vezes preferem que as crianças permaneçam em institutos para menores. O medo de uma eventual adoção e da separação definitiva dos filhos é muito forte”, completa. Elisa Rigoni, produtora de TV e também voluntária da associação há quatro anos, demonstra algumas preocupações em relação a guarda temporária. “O mais importante para a criança é manter viva a sua identidade e os seus vínculos afetivos”. Na excursão não faltam guloseimas e, dentro do ônibus da associação a ansiedade transformase em sorrisos marotos enquadrados por bigodes de chocolate. Com os olhos grudados na janela, Esmeralda começa a entoar uma cantiga suave. Repete o nome de tudo aquilo que observa, principalmente o que falta nos corredores de Rebibbia: grama, flores, sol e nuvens. Brian cochila nos braços de um outro jovem voluntário e Maria, que deu seus primeiros passos nos corredores da penitenciária, passa de um colo ao outro. Depois de meia hora de viagem, a “carruagem” chega à Formello e Leda e seus voluntários são recebidos por um casal romano que, pelo menos uma vez por mês, literalmente abre as portas de sua enorme casa para acolher os pequenos. Elisa conta que, desde pequenas, as crianças demonstram
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Na Itália, cerca de 70 crianças, em sua maioria filhas de estrangeiras, vivem atrás das grades com as próprias mães. São em número suficiente para causar indignação. E poucas para que o Parlamento decida considerá-las como o resultado de um descaso político.
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uma verdadeira fobia por espaços com portas fechadas e pelo barulho de chaves.
A batalha política Para proporcionar uma condição de normalidade aos pequenos, Leda liderou grande batalha política. Desde 1995, graças a um acordo entre a prefeitura de Roma e a administração penitenciária, de segunda a sexta-feira as crianças de Rebibbia frequentam as creches municipais da vizinhança, divididas em grupos para que não se sintam confinadas em uma única escola. Uma grande conquista ainda não aplicada em todas as capitais italianas. Assim que chegam a Formello, os voluntários arregaçam as mangas e começam a montar brinquedos, trocar fraldas ou a acompanhar as crianças a apanhar flores e castanhas pelo grande jardim. Entre uma brincadeira e outra, chegam a perguntar pela mãe, mas nada que supere o entusiasmo de viver um dia ao ar livre. Ao meio-dia a mesa é posta e nenhuma das crianças faz caretas para degustar a refeição. Logo após o almoço, Milena e Brian são os primeiros a pegar no sono, enquanto as outras crianças, apesar do cansaço, voltam ao jardim para não perder nem um minuto das brincadeiras. Enquanto saboreia um café, Leda diz que, pela terceira vez, a associação A Roma Insieme apresentou ao Parlamento italiano uma proposta de lei que sugere algumas mudanças na legislação dedicada às mães detentas. Entre elas, reivindica que a reincidência não represente um obstáculo para a concessão de penas alternativas, que as prisioneiras possam acompanhar os próprios filhos aos hospitais em caso de internação e que as mulheres de origem estrangeira não sejam automaticamente expulsas do país assim após o cum-
primento da pena em território italiano. A chamada lei Finocchiaro, ainda em vigor, também estabelece que o cumprimento da pena pode ser adiado no caso de mulheres grávidas ou com filhos menores de um ano, mas não é raro que, sem um apoio familiar e social, para muitas estrangeiras a maternidade dentro de uma cela seja a única alternativa. “A penitenciária reproduz as mesmas desigualdades da sociedade”, opina Anna Finocchiaro, autora da lei de 2001. Um caso que ilustrou bem tal situação foi o de Josephine, uma nigeriana de um ano e dez meses que, recentemente, permaneceu ao lado da mãe, grávida de sete meses, na penitenciária Buoncammino, em Cagliari (Sardenha). A mãe só conseguiu a prisão domiciliar graças a uma grande mobilização política regional. “Muitas crianças permanecem em celas porque, na maior parte dos casos, são filhas de mulheres estrangeiras que não têm sequer um advogado para tutelálas”, completa Anna, atualmente senadora do Partido Democrático.
Filhos de imigrantes e invisibilidade social De fato, dentre os imigrantes, as detentas com filhos são uma das categorias mais frágeis. Com as regras ainda mais rígidas contra a imigração ilegal na Itália, tudo indica que os casos de marginalização sofrerão um expressivo incremento. Como a clandestinidade é crime, imigrantes sem documentos ficam impossibilitados de registrar o nascimento de seus próprios filhos. “Os parentes das detentas que vivem em condição de clandestinidade não podem sequer visitá-las no presídio”, alerta a voluntária Elisa Rigoni, que há anos acompanha a história de muitas famílias de ciganos que hoje vivem no chamado campo de Ca-
silino 900, na periferia romana, e nos próximos meses serão transferidos para outras localidades selecionadas pela prefeitura da capital. Apesar de residir em território italiano há mais de 30 anos, o único documento que muitas famílias de origem cigana possuem é uma carteirinha providenciada pela Cruz Vermelha. Enquanto Rebibbia recebe seus visitantes ocasionais, as crianças que acompanham Leda começam a acordar lentamente, preparando-se para o chá da tarde em Formello, com direito a bolo e a suco de frutas ao lado de uma lareira. A maratona com os pequenos recomeça. São cinco horas da tarde. O sol já se foi e os voluntários se preparam para uma nova rodada de troca de fraldas. Em seguida, recolhem os brinquedos espalhados pela casa. O relógio marca quase seis e meia da tarde. As mães de Rebibbia aguardam ansiosas o retorno dos seus pequenos que nas mãos levam as flores recolhidas no jardim e, na ponta da língua, as lembranças de mais um sábado de liberdade. Ao bater do relógio, a carruagem transforma-se novamente em ônibus e, assim que o veículo aproxima-se dos muros da penitenciária, Milena e Jessica começam a pronunciar a palavra “mamma”. Enquanto os portões do pátio se abrem e uma ambulância se antecipa à entrada do ônibus, as crianças despedem-se dos voluntários. Mais tarde, a TV anuncia que Diana Bfefari Melazzi, ex-membro da Brigada Vermelha, condenada pela participação no homicídio do professor Marco Biagi, em 2002, enforcou-se na própria cela, na penitenciária feminina de Rebibbia. Um modo inequívoco de lembrar que nem todo conto de fadas se conclui com um final feliz. Anelise Sanchez é jornalista.
