Ed. 156 - Revista Caros Amigos

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ano XIII número 156 março 2010 R$ 9,90

100 anos do Dia Internacional da Mulher

ENTREVISTAS

Milton Hatoum

O escritor exigente da literatura contemporânea Boaventura Sousa Santos Direita ameaça avanços da esquerda na América Latina

Ministro Sérgio Rezende “As telefônicas cobram a maior tarifa do mundo”

São Paulo mantém

Lixo radioativo em área densamente povoada

Petroquímica

Por que o governo ajuda a concentração privada?

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO NECO TABOSA OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO

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GRANDES CIENTISTAS Brasileiros

Fascículo Nº 6 a partir do dia 15/03 nas bancas, Mário Schenberg e Gilberto Freyre Não perca!

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CAROS AMIGOS ANO XIII 156 março 2010 Foto de capa Jesus carlos

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EDITORA CASA AMARELA ­ evistas • Livros • Serviços Editoriais R fundador: Sérgio de Souza (1934-2008) Diretor Geral: Wagner Nabuco de Araújo

Brasil da ficção e da realidade Aos poucos, a cada livro, o escritor Milton Hatoum se afirma como autor respeitado entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. A exigência do público – que procura seus livros e surpreende o mercado editorial – tem reciprocidade nas exigências do próprio escritor. Em entrevista exclusiva para Caros Amigos, Hatoum deixa claro que tem gosto apuradíssimo e se referencia nos clássicos dos clássicos da literatura brasileira e universal. Por isso, ele expressa um diferencial de qualidade em relação ao mercado cada vez mais poluído de subliteratura e manuais de auto-ajuda. Vale a pena conhecer um pouco do estilo amazonensepaulistano do escritor, suas ideias, seu processo de criação. Nesta edição temos mais duas entrevistas da maior relevância: uma com o pensador português Boaventura Sousa Santos, que fornece um panorama detalhado das questões políticas e econômicas da América Latina e do mundo; e outra com o ministro da Ciência e Tecnologia, professor e pesquisador Sérgio Rezende, que analisa ações e desafios dessa área estratégica para o desenvolvimento do país. Questionado sobre a defasagem brasileira na banda larga, ele afirmou: “As telefônicas têm um lobby muito poderoso, são muito fortes, cobram uma tarifa que é a maior do mundo em telefonia celular, em internet e assim por diante”. Uma reportagem da revista procura desvendar os lances do Estado e da empresa privada no atual processo de monopolização do setor petroquímico – aparentemente contraditório com toda a cantilena neoliberal que tomou conta do Brasil desde 1990. A matéria mostra que a concentração econômica está sendo estimulada pelo governo como estratégia para a disputa internacional do capitalismo. Esse processo, evidentemente, tem consequências danosas para os trabalhadores e o povo brasileiro. Entenda o que está em jogo. Outra reportagem denuncia os riscos do lixo radioativo armazenado em área densamente povoada da zona sul de São Paulo – são os restos da Nuclemon, empresa desativada em 1992, mas que deixou um rastro de contaminação e mortes entre os seus ex-funcionários. A limpeza do lugar tem sido protelada há muitos anos. Virou novela de autoridades de todos os níveis. Como sempre, Caros Amigos mantém um time de colaboradores de alto nível, com suas análises e crônicas. Em tempo: tem também uma boa matéria para lembrar os 100 anos do Dia Internacional da Mulher. Vá em frente! Boa leitura!

Guto Lacaz. Caros Leitores. Marcos Bagno saúda a gramática que descreve o que acontece na nossa língua. Mc Leonardo deixa claro que o país só vai mudar quando punir quem merece.

07 José Arbex Jr. defende a sustentação da Escola Nacional Florestan Fernandes. 08 Joel Rufino dos Santos não duvida da virilidade dos grandes homens da pátria.

Guilherme Scalzilli defende a comparação das gestões de Lula e FHC em 2010.

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Glauco Mattoso Porca Miséria: estudo sobre a diversidade da sexualidade.

Eduardo Matarazzo Suplicy lembra a libertação de Mandela e os 30 anos do PT.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: os poetas do rap e o lançamento de Afro-X. 12 Entrevista Milton Hatoum: as palavras de um escritor exigente aos leitores

exigentes.

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Ferréz protesta contra a hipocrisia e presta homenagem aos cadeirantes.

Cesar Cardoso refaz a história da origem da espécie a partir da migração africana

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Frei Betto analisa o poderio imperial estadunidense e o colonialismo entranhado.

Fidel Castro fala de Martí, Bolívar, Marx e a medida da Venezuela no Haiti.

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João Pedro Stedile denuncia três poderes antidemocráticos que

sequestram o Brasil.

Gilberto Vasconcellos considera tucanismo a vaca louca do capitalismo.

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Joelma Couto alerta que lixo radioativo ameaça moradores de São Paulo. Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo. Ana Miranda aponta os indícios das chuvas na movimentação da natureza.

24 Ensaio Fotográfico de Jesus Carlos. As manifestações das mulheres. 26 Gabriela Moncau fala das conquistas e desafios da luta internacional das mulheres. 28 Lúcia Rodrigues mostra por que a política econômica favorece

a concentração.

com a periferia.

32 Entrevista com o ministro Sérgio Rezende, da Ciência e Tecnologia. 35 Otávio Nagoya relata a precária situação dos pesquisadores do Estado de São Paulo. 37 Gershon Knispel corrige a história das bombas incendiárias de Israel contra Gaza. 38 Julio Delmanto e Otávio Nagoya Enchente expõe o descaso social 40

Tatiana Merlino entrevista o pensador português Boaventura Sousa Santos.

43 Neco Tabosa conta a história de estudantes na escola flutuante do Recife. 44 Emir Sader comenta que os jornais com credibilidade vencem a crise da imprensa. 45 Renato Pompeu Ideias de Botequim: editora da UFRJ resiste ao neoliberalismo. 46 Claudius.

EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERes: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves revisora: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Ingrid Hentschel, Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon Sítio: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau Assessoria de imprensa: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Antonio Carlos, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242) diretor geral: wagner nabuco de araújo

CAROS AMIGOS, ano XIIi, nº 156, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf Redação e administração: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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setembro 2009

caros amigos

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Caros leitores

Sala de aula

Sou leitor, assinante (desde o início) e divulgador incansável da Caros Amigos, fonte de reflexão, conhecimento e prazer. É bom continuar lendo os artigos do José Arbex, Ferréz, Frei Betto e Stedile. Saudades da Marina Amaral e do Serjão. Vi com bons olhos a entrevista com o Prof. e Dr. Moacir Gadotti. A Caros Amigos precisa dar mais espaço para a educação brasileira. Grande parte dos leitores são estudantes e educadores. Confesso que estou com saudades das entrevistas com mais entrevistadores. Incontestavelmente eram mais atraentes e enriquecedoras. Atentem a esse detalhe e convoquem mais gente. A presença do jornalista José Arbex deve ser cativa, pois sua agudeza intelectual é provocativa e instigante, levando o entrevistado a fazer revelações e ponderações inéditas. Arquilau Moreira Romão, Ribeirão Preto/SP.

Sou uma leitora assídua e resolvi partilhar com vocês a utilidade dos textos da revista e como faço uso deles. Sou professora de Língua Portuguesa numa cidade do interior de São Paulo onde, infelizmente, poucos conhecem a revista. Todo começo de ano letivo seleciono alguns textos dos ótimos colunistas e inicio minhas aulas nas salas de ensino fundamental e médio lendo e discutindo-os com os alunos. Além deles gostarem e sairem do senso comum de todo início de aula, com apresentação de cronograma, da matéria e toda aquela coisa cansativa, consigo despertar a criticidade deles sempre com bom humor e inteligência, características da revista. Parabéns e obrigada por me fornecer um material tão bom todos os meses! Ah, gostaria de fazer um pedido especial, estou morrendo de saudades dos textos do Ulisses Tavares, voltem a colocar os textos dele. Fabíola Pereira, Jaú/SP.

Ferréz Como é bom ver os textos do Ferréz de volta à revista. Sempre fico reflexivo e logo em seguida busco algo pra fazer e não desistir dos meus ideais. Obrigado por tê-lo na revista. Dani Ciasca, Santos/SP.

Século 21 Lendo a edição 154 de Caros Amigos, deparei-me com vários artigos interessantes. Entretanto, gostaria de fazer um comentário que abrange o artigo de Frei Betto “Ano Novo, Vida Nova” e o artigo de Renato Pompeu “Clássicos Vivos”. O meu comentário em nada desmerece a importância dos dois artigos, entretanto, a primeira década do século 21 ainda não acabou. A primeira década termina no final deste ano, pois uma década é formada por 10 anos. O século 21 em nosso calendário começou em 2001. Frei Betto começa o seu artigo assim: “Chegamos a 2010!” Terminou a primeira década do século 21. Renato Pompeu começa assim: “A segunda década do século...”. Fernando Zucoloro, Ribeirão Preto/SP.

Carlos Nelson Muito esclarecedora e desmitificadora a entrevista com o filósofo marxista Carlos Nelson Coutinho publicada na edição de dezembro da Caros Amigos. Ela mostra explicitamente que Carlos Nelson não conseguiu quebrar os vínculos com o pior do Partidão, a saber, com a enorme facilidade de seus ex-membros de se equivocarem (e de insistirem turrões) em análises de conjuntura, o que historicamente já resultou em desastrosas e grotescas táticas políticas, absolutamente nefastas para a luta da vanguarda da classe trabalhadora brasileira. Na entrevista, ao cotejar a ministra Dilma com o governador de São Paulo, o filósofo do PSOL confessa, à maneira, digamos, Roberto Freire, seu ex-camarada, o seguinte: “Até às vezes desconfio que o Serra pode fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido a ele” (sic!!) (p. 33). E arremata pouco depois (p. 34): “Eu acho que a chegada do Lula ao governo foi muito nociva para a esquerda”. Ou seja, é um alívio que figuras como Carlos

Nelson Coutinho não estejam mais fazendo parte do PT. De intelectuais de esquerda – desses que são muito bons na masturbação mental e tragicamente trapalhões na práxis – fazendo, mesmo que involuntariamente, o jogo dos demo-tucanos para sabotar o governo Lula, o cenário da nossa luta de classes cotidiana está cheio. Paulo Jonas de Lima Piva, Itapira/SP.

Veneno na comida Cara jornalista Tatiana, estive lendo sua matéria sobre o uso dos agrotóxicos no Brasil e senti desejo de manifestar-lhe poucas palavras de congratulações e comentários. A grande realidade é que todo o esquema terrorista do uso de produtos químicos tóxicos no cultivo de alimentos faz parte de um terrível e complexo plano global para atingir os objetivos básicos das elites globais: reduzir a população mundial (nesse casopor meio de toda sorte de doenças oriundas da ingestão de alimentos), aumentar o débito tanto individual como nacional para com tratamentos de saúde, especialmente do câncer, o qual é massivamente causado pela alimentação, agregar riquezas às indústrias farmacêuticas multinacionais, fabricantes de outros produtos químicos para pseudotratar o doente. A produção de agrotóxicos vem também com o uso das sementes transgênicas, fabricadas com engenharia genética de dar pavor em quem lê a respeito. Genes de animais, vegetais, cruzamento de espécies, coisas horrendas que são ocultas das massas porque a mídia não vai se opor às multinacionais (aliás os donos acabam sendo os mesmos). Portanto sua matéria vem agregar mais um passo no esclarecimento do leitor a respeito do que as multinacionais colocam à mesa do brasileiro. Luis Henrique.

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Moacir Gadotti

Correção Diferentemente do que foi publicado em fevereiro, os créditos da matéria “Artistas se mobilizam para defender a lei de fomento cultural” são de Alessandra Perrechil / Cooperativa Paulista de Teatro.

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falar brasileiro Marcos Bagno

Mc Leonardo

Enfim, uma gramática brasileira!

Luz no

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Escrevo essas linhas na noite do dia

Se lá em cima escrevi que esperamos 188 anos por uma gramática da nossa língua é porque a nossa independência política (1822) não representou uma independência linguística. Nem poderia. Afinal, foi uma independência tramada de cima para baixo, proclamada pelo próprio representante da potência colonial que, mais tarde, para provar o quanto tinha ficado “independente”, abandonou seu império tropical para defender o trono português e se sentar nele com o nome de Pedro IV. Isso explica por que, no estudo e no ensino de língua, permanecemos igualmente atrelados aos manuais que vinham de Lisboa. E mesmo quando se começou a produzir gramáticas no Brasil, elas ofereciam como norma linguística uma modalidade extremamente restrita de língua literária lusitana pós-Romantismo. Bem-vinda, Gramática do português brasileiro! Talvez agora os autores de livros didáticos parem de tentar ensinar uma língua que nunca existiu por aqui (e, pensando bem, nem em Portugal) e reconheçam que a língua que nossos alunos querem aprender é o português brasileiro urbano culto, a língua que de fato molda a nossa identidade nacional e é moldada por ela. Libertas quae sera...!

11 de fevereiro. O governador José Roberto Arruda acabou de se “apresentar” para se “hospedar” na sede da Polícia Federal a “pedido” da Justiça. Ele ficará em uma sala (e não em uma cela) reservada pra autoridades que cometem “deslizes”, “impurezas” e “práticas ilegais”. Não sei se daqui a um mês, quando essa coluna estiver nas bancas, o senhor governador licenciado estará ainda hospedado na Polícia Federal. Espero que sim, pois acredito que ele “pode atrapalhar” as investigações. Escrevi a primeira parte deste texto do jeito que o nosso presidente Lula quer, pois ele se mostrou abatido com a decisão da Justiça, preocupado com a exposição do José Roberto Arruda, e achou lamentável a situação que o levou à prisão. No mensalão do valerioduto vimos políticos confessarem diversos crimes e não serem presos; na Operação Satiagraha vimos um delegado ser ridicularizado pela mídia, ser afastado de suas funções e ser indiciado criminalmente após ter tentado prender Daniel Dantas; a crise no Senado nos mostrou o quanto a nossa democracia é frágil, pois não sabemos há quanto tempo vem se administrando aquela Casa com atos secretos sem que ninguém vá preso. Quem tenta exigir uma posição do Judiciário sendo coerente com a nossa Constituição fica tomando porrada, borrachada e engolindo gás de pimenta em confronto com a polícia em diversas praças dos grandes centros do nosso país. E eu não vejo a assessoria do nosso presidente falar que ele tenha ficado abatido por isso. Não precisa ser nenhum cientista político, sociólogo, antropólogo ou ter qualquer outra especialidade acadêmica para saber que o nosso país só vai mudar quando quem realmente merece for punido. A prisão do governador é, na minha opinião, a tão falada luz no fim do túnel, mas para muitos essa luz pode ser um trem vindo em direção contrária.

Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

Demorou, mas chegou. Exatos 188 anos. Finalmente, temos à nossa disposição uma gramática que descreve o que realmente acontece na nossa língua: a Gramática do português brasileiro, de Mário Perini, que acaba de ser lançada (Parábola Editorial). O fato histórico merecia banda de música e fogos de artifício. Afinal, vamos poder nos livrar dos mofados compêndios que, mesmo publicados no Brasil, mesmo publicados recentemente, continuam a chamar nossa língua simplesmente de “português” e a tentar impor como modelos de correção as opções de um punhado de escritores lusitanos mortos há uns bons 200 anos. Chega! Xevra! Xispa! Xô! Mário Perini é um linguista que há muito tempo vem se dedicando ao exame atento do que é a língua majoritária dos brasileiros. Já em 1985, propôs que se abandonasse a prática multissecular de recorrer à escrita literária em favor de uma referência ao padrão que de fato se verifica na prática escrita das pessoas altamente letradas. Em vez do romance e da poesia, que a gramática se debruce sobre a escrita jornalística, acadêmica, ensaística, técnico-científica. Se é para ensinar os brasileiros a escrever, que se ensine a escrever como se escreve no Brasil, e não como Eça de Queiroz ou Camilo Castelo Branco nem, muito menos, Machado de Assis (um gênio assim só a cada 500 anos!). É preciso libertar a língua da retumbante maioria das pessoas do peso insuportável de ser comparada aos usos feitos pelos grandes escritores. É preciso que professores de português, dicionaristas, gramáticos e neogramatiqueiros (esses que invadiram a mídia brasileira atual para vender um peixe linguístico mais podre e fedido que as águas do Tietê) parem de dizer que tal uso é “errado”, “não existe” ou “não é português” só porque não aparece na obra dos “clássicos”. Além de ser uma mentira, também é uma grande injustiça, e por duas razões. Primeiro, porque na obra dos grandes escritores também aparecem transgressões das normas tradicionais (embora os gramáticos se esforcem por escondê-las, como se os grandes autores só escrevessem de acordo com as regras que eles, gramáticos, tentam impor). Segundo, porque os escritores não devem nem querem ser transformados em régua para corrigir, em peso e medida para avaliar a produção linguística de ninguém.

fim do túnel

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José Arbex Jr.

Vamos manter viva

a universidade dos trabalhadores! Caro leitor: a Escola Nacional Florestan Fernandes pede a sua ajuda urgente para se manter em funcionamento (veja como contribuir, no Box). Situada em Guararema (a 70 km de São Paulo), a escola foi construída, entre os anos 2000 e 2005, graças ao trabalho voluntário de pelo menos mil trabalhadores sem-terra e simpatizantes. Nos cinco primeiros anos de existência, passaram pela escola 16 mil militantes e quadros dos movimentos sociais do Brasil, da América Latina e da África. Não se trata, portanto, de uma “escola do MST”, mas de um patrimônio de todos os trabalhadores comprometidos com um projeto de transformação social. Entretanto, no momento em que o MST é obrigado a mobilizar as suas energias para resistir aos ataques implacáveis dos donos do capital, a escola torna-se carente de recursos. Nós não podemos permitir ou sequer tolerar a ideia de que ela interrompa ou diminua o ritmo de suas atividades. A escola oferece cursos de nível superior, ministrados por mais de 500 professores, nas áreas de Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Sociologia Rural, Economia Política da Agricultura, História Social do Brasil, Conjuntura Internacional, Administração e Gestão Social, Educação do Campo e Estudos Latino-americanos. Além disso, há cursos de especialização, como Direito e Comunicação no campo, em convênio com outras universidades. O acervo de sua biblioteca, formado com base em doações, conta hoje com mais de 40 mil volumes impressos, além de conteúdos com suporte em outros tipos de mídia. Para assegurar a possibilidade de participação das mulheres, foram construídas creches (as cirandas), onde os filhos permanecem enquanto as mães estudam. A escola foi erguida sobre um terreno de 30 mil metros quadrados, com instalações de tijolos fabricados pelos próprios voluntários. Ao todo, são três salas de aula, que comportam juntas até 200 pessoas, um auditório e dois anfiteatros, além de dormitórios, refeitórios e instalações sanitárias. Os recursos para a construção foram obtidos com a venda do livro Terra (textos de José Saramago, músicas de Chico Buarque e fotos de Sebastião Salgado), contribuições de ONGs europeias e doações. Claro que esse processo provocou a ira da burguesia e de seus porta-vozes “ilustrados”. Não faltaram aqueles que procuraram, desde o início, desqualificar

Os donos do capital têm mesmo razões Participe da Associação dos Amigos da Escola Florestan Fernandes Em dezembro, um grupo de intelectuais, professores, militantes e colaboradores resolveu criar a Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes, com três objetivos: 1 – divulgar as atividades da escola, incluindo sites, newsletter e blogs; 2 – iniciar uma campanha nacional pela adesão de novos sócios; 3 – promover uma série intensa de atividades, em São Paulo e outros estados, para angariar fundos. O Conselho de Coordenação é formado por José Arbex Jr, Maria Orlanda Pinassi e Carlos Duarte. Conselho Fiscal: Caio Boucinhas, Delmar Mattes e Carlos de Figueiredo. Sede na Rua da Abolição, n°167 - Bela Vista - São Paulo – SP – Brasil - CEP 01319-030. Para ficar sócio pleno, você deverá pagar R$20,00 (vinte reais) mensais, ou poderá tornarse sócio solidário, caso queira contribuir com uma quantia diferente (maior ou menor). Esses recursos serão diretamente destinados às atividades da escola ou, eventualmente, empregados na organização de atividades para coleta de fundos (por exemplo: seminários, mostras de arte e fotografia, festivais de música e cinema). Para obter mais informações sobre como participar e contribuir, procure a secretária executiva Magali Godói pelos telefones: (11) 3105-0918; 9572-0185; 6517-4780, ou do correio eletrônico: associacaoamigos@enff.org.br.

o ensino ali ministrado nem as “reportagens” sobre o suposto caráter ideológico das aulas (como se o ensino oferecido pelas instituições oficiais fosse ideologicamente “neutro”) ou ainda as inevitáveis acusações caluniosas referentes às “misteriosas origens” dos fundos para a sustentação das atividades. As elites simplesmente não suportam a ideia de que os trabalhadores possam assumir para si a tarefa de construir um sistema avançado, democrático, pluralista e não alienado de ensino. Maldito Paulo Freire!