Detentas contam como vivem a prisão domiciliar Segundo os últimos dados divulgados pela associação Antigone, atualmente cerca de trinta grávidas ainda permanecem encarceradas no país. Em 2008, a prisão domiciliar ou cumprida nas chamadas “casas famílias” foi concedida a somente 31 mulheres com filhos menores de três anos. Para oferecer a estas mulheres uma maternidade mais digna, em Milão foi inaugurado o ICAM, um instituto que substituiu as celas por quartos e que, além de contar com a participação de educadores especializados, também aboliu os uniformes tradicionalmente utilizados pelos guardas penitenciários. Em Roma, exemplos de estruturas que acolhem regularmente mães que cumprem prisão domiciliar são as associações Ain Karim e Sichem. Hoje, estas casas família abrigam três jovens detentas com filhos. Silvia (nome fictício), 25 anos, é de nacionalidade argentina e mãe de três crianças. Em janeiro de 2009 decidiu passar férias em Roma, mesmo grávida de sete meses. Seu pai entregou-lhe algumas garrafas de vinho, pedindo a ela que as desse de presente ao amigo que deveria hospedá-la na capital italiana. Assim que desembarcou no aeroporto de Fiumicino foi presa e acusada de tráfico de drogas. Inicialmente, permaneceu na penitenciária de Civitavecchia e, mais tarde, foi transferida para Rebibbia. Sem falar a língua e com recursos econômicos limitados para pagar um advogado, foi condenada a quatro anos de detenção. “Cheguei à casa da família no início de março e, no final do mês, dei a luz a um menino que frequenta a creche
municipal desde os cinco meses de vida”, conta. Sua sentença ainda não é definitiva, mas por enquanto Silvia deve permanecer em regime de confinamento total. Pergunto a ela se pensou na hipótese de delegar aos parentes a educação da criança, mas Silvia responde que sem a companhia de seu filho teria que cumprir a sua pena atrás das grades e não em uma prisão domiciliar. Já Jessica, outra jovem de 23 anos, nasceu na República Dominicana mas passou sua infância na capital italiana. Fala com sotaque e mentalidade romana e foi condenada a cinco anos de prisão depois de ter sido presa em Catânia, transportando drogas. Há cerca de um mês, obteve permissão para ausentar-se uma hora e meia por dia. Assim como as outras jovens, três vezes por semana ela frequenta, na própria casa família, um curso de cozinheira, pensando em seu futuro. A última das detentas é também a mais jovens de todas. Catherine é inglesa, tem apenas 20 anos de idade e se tornou mãe solteira há pouco mais de um ano. Assim como as suas colegas de infortúnio, foi condenada porque transportava drogas a pedido do namorado. Paola Lamartino, diretora da casa família romana, explica que há mais de dez anos a estrutura abriga detentas com filhos e que, em breve, hospedará temporariamente Michel, de apenas 3 anos de idade. Até então, o menor permaneceu em Rebibbia aos cuidados da própria mãe, e agora o desafio dos voluntários é encontrar uma família disposta a acolhê-lo sob a sua tutela.
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Camila Arêas
França reprime estrangeiros sem visto
Milhares de trabalhadores imigrantes realizam manifestações e ocupam locais simbólicos para protestar contra a repressão policial.
PARIS - O termômetro marca cinco graus e
a escuridão do inverno se impõe antes das cinco da tarde. No interior do recém criado “Ministério pela Regularização de Todos os Sem-documentos” em pleno coração da capital francesa, toma corpo um ritual político acalorado, sem data para terminar. A expectativa paira em torno da nova circular sobre a regularização dos sem-documentos (sem visto de moradia) que o ministro da Imigração, Eric Besson, anunciou divulgar em breve. Os sem-documentos são mais de 400 mil em toda a França. Trabalham em restaurantes, na construção de prédios e metrôs, como seguranças e empregados domésticos. Em meio aos 300 presentes na enorme sala de reunião do “Ministério”, dia 11 de novembro, estão também representantes de sindicatos e partidos políticos. Cada integrante da enorme mesa redonda se apresenta: Mohammed, sem-documento, originário do coletivo do bairro 18; François, representante sindical; Juliette, cidadã, e assim seguem por longos minutos. Após a apresentação, dá-se início às denúncias da semana: “No total, três trabalhadores foram presos”, enumera a coordenadora da reunião. Inquieto, um sem-documento se levanta para anunciar que um grupo de imigrantes da morada David d’Anger “foi objeto de expulsão”, diz, repetindo o jargão policial, e “encontra-se foragido na fronteira”. Sobre um integrante do “Ministério dos sem-docu-
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mentos” que foi preso no dia seguinte à manifestação, a coordenadora diz que “a boa notícia é que a Prefeitura de Polícia aceitou nos receber para discutir o dossiê de regularização com vistas à obtenção do visto”. Um anúncio de última hora indigna os presentes à reunião. Ali Toure, mestrando em língua alemã da Universidade de Paris X, que segue seus estudos na França desde 2003, foi detido numa batida policial na estrada. Uma foto do jovem circula pela mesa. Toure portava a carteira de motorista em dia, mas não o visto de moradia. Este acabara de lhe ser negado pela Justiça que, no entanto, abriu uma exceção permitindo ao jovem permanecer em território francês até a defesa da tese de mestrado, que seria no mês de novembro. O policial rodoviário, no entanto, o prendeu e, ao invés de comparecer à banca de mestrado, o jovem comparecerá à Justiça.
Manifestações As prisões ilustram o clima de repressão sob o qual vivem os imigrantes. Para denunciá-lo, as manifestações se tornaram também semanais. Desde 12 de outubro, a França assiste a um movimento de greve coordenada pelos sem-documentos. A lista de locais ocupados pelos imigrantes não para de crescer, assim como a repressão policial. Atualmente a polícia conta 5.200 imigrantes ocupando
mais de 40 lugares simbólicos só na Ile de France (Grande Paris). Grandes empresas, restaurantes e parques foram tomados. As reivindicações são apresentadas por uma frente de sindicatos, organizações sociais e coletivos de sem-documentos que denunciam a “arbitrariedade policial” no exame dos dossiês e a “política do caso a caso”. Dentro do “Ministério dos sem-documentos”, a forte expectativa com relação à nova circular oficial do governo sobre a regularização dos sem-documentos é alimentada pela certeza de que a flexibilização será limitada. O objeto da reunião, portanto, é montar um discurso, mostrando que o movimento seguirá unido em torno da reivindicação única: regularização global de todos os sem-documentos. “A nova circular manterá a discriminação aos argelinos, tunisianos, marroquinos e trabalhadores sem contrato. O Estado insistirá na preferência à imigração branca e católica que vem da Europa do Leste. A intenção é criar uma competição entre os imigrantes”, provoca Jean Claude Amara, porta-voz da organização social Droits Devant. Porta-voz do “Ministério” criado dia 17 de julho, Anzoumane Sissoko conta que, em 2007, o governo aprovou uma lei que regulariza os trabalhadores ilegais sob a condição de que não sejam sindicalizados e que seus patrões se engajem no dossiê de regularização: “A lei, portanto, deixa de
foto Camila Arêas
Manifestação nacional dos Sem-documentos em Paris, França.