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para se sentir ameaçados. Um dos pilares de sustentação da desigualdade social é, precisamente, o abismo que separa os intelectuais das camadas populares. O “povão” é mantido a distância dos centros produtores do saber. A elite brasileira sempre foi muito eficaz e inteligente a esse respeito. Conseguiu até a proeza de criar no país uma universidade pública (apenas em 1934, isto é, 434 anos após a chegada de Cabral) destinada a excluir os pobres. Carlos Nelson Coutinho e outros autores já demonstraram que, no Brasil, os intelectuais que assumem a perspectiva da transformação social sempre encontraram dois destinos: ou foram cooptados (mediante o “apadrinhamento”, a incorporação domesticada nas universidades e órgãos de serviços públicos sendo regiamente pagos por seus escritos; ou recebendo bolsas, privilégios etc.) ou os poucos que resistiram foram destruídos (presos, perseguidos, torturados, assassinados). Apenas a existência de movimentos sociais fortes, nacionalmente organizados e estruturados poderia fornecer aos intelectuais oriundos das classes trabalhadoras ou com elas identificados a oportunidade de resistir, produzir e manter uma vida decente, sem depender dos “favores” das elites. Ora, historicamente tais movimentos foram exterminados antes mesmo de ter tido tempo de construir laços mais amplos e fortes com outros setores sociais.

A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) coloca em cheque esse mecanismo

histórico. A construção da escola só foi possibilitada pela prolongada sobrevivência relativa do MST, que completou 25 anos em 2009 – um feito inédito para um movimento popular de dimensão nacional –, bem como pelo método por ele empregado, de diálogo e interlocução com o conjunto da nação oprimida. Esse método permitiu o desenvolvimento de uma relação genuína em que a elaboração teórica colabora com a prática transformadora. É uma oportunidade histórica muito maior do que a oferecida ao próprio Florestan Fernandes, Milton Santos, Paulo Freire e tantos outros grandes intelectuais que, apesar de todos os ataques dos donos do capital, souberam apoiar-se no pouquíssimo que havia de público na universidade brasileira para elaborar suas obras. José Arbex Jr. é jornalista. março 2010

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

O direito de

Os sonhos de Santos Dumont

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comparar

gosto por ver o seu invento trazer a morte do céu, de onde só devem cair chuvas e bênçãos, mas deprimido porque o amante o abandonou num hotel de luxo”. Naquela fala saltitante que lhe valera o apelido, Perereca contava também que o homem era melancólico há tempo, tendo ido a Sorocaba, mais de uma vez, consultar o macumbeiro João de Camargo que, para impressioná-lo, ligou para Deus, na sua frente, usando o número 14-14, ou 14 bis: “Alô, aqui é João de Camargo, Deus está?”, “Espera aí”, respondeu o telefonista, “vou ver se Ele pode atender” etc.etc. Perereca saíra há pouco de cana, onde ameaçaram lhe cortar a língua com uma tesoura de Plymouth se continuasse a usá-la para denegrir vultos pátrios, mas continuou: “Sabe por que ele se matou? É que tinha dois sonhos, botar um ovo e voar, só realizou o último”. Ninguém de bom juízo deve colocar em dúvida a virilidade dos homens que construíram o país. Nem ontem nem hoje. P.S. Nessa história, leitor, só Perereca é inventado. Joel Rufino é historiador e escritor.

A mídia conservadora menospreza o tom plebiscitário das eleições presidenciais porque tem horror a promover um confronto direto entre os resultados dos governos FHC e Lula. Embora a imensa aprovação ao petista represente um julgamento público que jamais estaria dissociado de méritos administrativos, seu caráter subjetivo permite atribuí-la parcialmente ao carisma ou à índole populista do mandatário. Já as estatísticas são perigosas, pois são menos permeáveis a contaminações ideológicas de qualquer espécie. Por isso há tamanho esforço para omitir os dados existentes ou diluí-los em amostragens de longa duração. A previsível tendência evolutiva dos grandes períodos atenua as particularidades das gestões, conferindo base pseudocientífica à falácia de que elas foram semelhantes e indissociáveis. O passo seguinte é adotar o discurso oposicionista contra a “malandragem de Lula”, não apenas para roubar-lhe a discutível glória de superar seu medíocre antecessor, mas porque, em 2006, a candidatura de Geraldo Alckmin ruiu no momento em que o impopular FHC foi trazido ao debate. A tentativa de desqualificar as comparações é uma estratégia antidemocrática para empobrecer a campanha eleitoral em favor da candidatura do PSDB. O golpe visa neutralizar um elemento fundamental da definição do voto, mais importante ainda quando a escolha envolve continuidade e ruptura, personificadas por partidos adversários que protagonizaram governos sucessivos. Excluída a possibilidade de cotejar experiências administrativas, restam demagogias, ataques pessoais e falsas reputações fabricadas pelos tendenciosos veículos de São Paulo e Minas Gerais. A imprensa viola suas prerrogativas constitucionais quando sonega informações cruciais para o exercício da cidadania. O eleitor tem o direito de conhecê-las, e só ele pode julgar sua relevância. Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: Bruno Paes

O governador (interventor) de São Paulo foi bem claro: “Não haverá inquérito. Santos Dumont não se suicidou”. Esse interventor, civil e paulista, era Pedro de Toledo. A data 23 de julho de 1932. Mal começara o levante em que São Paulo, depois de fracassar a articulação com Minas e Rio Grande do Sul, lutou sozinho contra o governo federal de Getúlio. Guardo um velho caderno de juventude com frases e provérbios. Encontro ao acaso uma maldição chinesa: “Tomara que vivas numa época interessante”. Os anos 30 do século XX foram interessantíssimos: nossa estrutura de classes passou por uma “reacomodação de camadas” (não exatamente um terremoto) e o sistema capitalista global viveu a sua primeira grande crise, da qual sairia para sempre modificado. A história do país e do mundo se acelerou e, em consequência, houve agitação por toda parte. Esse é, aliás, o conteúdo daquilo que os conservadores chamam, com temor, “agitação social”: aceleração da história. A contrarrevolução paulista de 1932 foi um exemplo dessa aceleração/agitação. Na frente ampla contra Getúlio e o tenentismo coube quase tudo: oligarquia destronada, plantadores arruinados, burocratas depostos, empresariado intranquilo, industriais oportunistas, intelectuais desbussolados, oportunistas de todas as classes, criaturas ingênuas e sinceras de todo o tipo, separatistas sem noção de nada. Mário de Andrade a chamou de “arrufos da elite”, foi mais do que isso. Quatorze dias após o começo da guerra civil, no Grande Hotel de La Plaza, Guarujá, o pai brasileiro da aviação se enforcou com duas gravatas. O que se passa na alma dos suicidas só eles sabem, nem os bilhetes que deixam merecem crédito absoluto. No caso de Dumont podemos escolher: transtorno bipolar agudo, desgosto por uma doença intratável (esclerose múltipla, indetectável na época), remorso por ter inventado o avião (ele assistira da praia um cruzador bombarbeado pelos “vermelhinhos”, aviões de Getúlio). Qualquer que fosse a razão, ponderando que São Paulo estava numa guerra cívica, o governador fez a declaração acima: “Não haverá inquérito. Santos Dumont não se suicidou”. Só mesmo um comunista desmiolado como Perereca para dizer em público o que todos sabiam: “O homenzinho não se matou de des-

Guilherme Scalzilli

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A DIREITA BRASILEIRA CONTINUA FORTE, ATACA E MORDE. Edição Especial Caros Amigos A DIREITA BRASILEIRA

Dia 31/03 nas bancas

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EDITORA CASA AMARELA

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Eduardo Matarazzo Suplicy

porca miséria! Glauco Mattoso

Mandela

Gingando na gangorra [3117]

O poncto “G”, que muita gente falla ser “grelo” na mulher, é mais um mytho da sexualidade. E nem cogito apenas do pezinho, ao excital-a. Tambem se applica ao homem: o que embala o sexo é qualquer zona, ao infinito. Si, amado, o feio passa a ser bonito, importa, em cada corpo, o que o regala. Que seja, então, o “grelo”, mas tambem “gambito”, “glande”, “gonada” ou “gogó”, comtanto que alli tenha orgasmo alguem. Na bicha, no netinho ou na vovó, que o “G” não signifique nada alem de “gozo”, simplesmente “gozo”, e só! Soffro duma insomnia que, desde a cegueira definitiva, tornou-se chronica, mas aproveito as noites em claro, digo, no escuro, para poetizar e philosophar, como no caso deste soneto, composto quando ouvi na cama, pelo radinho de pilha, a entrevista dum professor da UERJ sobre o decantado poncto “G”. O especialista emphatizava a individualidade na sexualidade, ou seja, a descentralização da zona erogena, em favor da diversidade de preferencias pessoaes e contra a massificação estereotypada do acto genital ou da penetração. Algo não muito differente da these de Steven Butterman sobre minha poesia, no sentido de que a podolatria, mais que fetichismo ou sadomasochismo, representaria uma ruptura do phallocentrismo e de outras tyrannias machistas que, historicamente, monopolizaram a sociedade, em detrimento da sexualidade feminina ou homoerotica. Não discuto tal merito, até porque ao masochis-

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ta basta que os papeis se mantenham deseguaes na parceria, um mandando, outro obedecendo. Mas, quando se pensa no sexo como mais um exercicio de poder, acabamos cahindo na politica propriamente dicta. Ainda que muitos caciques gagás se preoccupem em posar ao lado de “namoradas” muitissimo mais jovens, como si isso lhes attestasse a desnecessidade dum viagra, o facto é que, para os politicos, o verdadeiro poncto “G” significa, pura e simplesmente, “governar”: nelles, o orgasmo se concentra na bunda sobre uma cadeira executiva, nos dedos segurando uma canneta legislativa e no braço brandindo um martello judiciario, alem, é claro, da genitalia ou dos pés, em contacto com a “grana” que abarrota cuecas e meias...

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Coincidentemente, comemoramos na mesma semana os 20 anos da libertação de Nelson Mandela (em 11 de fevereiro de 1990), e os 30 anos da fundação do Partido dos Trabalhadores, em (10 de fevereiro de 1980). Na segunda metade dos anos 70, como professor de economia na EAESP-FGV e redator de artigos de economia da Folha de S.Paulo, recebi a recomendação de amigos: “Seus artigos são muito lidos, seria bom você defender suas ideias no parlamento”. Considerei, então, eleger-me deputado e, assim, em 1978, fui eleito deputado estadual pelo MDB. Já interagia com os movimentos sociais e sindicais, como o dos metalúrgicos de São Bernardo, de professores, motoristas de ônibus, garis e outros em São Paulo. Observava que os responsáveis pela política econômica deviam ouvir não apenas os empresários, mas também os trabalhadores, diretamente afetados por suas decisões. Em 1979, com a extinção da Arena e do MDB pelo presidente Ernesto Geisel, vários líderes sindicais e intelectuais resolveram fundar o PT. O objetivo era dar voz e vez aos que, por séculos, estavam à margem das decisões sobre a vida pública brasileira e construir uma nação solidária, igualitária e justa. Fui convidado para participar da fundação do PT na histórica reunião do Colégio Sion, com outros cinco deputados estaduais: Irmã Passoni, João Baptista Breda, Geraldo Siqueira, Marco Aurélio Ribeiro e Sérgio Santos. Além do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ali estavam Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Freire, Perseu Abramo. Assim como Nelson Mandela, que presidiu a África do Sul de 1994 a 1999 com apoio do Congresso Nacional Africano (CNA), o presidente Lula e o PT continuam a dar passos importantes para o avanço dos direitos à cidadania. Entre as ações bem-sucedidas de Mandela está a criação da Comissão da Verdade e da Reconciliação, presidida pelo Bispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz. Essa comissão percorreu a África do Sul, ouviu as pessoas e familiares das vítimas de atrocidades cometidas durante o Apartheid, bem como os responsáveis pelos abusos. Na medida em que esses reconheciam terem cometido tais desmandos, estabeleceu-se a verdade e pôde haver a anistia. Conforme mostra o excelente filme Em minha terra, o triunfo da verdade colaborou para a reconciliação e a democratização daquele país, propósito semelhante ao que a Comissão de Verdade e Reconciliação, prevista no Plano Nacional de Direitos Humanos, deseja realizar no Brasil. Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

e os 30 anos do PT

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

A música brasileira ficou mais rica em novembro de 2009, quando veio à luz o disco Das ruas pro mundo (Auto-Estima Records), do rapper paulista Afro-X. Ali, o rap se acasala com gêneros antes distantes, como o funksoul brasileiro de Carlos Dafé e Sandra de Sá e o rock do CPM22, e ressurge cheio de vida e vibração. No finalzinho de dezembro, saiu Dexter & Convidados ao Vivo (Alta Voltagem Fonogáfica), sob assinatura de outro dos mais importantes porta-vozes do hip-hop daqui. Esse ainda não escutei, mas vem repleto de participações especiais, como as dos poetas do rap Mano Brown, GOG e Lino Crizz, do homem-máquina do ritmo Fernandinho Beatbox e da cantora de samba-soul Paula Lima. Afro-X e Dexter são amigos de infância, foram parceiros no hoje extinto grupo 509-E e dividiram cela na Casa de Detenção do Carandiru. Condenado a 14 anos de prisão por dois assaltos à mão armada e um estelionato, Afro-X comandou em liberdade o lançamento de Das ruas pro mundo. Dexter segue cumprindo pena de 39 anos por um homicídio e sete assaltos à mão armada. As trajetórias de ambos iluminam o filme Entre a luz e a sombra, de Paula Burlamaqui, premiado como melhor documentário pelo público do festival francês de Biarritz e causador de impacto profundo em quem o assistiu no brevíssimo período em cartaz por aqui, no final de 2009. Outro personagem é o juiz Octavio Barros Filho, que, como corregedor de presídios de São Paulo, permitiu e estimulou a saída corriqueira de Afro-x e Dexter da prisão para fazer shows livres à luz da noite. Em Entre a luz e a sombra, o juiz traça um paralelo com um grupo de doentes de câncer que gosta de frequentar, e joga de volta à sociedade aqui fora parte importante da responsabilidade pelos crimes cometidos nas mãos de Dexter e Afro: “Se a pessoa não se olha no espelho, não ama seu corpo, sua doença, suas chagas, ela não se recupera (…) O grupo de câncer tem que trabalhar com o amor. Tem que se amar. Tem

que gostar de si próprio. E tem pessoas lá que não conseguem olhar, porque detonaram uma doença pra se matar. (…) O mecanismo é o mesmo. Do mesmo jeito que a gente fala que a sociedade quer esse lixo de prisão, esse é o câncer da sociedade que não é capaz de se amar. Não ama um preso. Não digo amor no sentido bonzinho, ‘vem cá que vou bater na sua cabecinha, gracinha’. Não é isso. Respeito. Se o doente não é capaz de se respeitar e provocou essa doença nele inconscientemente, é aí que eu digo, a gente é o inconsciente. A gente tem que mostrar pra sociedade a luz, quando ela quer a sombra”. Pode até parecer incômodo esse papo de ouvir música (e ideologia) de (ou sobre) presidiários e ex-presidiários. Mas eu te digo: é a coisa mais manjada do planeta. Naquele país autodenominado América, gêneros “do povo” como blues, folk e country são pródigos em exprimir os sentimentos de poetas pop privados de liberdade. “Leve uma mensagem para Mary/ mas não diga a ela onde estou/ leve uma mensagem para Mary/ mas não conte que estou no xadrez”, cantavam os Everly Brothers em 1959, num lindo folk mais tarde regravado pelo adorado Bob Dylan. O trovão da música country Johnny Cash fez shows antológicos dentro dos presídios de Folsom e San Quentin. O amor pela sombra também viceja na nossa história musical, embora jamais compreendido pela sociedade encarcerada em shoppings, condomínios e carros blindados. Odiado pela bossa nova por conta do baião rústico (ou “vulgar”?) que inventou, Luiz Gonzaga passou a vida intrigado com Lampião – e, embora defensor contumaz da lei e da ordem (foi soldado quando mocinho), conquistou o Brasil sob um desconcertante figurino de cangaceiro. Em “Assum Preto”, alegorizou com sutileza, na figura de um pássaro triste, o dilema entre cantar encerrado numa gaiola ou viver “cego dos óio” no mundão aqui fora. Mais recentemente, a ex-chacrete Rita Cadillac, corajosa como ela só, elevou a moral das tropas do Carandiru cantando “É Bom para o Moral”. Hoje em dia, a adolescente explorada e queridinha-de-mídia Mallu Magalhães venera o folk de Dylan e Cash, e talvez nem saiba por quê.

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Em liberdade, Afro-X foi convidado a viajar para mostrar em Nova York o clipe de “Regenerado”, com cenas gravadas dentro do que restou do Carandiru implodido. Lá, travou contato com instituições dedicadas à reabilitação de ex-presidiários. Lançou em 2009 o livro biográfico Ex-157, e hoje dirige em São Bernardo do Campo a ONG SuperAção, que leva rap a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “Tento trabalhar mais na prevenção”, diz. Sobre a condição de ex-presidiário, conta: “Muitas vezes me causa constrangimento quando sou parado pela polícia e descobrem que sou eu ou quando visito um cara da periferia e percebo que ele esconde a carteira de mim ou quando um cara do Morumbi deixa uma joia à vista para me testar. Mas enfrento fácil, porque o pior já passou”. Sobre a vida de homem livre, reflete: “É um novo trabalho, uma nova correria. Sinto na pele toda a responsabilidade de ser um homem de negócios, gerar alguns empregos, correr atrás da divulgação do disco”. Após o advento do PCC e o consequente endurecimento do governo estadual no sistema carcerário, o juiz Barros Filho foi afastado da corregedoria e a rotina de saídas de presos-artistas se interrompeu. Transferido, Dexter está no presídio de Hortolândia, no interior paulista, e o acesso a ele ficou cada vez mais restrito. Ainda assim, lançou em 2005 Exilado Sim, Preso Não (Alta Voltagem/Porte Ilegal), uma potente coleção de “prison songs”, como chamariam os irmãos da outra América. E trava contato com o mundo aqui fora via blog e Twitter, @dexter8anjo. Dexter e Afro-x ficaram estremecidos após o final do 509-E. Seguem rotas aparentemente opostas e professam opiniões divergentes sobre o rap. Mesmo assim, ouvir seus discos demonstra que o ponto de vista de Afro-X continua a se somar ao de Dexter – e que ambos se somariam aos de seus conterrâneos ditos “livres”, se nos dignássemos a ouvi-los, e amá-los. Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

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foto: jesus carlos

Assum preto vive solto

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entrevista

Milton Hatoum

Um escritor exigente para

leitores exigentes o

Participaram Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

escritor Milton Hatoum é um fenômeno na literatura brasileira contemporânea: seus livros conquistam o grande público e o mercado, mas ele não faz parte do círculo de escritores de auto-ajuda ou baixa literatura. Autor de quatro romances sérios, densos, e de um livro de contos, Hatoum escreve devagar, faz inúmeras versões e revisões antes de lançá-los, revela que não gosta de publicá-los. Lançou Relato de um certo Oriente em 1989, que recebeu o Prêmio Jabuti. Dez anos depois, em 2000, lançou Dois Irmãos, que recebeu outro Jabuti e foi traduzido em oito idiomas. Em 2005, lançou Cinzas do Norte, que recebeu o terceiro Jabuti e vários outros prêmios. Em 2008 publicou Órfãos do Eldorado e, em 2009, lançou o livro de contos A cidade ilhada. Todos cairam no agrado do público, especialmente dos professores de português, letras e literatura, e dos leitores mais exigentes. Para muitos, a sua escrita lembra um clássico da literatura brasileira. Veja o que diz o escritor.

Renato Pompeu - Você levou 10 anos entre o primeiro e o segundo romance, né?

Milton Hatoum - 10 anos, estava encalhando no “Relato de um certo Oriente”.

Renato Pompeu - E como foi essa

experiência? Eu tentei escrever outras coisas e depois de ter publicado o Relato..., em 89, eu fiz uma tradução. Entre elas, um livro do Edward Said, Representações do Intelectual. Traduzi um livrinho do Marcel Schwob, que é um escritor francês desconhecido. Escrevi também alguns contos que depois foram reunidos nesse livro e trabalhei durante anos em um romance que não publiquei porque se tornou um texto enorme, de mais de 800 páginas. Eu achei indecoroso publicar um texto que sofria de elefantíase. Não que eu não tenha gostado, é que naquele momento eu não tinha fôlego para reescrever e cortar muitas coisas. E foi um momento complicado, por que a universidade nos solicitava muito e eu não tinha muito tempo para ler e para escrever.