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fora os imigrantes submetidos aos pequenos patrões ou aqueles que não têm contrato de trabalho, que são hoje a maioria”. Convidado do programa de rádio “A voz dos sem-documentos”, que vai ao ar toda quinta-feira pela estação Frequência Paris Plural, o imigrante Madibo Traore ilustra bem a questão ao contar que é obrigado a usar a identidade do primo para receber seu salário. A empresa para a qual trabalha, a Seni, assiste hoje a uma greve generalizada dos cerca de 260 sem-documentos que a integram. “O problema é que eu pago os impostos que pesam sobre meu primo, mas não sou considerado um contribuinte e não tenho nenhum direito”, conta Traore. Ninguém mora ou dorme no “Ministério” dos sem-documentos. “Não se trata de uma ocupação, mas de um espaço para reuniões e tomada de decisões”, como faz questão de frisar Sissoko. O “Ministério” engloba três mil pessoas de 23 nacionalidades e de todos os continentes, embora a África seja mais bem representada. A imensidão do local – um conjunto de prédios de cinco andares que pertenciam à Caixa Primária de Seguro Saúde, com mais de 15.000 m² – levou o movimento a batizá-lo de “Ministério”. “O nome é simbólico, pois o contexto político opressor demanda maior visibilidade”. esclarece Sissoko. “Há cinco anos não temos um movimento organizado em nível nacional, o caráter ministerial tem esse objetivo”. Os chefes de polícia se tornaram o principal motivo das mobilizações dos sem-documentos. Desde a posse do presidente Nicolas Sarkozy, em maio de 2007, o governo francês coloca em marcha uma política que prioriza a imigração seletiva e fomenta as expulsões. Hoje, o governo se orgulha de contabilizar 45 mil imigrantes ilegais expulsos do país em dois anos. Tais metas são atingidas a partir de uma política de cifras imposta às Prefeituras de Polícia, órgãos regionais responsáveis pela concessão de vistos. Autoridade máxima desta Prefeitura, os chefes de polícia são os mais novos responsáveis por atingir o número de expulsões determinadas pelo governo: 25 mil por ano.
Arbitrariedades De acordo com Michaël Neuman, um dos autores de “Cette France-là”(Esta França aqui), as autoridades policiais “nunca contaram com tanto poder para decidir sobre o futuro dos imigrantes”. Neuman explica que a inédita autonomia conferida à polícia é o traço mais marcante da nova política de imigração: “A decisão do chefe da polícia é soberana. Ele se torna o único a decidir pela regularização e os recursos jurídicos ficam dificultados”. Além disso, a relação direta entre os chefes de polícia e os governistas, que impõem a política de cotas, terminam “por torná-lo ainda mais refém da hierarquia”, descreve Neuman. Segundo Sissoko, porta-voz do “Ministério”, a organização orienta os “indocumentados” a não andarem com passaporte, “pois uma vez pegos com este documento, são presos e deportados”. A arbitrariedade policial, associada à fixação
pelas cifras, forma a estrutura da “política do caso a caso”, grande alvo das críticas dos sem-documentos. Na teoria, os critérios são universais. Na prática, no entanto, as cifras obrigam os funcionários do Estado a aplicar distinções, a cruzar os critérios de forma aleatória e terminar por discriminar a regularização de acordo com a origem dos imigrantes. O sociólogo Damien de Blic, da Universidade Paris VIII, conta que as autoridades partem de uma lista das profissões regularizáveis, imposta pelo governo, que se limita aos intelectuais e profissionais com formação superior. “O objetivo é tornar os critérios inaplicáveis aos imigrantes trabalhadores ilegais”.
Imigração seletiva A tendência de endurecimento das leis imigratórias não é nova. Desde 1960, a maior parte dos governos franceses se dedica a endurecer as condições de entrada e de estadia dos estrangeiros. Imigração seletiva, delito de solidariedade, apelo à delação, política do caso a caso são medidas que mantêm os sem-documentos numa zona de não direito. Mas os analistas sublinham que, com Sarkozy, a política ganhou um caráter arbitrário nunca antes visto. O presidente anunciou que a partir de 2010, o Parlamento realizará um debate anual sobre os objetivos da nova política de imigração, mostrando que a política de imigração é central na sua administração. Besson declara: “Ao controlar o fluxo de imigração, favorecemos a integração e preservamos nossa identidade nacional”. A defesa dos valores franceses é a grande diretriz de Sarkozy. O presidente que havia aprovado a realização de testes de DNA como condição para as regularizações familiares, agora impõe novos critérios: passar por um teste de conhecimento da língua de Molière e dos valores da República. A obsessão ideológica da defesa da identidade nacional se expressa na complexa denominação da pasta de Besson – Ministério da Imigração, da Integração, da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidário – cujos termos foram modificados duas vezes em dois anos em meio às polêmicas epistemológicas. “A mensagem é clara: alguns imigrantes são desejáveis, outros – como os que vêm da África – não o são”, reiteram os autores de “Cette France-là”. Na introdução do estudo, os acadêmicos sublinham que “a característica da política francesa de imigração é hoje discretamente, mas voluntariamente discriminatória”. A relação particular com os africanos, muitos islâmicos, se explica pela história colonial, lembra Pierre Henry, porta-voz da organização France Terre d’Asile: “Milhares de magrebinos vieram trabalhar na reconstrução do país depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, seus filhos e netos que nasceram aqui não conseguem cidadania porque ainda não assumimos completamente esta parte da nossa história. Continuamos a dar as costas à África”. O teste de DNA para os africanos foi anulado há um mês com a declaração de Sarkozy de que tal prática é “estúpida”. Mas a imigração seletiva ganhou corpo com a nova meta
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estabelecida de fazer crescer de 7% a 50% a imigração econômica. Com uma relação histórica menos dolorida que os africanos, os latino-americanos também são, no entanto, afetados pela política de cifras. De acordo com o Consulado do Brasil na França, 1.860 brasileiros foram expulsos do país em 2007 por não terem visto de moradia e outros cerca de 1.800 foram barrados nos aeroportos. O boliviano Roy Gary é o único latino-americano que hoje integra o Ministério dos sem-documentos, onde fincou um pôster de Evo Morales. O jovem de 26 anos que trabalhou como soldado da ONU, em 2001 no Congo e em 2007 no Zaire, conta, num francês arranhado, que foi atraído por uma oferta da Legião Estrangeira Militar. O objetivo é juntar dinheiro para “levantar uma casa na Bolívia”. Certo de que só segue firme na ilegalidade porque é militar de carreira e foi treinado para situações de tensão, Gary não esconde o medo que enfrenta a cada saída na rua: “Fui preso ano passado e queriam me deportar. Mas como não tinha passaporte, me ordenaram voltar à Bolívia imediatamente e me soltaram. É claro que eu fiquei”. Socialista convicto, o boliviano conta aliviado que está com passagem marcada para Marselha, Sul da França, onde fará testes físicos e psicotécnicos que lhe permitirão reintegrar o batalhão da ONU. Ele se diz mais próximo da nacionalidade francesa.
Deportação Enquanto isso, o presidente Sarkozy reitera o “direito legítimo” da França de eleger seus imigrantes. Como ilustração deste discurso, Paris e Londres organizaram, dia 21 de outubro, um vôo conjunto a Kabul que deportou três afegães da França e 27 da Grã-Bretanha. Uma semana depois, Besson e o ministro de imigração do Reino Unido, Phil Woolas, inauguraram um centro conjunto de informações destinado a lutar contra a imigração ilegal e multiplicar os “voos sob a bandeira europeia” para levar os imigrantes a seus países de origem. “Esta é uma ideia que a França defende. Se queremos enviar uma mensagem aos estrangeiros, é que a Europa não é mais santuário para os imigrantes ilegais”, reiterou Besson. De Blic avalia que por causa da França a questão imigratória se tornou prioridade europeia: “Somos o motor da repressão aos imigrantes na Europa. Hoje, constroem-se centros de retenção nas fronteiras para impedir os imigrantes de chegarem às grandes capitais e, assim, tornar o problema invisível”. Um estudo europeu do Conselho Britânico, divulgado em março em Paris, concluiu que “os imigrantes vindos de países do terceiro mundo, residindo legalmente na França, estão sujeitos às condições mais severas dos 28 países europeus”. O Conselho calculou um Indéx europeu de acordo com critérios como acesso ao mercado de trabalho, reagrupamento familiar e participação política. A França se classificou em 11º lugar. Camila Arêas é jornalista. janeiro 2010
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Isadora Ataíde
Pilar del Río,
Casada com o escritor português há 23 anos, a jornalista espanhola exerce forte influência na vida do marido, inclusive na organização de seu trabalho e de sua obra.
e
m “O Homem Duplicado”, prometeu-lhe “até o último instante”. “Nas Intermitências da Morte”, a definiu como sua “casa”. “Nas Pequenas Memórias” queixou-se que ela “tardou a chegar”. Pilar del Río poderia ser a musa de José Saramago. Deixou sua carreira jornalística na televisão espanhola para viver com o escritor português em Lisboa. Desde que estão juntos, há 23 anos, é a sua primeira leitora. Traduz os livros do marido para o espanhol. Tomou a iniciativa de organizar sua coleção e construiu uma biblioteca. Estão sempre juntos – em Lisboa e Lanzarote ou pelo mundo – e de mãos dadas. É fundadora e presidente da Fundação José Saramago. Pilar garante que a musa não existe. “É uma invenção. Um escritor que supostamente tem uma musa, no fundo o que tem é um objeto que lhe facilita pensar o que sente por si próprio.”
O vício das palavras Aos 10 anos, Pilar era uma “viciada em leitura e em jornalismo”. O cultivo do vício e a sua história de leitura e leitora a levaram, 26 anos mais tarde, ao “escritor” e ao “marido” – o modo como ela refere-se ao Nobel varia de acordo com o teor da conversa, o autor ou o homem. Aprendeu a ler em casa. Em Castril, terra da sua mãe, próximo de Se-
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vilha, não havia escola e Pilar tinha lições particulares. “Eisenhower” é a primeira palavra de que se lembra. A menina de então voltava seus olhos para os textos de opinião dos jornais, os “monárquicos e republicanos e a ditadura espanhola” eram os temas que sentia prazer em acompanhar. A primeira “grande literatura”, na adolescência, foi a russa. Alternava Tolstoi e Dostoievski. Mais do que os personagens, ela “fascinava-se” com os escritores. O que a interessa nos autores, pondera hoje, é a criação, o “levantar mundos com palavras”. Considera-se mais capaz de perceber a literatura do que a música ou a arquitetura. Acha que os escritores, entre os artistas, são os menos neuróticos e os que “têm mais conversa”.
A jornalista de trincheira Não são as buzinas, apitos ou gritos de comemoração que interrompem a conversa. É a jornalista em Pilar del Río que interrompe a fala e levanta-se para ir à rua ver a comemoração popular de uma vitória portuguesa no campeonato europeu. “Não gosto de futebol, mas preciso ver o que se passa, sou jornalista”. Por volta dos 20 anos, a literatura passou a ocupar um espaço menor na vida de Pilar del Río. Para ela, o que importa na vida é ser “cidadã”, e na Espanha da década de 70
interveio “como jornalista para fazer um mundo melhor”. Diz que a sua escola foi a da ação direta. “O meu grupo estava na trincheira, na barricada. Tinha 20 e poucos anos e trabalhava e escrevia para derrubar a ditadura. Naquele momento, a atividade política de jornalismo era mais importante do que a literatura”. Foi a parcela de exercício jornalístico que chama “sonho”. Pilar cresceu num meio familiar que diz “estar mais à direita do que Deus” e reivindica a tradição da esquerda social e democrática e dos comunistas espanhóis. “O jornalismo quando eu aprendi era uma visão crítica de mundo. Era perguntar-se o porquê das coisas. Com essa visão, não se poderia chegar a outro modo de ler o mundo: com desconfiança, a perguntar-me o que está por trás e por baixo dos acontecimentos.” Depois, veio a “realidade”. “A democracia foi sedimentando as coisas, veio a normalidade e com ela, um modo de se fazer jornalismo conformado, servil. Então fui entrincheirar-me no jornalismo cultural.” Em sua fotografia predileta, Pilar está a dormir com a cabeça no ombro de Saramago. Não gosta das câmeras e diz que estas não gostam dela, “não sou fotogênica”. Acostumou-se às lentes para apresentar um programa de entrevistas culturais, com enfoque na literatura.
foto Rui Coutinho
primeira leitora de José Saramago
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O encontro com o escritor “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” Foi a frase de “arranque” do “Memorial de Convento” o primeiro encontro entre Pilar e o escritor. “Nunca havia ouvido falar do Saramago, a primeira frase, lida na livraria, impressionou-me. Li num fim de semana. A todo o momento voltava à orelha do livro para confirmar a data em que ele tinha nascido. Pensava: ‘esse tipo escreve como os grande clássicos e é contemporâneo, é de esquerda e marxista’. Achei-o um gênio da crítica social”. Foi a Lisboa com um amigo em 1986 para “peregrinar” pelos mesmos caminhos de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa e protagonista em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Já havia ligado para José Saramago a agradecer pela obra e a propor-lhe um café. Encontraram-se, leram trechos do “Livro do Desassossego” e visitaram Pessoa, no cemitério dos Prazeres. “Descobri que no caso do Saramago havia uma grande naturalidade, ele era igual à sua obra sem distração alguma. Ele não criava ficções, entretenimento, ele escrevia sobre o seu mundo”. Zeferino Coelho, editor de Saramago, acompanha a história entre a jornalista e o escritor desde o princípio. “Posso dizer que foi uma grande paixão. Ele fazia coisas como esta: pegar um carro e viajar nove horas para encontrá-la em Sevilha. Nessa altura, já era um escritor famoso, com uma atividade literária muito intensa”. “Tem ali uma senhora à sua espera. Parou José Anaíço à entrada da sala, viu uma mulher nova, uma rapariga, só pode ser esta, não há aqui outra pessoa, apesar de se estar na contraluz dos cortinados das janelas parece simpática, ou mesmo bonita, veste calças e casaco azuis, de um tom que deve ser anil, tanto pode ser jornalista como não, mas ao lado de uma cadeira onde se senta tem uma pequena mala de viagem e sobre os joelhos um pau nem pequeno nem grande, entre um metro e um metro e meio, o efeito é pertubador (...)”. o trecho está na página 119 de “A Jangada de Pedra”, única manifestação autobiográfica assumida por Saramago. “Afortunadamente”, Pilar garante que todas as decisões em sua vida são fáceis, inclusive quando decidiu-se a mudar de Sevilha para Lisboa, em 1987, e a abandonar o emprego na televisão espanhola para viver com Saramago. Na altura, planejava ir viver em Madri com o filho do primeiro casamento, Juan José, hoje com 32 anos. Pilar del Río é nome de rua. Azinhaga - cidade do Alentejo, no sul de Portugal, que viu Saramago nascer - homenageou-a em 2006, por levar o nome da terra “em todos os cantos do mundo”. Embora viva em Lanzarote desde 1993 e passe alguns meses do ano em Lisboa, para além das muitas viagens de trabalho, as cidades não a definem. Diz que a sua cidade é o seu próprio mundo interior.