Renato Pompeu - A impressão que dá

é que tendo em vista o sucesso imediato que o primeiro livro teve, aumentou a sua responsabilidade em relação ao segundo. A impressão que dá é que você criou uma expectativa em corresponder, não foi isso?

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Milton Hatoum fala sobre seus autores preferidos e a criação literária.

Tatiana Merlino - São quatro romances e um livro de contos, né? Sim, é isso.

publicar um livro por ano. Por que o senhor acha que acontece isso? orque muita gente publica qualquer coisa. Muitas vezes as pessoas não são exigentes consigo mesmas... Talvez a literatura, o que os americanos chamam de entertainment, de entretenimento, de uma mera diversão seja vitoriosa e também a literatura, vamos dizer, comercial tenha uma importância hoje muito maior do que uma literatura mais elaborada, e num país como o Brasil é difícil você encontrar um público leitor mais exigente, embora eu não possa reclamar disso porque os meus livros, sobretudo o Dois irmãos e o Cinzas do Norte alcançaram um público considerável para os padrões brasileiros, muitíssimo além das minhas expectativas. Mas literatura hoje é feita por qualquer pessoa que publique seus diários na internet, um blog. Acabam publicando um livro e nomeando isso de literatura. Eu acho que há aí uma falta de julgamento ético e estético sobre a obra literária, a obra de arte.

Lúcia Rodrigues - O senhor disse que as pessoas não têm poder, por exemplo, de

Lúcia Rodrigues - O que precisaria ocorrer para que a literatura fosse de fato uma

Não. Eu não sou muito ligado em sucesso. Eu considero a literatura uma parte da minha vida, e eu acho a vida muito mais complexa do que a literatura. É claro que quando você é elogiado por críticos, bons críticos, bons leitores, você fica contente e depois, de fato, se empenha em escrever alguma coisa que valha a pena. Mas eu não me senti inibido, tanto que eu escrevi uma coisa com muito pouca inibição, aliás, me soltei tanto, fui tão caudaloso que disse a mim mesmo que isso não podia ser publicado, pelo menos como está. Aí eu guardei, até porque eu não gosto de publicar muito, não sei dizer por quê.

Renato Pompeu - Quantos livros publicados

você tem? Então, eu tenho cinco livros em 20 anos. O “Relato” fez 20 anos em 2009, não é muito...

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literatura e não meramente um jogo de informações? O que poderia ser feito para mudar esse tipo de coisa? A pressão do mercado cresceu exponencialmente nos últimos 20 anos, eu lembro que quando eu publiquei o Relato em 89, ninguém me pediu para publicar outro livro em um determinado tempo, você não se sentia pressionado. O mundo era um pouco diferente. Eu acho que hoje essa relação do sucesso com a venda é uma relação... é só você ver o caso da auto-ajuda, do Paulo Coelho ou de vários outros escritores de auto-ajuda. Eles são considerados escritores e alguns são até mesmo da Academia Brasileira de Letras. Acho que faltam critérios críticos.

Lúcia Rodrigues - Como é que você vê os livros do Paulo Coelho? Eu nunca li, não posso julgar porque eu nunca li. Lúcia Rodrigues - Você considera literatura? Eu não sei, eu desconheço a obra dele, mas certamente não seria um autor preferido para mim. Talvez porque a literatura brasileira já tenha uma tradição. A meu ver, o romance mais inventivo da língua portuguesa é o “Grande Sertão Veredas”. Foi um grande acontecimento para a literatura de língua portuguesa, mas só os portugueses sabem disso. Então um Graciliano Ramos, um Machado de Assis, Clarice Lispector.. Acho que há uns seis ou oito escritores- do Machado até os anos 70que estão dizendo para você que está escrevendo hoje: ‘Olha, existe aí alguma coisa a ser feita e isso não pode ser ignorado’.

Lúcia Rodrigues - Por quê? Basta ligar a TV. Tudo que a gente consome do ponto de vista “cultural”, essa cultura massificada, ela é uma cultura totalmente sem conteúdo, totalmente alienante. O que a gente importa dos Estados Unidos? Eu não sou antiamericano, porque eu gosto da literatura, da cultura popular americana, gosto do jazz, do blues, gosto dos grandes músicos americanos. Mas o que chega no mundo como cultura americana? O que há de pior! Se a cultura americana for Madonna ou Beyoncé eu to fora. Ou se forem os grandes romances que são escritos para serem filmados sem nenhuma … Então essa cultura é uma cultura que sequestrou o lugar que a literatura tinha até os anos 70.

Tatiana Merlino - Eu queria voltar um pouco

e perguntar como foi que começou a sua relação com a literatura. Você tinha 37 anos quando lançou o seu primeiro livro. Antes disso como é que se iniciou a sua relação com a literatura? Você já escrevia? Eu comecei escrevendo uns artigos em um jornal estudantil no Colégio Pedro II, em Manaus, colégio estadual do Amazonas. Um jornal chamado “Elemento tempo feio”, que protestava contra o golpe militar, contra a ditadura, aliás este jornal é citado no “Cinzas do Norte”. Um jornal estudantil, né? Lá eu publiquei o meu primeiro artigo e depois, acho que quando eu tinha 15 anos, fui

morar em Brasília sozinho, com mais dois amigos que por coincidência fundaram este jornal. O Aurélio Michilis e o Enéas Valle. Em Brasília eu estudei em um colégio de aplicação, que foi criado pelo Darcy Ribeiro, pelo Anysio Teixeira, era o Centro Integrado de Ensino Médio que pertencia à Universidade de Brasília (UnB). E em Brasília eu publiquei um poema no Correio Brasiliense contra a guerra do Vietnã, um poema muito panfletário. Assim eu comecei a escrever, eu tive bons professores na escola pública, então eu li alguns livros importantes.

Hamilton Octávio de Souza - A sua formação superior é em que? Então, aí eu sai de Brasília no fim de 79, não aguentei aquela cidade por causa da repressão. Era uma cidade muito policiada, a nossa escola foi invadida, a UnB foi invadida, o Honestino Guimarães era de lá. Eu sabia quem ele era, participei do movimento estudantil em Brasília e o Honestino depois foi assassinado aqui em São Paulo; ele é um dos desaparecidos, e eu não aguentei aquilo.

Tatiana Merlino - Quais são as suas

invasão da UnB? Eu estava lá na UnB. Foi muito barra-pesada. Aquilo ali era de uma truculência enorme. Os meus amigos ficaram lá e eu vim para São Paulo, em 70. Depois eu entrei na FAU e cursei arquitetura, mas enquanto eu estudava arquitetura eu fui aluno ouvinte no curso de letras. Até o livro do Renato Pompeu, Quatro Olhos, era muito lido naquela época, era muito estudado, ainda é, mas foi lançado quando?

referências na literatura brasileira? Um livro que me impressionou foi Capitães de areia e os contos do Machado, que eu li quando a minha mãe me deu as obras completas do Machado. Eu comecei pelos contos, ainda bem, porque com 13 anos...

Lúcia Rodrigues - Quantos anos você tinha quando leu as obras completas do Machado? Eu tinha 13 anos, mas eu comecei pelos contos, com o “Histórias da Meia-Noite”. Eu achei o título misterioso e adorei o conto. Foi bom porque se eu tivesse começado pelos romances, com essa idade seria mais difícil. Lúcia Rodrigues - Alguém orientou você a começar por esse ou por aquele? Não, eu li na lombada Histórias da Meia-Noite e achei que isso tinha alguma coisa de misteriosa. Minha mãe tinha mania de língua, de querer que eu aprendesse línguas. A minha professora de francês tinha uns 83 anos e eu tinha 12. Ela era casada com o cônsul da França em Manaus. Era amazonense, tinha vivido por muito tempo fora, na França, e foi na casa dela que eu vi uma biblioteca que me impressionou. Ela tinha os clássicos franceses encadernados em couro, uma coisa linda, era uma casa antiga com um quintal também exuberante. E ela leu os contos do Flaubert também para mim, traduziu, e Um Coração Simples foi fundamental pra mim tanto que uma personagem de Dois Irmãos, a Domingas, é inspirada nesta Felicité do Coração Simples. E isso me tocou tanto que 35 anos depois eu traduzi esse livro com um amigo, estão lá três contos. Então esses livros foram importantes na minha formação, o Continente do Érico Veríssimo, Vidas Secas também me tocou muito. No colégio estadual eu li trechos, mas isso foi uma leitura obrigatória, uma leitura punitiva, eu li trechos de Os Sertões também, de Euclides da Cunha. Li e fichei e isso foi muito difícil, mas foi fruto de um castigo, de uma bomba que explodiu e a classe toda foi punida. Renato Pompeu - A bomba explodiu por motivos políticos? Não, puro vandalismo... Lucia Rodrigues - E você estava envolvido? Não, eu não era um santo. Nunca fui, aliás. Mas como não houve delação e era um professor severo, ele puniu a sala toda.

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Lúcia Rodrigues – Você acompanhou a

Renato Pompeu – 1976. Exatamente. Era um dos livros, vamos dizer, mais lidos e estudados. E eu fui aluno do Davi Arrigucci Jr., um grande crítico, do Lafetá, fui amigo do saudoso João Luiz Lafetá, e até o Davi depois assinou a orelha do “Relato”. E aí eu quis sair do Brasil, eu trabalhei um pouco como arquiteto, dei aula de arquitetura no interior, em Taubaté.

Renato Pompeu - Trabalhou como arquiteto?

O que você arquitetou? Coisas horríveis, tudo o que eu fiz eu acho horrível. Eu trabalhei no começo como desenhista, como projetista em escritório. Depois ainda fiz alguns projetos e projetei uma casa, um centro comercial, aí parei totalmente. Naquela época eu colaborei com a revista Istoé, na época do Mino Carta. Aí eu queria sair do Brasil, ganhei uma bolsa e fui morar em Madri. Aí eu já comecei a me desinteressar pela arquitetura, não queria ser arquiteto mesmo e fiquei como bolsista em Madri durante três meses.

Tatiana Merlino – A bolsa era ligada à

literatura? Era uma bolsa do Instituto Ibero-americano de Cooperação, que era muito austero naquela época, era uma bolsa para estudar língua e literatura, mas o meu sonho era ir para Barcelona. Desde jovem eu tinha esse sonho de morar em Barcelona. Fiquei lá uns sete ou oito meses, tanto que no meu livro de contos há o conto “A Cidade Ilhada” que se passa em Barcelona, e é sobre um jovem professor de português. É um pouco auto-biográfico. Eu dava aula particular para as catalãs, fazia umas traduções também. Quando se é jovem, a gente faz tudo... Tudo mesmo, um monte de trabalho. Até cantar eu cantei.

Tatiana Merlino - Como assim? Até cantar

você cantou? Porque eu fui crooner em Manaus, eu tinha março 2010

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uma banda, tocava de tudo, era bossa nova, ieieie, a gente tocava em tudo que era lugar, clube, bordel, serenata. Era diversão, eu era garoto. E lá na Espanha conheci uma ex-Montonera [grupo da esquerda peronista que defendia a luta armada na Argentina] que cantava também e ela me disse: “Por que a gente não canta?” Eu não tocava nada e ela tocava, nós cantávamos, ela tocava nos bares de lá.

Renato Pompeu - Tocavam o que? Ela tango e eu música brasileira.

Renato Pompeu - Você acredita que estar

longe do Brasil, na Europa, te permitiu avaliar melhor a vida aqui? No meu caso sim, eu acho que essa distância foi fundamental, porque aqui eu estava muito envolvido com tudo, né? Eu não tinha sossego, tanto que foi o tema do Cinzas do Norte. É possível ser artista neste país?

Lúcia Rodrigues - Por causa da ditadura militar? Do romance, sim, mas acho que a pergunta transcende o período, a história do mundo no romance é essa história, né? É possível escrever neste país? Ou é possível ser artista neste país? Naquele momento, eu intui que eu devia ir embora. E para mim foi muito bom, apesar de não ter sido fácil. Mas você olha para o lado, os imigrantes, eles sofrem muito mais, infinitamente mais. Muitos deles chegam sem falar a língua, são de famílias paupérrimas, não têm os privilégios que a classe média tem. Eu não conhecia ninguém, mas enfim, falava espanhol, falava francês, podia frequentar um certo meio que um imigrante dificilmente frequentaria. Lúcia Rodrigues - Quando você fala de imigrantes também coloca uma experiência que foi vivenciada na sua família, a partir da sua ótica dentro de casa, né? Claro. As histórias que o meu pai contava eram histórias de penúria, de extrema escassez. O meu pai viveu nove anos no Acre, de 1939 até pouco depois da Segunda Guerra. O imigrante chega paupérrimo, leva uma vida na qual a preocupação dele é criar os filhos, garantir que os filhos deles frequentem as escolas, dar aos filhos uma oportunidade que eles não tiveram. Isso é clássico em qualquer imigração. Eu não falo árabe porque a minha mãe é brasileira, filha de libaneses. Mas ela já é de uma geração brasileira, não transmitiu a língua materna, a língua da mãe dela. Essa é uma das frustrações da minha vida, eu tenho muitas, mas essa é uma delas. É difícil, porque o árabe é uma língua complicada, como qualquer língua, mas por ser uma língua 100% fonética pra nós é uma língua muito difícil. Meu pai falava muito bem o português, e penso em como deve ter sido difícil para ele aprender a língua. As histórias de imigrantes são histórias de adaptação, de uma luta mesmo para você se fixar no lugar que você elegeu para viver. A imigração também, por causa disso, dá outra visão do teu país. Quer dizer, saber que o

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Brasil é também um país de imigração. Na minha infância eu ouvi outras línguas, minha avó materna era uma cristã casada com um mulçumano. Então, para ela, o francês era a segunda língua e eu ouvia ela falar também em francês, rezar em francês. Essas três línguas habitaram a minha infância, e acho que foi importante do ponto de vista afetivo e cultural. Ter nascido também em Manaus faz com que se olhe o Brasil de uma outra perspectiva. O Brasil desconhece o Brasil, pouca gente conhece a Amazônia, acha que a Amazônia é uma coisa só, quando a Amazônia são tantas.

Lúcia Rodrigues - Por que seus pais escolheram o Amazonas, Manaus para viver? Por que os árabes em geral vieram para a Grande São Paulo, enfim... Foram para todo o Brasil, do extremo sul ao Acre. A imigração da parte do meu pai começou no Acre. O meu avô paterno chegou no começo do século 20 durante a revolução acreana, ficou lá durante uns 10 anos e voltou para o Líbano, e o meu pai cresceu ouvindo essas histórias do pai dele e veio depois com um primo. Lúcia Rodrigues - E veio pra fazer o quê? Ele veio se aventurar, ganhar... O Líbano é muito pequeno, é como Portugal, são países pequenos. Aí quando chega um cara, um imigrante que voltou e fala: ‘Olha o Brasil não tem fim’, eles ficam enlouquecidos... A Amazônia é metade da Europa, quase a Europa Ocidental. Meu pai veio para tentar a vida. Ele era um burocrata, um funcionário do Ministério do Interior. Ele não foi um imigrante do sentido mais clássico, mas ele penou muito quando chegou, pois o que ele foi fazer? Comércio, que a gente chama lá de regatão, que é a mesma coisa que o avô do Adib Jatene fez. Todos eles fizeram. Depois o meu avô não voltou mais para o Brasil.

Meu pai ficou, casou com a minha mãe. Ela morou no Acre ainda um tempo, tanto que a minha irmã é acriana. Por muito pouco eu não sou acriano. Depois ele foi para Manaus e morreu lá.

Renato Pompeu - Você poderia dizer que

você já nasceu no real maravilhoso? De certo modo sim, porque o exótico para o brasileiro do sudeste ou para o estrangeiro não é exótico para mim. Para mim, exótico é essa São Paulo. A primeira visão de São Paulo foi a coisa mais exótica da minha vida. Eu achava que estava em outro planeta quando eu vim para esta cidade. A escala de São Paulo é impressionante, isso é muito exótico.

Hamilton Octávio de Souza - Você mora em São Paulo desde quando? Eu morei toda a década de 70 e estou aqui desde outubro de 98. Eu fui passar quatro meses na Europa em 80 e fiquei quatro anos. Morei na França e depois voltei para Manaus. Quando eu comecei a escrever o “Relato” comecei a sonhar em francês. E aí quando isso começou eu tive que voltar, porque eu não queria escrever em francês, isso pra mim estava muito claro. Mesmo que nessa época eu já estivesse bem adaptado à França. Naquela época eu estava casado com uma francesa, já podia trabalhar lá. Tatiana Merlino - Você fez doutorado lá? Não fiz lá, ia fazer aqui, mas acabei abandonando tudo e depois eu abandonei a universidade... Quando eu voltei para Manaus eu ingressei na Universidade Federal do Amazonas para dar aula de francês, o que fiz até 98. Nesse tempo eu dei aula também nos Estados Unidos, na Califórnia, passei umas temporadas lá e em 98 eu decidi sair da universidade.

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Lúcia Rodrigues - Por quê? Porque eu queria escrever. Eu tinha um emprego estável e com quase 46 anos no Brasil é difícil você abandonar um emprego estável. Então eu apostei tudo no livro Dois irmãos, e eu tive um pouco de sorte, pois o romance caiu na graça de professores e de leitores. Não sei se é o melhor, mas... Eu gosto de todos.

Tatiana Merlino - Como é fazer literatura em

um país que lê tão pouco? Eu acho que hoje o público leitor aumentou. Estou falando do público de qualidade, que acho que está aumentando. Essa é uma contradição porque você vê no Brasil, você sabe, que há, muita miséria, e há mesmo, e eu às vezes não compartilho a euforia sobre o crescimento econômico. O país está crescendo, mas eu acho que há muitas escolas, faculdades, professores interessados em literatura. E há um público leitor já no Brasil, mas muito aquém do que deveria ter, porque a escola pública foi abandonada durante o regime militar. A escola foi totalmente abandonada. Eu acho que há problemas sérios na educação pública brasileira, problemas de toda ordem, todo tipo, mas há também alguns avanços. Hoje há uma marca de leitores que não é desprezível.

Renato Pompeu - Dá para o escritor viver disso? Eu comecei a viver de literatura quando eu lancei o Dois irmãos, mas não só de direitos autorais, pois o livro saiu em outros lugares. De vez em quando eu dou palestra, sou cronista do Caderno 2 do Estadão. Tenho uma crônica quinzenal. O escritor, de um certo modo, está sendo remunerado. O trabalho intelectual no Brasil sempre foi um problema. Como quando eu era arquiteto, lembro que as amigas da minha mãe me pediam: ‘Faz um projeto, um desenho pra mim’. Como eu sou muito lento, jamais conseguiria ser um cronista semanal, muito menos de área, isso seria a morte. Mas dá pra viver, se você reune todas as coisas: direitos, trabalho de jornalista, palestras. Hamilton Octávio de Souza – Qual dos teus livros teve maior repercussão? Não sei dizer, você pode olhar pelo lado da premiação, pelo lado da crítica. O meu livro mais premiado é o Cinzas do Norte, mas não sei se isso é um critério. Às vezes um prêmio não salva o livro. Órfãos do Eldorado foi o primeiro e último livro que escrevi por encomenda (da editora escocesa Canongate para a coleção “Mitos”). Essa história do Eldorado já rondava minha cabeça, sonhava com ela. O problema é que um romance não se faz com sonhos, muito menos com boas ou más intenções, mas com palavras. Por razões editoriais, não podia escrever um texto muito extenso, um romance, e sim uma novela, que é um gênero literário difícil de definir, mas que exige muita concisão e dispensa digressões, desdobramentos de conflitos, etc. O mandamento básico da novela é: imprimir tensão e fazer um recorte de algumas vidas numa narrativa breve. Então

tive que concentrar o trançado de histórias em cem páginas. A ideia era partir do mito amazônico da “cidade encantada” e, aos poucos, construir um mundo ficcional. Esse era o desafio: passar das lendas indígenas e das narrativas orais a prosa de ficção, que é um gênero moderno. Tentei explorar o que já tinha feito no Dois irmãos e no Cinzas do Norte: um narrador que fala sobre o seu passado. É uma história de amor contada por um velho que se dirige a alguém.

Isso está na minha vida, né? É autêntica, e o meu primeiro romance, que algumas pessoas gostam mais inclusive, é difícil, o jovem não consegue ler. A alternância de narradores não é muito fácil de seguir, é um romance que a memória tem que trabalhar o tempo todo, avanços e recuos, você não sabe quem tá narrando, a não ser que você preste atenção a cada capítulo. É um romance complicado, tanto que é o meu romance que tem menos leitores.

Renato Pompeu - Numa entrevista anterior o entrevistador disse que você ganhou muitos prêmios, e você respondeu: ‘eu não escrevo para ganhar prêmios’. Tem gente que escreve para ganhar prêmios? Eu acho que tem gente que só pensa em prêmio. Eu nunca pensei em prêmios. Quando eu ganhei o primeiro, o Jabuti, eu estava em Manaus e me convidaram para receber o prêmio, eu disse: ‘Manda a passagem que eu vou’. Não me mandaram, e eu não vim. Eu era um professor lá da universidade. Também não vou dizer que os prêmios me entristecem. Hoje, eu acho que um prêmio que eu prezo é um prêmio que vem com cheque para eu pagar minhas despesas, porque ficar olhando para uma estátua pequena não resolve, não paga as minhas contas.

Lúcia Rodrigues - Você escreve para bom leitor, poucos e bons? Eu não sei, porque você não sabe para quem escreve. O leitor é uma abstração, você não sabe quem é o leitor... Quem é o leitor?

Lúcia Rodrigues - Mas não é uma prova de

reconhecimento? É uma prova de reconhecimento, mas sabe qual é o grande prêmio do escritor? É o bom leitor. Bons leitores justificam a literatura. Se eu tiver todos os prêmios e não atrair o público leitor que goste de literatura não adianta. Mas não o leitor de auto-ajuda, o leitor desses livros americanos, esses não me interessam, mas sim o leitor que de fato tem um olhar crítico, um olhar mais cuidadoso, mais atento.

Renato Pompeu - Você é um expoente da escrita criativa no Brasil, mas tem sucesso de mercado. A que você atribui isso? Tem a ver com a junção de dois mundos tão diferentes, o Oriente e a Amazônia? Por que o Dois irmãos caiu na graça do leitor? O que os professores me dizem é que, na sala de aula, quando o assunto é romance como gênero literário, e eles querem trabalhar o romance de hoje, contemporâneo, eles usam o Dois irmãos e o Cinzas do Norte. Para eles, ali tem uma estrutura romanesca muito bem definida, com personagens fortes, com elementos explosivos que vão se revelando. A questão do narrador, as questões técnicas da teoria literária estão lá. E aí me perguntam: ‘você pensou tudo isso como professor ou como escritor’? Olha, quando eu escrevo, deixo o professor de lado, sou movido pelo inconsciente. Mas o mundo árabe está completamente fora tanto do Cinzas do Norte quanto do Orfãos do Eldorado. E também dos contos. Só um conto fala um pouco da imigração..Mas talvez o leitor, não só o brasileiro como o estrangeiro tenha sido atraído por este tema tão improvável de juntar o Oriente com a Amazônia.

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Renato Pompeu - O best-seller programado sabe quem é o leitor... Mas quem escreve o romance que nem sabe como vai ser, que vai mudando, vai renunciando a coisas e vai... Hamilton Octávio de Souza - Quando você está escrevendo você faz um texto definitivo ou você faz um texto que altera muito? É uma loucura. Eu faço um esboço preliminar mais ou menos. O romance fala sobre a passagem do tempo, mas nessa passagem tem personagens, tem conflitos, tem dramas, tem alguma coisa do sentido da história que é importante para o romance, não a história explicita, mas alguma coisa. Então você não sabe aonde aquilo vai acabar, como vai acabar. Então eu faço um esboço para não me perder. Talvez pelo lado mais arquitetônico, vamos dizer, do arquiteto que senta e começa a organizar o espaço. Eu faço isso com os personagens, com a trama e depois muda muito. Os meus livros têm mais de 15 ou 20 versões. Às vezes você acha que nunca vai terminar, porque o romance é isso, é a arte da paciência, né? Tatiana Merlino - Você falou de algumas

obras, alguns autores que foram referência na sua formação, o que você lê hoje? Hoje, de modo geral, eu leio os livros que eu mais admiro. Posso dizer que depois de 50 anos você não pode se dar ao luxo de ler tudo.

Renato Pompeu - O que você leu de atual?

Eu li um romance extraordinário chamado Portas do Sol de um escritor libanês chamado Elias Khouri, é o maior romance sobre a questão palestina. Um grande romance do ponto de vista formal, muito ousado. Tem ali uma estratégia narrativa muito interessante, lembra um pouco Leite Derramado, do ponto de vista do narrador, do Chico Buarque.

Renato Pompeu - Você leu Leite Derramado?

Li e gostei desse romance do Chico Buarque. Li também mais de alguma coisa do Sandor Marai que é um autor húngaro. O problema é que a produção hoje é muita, se você falar em literatura brasileira tem muita gente escrevendo. março 2010

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escritores que também poderiam ter surgido? Interrompeu um processo que bem ou mal era alguma promessa de civilidade, democracia e cidadania. Que vinha do Juscelino, do Jango... O processo foi interrompido brutalmente, então eu não entendo como as pessoas que defendem o golpe. Ele interrompeu um processo democrático, o Jango não era um ditador. O governo deposto foi eleito, mas há saudosistas, e muitos, no Brasil. Acho que o golpe interrompeu o processo democrático, enfraqueceu o Judiciário, desmontou a educação pública, ciências humanas, formação de humanidades na escola pública, privilegiou áreas tecnológicas, inaugurou a devastação da Amazônia, foram eles que fizeram isso nos anos 70. A transamazônica, as áreas vendidas para a Volkswagen, o processo de colonização de entrada em Rondônia. E aí o que surge? Surge Collor, surge este governador de Brasília, Arruda e ainda com resquícios da ditadura, os caras ainda estão aí. Agora eu nunca fui partidário, eu sempre fui um franco atirador, eu detesto qualquer tipo de cerceamento da direita ou da esquerda.

Tatiana Merlino - E o que você está relendo? Proust, Kafka...

Tatiana Merlino - Tolstói, Dostoiévski...? Sempre. Eu não posso viver sem o Dostoiévski. A loucura tem que estar perto, né? O Dostoiévski para mim é o grande escritor, os russos do século 19 pra mim são a literatura, se você perguntar quais os romances, eu vou dizer: Balzac, Flaubert, Dostoiévski e depois o Conrad, o Faulkner... Que derivam deles, que deriva do Machado, que deriva dos russos. Por que eu não gosto de texto muito certinho...

Lúcia Rodrigues - Literatura portuguesa?

Eu conheço alguma coisa do Saramago, do Lobo Antunes, dos jovens também... Leio alguma coisa também do Loth, mas não acompanho. Em relação ao romance experimental, eu acho que o Guimarães Rosa esgotou as possibilidades, tanto que o que veio depois em termos de experimentalismo e até mesmo a poesia concreta, não vingou. Quando falam que a minha literatura é uma literatura clássica, eu fico contente, eu não fico chateado. E também eu não seria capaz de escrever um romance experimental, não me atrai como projeto. Eu adoro o Grande Sertão, para mim é o livro mais admirável da nossa literatura. O Rosa pra mim é um enigma, porque ter feito o que fez só prova que o país às vezes sendo atrasado pode ter grandes escritores.

Hamilton Octávio de Souza - Com quem você

conversa sobre literatura? Com quem você debate e troca ideia? Sou um solitário radical. Eu tenho um amigo chamado Raduan Nassar, eu quero conversar sobre literatura e ele abomina essa conversa. ‘Se você veio na minha casa para falar de literatura a porta continua aberta’, ele diz, embora tenha lido os meus livros. Eu descobri que ele gostou muito do Órfãos do Eldorado, que para ele é o melhor livro meu que ele leu. Raduan também leu o manuscrito do Dois irmãos e deu uma boa ajuda. Com exceção do Bernardo Carvalho, eu não tenho muitos amigos, amigos mesmo, escritores. Eu acho que neste mundo uma das saídas para suportar tanta empulhação é você se retirar, e é isso que eu faço. Um dos meus projetos é futuramente não fazer mais nada, não vou publicar mais nada, dar uma espécie de silêncio. Porque não me interessa um grupo de rock de jovens irlandeses no porão em não sei onde, não me interessa a música da Beyoncé, Madonna, não me interessa nada disso. Me interessam os clássicos da literatura e o cinema.

Lúcia Rodrigues - Você já pensou em produzir uma obra nãoficcional, uma obra de realidade sobre a situação no Oriente Médio? Não, porque já existem muitas e eu posso citar duas que são fundamentais e nenhuma foi traduzida para o português. Uma de um palestino americano chamado Edward Said: A questão da Palestina. Essa obra é fundamental para contextualizar o conflito, fala sobre a história da palestina. Há, também, um livro já clássico do historiador israelense Ilan Pappe, The ethnic cleansing of Palestine (A limpeza étnica da Palestina), ainda inédito

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em português. Pappe usou como uma das fontes de sua pesquisa histórica os arquivos israelenses. Esse livro esclarece com detalhes o que aconteceu em 1948, quando as forças sionistas expulsaram 800 mil palestinos da Palestina histórica, destruiram mais de 500 vilarejos e massacraram milhares de pessoas. De um modo geral, o que lemos em boa parte da imprensa dá a impressão de que os palestinos são apenas terroristas, quando na verdade a história é bem diferente. O terrorismo de Estado nunca é mencionado, embora seja cruel e devastador, capaz de matar centenas de crianças e milhares de civis, além de destruir toda uma cidade e mesmo um país.

Hamilton Octávio de Souza - Você tem

participação política fora da literatura? Não, fui militante estudantil na década de 70.

Lúcia Rodrigues - Você se define como um

homem de esquerda? Eu tenho cabeça de esquerda, ainda sou, me considero, embora a esquerda tenha cometido atos estranhos, por ter acreditado em coisas que hoje não se acredita mais, eu não acredito mais. Eu detesto a direita, que no Brasil nunca produziu nenhum tipo de pensamento consistente. Se você me citar cinco grandes intelectuais de direita, você tem o Gilberto Freyre, mas também não endeuso o Gilberto Freyre. Acho que ele é um escritor admirável, tem livros importantes, mas o grande pensamento intelectual brasileiro, queiram alguns fascistas ou direitistas aceitá-lo ou não, foi a esquerda que produziu. Acho que os escritores não, eles são menos militantes, embora um homem como Antônio Callado faça falta hoje.

Lúcia Rodrigues - Você acha que a ditadura militar silenciou, não deixou florecer esses

Hamilton Octávio de Souza - Você falou que escreveu um romance com 800 páginas, o que você pretende fazer com ele? Eu pretendo cortar umas oito páginas... Hamilton Octávio de Souza - É

autobiográfico? Esse é o romance da imigração, uma grande saga. Tem muita coisa espacial, tem muito movimento espacial, e ele também é autobiográfico, toda literatura é um pouco, né? Eu costumo citar o Conrad: ‘As questões não caem do céu, os temas não são etéreos, eles fazem parte da nossa vida’.

Tatiana Merlino - Mas é uma saga familiar? É, eu nunca escrevi uma saga familiar e eu senti vontade de escrever falando um pouco da imigração. Acho que eu não estava preparado para escrever esse livro. Estava preparado para escrever o Dois irmãos, porque ele é mais dramático, está mais concentrado. Esse romance que eu não publiquei eu gostaria de retomar, só preciso de folêgo.

Hamilton Octávio de Souza - Você está trabalhando em outro agora? Eu estou trabalhando em outro romance que não tem nada a ver com a Amazônia, é uma história muito distante de tudo que eu publiquei, mas muito próximo da minha vida. Também estou escrevendo contos. Tem coisas que eu não publiquei no Brasil, tem um conto que eu escrevi para a Anistia Internacional que foi publicado em inglês. Lúcia Rodrigues - Onde? É um livro de vários escritores e cada um escreveu sobre uma violação dos direitos humanos. É um conto meio autobiográfico, sobre uma violação de correspondência pessoal. O conto chama Rasgo, mas só foi publicado em inglês e os autores deram os direitos para a Anistia Internacional. Saiu agora, acho que na Austrália e na Inglaterra, com vários autores.

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Ferréz

Cesar Cardoso (mas pode chamar de Charles Darwin)

Pequena história

dos omissos 10 pras três da madruga Sem conseguir dormir Que hora vou ligar pro terminal Pro ônibus poder buscar Quem no meio do caminho vou multar Me empurrar, um homem pelo meio Na periferia tumultuada sem calçada Numa sociedade que não valoriza nem o inteiro Se a deficiência tá em mim, porque porto ela assim Falta de rampa, falta de acesso Espaço garantido pela lei para trabalhar Mas todos riem do esforço que faço pro salário honrar Eu desço a avenida pra pedir uma informação Encosto a cadeira, e o motorista diz que não tem um tostão Tenho pena da deficiência dele em entender Que o cadeirante não é dependente de sua esmola pra viver O aleijado, mutilado é aquele que não faz nada pelo próximo Cada um de nós, uma história, mas todos olham para as rodas Sofrem não por mim, mas quando se imaginam no meu lugar Andam de carros que sufocam o bebê Compram tênis que mutila a criança Correm muito para perseguir o tempo perdido É nessa hora que eu entendo meu papel nisso Pego meu caderno, escrevo algumas frases Nesse texto eu jogo bola e caminho a largos passos Escrevo sobre olhar um pássaro, com defeito na asa Que merece ser tratado com carinho, pra voltar pra casa Em meio a soldados da mentira Mensageiros da hipocrisia O ser humano é complicado Constrói, destrói, altera o planeta Usa todo o conhecimento não para a cura Mas pra promover a diferença Consegue chegar até em outro mundo Mas não me faz sonhar em andar por um segundo Calma! A história não termina tão triste Com meu protesto, escrevo, invento e canto um mundo com mais compromisso E mano, fica tranquilo, mesmo de cadeira de rodas Eu chego mais rápido do que os omissos.

A ORIGEM DA ESPÉCIE Época: cerca de 90 mil anos atrás. Uma espécie relativamente nova se desenvolve nas estepes africanas. Ela se chama Homo sapiens e aprende a construir ferramentas de pedra. Por algum motivo que não se sabe ao certo, o Homo sapiens percebe que não pode mais ficar restrito ao continente africano, sob pena de se extinguir. Talvez em algum lugar de seus cérebros eles tenham registrado o desaparecimento de seu antecessor, o Homo erectus. Seja lá o que for, algo dentro deles os impele a sair, a procurar outras terras, outros climas, para que sua espécie possa se expandir. Eles então empreendem a maior aventura de sua existência: a migração para a Europa. Enfrentam desertos com temperaturas escaldantes. Enfrentam a fome e o frio de uma nova era glacial. Enfrentam feras até então desconhecidas. Enfrentam a si mesmos, medindo sua resistência a tantos desafios. E superam tudo isso em busca da sobrevivência da espécie. Chegam por fim às portas da Europa. Lá encontram dois exemplares de uma espécie muito semelhante a deles. E os exemplares conversam. – Ô Berlusconi, esses carinhas tão dizendo que são Homo sapiens, uma espécie nova, e que tem que imigrar aqui pra Europa pra sobreviver. Isso tá me cheirando a safadeza. – Claro, Sarkozy! Tu vai acreditar na conversa fiada dessa gentalha? Mete a polícia em cima deles. E foi assim que há dez mil anos o Homo sapiens entrou em extinção. Em seu lugar se originou uma outra espécie, parecida e descendente daqueles dois sujeitos parados lá nas portas da Europa.

Dedicado ao rapper Moysés, membro do grupo A286 e sua cadeira amiga. E também à memória de Cobam, deficientemente a caminhada continua.

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.

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Cesar Cardoso é escritor e quando crescer quer ser Homo sapiens. Tem o blog PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com) março 2010

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Frei Betto

O guerreiro Obama

E O PEIXE FORA D’ÁGUA Obama é uma decepção! Recebeu imerecidamente o Nobel da Paz – um presidente que guerreia o Iraque, o Afeganistão e o Paquistão – e, em discurso de agradecimento, pronunciou a palavra “guerra” 49 vezes! Obama apoiou o governo golpista de Micheletti em Honduras e, agora, ocupa militarmente o Haiti, sob pretexto de socorrer as vítimas do terremoto, e militariza a América do Sul com a implantação de sete novas bases usamericanas na Colômbia, onde já operam seis. Só mesmo um ingênuo acredita que os 800 soldados e os 600 civis made in USA que se instalam na Colômbia têm por objetivo combater o narcotráfico e o terrorismo. Desde 1952 os EUA se fazem presentes na Colômbia sob o mesmo pretexto; nem por isso houve redução do tráfico de drogas, consumidas em grande quantidade pela população usamericana. O objetivo da IV Frota é desestabilizar o governo Chávez, manter sob vigilância o Equador, governado por Rafael Correa, dificultar as vias aéreas e terrestres entre Venezuela, Equador, Bolívia e Paraguai, e controlar as fronteiras com o Brasil. O governo usamericano empenha-se em reforçar sua hegemonia no planeta. Hoje, mantém 513 bases militares na Europa; 248 na Ásia; 36 no Oriente Médio; 21 na América Latina; 5 na África. Total: 823, que ocupam uma superfície de 2.863.544 km2. Sabem quantas bases militares estrangeiras há nos EUA? Nenhuma. As tropas estadunidenses gozam de imunidade judicial e tributária nos países em que operam e dispõem da mais moderna tecnologia bélica, desde aeronaves não tripuladas, conhecidas por UAS (Unmanned Aircraft System), aos aviões F15 Strike Eagle com velocidade de 2.660 km/h, autonomia de voo de 5h15min e capacidade de voar a 18 mil metros de altura. Porém, não é só com equipamento bélico que os EUA cuidam de dominar o mundo. Utilizam sobretudo recursos ideológicos, como as produções cinematográficas hollywoodianas tipo Avatar, que visam a nos convencer de que a salvação vem de fora e vem de quem possui mais tecnologia e ciência... Na última semana de janeiro estive no Equador participando de um evento que reuniu povos indígenas de quase toda a América Latina. Eles se sentem ameaçados, inclusive pelos novos governos democráticos-populares. À exceção de Evo Morales, é difícil para os demais governantes reconhecerem que os povos indígenas têm direito à língua, cultura, sistemas econômico e escolar, métodos de produção e terra próprios. Isso lembra uma antiga parábola oriental: ao observar que o macaco tirou o peixe da água e o colocou no cimo da árvore, a águia perguntou-lhe por que fizera aquilo. O macaco respondeu: “Para que possa respirar melhor e não morrer afogado”. É esse nosso colonialismo entranhado, essa nossa subserviência aos “valores” consumistas do mundo ocidental, essa reverência ao american way of life, essa convicção de que a felicidade reside na posse de bens finitos e não de valores infinitos, que nos faz tirar o peixe do rio para que possa respirar melhor... Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

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Fidel Castro

A Revolução Bolivariana

e as Antilhas

Quando estudante, centrei minha atenção em Martí. Na verdade, a ele devo os meus sentimentos patrióticos e o conceito profundo de que “Pátria é humanidade”. A audácia, a beleza, o valor e a ética de seu pensamento contribuíram para me tornar o que acho que sou: um revolucionário. Sem ser martiano, não se pode ser bolivariano; sem ser martiano e bolivariano, não se pode ser marxista, e sem ser martiano, bolivariano e marxista, não se pode ser anti-imperialista; sem ser as três coisas não se podia conceber uma Revolução em Cuba na nossa época. Há quase dois séculos, Bolívar quis enviar uma expedição chefiada por Sucre para libertar Cuba, que muito precisava disso, na década de 1820, como colônia canavieira e cafeeira espanhola, com 300 mil escravos trabalhando para os proprietários brancos. Frustrada a independência e transformada numa neocolônia, em Cuba jamais se podia alcançar a dignidade plena do homem sem uma revolução que eliminasse a exploração do homem pelo homem. “...eu quero que a lei primeira da República seja o culto dos cubanos à dignidade plena do homem”. Martí, com seu pensamento, inspirou o valor e a convicção que levou o nosso Movimento a atacar a fortaleza do Moncada, o que jamais teria passado por nossas cabeças sem as ideias de outros grandes pensadores como Marx e Lenin, que nos fizeram ver e compreender as realidades tão diferentes da nova era que estávamos vivendo. Durante séculos, em nome do progresso e do desenvolvimento, em Cuba se justificava a odiosa propriedade latifundiária e a força de trabalho escrava, que foi precedida pelo extermínio dos antigos habitantes dessas ilhas. De Bolívar, Martí disse algo maravilhoso e digno de sua gloriosa vida: “...o que ele não fez, hoje ainda se continua sem fazer: porque Bolívar ainda tem muita coisa a fazer na América.” Nessas circunstâncias, no Haiti tem lugar uma catástrofe sem precedentes, enquanto no outro lado do planeta continuam se travando três guerras e a corrida aos armamentos, em meio à crise econômica e aos conflitos recentes (corrida que consome mais de 2,5% do PIB mundial). Com tal cifra poderiam se desenvolver em pouco tempo todos os países do Terceiro Mundo e talvez evitar a mudança climática, dedicando os recursos econômicos e científicos, que são imprescindíveis para esse objetivo. A credibilidade da comunidade mundial recebeu recentemente um duro golpe em Copenhague, e nossa espécie não está mostrando capacidade para sobreviver. A tragédia do Haiti me permite expor minha opinião a partir do que a Venezuela tem feito com os países do Caribe. Enquanto em Montreal as grandes instituições financeiras hesitam sobre o que fazer no Haiti, a Venezuela não hesita um minuto em cancelar a dívida econômica desse país, que é de US$167 milhões. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