A tradutora A língua também não é casa para Pilar. Alega um “problema” de ouvido, com o que justifica não ter aprendido a falar o português. Noutro dia, uma
carta enviada a Saramago por um italiano vinha escrita em inglês. Pilar devolveu-lhe, a pedir que escrevesse na sua língua natal. “Nós latinos, com algum esforço, podemos nos entender utilizando cada um o seu próprio idioma”. Na sua casa, garante, não entra o inglês, “o idioma do império”. A sua reserva não espelha timidez. Gosta de ter a casa cheia, compartilhar o prazer da vida e das suas leituras, que não são solitárias. Uma das suas maiores dificuldades desde o casamento é conter o entusiasmo enquanto lê o romance que o marido está a escrever. “Leio enquanto o livro está a ser escrito. Tenho de conter os meus comentários. Não posso dizer nada porque a escrita, essa sim, é um processo solitário”. Para Pilar, a melhor leitura é a do tradutor, “o único capaz de colocar-se ao lado do autor”. Vê os acadêmicos e críticos em geral como elocubradores que partem para a leitura com uma ideia pré-concebida. Já os leitores, quando são bons – aqueles que reconhecem o autor e tratam de entender o quê cada livro carrega do seu tempo – “completam a obra”. A oportunidade de fazer a “melhor leitura” apareceu por acaso. O tradutor espanhol de José Saramago enfrentou problemas de visão depois de Ensaio Sobre a Cegueira. Pilar ofereceu-se para a vaga. A jornalista lê e traduz o trabalho do marido, mas diz não qualquer intervir nas obras do marido. Ou melhor, houve duas intervenções. “A primeira é no livro Todos os Nomes. Havia uma situação em que faltava luz, mas a secretária eletrônica atendia uma ligação e era deixada uma mensagem. Então observei que sem energia elétrica não era possível acontecer isso. A outra intervenção é em A Caverna. Quando o Saramago termina um livro, digo a última palavra a um poeta amigo espanhol para que escreva um poema. Nesse caso, a última palavra era ‘bilhete’. Então disse: ‘José, a palavra em espanhol significa dinheiro, vou dizê-la em português’. Ele mudou a última palavra para ‘entrada’.”
Mulheres íntegras As mulheres de Saramago são “íntegras” para a simbiose de mulher, leitora e tradutora que é Pilar. Um pouco como se as personagens literárias refletissem a sua própria visão do feminino. Ela concorda com a afirmação literária do escritor em A Jangada de Pedra que “a conversa das mulheres sustenta o mundo”. “Fiquei encantada quando li isso. Se não existissem as mulheres a falar, a manter a tradição oral, a expressar o amor, o carinho, os sentimentos, não teríamos alma enquanto espécie. As mulheres de Saramago são mais valentes e não mentem”. O protagonismo das personagens “saramaguianas” é determinante no desenrolar das suas histórias. Zeferino garante que as personagens não são inspiradas pela esposa. Todavia, parecelhe “que talvez José Saramago tenha dentro de si uma ideia de mulher que transpôs para estas personagens. E na vida real teve a sorte de encontrar essa mulher, Pilar”. O jornalista João Céu e Silva – autor de “Uma longa viagem com Saramago”, biografia que resulta de dezenas de entrevistas entre 2007 e 2008 - pondera que na “história da literatura temos a tendência a ver a mulher do autor famoso como de-
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moníaca. Existe preconceito e incômodo com a Pilar. Tirando o núcleo duro de amigos, toda a gente acha que ela o domina. Mas ela complementa o Saramago a vários níveis, emocional e organizacional.”. A importância da obra e da vida do marido, “muito maiores do que a minha própria vida e obra” levaram Pilar a Lisboa e levaram-na a Lanzarote – talvez como a mulher do “Conto da Ilha Desconhecida”, que acompanha o navegador em sua viagem. Para além de verter o escritor para o espanhol, Pilar organizou-lhe a biblioteca, estrutura-lhe a agenda e apresenta os livros do Nobel. Incentivou-lhe a criação de um blog e serve-lhe as refeições. A Pilar, que não deixou que eu morresse, assinala Saramago na dedicatória “A Viagem do Elefante”. Pilar é fundadora e presidente da Fundação José Saramago, que para além dos objetivos políticos quer divulgar a obra do mestre laureado da língua portuguesa. As comparações com Maria Kodama, esposa de Jorge Luis Borges e presidente da Fundação que leva o nome do escritor argentino, tornam-se inevitáveis. Entretanto, Pilar faz questão de assinalar as diferenças: “A Fundação Borges cuida do legado e do trabalho do escritor, mas não tem a função política e cívica que tem a Fundação Saramago”.
Inspiração de vida Se Dostoievski casou-se com a taquígrafa, se Kafka tinha como primeira leitora Felicia e Machado de Assis encontrava em Carolina uma revisora, o jornalista Céu e Silva não tem dúvida de que Pilar é uma musa contemporânea da literatura. “A musa inspira. E embora ela não inspire os romances de Saramago, inspira-lhe a vida. Obriga-o a viver com mais intensidade e devoção. Torna-se uma musa porque o obriga a viver”. Quando ouve a expressão “musa”, o sorriso de Pilar esmorece. “A Pilar não é musa, em absoluto, a musa não existe. Existem sentimentos que inspiram os escritores, que são pontuais, espontâneos, um amor turbulento, situações múltiplas. Depois de ler muitos autores, um escritor que supostamente tem uma musa, no fundo o que tem é um objeto que lhe facilita pensar o que sente por si próprio. As musas são invenções dos autores”. Pilar, 59 anos, considera Saramago o melhor e maior escritor vivo. Ama o homem José, de 87 anos. Com o autor, compartilha o espaço da obra que cabe à tradução. Com o homem, divide e reúne a vida. São companheiros há 23 anos e já se casaram em Portugal e Espanha. Saramago disse que o encontro com Pilar “é a quarta dimensão do amor, e não me peçam explicação”. No fim do dia, para desabafo e deleite próprio, Pilar escreve no diário íntimo que mantém. “Escrevo sobre as frustrações com as pessoas, com o trabalho, com as coisas nas quais investi energia e que acabaram por não se concretizar. Escrevo sobre ideias e sentimentos”. Ela tem um único medo, “que termine a vida do meu marido”. Sobre o amor que partilha, define-o do mesmo modo que José, “contar com os dedos e ver a mão cheia”. Isadora Ataíde é jornalista. janeiro 2010
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Gabriela Moncau
contra as patentes do capitalismo Criado em 2006 na Suécia e com atuação em mais de 30 países, inclusive no Brasil, a organização partidária defende a liberação dos direitos autorais e adoção de software livre na Internet.