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João Pedro Stedile

O conluio dos três poderes ANTIDEMOCRÁTICOS

Gilberto Felisberto Vasconcellos

José Serra, o Candidato Transgênico

A democracia verdadeira está relacionada com a possibili-

A crise de 2008 deflagrada nos EUA coloca em julgamento

dade de cada cidadão, todos e todas, terem acesso ao direito à terra, ao trabalho, à renda necessária para uma vida digna, à educação, saúde, moradia digna, cultura e lazer. É evidente que a sociedade brasileira está muito longe dessa situação democrática. Mas eu gostaria de chamar a atenção para outro viés antidemocrático da sociedade brasileira – os três poderes, reais, que exercem enorme controle sobre nossa sociedade: as grandes empresas capitalistas, os meios de comunicação e o poder judiciário. Nenhum deles é eleito ou possui alguma forma de controle por parte da população. Ou seja, fazem o que querem sem que a população tenha o direito de reclamar. Nos últimos tempos foi se formando um verdadeiro conluio entre esses três poderes para defender os interesses de uma classe dominante cada vez mais rica, concentradora e desumana. Os grupos que controlam os meios de comunicação geram uma versão na sociedade sobre um fato e induzem o poder judiciário ou o Ministério público a agir. Disso podem resultar processos, criminalização, uso da polícia ou escárnio público. Vejam o caso da ocupação que o MST fez da fazenda grilada pela empresa Cutrale. As terras são públicas, da União. Mas a Globo transformou o caso num crime hediondo. A juíza de plantão pediu a prisão de 51 pessoas. E a polícia civil e militar do governo Serra fez o serviço com ares de espetáculo. Depois o Tribunal de Justiça mandou soltar os presos, tal a injustiça. Mas a Globo não repercutiu. E a “sociedade” já tinha formado sua opinião. O governo editou um novo plano de direitos humanos, resultado de amplo processo de consultas que envolveu milhares de pessoas. Não há nada no plano que fira a Constituição; ao contrário, é apenas a junção de propostas para viabilizá-la. Nada muito diferente do que o governo FHC já editou no Plano I. Mas agora a Globo e setores do judiciário transformaram o plano em inadmissível. Lembram-se do tratamento dado à legalização das terras indígenas Raposa Serra do Sol? Ou como a Globo e as empresas grileiras de terras públicas exigiram a suspensão da legalização de terras quilombolas, determinada pela Constituição? E o apoio aos transgênicos? A Anvisa localizou 250 mil litros de venenos agrícolas adulterados e contrabandeados na fábrica da Syngenta. Mas a imprensa e o poder judiciário ficaram calados, protegendo seus verdadeiros patrões. Na política internacional é vergonhoso o tratamento discricionário dado a presidentes democraticamente eleitos, como o da Venezuela e Irã. Devemos refletir sobre como o Estado e a República brasileira foram sequestrados por três poderes antidemocráticos.

o que foi a era FHC. Darcy e Brizola apontaram como um dos traços essenciais desse governo a privatização desnacionalizada da economia. James Petras, analista arguto da América Latina, assinalou em 2002 na revista Monthly Review o ponto fraco do primeiro governo Lula: manter e deixar intacto, com o receio de desagradar os EUA de Bush, o que foi privatizado pelos governos FHC. É um desastre a ausência de abordagem sobre a classe social na oposição ao tucanismo. Em que se baseia o PSDB para querer o poder de novo? O governo Lula não contempla os interesses do PSDB? Qual é a natureza da estratégia antitucana? Por que o tucanismo é nocivo ao povo e ao país? Como e em quais condições a globalização do capital monopolista internacionalizou o PSDB? Dilma só perderá a eleição se colocar sua campanha nos guichês publicitários, pois o político tucano é o epifenômeno da toxina do Banco que financia a era petroquímica do efeito estufa. A análise deve focalizar a classe social, o Estado, a mídia e a economia. A campanha do PSDB será comandada de fora do país, porque absolutamente tudo nesse partido é marcado por um exogenismo estrutural. Por que Obama estaria interessado em ver Serra na Presidência da República? José Serra, a motosserra do imperialismo videofinanceiro, estende o pires para o governador tela quente da Califórnia ajudar o equilíbrio termodinâmico da biosfera na Freguesia do Ó. Ele é o epítome do poder financeiro, portanto está longe de ser um tigre de papel. O fármaco do Serra (a saúde pública não é determinada por médicos e remédios) é conivente com a acumulação promovida pela privatização do território. A degradação do meio ambiente é o fundamento do neoliberalismo do PSDB, que patrocinou a biopirataria das multinacionais com a pilhagem das sementes e plantas. Na Argentina a ditadura militar de 1976 a 1983 foi a vanguarda do neoliberalismo. Em 1991 Menem-Cavallo fizeram a reforma monetária com a paridade peso-dólar e a burguesia argentina começou a fazer parte da cidadania financeira. Privatização e tomada de empréstimo andaram juntas. Houve a euforia de 1991 a 1995. Brasil e Argentina eram vistos como mercados emergentes. Risco Brasil. Risco Argentina. Laços estreitos entre os capitais nativos e os grupos internacionais. O PSDB e Menem foram os representantes políticos da “burguesia compradora”. Não há “excepcionalidade” nenhuma na criação do plano Real de FHC. Nem originalidade no investimento portfólio. O tucanismo anti-MST é a vaca louca do Tony Blair na periferia do capitalismo que enterrou a era Vargas.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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Joelma Couto

Nuclemon um legado de contaminação e morte

Depósito de lixo radioativo localizado na zona sul de São Paulo está em área densamente povoada e ao lado de futuro templo do padre Marcelo Rossi. Fotos: Fábia Renata.

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o dia 23 de fevereiro de 1970, em plena ditadura militar, começa a história do trabalhador José Venâncio Alves. Venâncio, como é conhecido pelos amigos, a partir desse dia passa a fazer parte do quadro de funcionários da Administração de Produção de Monazita (APM), localizada em um terreno de 20 mil m² na rua Princesa Isabel, 3, no bairro do Brooklin, em São Paulo. A estatal ligada ao programa nuclear brasileiro passaria, em 1975, a chamar-se Nuclebrás Monazita (Nuclemon). Venâncio veio de Itaverava, Minas Gerais. Foi seu cunhado, Aarão, que já estava em São Paulo, que lhe arrumou o emprego. Venâncio, assim como o cunhado, tinha pouco estudo. Era chegar e trabalhar, a empresa não exigia muito e oferecia algumas vantagens, tais como quatro latas de leite por mês para cada filho menor de 10 anos e um botijão de gás por mês. O trabalho não era fácil. Era artesanal, braçal, mas eles não tinham estudo e as dificuldades para encontrar um emprego eram grandes. O importante é que estavam trabalhando. Assim como o cunhado, Venâncio trouxe de Minas outros trabalhadores para a empresa. Muitos eram os parentes ou conhecidos. Eram uma grande família.

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O que os trabalhadores da Nuclemon não sabiam é que estavam sendo expostos a substâncias altamente tóxicas e também radioativas. A principal matéria-prima utilizada na usina era a monazita, extraída da areia monazítica, abundante na costa do Rio de Janeiro e da Bahia, e rica em urânio e tório. Na Usina de Santo Amaro (USAN), a areia bruta era beneficiada por meio de dois processos: tratamento químico e tratamento físico. Segundo documento do Centro de Referencia do Trabalhador de Santo Amaro, os produtos produzidos na USAN eram vendidos para indústrias eletrônicas, de alta pressão, de cerâmica e de metalúrgica fina. A monazita é desengraxante, desengordurante e também entra no tratamento de águas de caldeira e industrial, e na formulação de detergentes. A areia monazítica passava por um tratamento químico para obtenção de cloreto de terras raras, gerando um subproduto com alta concentração de urânio e tório conhecido como torta II. A torta II processada também dava origem ao mesotório, produto altamente radioativo. Todo esse trabalho era feito sem proteção. Os trabalhadores não tinham noção dos riscos. Trabalhavam até mesmo de chinelo de dedos, sapatos vulcabrás comprados na lojinha da empresa, não tinham

uniformes e a roupa era lavada em casa e misturada com a roupa de toda família. Venâncio se lembra do amigo José Roberto, também de Ituverava. ”O José ficou viúvo, a esposa morreu de câncer. Ele ficou deprimido, começou a ter convulsões. O chefe não ligava, não se importava com o sofrimento do Chameguinho, como era conhecido José Roberto. Ele era ajudante de manutenção, um dia caiu de uma altura de 10 m e ficou muito tempo no hospital. Quando saiu, voltou a trabalhar, mas não tinha mais condições, ficava perambulando pela usina. Tinha que ser aposentado, mas, depois de dois anos, foi mandado embora. Teve que voltar para Minas com seus quatro filhos para ser cuidado pela família, foi um crime o que fizeram com ele.” Segundo a Dra Maria Vera Cruz de Oliveira, médica pneumologista do CRT-SA as condições em que os ex-funcionários da Nuclemon trabalhavam eram absurdas. Estavam expostos a poeira, calor intenso, radioatividade e excesso de trabalho. A falta de protetores de ouvido causou perda de audição em muitos deles. Não havia programa de prevenção de acidentes nem uso de máscaras. No setor conhecido como amassador ocorria a mistura do ácido sulfúrico com o pó da pedra de abrigonita para obtenção, por exemplo, do fosfa-

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to de lítio. A fumaça produzida nesse setor era tão forte que, quem tinha que ir por ali era obrigado a passar correndo e sem respirar. Seu Severino da Costa, 73 anos, conta que tem silicose, doença pulmonar, e que descobriu a doença quando ainda estava trabalhando, mas, mesmo assim, foi despedido sem direito a tratamento. Severino trabalhou na empresa por 27 anos. Somente em 1987, após o acidente de Goiânia, os ex-funcionários da Nuclemon começaram a perceber com que tipo de material trabalhavam. Venâncio conta que só então a ficha caiu. Lembra-se que em uma reunião ele sugeriu que a empresa parasse de trabalhar com a monazita, ”meu chefe deu risada, disse que eu estava louco, que a monazita pagava nosso salário e que poderia até mesmo pagar a dívida externa do país”.

Ação sindical Nos idos da década de 1980, o Sindicato dos Químicos de São Paulo se aproximou dos trabalhadores da estatal. Preocupado com as condições de trabalho e a saúde dos trabalhadores, em 1990, o sindicato solicitou ao Centro de Referência do Trabalhador de Santo Amaro que fizesse uma visita à empresa. Os técnicos do CRT-SA encontraram muitas irregularidades e dificuldades. Cientes da gravidade do assunto, o Sindicato dos Químicos convocou uma reunião que teve a presença do CRT-SA, da Delegacia Regional do Trabalho e da Promotoria do Ministério Público Estadual, intensificando assim as ações contra empresa. Em meio a protestos da população e a ações do sindicato, do Ministério Público e da Delegacia Regional do Trabalho, as condições de trabalho começaram a melhorar. A roupa passou a ser lavada e descontaminada na empresa, os funcionários começaram a receber vale-refeição e a frequentar o CRT-SA, onde começaram a fazer exames e a participar de reuniões que tinham como objetivo discutir as condições e a organização do trabalho na empresa. Em 1991, a Câmara Municipal de São Paulo instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as responsabilidades pela exposição à radiação sofrida pela população de São Paulo, principalmente por trabalhadores, e nas instalações da Nuclemon Minero-Química Ltda. A CPI chegou à conclusão: 1 A área da Usina Interlagos (USIN) apresentava contaminação radioativa no solo. 2 A Nuclemon, por ter descumprido as normas referentes ao controle de áreas e liberação de material radioativo para o meio ambiente, foi considerada responsável pelos riscos de exposição à radiação e contaminação nos depósitos da av. Interlagos. 3 A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) foi responsável pelos riscos por não ter tomado medidas cabíveis de fiscalização e sanção contra a Nuclemon. 4 O armazenamento de rejeitos nucleares na Usina Santo Amaro (USAM) era um risco para os trabalhadores e para a população vizinha. 5 A Nuclemon depositou lixo químico (Torta de fosfato trissódico – Torta FTS) ao longo de

vários anos no lixão de Perus, Aterro Bandeirantes – representando um risco para os trabalhadores e a população vizinha do aterro. A quantidade total era desconhecida. 6 As condições de radioproteção da Nuclemon permaneciam absolutamente ineficientes, gerando exposição à radiação desnecessária aos trabalhadores. Deve ser garantido tratamento médico adequado aos trabalhadores contaminados com a garantia de sua remuneração. Em 1992 a usina foi desativada por inviabilidade econômica e os trabalhadores foram demitidos ou transferidos para outras unidades.

Os Restos da USAN A Usina de Santo Amaro, localizada na rua Princesa Isabel, no Brooklin, foi derrubada e todo o material levado para a unidade da avenida Interlagos. Em depoimento à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, a engenheira civil e de segurança do trabalho e auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo, Fernanda Gianassi, afirmou: “Em vez de rasparem o solo e começarem a retirar as camadas mais profundas, viram que havia contaminação profunda e começaram a jogar pedrisco para cobrir o terreno.” O terreno, localizado em uma área muito valorizada, foi vendido e, no local, construído um grande condomínio. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Comissão Nacional de Energia Nuclear, CNEN, órgão federal responsável pelo licenciamento e fiscalização das instalações nucleares e radioativas brasileiras, para saber a posição da empresa em relação à segurança dos moradores do Brooklin e a resposta foi que, “sobre a posição da CNEN relativa ao terreno da antiga Nuclemon, no bairro Brooklin, em São Paulo, informamos que a área não oferece riscos ao meio ambiente, trabalhadores da instalação e população em geral. A CNEN faz um monitoramento periódico do local para

certificar-se de que os níveis de radiação estão dentro da normalidade, abaixo do estipulado nas normas de segurança da CNEN”. O depósito que guarda os restos das operações da Nuclemon, aproximadamente 1000 (mil) toneladas, fica na esquina da Avenida Interlagos com a Avenida Miguel Yunes. A segurança e a sinalização do local são precárias. As placas que deveriam alertar a população dos riscos são poucas e pequenas. Um exemplo são as placas que indicam que há radiação no local, são pequenas, estão colocadas próximas ao chão e estão sendo cobertas pelo mato. Fernanda Giannasi alerta para o fato de que “pessoas em situação de rua e curiosos frequentemente adentram o terreno, visto que a cerca tem vários pontos abertos”. Segundo Sérgio Dialetachi, especialista em energia nuclear, consultor da Fundação Heinrich Boell, do PV alemão para assuntos de energia e clima, “a terra fora do galpão está contaminada com radioatividade. Pode até ser baixa, mas não há garantias de que não faça mal a quem se expõe a ela, tudo depende do organismo. Não há limite seguro quando se fala de energia nuclear”. Há grande preocupação com a presença do depósito na região. Quando foi criado, a população no entorno era pequena. Hoje, a expansão imobiliária passa pela região. Ao lado do terreno onde estão estocados toneladas de material radioativo está sendo construída a nova igreja do padre Marcelo Rossi, que será visitado por milhares de romeiros mensalmente, assim como vários condomínios residenciais. Outro fato que chama a atenção é o de que muitas pessoas que moram ou trabalham na região não sabem da existência do depósito, não recebem informações e não têm conhecimento de como proceder em caso de acidente. Segundo Sérgio Dialetachi, a fiscalização do local é precária, mas já foi pior. Aproximadamente 1000 (mil) toneladas deveriam ter sido retiradas do local há 13 anos, porém, a falta de um depósito definitivo faz com que a

Quando o depósito foi criado, a população no entorno era pequena.

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população da cidade de São Paulo tenha que conviver com uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento. Segundo Fernanda Giannasi, o local é impróprio, coloca em risco a população, o meio ambiente e os próprios trabalhadores do depósito. O Conselho Regional de Meio Ambiente Sustentável e Cultura de Paz da Subprefeitura de Santo Amaro (CADES-SA), está lutando para que o depósito seja desativado. No 3º Encontro das Agendas 21 da Região Sul, em 2009, uma moção pediu a retirada imediata e a descontaminação do local. Já na Conferência Municipal de Saúde Ambiental foi feita uma proposta exigindo a retirada imediata dos resíduos da cidade de São Paulo, mas que fosse transferido de forma segura para um local seguro, sem riscos para o meio ambiente e para a população. Segundo conselheiros do CADES, não se sabe a quais riscos a população está sendo exposta. Para o vereador Penna, do Partido Verde, que participou da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Danos Ambientais, cujo relatório saiu no final de 2009, “A primeira providência que deve ser tomada é retirar esse material radioativo da área urbana. Ele tem que ser acondicionado em um local adequado e isso precisa acontecer rápido, pois a cidade cresceu muito naquela região”. Os resíduos do depósito da avenida Interlagos seriam encaminhados para Caldas, mas a população do sul de Minas se uniu para evitar que mais uma vez o destino final desse tipo de produto fosse à região. Isso fez com que o então governador do Estado de Minas Gerais, Itamar Franco, baixasse uma portaria proibindo a entrada de material radioativo no Estado. Para André Amaral, coordenador da Campanha Nuclear do Green Peace, “o destino final para o lixo nuclear é uma resposta que nenhum país tem”. Fernanda Giannasi mostra muita preocupação com o depósito, ”Enquanto o lixo espera a solução para onde será levado definitivamente, o piso do galpão que não foi projetado para essa

carga afunda, além do eterno problema do gás radônio, cancerígeno, que é liberado na atmosfera para evitar o acúmulo no interior do galpão”. A assessoria de imprensa da Indústrias Nucleares do Brasil (INB) nos informou que “a INB recebeu da CNEN a licença para descontaminação da área de Interlagos, onde estão depositados materiais pesados oriundos da operação da Nuclemon. O início da operação estava marcado para o mês de janeiro, os primeiros passos já foram dados. As chuvas estão atrapalhando um pouco a operação, mas ela estará concluída ainda neste ano. A CNEN tem todo o controle e fiscaliza o depósito.” A descontaminação do terreno deve ser feita o mais rápido possível, mas, segundo Fernanda Giannasi, a população deve estar atenta aos procedimentos da INB, pois no caso do terreno do Brooklin a descontaminação não foi feita de forma segura.

O Abandono O Centro de Referencia do Trabalhador de Santo Amaro, CRT-SA, avaliou 160 ex-trabalhadores da Nuclemon. Segundo a Dra. Maria Vera, esses trabalhadores não tiveram acompanhamento médico na empresa por décadas. Apenas depois do acidente de Goiânia é que eles começaram a fazer exames. No acompanhamento realizado pelo CRT foram encontrados casos de câncer, silicose, pneumoniose, surdez e radionuclídeos em quantidades alteradas no organismo dos trabalhadores. Abandonados pela empresa, muitos trabalhadores morreram sem tratamento adequado. Para a Dra Maria Vera, o descaso com os trabalhadores é grande porque apesar de o Brasil ser signatário da Convenção 115 da Organização Internacional do Trabalho, assinada na década de 1960, até hoje ela não foi regulamentada no país. O artigo 112 determina que, mesmo depois de demitidos, trabalhadores de instalações nucleares expostos a radiação ionizante devem passar periodicamente por exames médicos. Baseados no artigo 12 da OIT, os ex-trabalhadores da Nuclemon criaram a Associação Nacional dos Trabalhadores

da Produção de Energia Nuclear, (ANTPEN). Para José Venâncio, presidente da Associação, “nossa luta é por justiça. Se a convenção 115 da OIT fosse regulamentada, os trabalhadores não estariam passando pelas dificuldades que estão”. A regulamentação da Convenção 115 da OIT é muito importante para todos os trabalhadores e familiares da área de energia nuclear. Atualmente, 64 ex-funcionários da Nuclemon residentes em São Paulo ganharam na justiça o direito a tratamento médico. Mas tiveram mais uma vez que entrar na justiça, pois a carteira do plano de saúde que receberam era válida para os estadod do Rio de Janeiro e Minas Gerais, mas não era válida em São Paulo. Milton Lopes, secretário da ANTPEN, conta que “quando a empresa fechou a recessão era grande para não ser mandado embora aceitei ser transferido para o Rio de Janeiro, mas a empresa não pagava nem a passagem para eu visitar minha família uma vez por mês. Depois fui para Poços de Caldas, a mesma coisa, tinha que pagar aluguel, passagem, tudo. Quando acordei estava tão doente que tive que me aposentar por invalidez. Depois de passar por tudo que passei, recebo uma carteira de plano de saúde que não é aceita em São Paulo. Quem não tem nem dinheiro nem para pagar a passagem para ir até o consultório médico, como pode pagar 100, 150 reais por uma consulta e depois pedir reembolso? É um desrespeito”. Mais uma vez tiveram que recorrer à justiça para ter direito ao plano de saúde que fosse aceito na cidade de São Paulo. Dos 64 beneficiados, cinco já morreram. Quem trabalhava na manutenção tinha acesso a todas as áreas da usina. João da Silva Araujo, 59, conta que teve leucopenia quando ainda era trabalhador da usina, há um ano perdeu um rim, não tenho mais saúde para nada”. André Amaral, do Green Peace, associa o descaso com os trabalhadores de São Paulo à atual crise em Caitité, na Bahia. “Descaso e desrespeito para com o meio ambiente e a população. Se a convenção 115 fosse regulamentada no Brasil, muita coisa seria evitada.”

Uma lei para São Paulo No dia 6 de janeiro de 2010, o prefeito Gilberto Kassab sancionou a lei 15.098/2010, de autoria do vereador Ítalo Cardoso. A lei obriga a Prefeitura a divulgar na imprensa oficial e disponibilizar em seu portal da internet o relatório das áreas contaminadas do município. A lei leva em consideração as graves denúncias feitas na CPI dos Danos Ambientais. São muitas as áreas contaminadas na cidade, que estão sendo colocadas à venda. Um exemplo está na região sul, em Santo Amaro áreas que um dia foram ocupadas por indústrias estão sendo vendidas para construtoras do ramo imobiliário para a construção de grandes condomínios residenciais. O cidadão tem o direito de escolher se ele quer ou não morar ao lado de um depósito de resíduos nucleares, ou em cima de um aterro contaminado por substâncias pesadas e quais as reais consequências para as futuras gerações. Enquanto o lixo espera solução para onde será levado, o piso do galpão afunda.

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Joelma Couto é Jornalista

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Memórias De um jornalista não investigativo Renato Pompeu

Ana Miranda

Profetas

da chuva

Meio século

de alegrias e frustrações Estou completando este mês 50 anos de jornalismo profissional, que iniciei entrando por concurso em 1960 na Folha da Manhã, hoje Folha de S. Paulo. Continuo enfrentando a profissão como a iniciei: alegre por prestar um serviço público e frustrado por não conseguir, por limites pessoais e externos, prestar plenamente esse serviço. Aprendi muito nessas décadas todas. Em primeiro lugar, aprendi que um jornalista não precisa saber nada, precisa apenas saber quem sabe. O jornalista, ao contrário dos intelectuais, não tem de divulgar seus conhecimentos, e sim de divulgar o conhecimento de terceiros, sempre relatando que se baseia em fontes, embora possa não identificar essas fontes. Essas fontes podem ser testemunhas, especialistas ou pesquisas e outras documentações. O que o jornalista precisa saber é realmente como conseguir chegar às fontes em cada assunto específico, e distinguir entre as fontes boas e más. Uma segunda constatação que fiz é que a especialização em alguma problemática, seja esportes ou polícia, ou seja qual for, pode ser mais prejudicial do que benéfica. Um jornalista sempre depende de suas fontes e, se insistir em ficar anos a fio cobrindo o mesmo campo, pode ficar prisioneiro de suas fontes. Ele não pode correr o risco de desagradar cada uma de suas fontes, publicando uma informação importante que a fonte não quer ver divulgada, por exemplo, pois nesse caso a fonte deixará de prestar novas informações. Por isso, ao longo de minha carreira, sempre procurei passar sucessivamente de um campo de cobertura para outro. A tal ponto que, quando me perguntam, “Afinal, você é jornalista especializado em quê?”, sempre respondo: “Sou jornalista especializado em jornalismo”.

Outra coisa que aprendi foi que cada jornalista tem as fontes que merece. Se o jornalista for um ser intelectualizado que procura ser isento, ele terá como fontes seres intelectualizados que procuram ser isentos. Se o jornalista for conservador, terá conservadores como fontes. Se o jornalista for esquerdista porra-louca, terá esquerdistas porras-loucas como fontes. Dize-me quem são tuas fontes, e dir-te-ei quem és. Ou melhor, dize-me quem és e dir-teei quem são as tuas fontes. Finalmente, aprendi que existe um outro jogo de espelhamentos como esse entre os jornalistas e suas fontes: é a identificação dos integrantes de uma redação bem-sucedida com o seu público. A composição social, política e cultural de uma redação bem-sucedida vai ao mesmo tempo criando um público de composição social, política e cultural semelhante, e vice-versa, as exigências do público vão alterando a composição da redação que serve àquele público. Disse Marx, referindo-se a livros, “Cada obra cria o seu próprio público”. Disse meu falecido irmão, jornalista Sérgio Pompeu: “O jornalista precisa ter um vínculo com seu público”, do contrário sua obra cairá no vazio ou mesmo será recebida com hostilidade. Dize-me se você gosta de me ler e dir-te-ei que você é parecido/parecida comigo. Renato Pompeu é jornalista e escritor. rrpompeu@uol.com.br

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Moro na costa do Ceará há quatro anos e nesse tempo aprendi a observar sinais de chuva, sinais simples, para aquele mesmo dia. Quando fica abafado, vem chuva. Olho o horizonte e vejo-a ao longe. Se está ao nascente, caindo no mar, virá para este lado, se estiver em outra direção, mais provável que passe ao largo de minha casa. Coisa rudimentar, mas é um começo de sabedoria. O meu jardineiro sabe se vai chover pelo cheiro do ar. Catarina, sertaneja, sabe que vai chover quando as colmeias ficam cheias de filhotes e mel, formigas começam a levar migalhas da cozinha, teias de aranha surgem nos cantos. Começaram estes dias as chuvas daqui. Tem chovido de manhã cedo, depois o dia se abre azul e luminoso. Chove no Ceará, mas as chuvas são irregulares, tem inverno bom, inverno em que não chove, ou chove demais. Nos sertões, os lavradores penam com o cultivo, no verão o plantio resseca e nos alagamentos, apodrece. O cotidiano, a vida e a morte, o destino desses sertanejos está entrelaçado à chuva. Eles crescem no seio da natureza, observando seus indícios. Precisam decidir todos os anos se vão plantar, o que plantar e de que modo plantar, tentando prever as chuvas imprevisíveis. São condenados a esperar e rezar. Como uma reação contra a angústia e a passividade, lavradores dotados da pulsão de vida aprendem a ler na natureza os acenos do clima. São os Profetas da Chuva. Assim como os navegantes que leem as estrelas, o vento, as cores e correntes marinhas, esses profetas leem nos insetos, na criação, na floração das plantas, na própria pele, os oráculos da natureza. Maravilhosos leitores. Se formigas se afastam da margem dos riachos, sinal de muita chuva; se os besouros serradores serram os galhos por inteiro, pouca chuva; se no dia de Santa Luzia o sal à janela se desmancha, chuva na certa; se o dia de solstício de verão é azulado e enfarruscado, inverno bom, se amarelado, chuvas irregulares. “Quem sabe das chuvas é a natureza”, diz o profeta Antônio Lima, dos mais experientes, que prevê reparando nas formigas, no sapo, na floração do feijão brabo... Os profetas se reúnem todos os janeiros, contam as observações, cruzam vestígios levantados e sentenciam seus presságios, guiando os agricultores nas suas escolhas, nesta Arcádia plana e ressecada. São a voz de Pan.

Ilustração: HKE...

“Eu sou do tempo que se dizia que jornal servia para embrulhar peixe”

Ana Miranda é escritora.

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ensaio Jesus Carlos 1. Manifestação do movimento de mulheres no dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher no centro da cidade de São Paulo (SP), 1988. 2. Manifestação das mulheres contra a presença do ditador general Jorge Rafael Videla nas ruas do centro de São Paulo, 1980. 3. Passeata do 8 de março de 1989. Av. São João, centro de São Paulo (SP), 1989. 4. Passeata em repúdio ao assassinato de Eliane de Grammont. Rua da Consolação, centro de São Paulo (SP), 1981. 5. Familiares de metalúrgicos em greve protestando nas ruas de São Bernardo do Campo contra a prisão dos líderes/diretoria do Sindicato do Metalúrgicos de São Bernado do Campo e Diadema em greve. S.B do Campo (SP). Greve de 1980. 6. Manifestação do movimento de mulheres durante o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, no centro de São Paulo (SP), 1992. 7. Manifestação dos movimentos de mulheres no dia 8 de março em frente do Teatro Municipal, São Paulo (SP), 1988. 8. Encerramento do 1º Congresso da Mulher Paulista no teatro Ruth Escobar, São Paulo (SP),1979.

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Gabriela Moncau

Lugar de mulher é na

política Dia Internacional da Mulher completa cem anos com grandes conquistas e muitos desafios. Foto: Jesus Carlos.

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utamos por uma sociedade de brasileiras que compreendam que a mulher não deve viver parasitariamente do seu sexo, aproveitando os instintos animais do homem, mas que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos e tornar-se capaz de cumprir os deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela”. A frase parece representar uma demanda atual do movimento feminista, mas foi pronunciada pela zoóloga Bertha Lutz, em 1918, oito anos depois da definição do 8 de março como Dia Internacional da Mulher. Ao alcançar o centenário, a data traz à tona reflexões sobre o que representou esse período de luta pela igualdade de gênero. No entanto, as batalhas feministas vêm de bem antes de 1910 e, entre as mudanças ao longo de séculos de luta, o próprio conceito do que é mulher tem tomado outras formas. A ideia de que elas são definidas por sua capacidade reprodutora é algo que paulatinamente tem sido quebrado. “Há os que ainda pensam que, por termos essa capacidade biológica, somos obrigadas a cumpri-la, como animais reprodutores. Mas somos seres humanos com capacidade de decidir se, quando, como e com quem queremos ou não ter filhos ou filhas. O que humaniza e qualifica a maternidade”, afirma Maria José Rosado, uma das fundadoras e coordenadora da organização Católicas pelo Direito de Decidir. “Há décadas, uma mulher era associada estritamente à ideia de cumprir a função de boa esposa e mãe. Hoje, essas características permanecem, mas são mais sutis ou disfarçadas e somam-se a outros elementos, como a função de boa profissional”, completa Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres.

Sujeito político Já para a uruguaia Lilian Celiberti, da Articulación Feminista Marcosur, “a principal transformação a se comemorar depois de cem anos da data é a constituição das mulheres como sujeitos políticos, com capacidade de questionar e disputar sentidos teóricos e práticos que impactam a organização da sociedade”, analisa. Por mais que

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as mulheres estivessem presentes em todas as lutas históricas da humanidade, é o feminismo que traz a ideia da mulher enquanto sujeito político próprio, denunciando a existência da opressão específica de gênero, o patriarcalismo, que perpassa todas as classes e etnias. Nalu acredita que o feminismo trouxe mudanças no entendimento do que é cada área da organização social: “Na economia, por exemplo, o trabalho doméstico tem um papel na reprodução do capitalismo que é importantíssimo”. Portanto, apesar da comemoração das vitórias alcançadas ao longo desses anos de batalhas, o horizonte das lutas ainda não foi alcançado: caso contrário, apontam as feministas, o padrão das relações sociais e culturais da sociedade teria sido radicalmente alterado. O diagnóstico é de que o machismo, assim como o capitalismo, tem uma afiada capacidade de se redefinir e se adequar a cada momento histórico. Parte do movimento feminista visa construir um projeto de sociedade em conjunto com os outros setores anticapitalistas. “A compreensão de que a pauta não é específica das mulheres, mas faz parte de uma crítica global ao modelo e, portanto, exige o entendimento da sociedade dividida por gênero, classe, raça e etnia é fundamental para a união de diversas lutas que têm o mesmo fim”, sintetiza Nalu Faria. “As lutas das trabalhadoras domésticas, das pescadoras, das camponesas contra o agronegócio, articulam-se com o combate à violência de gênero e com a bandeira pelo aborto legal”, aponta Lílian Celiberti. Questionada sobre a superação do machismo dentro das próprias organizações antissistêmicas, Celiberti reforça: “as mulheres têm que disputar o poder, questionando as formas de política que as excluem e questionando a legitimidade das propostas de esquerda que não contemplem horizontes de emancipação para homens e mulheres”. O movimento feminista vive atualmente um momento importante, pois construiu uma plataforma unificada em torno das reivindicações latentes e baseada no acúmulo de experiências das

lutas anteriores. Segundo Maria Amélia de Almeida Teles, da Articulação de Mulheres de São Paulo, “hoje existe uma construção de propostas unificadas no mundo inteiro, com mais articulação na América Latina”. As principais bandeiras, além da disputa nos espaços políticos – institucionais e no interior das próprias organizações – são contra a violência às mulheres e pela legalização do aborto. Nesses dois pontos, avaliam as feministas, ainda há muito a avançar.

Violência doméstica As violências físicas praticadas contra as mulheres escancaram uma das formas mais perversas da desigualdade entre os gêneros. Exemplos de agressões não faltam e evidenciam a naturalização das agressões. Em junho de 2007, o espancamento da trabalhadora doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto, abordada num ponto de ônibus por jovens de classe média do Rio de Janeiro, e a justificativa mais preconceituosa ainda – “achávamos que era uma prostituta” –, demonstrou, segundo as feministas, que a misoginia e a negação da humanidade da mulher ainda estão arraigadas em nossa sociedade. Além disso, a violência dentro do âmbito doméstico atinge índices assustadores. De acordo com dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça em 2009, a quantidade de processos em tramitação no Brasil relacionados à agressão doméstica chegou a 150.532. No entanto, como con-

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Manifestação das mulheres na Praça da Sé, São Paulo, no dia 8 de março de 1981.

sequência de muita luta do movimento de mulheres, a questão deixou de ser tratada como parte do fórum íntimo para ser vista como um problema público, social e cultural. A conquista, em 2006, da Lei Maria da Penha (n° 11.340/06), que responsabiliza família, Estado e sociedade por “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” contra as mulheres, foi comemorada por todos os setores feministas. Sua aplicação, porém, é outra batalha. “Ela não está sendo implementada pelos órgãos competentes. Os principais responsáveis são o judiciário e o Ministério Público, que deveriam funcionar como fiscais da lei”, denuncia Maria Amélia. Segundo levantamento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, de 2008, 269 mil mulheres relataram as agressões sofridas no número 180, disponível para denúncias. Isso significa que, só por telefone, há mais de 700 queixas diárias de violência de gênero. A média é de 400 mil ocorrências por ano. “Para sair de uma situação dessa, a mulher precisa de um lugar para que possa se abrigar caso seja necessário, um emprego, enfim, condições para estruturar sua vida de maneira autônoma. Mas aí isso é barrado pelas limitações

das políticas públicas”, esclarece Rachel Moreno, da Articulação Mulher e Mídia. Para Amélia, um caso exemplar de como a lei não está sendo aplicada é o recente assassinato de Maria Islaine de Moraes, de 31 anos, baleada pelo ex-marido em 20 de janeiro, em Belo Horizonte. Ela já havia feito oito denúncias. “Não queremos apenas a burocracia de um BO ou um mandato de prisão. Precisamos que se verifique se o mandato foi cumprido e, se não foi cumprido, por que não foi”, indigna-se.

Legalização do aborto Quanto à questão da descriminalização do aborto, a situação tampouco é animadora. De acordo com o relatório “Morte e negação: abortamento inseguro e pobreza”, divulgado em 2007 pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), a cada ano são realizados 46 milhões de abortos no mundo, dos quais 19 milhões são feitos de forma insegura e 70 mil resultam em morte materna. Dos procedimentos inseguros, 96% são realizados em países “em desenvolvimento”. Na América Latina foram registrados 17% do total de abortos clandestinos ocorridos no mundo, percentual abaixo apenas do da África, com 58%.

No Brasil, 1 milhão de gestações são interrompidas de forma insegura por ano. O aborto é apontado como a quarta causa de mortalidade materna – em Salvador, é a primeira. “É absurdo e contraditório que se invoque a defesa da vida contra a legalização do aborto, diante de dados concretos do altíssimo número de mortes maternas que o aborto inseguro causa”, afirma Maria José, da Católicas pelo Direito de Decidir. “A legalização do aborto é uma questão de saúde pública, de justiça social e racial e é também uma questão ética, pois as mulheres têm competência e autoridade moral para avaliar quando elas necessitam recorrer a uma interrupção de gravidez”, completa. Os números indicam maior gravidade do problema no Nordeste, onde a taxa de mortalidade é de 2,73 a cada 100 mulheres. Não por coincidência, o mesmo relatório aponta a região como uma das de menor poder econômico, onde as mulheres têm menos acesso aos serviços de saúde e onde se concentram as maiores taxas de analfabetismo (18%). “É claro que o tema é estritamente ligado à questão social e econômica. As mulheres fazem o aborto, quer seja legal ou ilegalmente. A diferença é que quem tem dinheiro recorre a uma clínica que o realize em condições seguras”, resume Rachel Moreno. Recentemente, um significativo avanço rumo à legalização do aborto reverteu-se em um passo atrás. A terceira edição do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), resultado de ampla discussão realizada por instâncias governamentais com a sociedade por meio de conferências nacionais, abordava questões que há muito tempo deveriam ter sido enfrentadas. A autonomia das mulheres para decidir sobre a sua vida reprodutiva, o casamento homossexual, a adoção por casais homoafetivos, questões relativas aos conflitos de terras e à memória e à verdade dos tempos do regime civil-militar constavam no documento do programa, divulgado em dezembro do ano passado. No entanto, as pressões dos setores conservadores atingidos pelos posicionamentos resultaram no recuo do presidente Lula nos temas da apuração dos crimes da ditadura e do aborto. “Estávamos avançando para a descriminalização. É uma vergonha e um desrespeito à sociedade brasileira. Agora é hora de reagir”, assinala Maria Amélia. Em uma nota pública, as Católicas pelo Direito de Decidir enfrentam abertamente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que havia protestado contra o PNDH-3: “Repudiamos tanto o intervencionismo autoritário da hierarquia da Igreja quanto a subserviência do governo federal, que, visando as eleições, joga no lixo o processo de debate público (...) Mais uma vez, são os direitos das mulheres e de homossexuais que entram como moeda de troca num contexto de um jogo político em que toda a sociedade brasileira perde”. Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo

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Lúcia Rodrigues

Odebrecht

O Pólo Petroquímico de Capuava, no ABC, onde está localizada uma das plantas da Quattor, que foi adquirida pela Braskem.

é promovida a gigante petroquímica da América Latina Empreiteira baiana terá controle acionário sobre 51% da nova empresa. Acordo firmado com a Petrobras, e que sela a fusão entre a Braskem e Quattor, deve ser aprovado pelo Cade ainda neste semestre. Foto: Jesus Carlos

a

estratégia definida pelo governo federal de fortalecimento de grupos empresariais nacionais está direcionando a economia brasileira para a formação de monopólios e oligopólios privados em vários setores. Para os defensores dessa tese, a disputa por mercados deixou de estar circunscrita ao âmbito nacional e passou a ser definida no plano internacional. O objetivo, portanto, é consolidar e robustecer alguns grupos privados para atuarem nessa arena do capitalismo mundial. A formação de uma gigante na área petroquímica é o exemplo mais recente da linha traçada pelo Planalto. O acordo firmado entre Petrobras e Odebrecht para a aquisição da Quattor pela Braskem, empresa em que as duas compa-

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nhias já atuam como sócias, alavanca a empreiteira baiana à liderança do setor petroquímico na América Latina. O sinal verde para a efetivação da BRK, nome da nova empresa, deve ser dado pelo Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Ao que tudo indica o órgão vai chancelar a decisão ainda neste semestre. O aporte financeiro feito pela estatal para a consolidação da gigante petroquímica é de R$ 2,5 bilhões, a Odebrecht entra com uma contrapartida de R$ 1 bilhão. Mesmo assim, o capital acionário majoritário de 51% ficará nas mãos da empreiteira. Sob controle da Petrobras ficam 49% das ações da holding. A Odebrecht também terá o maior número de assentos no Conselho de Administração da nova empresa: seis

contra quatro da estatal e um independente. O presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli de Azevedo, explica à reportagem de Caros Amigos que a Petrobras está se reposicionando dentro do setor petroquímico brasileiro depois das privatizações que ocorreram ao longo dos anos 90. O processo de privatização das centrais petroquímicas esfacelou a atuação da estatal na área. Só a partir de 2003 é que o cenário começa a se inverter e a Petrobras passa a ter uma intervenção mais efetiva na área petroquímica. O movimento de reorientação da estatal ao retornar ao setor funciona como instrumento para o financiamento e consolidação da indústria petroquímica, segundo o economista do

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Concentração de capital

Antoninho Perri

Para o professor de economia da Unicamp Wilson Cano, o processo de concentração do capital que está ocorrendo no Brasil faz parte da lógica do capitalismo. “Marx explica isso em O Capital. O mais forte absorve o mais fraco.”