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de e surgiram muito antes da internet. “As pessoas não acham que estão fazendo nada errado. Esse costume sempre existiu. Antigamente, por exemplo, você pegava um vinil, colocava num aparelho de som 3 em 1, escolhia 3 ou 4 músicas, tocava o vinil, montava uma fita, levava pra uma festinha, dava pro seu amigo que copiava”, assinala. Com o advento das redes, os controladores da indústria cultural desenvolveram diferentes estratégias de repressão. A primeira delas foi criar casos exemplares: identificavam uma pessoa que havia desenvolvido algum programa de compartilhamento ou que copiava muitos conteúdos e abriam grandes processos contra ela. Cobravam multas, ameaçavam de prisão e davam grande publicidade ao caso. As pessoas, no entanto, deram-se conta que a chance de ser identificado era irrisória. Colocaram em prática, então, processos contra um grande número de pessoas. No entanto, a popularização e o barateamento da banda larga fizeram com que a estratégia tivesse alcance limitado.
Terceira onda repressiva Vivemos agora a tentativa de implementação da terceira onda repressiva no âmbito digital, conheci-
Defesa das licenças livres Direitos autorais dão às pessoas a exclusividade de exploração comercial, o que permite controlar quem tem acesso ao produto por meio da barreira de preço. Só que se a pessoa tem o direito de fazer essa exclusão, ela pode também fazer a autorização. O software livre surgiu a partir dessa ideia
ilustração koblitz
a
sociedade da informação enfrenta uma forte contradição, que é naturalizada por muitos. Por um lado, com a expansão das redes, há possibilidades que nunca existiram, como, por exemplo, o compartilhamento de cultura, conhecimento e bens imateriais. Há no mundo aproximadamente 1 bilhão de pessoas com acesso regular a computadores pessoais. Ou seja, conectadas em uma rede mundial por máquinas de replicação em alta velocidade que reproduzem fielmente, sem custo, qualquer arquivo. Por outro, há o enrijecimento das ações e legislações a favor da propriedade intelectual. Uma esquizofrenia que provoca um dos maiores embates relacionados à informação, além de representar um desafio para os que defendem a democratização da cultura, do conhecimento e dos meios de comunicação. Com o interesse de manter a exclusividade de exploração comercial sobre os produtos, a indústria cultural elabora leis que visam conter a cópia e o compartilhamento de conteúdos. Sérgio Amadeu, sociólogo e professor da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, estudioso da questão da exclusão digital e do software livre, explica que as práticas de colaboração são intrínsecas à socieda-
da como “resposta gradual”, ou “three strikes”, que apesar de ainda não ter sido posta em prática, está tramitando em diversos parlamentos. Trata-se de transferir a responsabilidade do judiciário para os provedores de acesso à internet. Cria-se uma regulação do provedor na qual ele é obrigado a notificar a pessoa que está baixando conteúdo ilegal uma, duas vezes. Na terceira, corta-se definitivamente o acesso à internet. Estudiosos do tema e defensores da democratização do conhecimento recorrem à Constituição e afirmam que tal penalização é ilegal, já que impedir o acesso à internet significa restringir a liberdade de expressão, o acesso à informação, cultura e serviços governamentais. De acordo com Pablo Ortellado, integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPopai) e um dos criadores do Centro de Mídia Independente (CMI), as empresas que dominam o monopólio da cultura têm consciência que é impossível impedir a cópia do conteúdo dos produtos. “Eles sabem que será preciso reorganizar completamente a indústria pra adaptarem-se ao novo cenário tecnológico”. Segundo o professor, tal cenário já está desenhado. “No campo da música, por exemplo, seria a venda de música a preço muito baixo para competir com música barata; regulação de música por meio digital, com streaming, publicidade; ou então desmercantilizar a música digital e lucrar nas performances e shows. Obviamente, vão tentar compensar essas perdas explorando os artistas nos shows, por exemplo, ou a privacidade dos consumidores” afirma. Para Ortellado, a razão pela qual as indústrias ainda não transformaram seu modelo de negócio é que isso representaria um complexo reposicionamento do mercado. A posição dominante das quatro multinacionais da indústria cultural hoje – Sony, Warner, EMI e Universal – seria ameaçada por novos atores.
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de inverter a lógica da exclusão dos direitos autorais por meio das licenças livres. Nos anos 1980, o programador americano Richard Stallman fez essa inversão e criou o conceito de software livre, impedindo que fosse usado segundo a lógica tradicional competitiva. Nos anos 1990, várias iniciativas pegaram esse espírito do software livre e traduziram pra outros âmbitos de expressão da cultura. Simultaneamente, com o advento da tecnologia de reprodução e a possibilidade de cópias digitais em massa e sem custo, houve a ascensão de práticas espalhadas na sociedade de cópia e colaboração. Uma delas são as redes “pear-to-pear” (P2P) ou par-a-par, uma arquitetura de rede caracterizada pela descentralização do sistema, onde cada computador realiza, no compartilhamento de arquivos, tanto a função de servidor quanto a de cliente. Ou seja, os arquivos são enviados de computador para computador diretamente.
Lei dos direitos autorais Entre os movimentos que surgiram com a ascensão do software livre e das práticas de compartilhamento, organizou-se um partido político internacional, tendo como principais bandeiras a reforma da lei dos direitos autorais, a extinção do sistema de patentes e a defesa dos direitos civis. O Partido Pirata surgiu na Suécia em 2006, como uma reação às alternativas de impor controle sobre a Internet, por razões de segurança e defesa da propriedade intelectual. “O sistema de propriedade intelectual é um artifício jurídico criado para gerar uma escassez de algo que, por não ser material, não está sujeito a tal escassez. Isso é uma grande contradição. Nunca vivemos um momento tão propício para compartilharmos cultura e conhecimento” aponta Jorge Machado, responsável pelo setor de comunicação do Partido Pirata do Brasil, sociólogo e professor da USP. Internacionalmente, o Partido Pirata defende a substituição do sistema de propriedade intelectual por algo que estimule a inovação de fato, como um sistema de premiação. Composto majoritariamente por jovens, o movimento do Partido Pirata se expandiu com grande velocidade e hoje atua em mais de 30 países pelo mundo, e já está oficialmente registrado como partido político nos seguintes países: Áustria, República Tcheca, Dinamarca, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Suécia e Polônia. Ainda tramitando pelas burocracias para a legalização oficial do partido, e portanto funcionando temporariamente como coletivo, estão Brasil, Argentina, Austrália, Rússia, Nova Zelândia, Itália, Bulgária, Portugal, Turquia, México, EUA, Canadá, entre outros. Em 2009, o Partido Pirata participou pela segunda vez das eleições europeias, elegendo dois deputados para o parlamento europeu e ficando em quarto lugar entre os partidos mais votados na Suécia. A sueca Amelia Andersdotter, de 22 anos, assumirá o posto de eurodeputada pelo Partido Pirata agora no início de 2010 e relata que os votos que o partido recebeu foram predominantemente de jovens entre 18 e 25 anos. “Acho que em parte porque os problemas que nós levantamos são mais palpáveis para os jovens, que são acostumados com a
tecnologia” opina. Ao ser questionada sobre como colocará em prática as ambições políticas do movimento a partir de 2010, Andersdotter explica que o que ela fará no parlamento europeu ainda estará distante de suas reais ambições, “Não temos força agora para apresentar uma reformulação da legislação de direitos autorais, nem extinguir o sistema de patentes no período de cinco anos”.