O professor da Economia da Unicamp Wilson Cano

Monopólio

Agência Petrobras de Notícias

Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e do Sindicato dos Químicos do ABC, Thomaz Jensen, “O ator relevante para a aquisição da Quattor pela Braskem é a Petrobras”, frisa o economista. Gabrielli reconhece que a atuação da Petrobras é decisiva para a consolidação da nova empresa que colocará a Odebrecht à frente do setor. “A nossa visão neste momento é que compartilhar a gestão, compartilhar o investimento, é a melhor alternativa.” Ele está atento, no entanto, aos riscos que a parceria representa na definição dos rumos da indústria petroquímica nacional, capitaneada pela empreiteira. “Corremos esse risco. Vamos ter eternamente um conflito entre as duas empresas.” O presidente da Petrobras considera a indústria petroquímica estratégica para o desenvolvimento do país. “O futuro do petróleo não vai estar no combustível do automóvel, mas sim na indústria petroquímica.” Ele sabe que a integração entre as indústrias petroleira e petroquímica é fundamental para agregar valor ao produto final. A Petrobras é fornecedora da nafta, insumo básico das centrais petroquímicas. “Para a Petrobras é fundamental estar na indústria petroquímica. Neste momento, como acionista importante, compartilhando decisões com a Odebrecht. Se o futuro vai ser assim, eu não sei. Há dois anos pensávamos que seriam duas empresas, mas uma não sobreviveu. Agora vai ter uma privada. Se ela vai sobreviver, não sabemos. Como diz o casamento religioso: até que a morte os separe”, brinca.

O presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli

O docente, que tem livre docência na área de concentração industrial, explica que esse tipo de atividade não admite pequenos. “A indústria química necessita de escala”, ressalta. Cano afirma que o financiamento de grupos privados pelo Estado é uma rotina na história brasileira. A indústria petroquímica começou na década de 70 e foi financiada pelo modelo tripartite (capitais estatal, privado nacional e internacional). “Vivemos quase que uma réplica desse período, com a diferença que agora não há o capital internacional.” Ele conta que os bancos privados brasileiros não querem emprestar dinheiro a longo prazo. “O longo prazo causa alergia no sistema bancário brasileiro”, alfineta. O Bndes (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) acaba tomando, na maioria dos casos, para si a tarefa de agir como agente financiador do capital privado. “Isso sempre aconteceu e continua acontecendo. Como o Gerdau está comprando coisas lá fora? Com o dinheiro do Bndes. Como a Friboi está comprando coisas lá fora? Com o dinheiro do Bndes. Como o Steinbruck compra coisas lá fora? Com dinheiro do Bndes. E o Antonio Ermírio de Moraes? A mesma coisa.” O banco de desenvolvimento participou do processo de fusão entre as empresas de telefonia Oi e BrT (Brasil Telecom), com um aporte de R$ 2,57 bilhões. Na operação de fusão entre a Aracruz e a Votorantim, que consolidou a Fibria, como gigante da área de celulose, o braço de participações do banco, Bndespar, entrou com R$ 2,4 bilhões. O Bndes também apoiou com R$ 3,48 bilhões o processo de incorporação da Bertin e Pilgrim´s Pride, pela JBS, gigante do setor de carnes industrializadas e in natura.

“A noção de mercado relevante é muito importante para se compreender o que é um monopólio. A concorrência não se dá no mercado interno. Nós não temos grupos econômicos brasileiros do porte de seus concorrentes internacionais, com exceção de um ou dois, como a Vale. O que nós estamos assistindo é à consolidação de grandes grupos nacionais”, argumenta o diretor de Planejamento do Bndes, João Carlos Ferraz, para justificar o papel que o banco desempenha como agente financiador do capital privado. “Não interessa se a empresa é estatal ou não. Do ponto de vista de um banco público, interessa que os agentes econômicos gerem mais e melhores emprego. A propriedade sobre os meios de produção é secundária. Não estou interessado em quem é o dono do negócio. Há uma orientação para que sejam fortalecidas empresas que tenham capacidade produtiva e de investimento”, frisa Ferraz. O dirigente do Bndes não concorda com a hipótese de destinar recursos do banco para o fortalecimento estatal na economia. “Será que o Estado brasileiro está preparado para ter a propriedade sobre um conjunto extenso de empresas? Será que essas empresas teriam capacidade de ser tão dinâmicas quanto às do setor privado? Não há nenhuma prova factual de que isso seja possível”, teoriza. O exemplo de empresa bem administrada e lucrativa, como é o caso da Petrobras, não demove Ferraz do argumento. “Não se pode projetar que o que acontece na Petrobras ocorra em qualquer situação. Não se sabe se o Estado está preparado para ser executivo, se é tecnicamente preparado.” “A Vale do Rio Doce era uma das maiores empresas do mundo antes de ser privatizada. A privataria causou males muito grandes a este país”, desabafa o professor da Unicamp, que considera que o processo de desenvolvimento levado a cabo pelo governo só fortalece os empresários. Para Cano, “essa visão não tem nada a ver com a questão social brasileira, com distribuição de renda, de emprego. Acreditam que ajudando a constituir empresas de grande porte, elas poderão brigar lá fora (no exterior)”, lamenta. “O capital privado não entra sozinho para roer o osso, só entra onde tem carne. Se não tiver carne, não entra. Sempre foi assim. Capitalismo é isso”. Ele não acredita em uma guinada estatizante por parte do governo Lula. “O governo age dessa forma porque não é um governo socialista. Não pretende nacionalizar nenhum setor. Acredita na política de fortalecimento das empresas privadas nacionais”. A preocupação do docente é semelhante a dos sindicalistas da área. Os trabalhadores também estão preocupados com as consequências do fortalecimento da Odebrecht. O secretário de Organização da CNQ (Confederação Nacio-

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Deivid Menezes

Carlos Itaparica, da Confederação Nacional dos Químicos

nal dos Químicos), Carlos Itaparica, questiona o financiamento de grupos empresariais privados com recursos públicos. “Muitos empresários brasileiros se tornaram donos de petroquímicas sem ter nenhum capital. Naquela época, quem financiou foi o Bndes, hoje é a Petrobras.” Itaparica é funcionário da Braskem desde 2000, mas trabalha como operador de processo há mais de 20 anos no Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia. O sindicalista diz que os trabalhadores são favoráveis à Petrobras ter um braço petroquímico e questionam o capital privado majoritário na nova empresa. “Acho um equívoco a Petrobras entrar como fornecedora do capital e não como administradora da planta.” Ele teme que a relevância conferida a Odebrecht no processo de fusão prejudique a população. “Se a gente olhar ao nosso redor, praticamente tudo possui derivados da

indústria petroquímica: televisão, geladeira, carro... E isso vai estar na mão de uma empresa só. A sociedade vai ficar refém de uma empresa privada.” Os temores de Cano e Itaparica são compartilhados pelo professor de sociologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Carlos Bello. O docente, que é especialista em Cade e já publicou um livro que debate o peso desempenhado pelo poder público para barrar a formação de monopólios, considera o processo de fusão entre as duas empresas como certo. “Não tenho dúvida nenhuma de que isso vai acontecer.” Ele enfatiza que o processo de fusão “é bom para a empresa privada (Odebrecht)”. “Hoje em dia, o negócio petroquímico da Odebrecht praticamente financia a construção pesada da empreiteira”, revela o economista Thomaz Jensen. Segundo ele, para uma empreiteira, ter uma atividade petroquímica é muito interessante. “Os gastos com as paradas para a ampliação e manutenção da planta são basicamente serviços de construção civil.” A economista da CNQ, Marilane Teixeira, antecipa que o objetivo da nova gigante petroquímica é se transformar na quinta empresa do mundo. Ela destaca, no entanto, que o processo de concentração de capital em grandes grupos econômicos faz parte da estratégia de política industrial do governo Lula. Marilane cita o caso da fusão da Aracruz com a Votorantim que conferiu à Fibria “o status de maior empresa do mundo na área de celulose”. Para a economista, os setores de celulose e petroquímica são grandes players para travar a disputa no mercado internacional. No caso específico da concentração de capital na área petroquímica, ela considera que é uma política deliberada do governo, “estimulada pelo Bndes, com o aval da Dilma (Rousseff)”. “Acham que a Petrobras tem de se ocupar com exploração e refino de petróleo. Não consideram que a produção

de resinas pela indústria petroquímica seja um setor que deva estar na mão do Estado”, critica.

Desemprego O monopólio privado assusta os trabalhadores do setor petroquímico. O risco de desemprego e do rebaixamento das relações e condições de trabalho são alguns dos pontos de questionamento levantados pelos sindicalistas quando o assunto é a consolidação da BRK. Itaparica teme que a nova gigante vá promover uma redução drástica no número de postos de trabalho. Hoje, segundo ele, as duas empresas têm em torno de 6.800 funcionários, a Braskem com aproximadamente 4.800 trabalhadores e a Quattor com dois mil. A Braskem atua na Bahia (Camaçari), no Rio Grande do Sul (Triunfo), em São Paulo (Paulínia) e Alagoas, a Quattor, na Bahia (Camaçari), no Rio de Janeiro (Duque de Caxias) e em São Paulo (Capuava, no ABC). O presidente do Sindicato dos químicos do ABC, Paulo Lage, também suspeita que o corte de funcionários ocorra. “Não vejo nenhum ponto positivo a não ser para a Odebrecht e a Petrobras. Para os trabalhadores, essa fusão vai gerar desemprego”, lamenta. “O monopólio privado tem uma consequência diferente do monopólio público. Enxugamento da mão de obra, sucateamento de algumas plantas em detrimento de outras.” Lage afirma que o sindicato do ABC está tentando marcar uma audiência com a Petrobras. “A Petrobras tem recursos, tem insumos (nafta), queremos ouvir deles por que não se aventa a possibilidade de a empresa assumir o controle do processo.” Os sindicalistas pretendem se organizar para evitar retrocessos. “A gente sabe que o setor empresarial só entende o trabalhador mobilizado. Como todos os sindicatos da categoria estão dentro da CUT, isso unifica a linha de ação”, acredita Itaparica.

Governo fortalece grupos econômicos privados Os grandes empresários não tem do que reclamar. Se no governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, o céu de brigadeiro foi possibilitado pela política privatista que entregou as principais empresas estatais para o controle do setor privado, no governo Lula o céu continua brilhando de outra forma, mas não menos intensamente. Para deleite dos industriais que ameaçavam abandonar o país, caso o ex-sindicalista ganhasse as eleições presidenciais de 1989, o governo federal tem dado atenção especial a esse grupo.

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A concentração de capital acionário parece ser uma das tendências do cenário macroeconômico internacional dos anos 2000. Por isso, a política industrial do governo Lula tem jogado pesado no fortalecimento e consolidação de grandes grupos econômicos privados nacionais. A estratégia é eleger um ou dois grupos e robustecê-los por meio de financiamentos do Bndes (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). O governo considera que a disputa hoje não mais se dá dentro dos limites das fronteiras de Estados nacionais, mas no mercado mundial.

A área de energia elétrica, apesar de não necessariamente disputar mercados internacionais, foi uma das escolhidas. A grande contemplada é a empreiteira Camargo Correa, que tem em seu currículo um passado sombrio de financiamento da tortura e repressão política durante a ditadura militar. Segundo denúncias de expresos políticos, a Camargo Correa era uma das empresas que contribuía financeiramente com órgãos de repressão política aos opositores do regime, como a Oban (Operação Bandeirante), embrião do DOI-Codi (Destacamento de Ope-

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rações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um dos centros de tortura mais temidos do país.

Via livre O Planalto quer, por exemplo, que o Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, um dos acionistas do setor, se retire da CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz), para pavimentar a consolidação da Camargo Correa como uma força da energia elétrica nacional. A empreiteira quer controlar sozinha a empresa privatizada pelo governo tucano do Estado de São Paulo. Para a assessora econômica do Sinergia (Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo), Renata Belzunces dos Santos, não há lógica nessa proposta. “O setor é ótimo para fundos de pensão: perene e seguro.” A Camargo Correa também avança na construção de novas usinas para a geração de energia. O sítio da holding na internet aponta o grupo como líder na construção de hidrelétricas. A construção das polêmicas usinas de Belo Monte, no rio Xingu, no Estado do Pará, e Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, são alguns dos empreendimentos em que a empreiteira está envolvida.

Apagão O secretário de finanças da FNU (Federação Nacional dos Urbanitários), Wilson Marques de Almeida, adverte que está ocorrendo no país uma concentração no setor elétrico. “Estamos assistindo nos últimos tempos à formação de verdadeiros cartéis”, alerta. “Antes da privatização, as tarifas eram baratas, depois da venda das empresas estão entre as 10 mais caras do mundo”, relembra a economista Renata dos Santos. O sindicalista Marques de Almeida também destaca que além do aumento no preço das tarifas, após a privatização, ocorreu uma queda na qualidade dos serviços e a redução dos postos de trabalho. A drástica redução no número de trabalhadores é a explicação para a demora no reestabelecimento da energia nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro durante o último apagão registrado no país. Segundo o sindicalista, essas subestações não possuem mais o turno de operadores da madrugada para interromper quedas de energia. Marques de Almeida também alerta para o risco de um novo apagão. “As linhas estão sobrecarregadas.” Outro risco imposto pelo governo tucano paulista e que vulnerabiliza ainda mais a sociedade é a privatização do setor de transmissão de energia. O modelo adotado até então excluía a transmissão de energia dessa venda. Agora as três pontas do negócio, geração, transmissão e distribuição, estão nas mãos do capital privado.

Infraestrutura O processo de privatização desenhado pelos

tucanos nos anos 90 transferiu sólidos patrimônios estatais para as mãos da iniciativa privada a preço de banana. A venda da Vale do Rio Doce ao lado da Telebrás são dois dos maiores escândalos praticados pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Os recursos gerados pelo lucro dessas companhias, e que poderiam ser revertidos em benefício para a população, passaram a ser embolsado por seus novos donos. A Vale que já era uma gigante do setor, figura em segundo lugar do ranking de mineradoras no mundo. O lucro fácil atraiu o interesse do capital privado. A privatização da Telebrás, que penaliza até hoje a população, é criticada pelo professor da Unicamp Wilson Cano. “Esse pessoal (empresários) veio para cá para ganhar dinheiro. O minuto de conversa no celular parece que é o segundo mais caro do mundo. Vieram para cá para ganhar dinheiro, não vieram para cá para fazer investimentos, para dar telefone para pobre”, protesta. Apesar dos problemas gerados, o secretário-geral da Fittel (Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações), João de Moura Neto, não acredita que o governo Lula reestatize o setor. “Duvidamos que ele faça isso, apesar de todas as denúncias contra Daniel Dantas, Carlos Jereissati.” O sindicalista afirma que as empresas que oferecem os serviços de banda larga lesam o usuário. “Estão fraudando a qualidade. No contrato de concessão, a empresa é obrigada a fornecer apenas 10% da velocidade contratada”, denuncia. Ele acredita que o setor de telefonia deve passar por um processo de concentração acionária. “Em três, quatro anos devem ficar no Brasil umas três, no máximo quatro empresas.” A siderurgia é outro setor em que a concentração privada já está em marcha. A Gerdau é um dos grupos que se destaca nesse cenário. “No final da década de 80 praticamente todo o setor siderúrgico em nível mundial era estatal, com exceção de Estados Unidos e Japão”, conta a socióloga e técnica do Dieese Adriana Marcolino. Além da mudança na composição do capital acionário que está direcionando para a consolidação de grandes monopólios privados, a comercialização no mercado também se internacionaliza. “Hoje 40% do aço que é produzido é comercializado no mercado mundial.”

Agronegócio A agropecuária também se transformou em espaço de concentração e valorização do capital, segundo o dirigente nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), Gilmar Mauro. “A lógica econômica é o lucro. Por isso, esses empresários não levam em consideração se estão utilizando agrotóxicos que fazem mal à saúde, se contaminam o lençol freático”, critica ao se referir aos capitalistas ligados ao agronegócio. A consolidação de gigantes a partir de fu-

sões e aquisições dentro do agronegócio tem sido uma constante. A Brasil Foods, denominação da antiga Perdigão que incorporou a Sadia no ano passado, vai se transformar em uma das maiores empresas de alimentos processados do mundo, segundo informações de seu sítio na internet. A gigante aguarda a decisão final do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que deve sair ainda neste semestre, sobre a integração total entre as duas empresas. Em janeiro deste ano, o órgão já se posicionou favoravelmente à fusão das duas empresas para a aquisição de insumos e serviços no segmento de carnes in natura. A JBS é outra gigante que atua no setor de carnes. Além do Brasil, a empresa está presente na Argentina, Austrália e nos Estados Unidos. Os quatro países são os principais produtores de carne bovina do mundo. A empresa é dona de marcas como a Swift, Bordon, Anglo, Sola, no ramo de carnes industrializadas e da Friboi no de carnes in natura. A subordinação da pequena agricultura aos interesses do agronegócio tem sido uma constante no Brasil. O dirigente sem-terra destaca as empresas multinacionais Monsanto, Cargil, Bunge, Nestlé, Parmalat como exemplos dessa lógica capitalista que atua no país.

Bancos A lógica da concentração acionária do mundo do capital produtivo também está presente no setor financeiro. Dados do Sindicato dos Bancários de São Paulo apontam que em 15 anos, entre 1993 e 2008, 70 bancos deixaram de existir no país. Apesar de o número de contas corrente e poupança ter crescido 185,7% e 95,7% respectivamente, o percentual de funcionários nas agências foi reduzido em 29,9% no mesmo período. Enquanto a variação de contas correntes administradas pelos funcionários saltou 307,4% . “É lucro em cima de lucro”, critica Silvio Aragusuku, diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo e funcionário do Santander. A redução dos postos de trabalho no setor é uma realidade que Aragusuku conhece de perto. Na profissão há 32 anos, o ex-funcionário do Banespa viu o número de trabalhadores ser reduzido drasticamente no processo de privatização que vendeu o banco público para o grupo privado espanhol. “Essas fusões são um desastre para os trabalhadores. Reduzem postos de trabalho.” Ele conta que a pretensão dos administradores do banco é tornar o Santander o maior banco privado do país. Atualmente, o banco aparece em quarto lugar no ranking geral, atrás do Banco do Brasil, Itaú/Unibanco (que também passaram por um processo de fusão recentemente) e do Bradesco. Lúcia Rodrigues é jornalista. março 2010

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entrevista

Ministro Sérgio Rezende

“As telefônicas cobram a

Participaram: Hamilton Octavio de Souza, José Arbex Jr., Lúcia Rodrigues, Marijane Lisboa, Otávio Nagoya, Renato Pompeu, Wagner Nabuco. Foto: Jesus Carlos.

maior tarifa do mundo” e m entrevista exclusiva para Caros Amigos, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende fala sobre assuntos da maior relevância para o desenvolvimento brasileiro, como a questão das patentes, o lobby das empresas de telefonia e suas tarifas mais caras do mundo, a questão dos transgênicos e as ações e programas do governo federal, como o de inclusão digital e a olimpíada de matemática. Conheça as posições do ministro Sérgio Rezende.