Aberto e transparente O Partido Pirata do Brasil surgiu em 2007, quando seus integrantes organizavam-se por meio do Fórum do Partido Pirata Internacional. Em 2008, criaram site e o fórum próprios. Em 2009, foram realizados os primeiros encontros presenciais do Partido Pirata do Brasil. Atualmente, há cerca de 1800 ativistas cadastrados no fórum, e o coletivo está em processo de registro como partido político. “Nas eleições de 2010 a gente vai brincar um pouco, mas em 2012 já estaremos participando” explicou Jorge Machado. Além de suas pautas comuns, existem bandeiras que são levantadas de acordo com a especificidade de cada região. “A gente defende a adoção de software livre na administração pública e de formatos de arquivos abertos, que não obrigam o uso do software de uma única empresa”, expõe. Visando contrapor-se ao modelo tradicional da representatividade política e da organização hierárquica de partidos, o Partido Pirata se considera aberto, transparente e colaborativo. De acordo com o site do Partido Pirata Brasileiro, “a ideia é justamente formar um ‘antipartido’. Hoje se questiona a necessidade de intermedários na cultura, como as gravadoras e editoras, e na mídia, com os sites e blogs. Na política não é diferente. A construção de um partido oficial pode servir justamente como um dos instrumentos para a superação da condição de intermediário político”.
AI5 digital Entre as campanhas construídas tanto pelo Partido Pirata Brasileiro quanto por outras entidades ligadas à inclusão digital, livre compartilhamento e direitos civis, há o enfrentamento à lei proposta pelo deputado Eduardo Azeredo (PSDB), apelidada pelos movimentos de “AI5 Digital”. O projeto diz defender o cidadão contra os crimes na internet, enrijecendo todas as convenções do direito autoral. Entre as medidas, bloqueará o uso de redes P2P, acabará com as redes de conexão aberta (WiFi), e mais: exigirá que esse controle seja feito pelos provedores de acesso à internet. Os dados do usuário serão armazenados pelo provedor por três anos. Além de infringir a privacidade dos usuários, o servidor fará o papel de delator. Seria considerado crime tanto copiar uma música quanto citar o trecho de uma matéria de um jornal em um blog. Além de carregar interesses da indústria de direitos autorais, o AI-5 digital beneficiaria os bancos, que socializariam seus prejuízos com a sociedade. “Se hoje você tiver uma conta violada por alguém, o banco vai te ressarcir. Com a lei, os bancos vão poder transferir a responsabilidade de uma conta violada, por exemplo, no provedor de acesso que o seu cliente usa.” explica Amadeu. O projeto, já aprovado no Senado, só precisa passar pela Câmara.
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Reformas na lei Desde a segunda gestão de Gilberto Gil, o Ministério da Cultura (MinC) vem promovendo uma série de encontros por meio do Fórum Nacional do Direito Autoral para subsidiar a reformulação da lei de direito autoral (Lei 9.610/1998). Ao invés de apresentar, como prometido, o pré-projeto da reforma da lei durante o III Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, realizado nos dias 9 e 10 de novembro, o MinC publicizou apenas uma parcela de suas propostas. Entre elas está a autorização da reprodução de obras para exibição de vídeos e músicas com objetivo didático e/ou de formação de público, por museus e bibliotecas com fins de conservação, a criação de uma cobrança para o xerox de cópias integrais e a criação de licenças não voluntárias. “Até onde o cenário atual permite, considero a reforma positiva, menos no setor universitário. Eles estão criando um ECAD dos livros. Vão autorizar a cópia do livro inteiro, só que vai ter uma sociedade arrecadadora, um mercado de xerox de livros. O problema é que essa sociedade vai depender de autorizações das editoras, não é um sistema compulsório” ressalta Ortellado. As editoras têm imunidade tributária, não pagam impostos como IPI, PIS e ICMS. Com a justificativa de incentivar o conhecimento e a leitura, o Estado deixa de arrecadar por ano, R$1 bilhão do mercado de livros. De acordo com pesquisa realizada pelo GPopai, 60% dos livros do mercado editorial são didáticos e 40% das compras são governamentais. Considerando que a maior parte de seus autores tem suas pesquisas financiadas por agências públicas como CNPq e Fapesp, o subsídio da produção de conteúdo também vem do Estado. “As editoras privadas estão se apropriando do controle do acesso a esse bem sendo que, de acordo com um levantamento que fizemos, ela contribui em 10% da elaboração daquele produto, os outros 90% são de dinheiro público” observa Pablo Ortellado. O MinC não propôs a redução do prazo de proteção do direito autoral sobre a obra, que atualmente é de 70 anos após a morte do autor. Assim, se uma pessoa produz uma obra aos 30 anos e vive até os 80, essa obra estará “protegida” por 160 anos. Ortellado explicita a situação esquizofrênica: “O ciclo de vida dos livros é curtíssimo. Quem tem a exclusividade sobre o produto, o disponibiliza no mercado por em média até cinco anos e durante mais de um século detém seu monopólio e o mantém parado. Qual o sentido disso?” O quadro que se desenha em todos os âmbitos de produção cultural, portanto, é de um embate entre o monopólio privado e o livre compartilhamento. O primeiro, ainda hegemônico, mantém firmes laços tanto com a indústria quanto com os governos. O segundo, vem ganhando força com as possibilidades que a própria rede permite e com as brechas e pressões que os movimentos fazem em cima das legislações. Amadeu define: “Esse é o choque do século 21”. Gabriela Moncau é estudante de jornalismo. janeiro 2010
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Gilberto Felisberto Vasconcellos
KARL MARX Vamp/Vip / Vampiro / Capitalista Tucano / Multinacional Na piscina com Serra/O rei da água privatizada Serra para o povo / Fartura para a corporation Você viu o corpo do Abílio Diniz fazendo Cooper no Ibirapuera? São Paulo só tem dez famílias Vampiro chupador de sangue mais-valia Capital vampiro suga o trabalho e aniquila a natureza Karl Marx curtia a metáfora vampiro para designar o roubo cósmico do capitalismo Só se pode prosperar à custa de muita desgraça Banco Mundial mandou recado para o candidato Serra Eleito terá de privatizar a água doce dos trópicos É o que exige a nova fase da acumulação do capital globalizado Direito à água só com grana Água dá lucro ninguém vai deixar de comprar água É o fim da lei da oferta e da procura Povo xucro / Morto de sede Assim não é mais necessário construir cadeia A água é sagrada o caralho No capitalismo não tem nada de sagrado a não
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e o Vampiro da Direita
ser o lucro / Hipotecaram as nuvens Tucanos leiloaram a Vale do Rio Doce Patentearam o cupuaçu / Serra Montsanto / Serra Monto Feitor do gastrocolonialismocancerígeno Do supermercado à drogaria. Da semente ao fruto. Do fruto ao excremento Qual é o totem deles? / O dinheiro E o tabu, qual é? / O amor Inadiável tarefa da inteligência de esquerda é explicar, para todo operário do Brasil, os motivos pelos quais invariavelmente o PSDB ganha as eleições em São Paulo. Por que vence sempre a direita? A origem do burguês paulista está na vela, no fósforo, no defunto A cúpula do PSDB todinha é de novo rico e parvenu Lord Serra não é from Mooca? Psicologia esnobe com cinismo. Eles se acham a vanguarda culta da burguesia, fátua, lumpen, lacaia do capital estrangeiro. A classe média universitária e o subescalão do comércio embarcam na síndrome bandeirante do nababo. Ressurge o barão do café de Cadillac Com a ofensiva neoliberal do capitalismo globalizado na
década de 80, os jornais e segundos cadernos liberaram a ostentação da burguesia sem culpa. Mas por que o péde-chinelo vota neles? É o amálgama do voto adquirido com a dialética da trapaça. O Príncipe da Moeda Embora servindo o imperialismo EUA, eles adoram a perfídia britânica da “terceira via” do casal Tony Blair e Giddens, abençoado pelo bispo francês Alain Touraine, rentistas, sibaritas, cafonas à dona Thatcher, o virago Kitsch da UDR inglesa, mas agora vão querer dar uma de Keynes com capital produtivo e refratário à especulação financeira A alma da campanha de dona Dilma dirigida por Celso Mantinez é a vingança póstuma do cozinheiro Oswald de Andrade em São Paulo O estilo Daslu de vida fotografado com pernas abertas conspícuas Sol Oswald / Solcialismo ou barbaridade Sol + socialismo / Socialismo Solar or not socialismo
José Serra
Co2 / Couve transgênica/ Fotossíntese para os gringos Sorte do povo / No país da telenovela José Serra é um telecacogênico. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.
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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu
CLÁSSICOS VIVOS,
as dicas do ano que se inicia A segunda década do século traz obras de pensadores brasileiros vivos que já são clássicas, lançadas pela Editora Unesp e Edições Facamp. Em sua 11a edição (a primeira é de 1975), “O capitalismo tardio”, do economista João Manuel Cardoso de Mello, um dos fundadores da Universidade de Campinas e da Faculdade de Campinas, ainda é uma obra rejuvenescedora sobre a constituição do capitalismo latino-americano em geral e brasileiro em particular, a partir da crise do sistema colonial. Chama a atenção particularmente para o “descompasso com as técnicas produtivas das ex-metrópoles”. O livro se caracteriza ao mesmo tempo pelo rigor teórico digno de alguém que estudou Karl Marx por inteiro, e não apenas parcialmente, como a esmagadora maioria dos ditos marxistas do mundo inteiro, e pela vasta pesquisa empírica que o embasa, digna dos melhores momentos da Cepal e das ciências sociais em geral. Já “Os antecedentes da tormenta: origens da crise global” traz artigos do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, também fundador da Unicamp e da Facamp, publicados na imprensa entre 1995 até 2009, em que fica claro que a profundidade que iria atingir, a partir de meados de 2008, a atual crise estrutural do capitalismo global, já era previsível há 15 anos atrás, pelo menos para os que não se deixaram iludir pela vitória do neoliberalismo sobre o defunto socialismo real. Belluzzo demonstra como as teses de Marx sobre o capitalismo como uma sucessão de crises são confirmadas pelo dia-a-dia da economia capitalista e sugere como soluções, enquanto não se criam a longuíssimo prazo as condições para o socialismo tal como foi previsto por Marx, os diques de contenção à anarquia capitalista propostos pelo economista inglês John Maynard Keynes. Nos atuais momentos de otimismo da economia e da sociedade brasileiras, com a resistência à crise demonstrada pela primeira, e o crescente papel da segunda no plano internacional, é bom lermos “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, de João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais, historiador famoso pelo livro “Portugal e o Brasil e a crise do sistema colonial”. No livro conjunto, Mello e Novais notam como no passado, por exemplo nos anos 1950 e 1970, otimismos semelhantes, segundo os quais o Brasil poderia reunir a modernização da economia com a amenidade da convivência social que distingue a sociedade brasileira das sociedades dos países desenvolvidos, deram lugar à desilusão, primeiro com o golpe, depois com o neoliberalismo.
Quem diz a verdade não merece castigo, mesmo que em outras situações tenha cometido pecados. É o caso de “O problema do café no Brasil”, tese de doutorado do economista Antônio Delfim Netto, que depois se tornaria ministro da Fazenda no regime militar. Obra fundamental para entender as relações da lavoura cafeeira e da exportação do café com o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, a obra mereceu de Cardoso de Mello a seguinte apreciação: “o professor Delfim promove um encontro virtuoso entre história e teoria econômica. Encontro, acrescento, que exige a perícia técnica do economista, a sensibilidade para o concreto do historiador e uma grande criatividade do pensador”. Finalmente, a coleção da Editora da Unesp e Edições Facamp, inclui também “Os anos de chumbo – Economia e política internacional no entreguerras”, de Frederico Mazzucchelli, professor da Unicamp e ex-secretário estadual de Economia e Planejamento de São Paulo, no governo Orestes Quércia. São dez ensaios que traçam a evolução desde o século 19, em que prevaleceu a hegemonia britânica, até o pós-Segunda Guerra Mundial. O fulcro da questão são os fenômenos, após a Primeira Guerra Mundial, do “apego obsessivo aos termos punitivos, protecionismo exacerbado e desvalorização competitiva”, e, após a Segunda, de que “as lideranças ocidentais perceberam que era imprudente retornar às prática políticas e econômicas do entreguerras”. Em suma, é preciso ler estes livros, não como relatos de um passado que já passou, mas prestando bem atenção no que está acontecendo no presente, pois esse passado está bem vivo hoje. Afinal, na crise dos anos 1930, o Brasil também se recuperou rapidamente, bem antes que os países adiantados, mas isso não impediu que a crise mundial se agravasse a ponto de evoluir para a guerra mais assassina de todos os tempos. Precisamos ter os olhos bem abertos para que não se repita a velha solução capitalista para as crises do capitalismo: a destruição maciça, pela guerra, das riquezas velhas, para que as riquezas novas possam nascer. Esse é o segredo da barbárie do capitalismo, que só pode ser impedida de se concretizar ou instaurando o socialismo em escala mundial, hipótese que parece remota, ou instaurando novos diques de contenção ao capitalismo.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.
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CHEGARAM OS FASCÍCULOS Nºs 3 e 4
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