Hamilton Octávio de Souza - Podemos começar com a tua chegada ao ministério. Por que você foi escolhido? Fale um pouco dessa experiência nesse ministério tão importante para o país. Sérgio Rezende - Quando eu terminei a minha graduação não havia iniciado ainda os programas de pós-graduação no Brasil. Eu era muito estudioso e queria fazer mestrado e doutorado. O mestrado no Brasil começou no ano em que eu saí, em junho de 1964. Aí fiz o doutorado, voltei e fui ser professor da PUC, onde eu tinha estudado. Eu estava lá, mas não estava satisfeito nem com o Rio de Janeiro nem com a PUC. Porque sendo um físico experimental, o instituto de física da PUC tinha sua área experimental muito concentrada em física nuclear. Não havia muito espaço, e naquele tempo não existia apoio institucional para começar novos laboratórios. Eu tive dois estudantes pernambucanos que eram parte de uma turma de cinco engenheiros que resolveram sair ao mesmo tempo para fazer o mestrado. Eles queriam voltar e fazer um grupo de física lá na federal de Pernambuco. Era 1969. Eu tinha uma certa atração pelo nordeste, e fui com o compromisso de ficar uns três anos. O grupo logo se destacou, porque foi o primeiro grupo de pesquisa para valer da federal de Pernambuco. Então chegou a época da campanha para o governo do Miguel Arraes, a campanha foi em 1986 e fui convidado para coordenar a elaboração do programa de ciência e tecnologia. Arraes criou a primeira FAPESP do nordeste. Eu continuava na universidade e não queria sair, mas em 1990 acabei sendo o primeiro diretor científico da fundação. Em 94, Arraes foi eleito governador, e me chamou para ser secretário de ciência e tecnologia. Aprendi muito com ele no sentido do que a ciência pode

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O ministro Sérgio Rezende fala sobre a questão das patentes e o lobby das empresas de telefonia.

fazer para ajudar a população. Quando terminou o mandato dele, eu voltei para a universidade em tempo integral, e aí quando o Lula foi eleito em 2002 – eu já tinha participado um pouco da elaboração do programa de governo de Lula em 94, mais em 98 e mais em 2002 – o Arraes sugeriu a Lula que eu fosse para o ministério. Mas aí o partido indicou o ministro Amaral e eu acabei indo pra FINEP, que é um fundo muito importante. O Amaral saiu depois de um ano, entrou o Eduardo Campos, e quando ele saiu para ser deputado, mais ou menos eu era o candidato natural e foi assim que eu me tornei ministro.

José Arbex Jr - Um dos eixos de sustentação do neoliberalismo é o direito de patente, que virou um eixo de dominação cultural e intelectual dos países que produzem

tecnologia e adquirem o controle sobre o mercado mundial. Me parece que a política do governo Lula em relação ao direito de patente é terrível, não avançou grande coisa em relação aos tucanos. Se pegarmos a questão da vacina contra a Aids, o direito de quebra de patente... Então, não fica claro se o governo brasileiro é pelo direito de quebra da patente sempre que interessar a população pobre do mundo. Eu queria saber a sua opinião sobre isso. Concordo com a avaliação de que a propriedade intelectual é uma forma de dominação dos países que desenvolveram o conhecimento antes para a aplicação, mas também não sou tão radical a ponto de achar que não deva haver nenhuma proteção de propriedade intelectual. Porque se fosse, também teria que ser favorável a não

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ter propriedade intelectual de nada, direito autoral. E eu acho que deve haver alguma proteção. Em relação à propriedade intelectual da área farmacêutica, área da saúde, a questão é grave, por isso eu disse que a gente tem que dividir. Tanto que eu acho que na área da tecnologia da microeletrônica ter a proteção da propriedade intelectual durante algum tempo é uma forma de manter um certo sistema que é financiado pelos royalties daquilo, e que mantém, digamos assim, a evolução do conhecimento aplicado. Em relação à questão farmacêutica, e levando em conta a necessidade que o mundo tem, como grande parte do mundo, aí eu concordo com você que o governo avançou pouco. Agora, teve alguns avanços, como você sabe, para alguns medicamentos, para algumas vacinas, o governo tomou alguma posição. Mas isso realmente não foi uma bandeira do governo que teve outras bandeiras reconhecidas internacionalmente.

Lúcia Rodrigues - O programa de inclusão

digital é um programa prioritário do governo Lula? Que resultados o senhor pode apresentar? Nós temos resultados bons, mas, digamos assim, não tão significativos, tão amplos quanto gostaríamos de ter. Há um gráfico comparando a penetração da internet em vários países, e o que tem a maior penetração é a Suécia, onde 85% da população usa internet banda larga. E o Brasil está lá embaixo. Quero chamar a atenção disso porque com frequência o Brasil é comparado com a Suécia, até Portugal está na frente. Mas é muito diferente você fazer inclusão digital em um país que tem 800 milhões de hectares, 8 milhões e 500 mil quilômetros quadrados e que tem 190 milhões de habitantes e em Portugal que tem 20 milhões de habitantes. Mas os avanços foram grandes em algumas áreas. Em primeiro lugar, hoje o computador está acessível a uma parcela cada vez maior da população e isso é resultado de programa de governo, que foi o programa “Computador para todos”, que começou a desonerar e a incentivar determinadas atividades. Hoje compra-se computador no Brasil a um preço bastante razoável, então muita gente tem computador em casa. Há algum tempo o governo achava que o grande instrumento da inclusão digital seria a inclusão por meio das escolas públicas. Há três ou quatro anos há um programa de fazer a internet chegar a quase totalidade das escolas públicas. Isso não andou com a velocidade esperada porque resolveu-se fazer isso por meio das concessionárias de telefonia, que trocaram obrigações que tinham da lei geral de telecomunicações de colocar postos

de telefone por chegar a certo número. E elas não chegaram aonde deviam chegar. E a instalação de laboratórios de informática nas escolas públicas que está sendo patrocinada pelo Ministério da Educação está avançando, mas ainda não chegou aonde chegaria. Agora essa é uma das razões para que o governo decidisse tomar um caminho diferente para a banda larga. Uma das razões pelas quais mais gente não tem ligação de internet em casa é porque a ligação é muito cara. Então o governo resolveu que vai reativar a Telebrás. Não está decidida ainda a forma, mas praticamente o que vai acontecer é que ela vai atuar nos lugares aonde as concessionárias não vão chegar.

José Arbex Jr. - Aqui no Brasil a Aneel já

aprovou uma portaria permitindo internet pela rede elétrica. Na Venezuela isso funciona a pleno vapor. Você vai no meio da mata amazônica, se chega luz na tribo indígena eles têm conexão com a internet. Por que no Brasil isso está atrasado e não está funcionando? Eu tenho um palpite: lobby da Telefônica e das empresas de telefonia. Eu queria saber se é isso, porque o programa “Luz Para Todos” foi um sucesso, chegou no Brasil inteiro. Então, se o Brasil inteiro tem energia elétrica a pergunta é: ‘por que o Brasil inteiro não tem internet? Resposta: porque está faltando vontade política do governo para enfrentar a Telefônica e outras empresas de telefonia. Ou não? Faltou... Isso deveria ter sido feito com mais decisão há três anos. Você sabe que a Telebrás vai, inicialmente, começar a operar com as fibras que estão colocadas nas linhas de transmissão que foram colocadas pelas empresas estatais brasileiras. Isso foi feito pela Eletronet que era um empresa estatal que foi vendida a preço de banana para a AES, e quando a AES faliu, o governo quis recuperar as fibras ópticas e não conseguiu. Isso se arrastou na justiça, e finalmente ganhou-se na justiça há quatro meses. O que agora vai ser feito com a Telebrás está sendo discutido há três anos. Faltaram algumas condições. Você tem toda razão em relação ao lobby das telefônicas. É um lobby muito poderoso, elas são muito fortes, cobram uma tarifa que é a maior do mundo em telefonia celular, em internet e assim por diante. São muito fortes, tem todo um capital internacional atrás delas e o governo fez um esforço grande pelo meio do BNDES para formar uma empresa nacional mais forte, juntando a Oi com a Brasil Telecom, agora o grupo Telemar, que é um grupo razoável.

“As telefônicas têm um lobby muito poderoso, elas são muito fortes, cobram uma tarifa que é a maior do mundo em telefonia celular, em internet e assim por diante”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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José Arbex Jr. - Mas o governo Lula

ancorado em movimentos sociais, tendo um apelo extraordinário junto à população, se ele convoca uma entrevista coletiva e denuncia isso, ele arrebenta com esse lobby, não é? Por que o Lula não faz isso? Eu gostaria muito que ele fizesse isso e que desse certo, mas o país é mais complicado do que isso e você sabe. As nossas elites estão aí, os caras respaldam isso...

José Arbex Jr. - O Arraes não lutou contra

as elites a vida inteira? Lutou a vida inteira e pagou muito por isso. Lula teve a percepção numa certa altura, provavelmente ele não teria sido reeleito, ele não teria talvez passado pelo escândalo do mensalão, né?

José Arbex Jr.- Mas o senhor acha que vale a pena ser reeleito para não fazer? Eu acho que valeu a pena porque ele está fazendo muita coisa, tem muita coisa sendo feita e você sabe disso. Hamilton Octávio de Souza - Sobre essa reunião ministerial que aconteceu recentemente, eu li que uma das funções da reativação da Telebrás seria que o governo pudesse levar o serviço às populações que economicamente não interessa para as telefônicas, e também assumir todo serviço do próprio Estado, aquilo que faz parte da comunicação dos setores públicos, dos três poderes. Afinal, o governo vai assumir esse serviço dentro do setor público ou vai ficar pagando para o setor privado fazer esse serviço? É um dos pilares da ideia, o governo federal paga uma quantidade enorme de dinheiro para essas prestadoras. O sistema de telecomunicações no Brasil fatura 120 bilhões de reais por ano aproximadamente. As empresas de televisão, de radiodifusão faturam dez vezes menos, ou seja: telecomunicações é dez vezes mais e essas coisas estão convergindo. Esse grande faturamento é das empresas estrangeiras que estão aqui. Então, uma das ideias é exatamente isso, não só o governo economizar, mas ter o domínio dos meios de comunicação utilizado para os seus fins. Qualquer país que tem soberania, tem segurança nacional, tem domínio. Hamilton Octávio de Souza - Isso passou na reunião ou não? Isso aí passou na reunião, é primeira prioridade. A Telebrás vai prestar serviço pago. Para o setor público não vai ser nessa mesma conta. O Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, usa a Rede Nacional de Pesquisa, a RNP, rede que faz chegar internet de banda larguíssima a 400 entidades, todas universidades e centros de pesquisa, foi a primeira rede de internet do Brasil. Foi em 92, antes da internet ser comercial, só que o tronco, o backbone, ele é alugado da Embratel. Quando chega nas cidades, aí temos as redes metropolitanas que nós fizemos em parceria com estados e universidades. Isso está em 20 cidades atualmente. Nós então pagamos a Embramarço 2010

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tel, nós vamos pagar uma quantia menor para Telebrás que vai ser uma empresa. Ela não vai poder fazer de graça. A Telebrás vai fornecer serviço para o governo federal, estaduais e municipais que quiserem, vai chegar às escolas, hospitais e postos de saúde. Isso está no espírito central do projeto, mas, há algum tempo não pensava nisso. Mas aí foi ficando claro que vai chegar também nos domicílios. Aí chega nos domicílios com o rádio, com wimax, ficou muito mais barato, essas empresas estão ganhando muito dinheiro porque ficou muito mais barato e as tarifas continuam lá em cima.

Wagner Nabuco - O senhor acha, por

exemplo que nós vamos conseguir elevar o urânio a 40% em Aramar? Não é 40%, é 4%, e a gente já faz.

Wagner Nabuco - Nós vamos ter capacidade

e vontade de elevá-lo mais? Mais de 20... Não precisa, para gerar energia elétrica basta o urânio estar enriquecido a 4 ou 4,5%. Estamos abrindo agora para explorar o minério de urânio no Ceará. Ele tem o isótopo do urânio que é estável em grande quantidade, que é o 235, o 238 ele tem 0,3%, aí tem que fazer um processo para passar para 0,4%. Hoje nós produzimos todo o yellow cake da Bahia, mas só temos capacidade de enriquecer uma pequena fração dele porque o nosso sistema de produção de centrífugas é muito lento. Nós não fizemos até hoje uma fábrica para fazer a centrífuga. Tem as que são desenvolvidas aqui, mas elas são apenas 250, instaladas em Rezende. Precisamos de 3 mil delas para poder ter a capacidade de enriquecer toda a quantidade de urânio, mas a 4,5%.

Renato Pompeu - Na sua opinião, essa

recente decisão do governo do Irã de ir para 20% e depois para 80% é uma prova inequívoca de que ele pretende fazer bombas atômicas? Ou está simplesmente demonstrando uma capacidade de pesquisa? Pelo que a gente sabe, ele está demonstrando a capacidade de pesquisa e que tem bala na agulha, porque estão tentando fazer com o Irã a mesma coisa que fizeram com o Iraque. Eu ouvi o presidente Lula dizer isso com essas palavras ao primeiro-ministro Tony Blair há tres anos. Eu não estive com o presidente quando ele se encontrou com Barack Obama, mas ele disse: “se continuarem assim, vão fazer com o Irã o que fizeram com o Iraque”. Vão encostando contra a parede por razões diversas e no caso do Iraque o Saddam pegava aquela espingarda e falava: “Aqui não vão entrar e não sei o quê, eu tenho arma atômica”. Ele não tinha arma química, não tinha nada, mas ele ficou desafiando... Ele não tinha bala na agulha, o Irã está querendo mostrar que tem bala na agulha. Essa é a minha opinião.

Marijane Lisboa - Os movimentos sociais

consideram que a atuação da CTNBio tem deixado bastante a desejar do ponto de

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vista científico. Acabou de terminar o mandato do dr. Walter Coli, e eu gostaria de saber como o senhor se coloca diante das coisas que ele disse. Ele propôs que se anulasse uma instrução normativa que estabelece que depois de liberado algum transgênico no mercado ele deve ser monitorado posteriormente. Defende que se a CTNBio já liberou uma vez porque considera que não há riscos, então não há riscos. Qual é a sua posição? Quero começar dizendo que eu sou a favor de todos os avanços da ciência que possam ser utilizados em benefício da população desde que, como você disse, o princípio da precaução esteja norteando tudo. Não sou contra os transgênicos, eu sou contra os transgênicos ruins. A ciência trabalha com melhoramento genético há muito tempo, mas um melhoramento genético feito apenas tradicionalmente. Testa-se dez tipos de sementes diferentes, e aquela mais produtiva você pega. A transgenia permite fazer isso cientificamente. A CTNBio é exatamente uma comissão de biossegurança que por meio de análises científicas pode aprovar ou não liberações comerciais, liberações para pesquisa e assim por diante.

José Arbex Jr. - Fazendo uma pequena

recapitulação histórica, vamos lembrar como os transgênicos entraram no Brasil, pelo Rio Grande do Sul e Mato Grosso de contrabadeados, em uma operação ilegal de grandes proporções feita por uma empresa conhecida que é a Monsanto. Bem, o governo Lula colocou a Monsanto no colo: “Ah! Vocês infringiram a lei brasileira? Vocês contrabandearam soja transgênica? Tudo bem, o governo vai lhes dar um prêmio, o governo vai autorizar que a partir de hoje vocês liberem a plantação de transgênico”. Quer dizer, é o fim do mundo. Tinham que prender o executivo da Monsanto. Eu queria saber: a lei brasileira diz que todo produto transgênico tem que ter um rótulo dizendo “contém transgênico”. Eu nunca vi isso. Quer dizer, a Monsanto pode fazer o que ela quer? O governo Lula deixa a Monsanto fazer o que quiser, pode contrabandear, pode ignorar rótulo, pode ignorar lei? Eu nunca vi no mercado, eu conheço o rótulo, eu sei que no supermercado que eu vou não tem.

Marijane Lisboa - Os da Bunge foram

obrigados pela justiça, o Greenpeace pegou lá um transporte que era de soja transgênica e aí foi para a justiça e o juiz obrigou. Nós já concordamos que o país está sob a influência das multinacionais nas telecomunicações. O presidente Lula entendeu que ele não ia poder fazer tudo que ele gostaria de fazer, e por causa disso muitas pessoas que o apoiaram ficaram radicalmente contra, mudaram de partido e assim por diante. Ele percebeu que o país é muito mais complexo. Você não pega um país que tem

500 anos de história de dominação e diz: “Agora eu vou fazer o que quiser”, tendo a elite que nós temos, com tudo que ela representa. Estamos em um governo bastante realista que está, na minha visão, fazendo um grande avanço para a população como um todo, mas sem fazer bravatas com o sistema que nos domina.

Wagner Nabuco - Eu queria saber da

olimpíada de matemática. Há um programa pouco conhecido não porque nós não tentamos divulgar que é a olimpíada brasileira de matemática da escola pública. Eu acho que esse programa é o mais importante para o futuro do ensino das escolas públicas do país. Em 2004, a professora Sueli Druke e o professor César Camacho levaram para o presidente conhecer alguns alunos que eram medalhistas da olimpíada de matemática. É uma olimpíada que tem no Brasil há 40 anos, mas que praticamente só chega nas escolas privadas, nas melhores e tal. Então o presidente perguntou quantos alunos participam dessa olimpíada, e quando viu que eram 200 e tantos mil, na maioria vindos das escolas privadas, disse para fazermos uma só para as escolas públicas. Aí montaram o programa, imaginaram que ia ter uns cinco milhões de inscritos, isso em 2005. Mas se inscreveram dez milhões e 500 e desde o primeiro ano a prova é feita em três níveis. Em 2006, ela teve catorze milhões de inscritos participantes, em 2007, 17 milhões, 2008, 18 milhões e 300, e em 2009, 19 milhões e 200 mil estudantes. Isso aqui corresponde a 85% do alunato nessa faixa das escolas públicas. São alunos de 80 e tantos % das escolas públicas em 99% dos municípios brasileiros.

Otávio Nagoya - Existe um setor da comunidade científica que tem uma crítica às fundações de apoio à pesquisa. A crítica é que essas fundações, por estarem vinculadas ao sistema econômico de mercado, as pesquisas que são aprovadas para conseguir recurso também seguem essa linha e servem ao sistema capitalista. Qual é a sua opinião sobre essa crítica? No âmbito do CNPq, a maior parte, quase a totalidade dos projetos de pesquisa que são aprovados são de pesquisa básica, não de pesquisa aplicada, então eu não concordo com essa crítica. Agora, aquelas que são mais financiadas por parte dos recursos da FINEP são realmente para financiar projetos que eventualmente vão gerar um produto para competir no mercado, e o Brasil tem cada vez mais empresas nacionais que estão entrando nesse mercado globalizado. Mas eu não concordo com a crítica de que a maior parte serve aos interesses desse sistema. Otávio Nagoya - O senhor não acha que

pode ter uma ligação perigosa dentro dessa questão? De ter o financiamento e ter que mostrar a produção. Não, o sistema de financiamento de pesquisa é muito mais livre do que isso.

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Otávio Nagoya São Paulo APqC, hoje o Estado de São Paulo “é um fornecedor de mão de obra altamente especializada sem onerar quem o contrata. O Estado faz um investimento na formação do trabalhador e o mercado o encontra disponível e preparado”. A alta rotatividade entre os pesquisadores e os trabalhadores de apoio à produção científica não permite a convivência entre diferentes gerações de profissionais, impossibilitando a transmissão do conhecimento acumulado e levando ao abandono de determinada linha de pesquisa. Os últimos concursos foram realizados para recompor as aposentadorias, sem aumentar o quadro de funcionários. “Há muito mais pesquisadores se aposentando do que novos ingressantes”, analisa Laerte Machado, pesquisador do Instituto Biológico e vice-presidente da APqC. De acordo com ele, o correto seria haver uma renovação natural, “com convívio entre quem está chegando e quem está saindo. O que não ocorre por falta de concursos, de reposição e, além disso, pela questão dos baixos salários, que não atraem novos pesquisadores”.

A situação precária

dos pesquisadores Os institutos de pesquisa do Estado de São Paulo perdem profissionais, apesar da importância do setor para o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e do país.

a

ntigo lar de grandes cientistas brasileiros, os institutos públicos de pesquisa (IPP) estão sob o comando dos homens-máquina. Eles se deliciam com a modernidade tecnológica, enquanto os trabalhadores dos institutos paulistas partilham de um sentimento de abandono. Da pequena verba destinada à ciência e tecnologia, menos de 1% do PIB brasileiro, o setor de infraestrutura abocanha a maior parte, deixando os pesquisadores em situações de trabalho precárias. O Estado de São Paulo administra diretamente 18 institutos de pesquisa, vinculados às secretárias de Agricultura, Planejamento, Saúde, Meio Ambiente e Desenvolvimento. As instituições foram criadas na virada do século 19 para o 20, e protagonizaram o processo de modernização do país, principalmente na pesquisa agrícola e na saúde pública. “O departamento de Agricultura de Washington DC publicou, em 1940, uma cartilha sobre a produção de algodão no Estado de São Paulo. Uma comissão veio verificar por que o Brasil passou a exportar algodão de ótima qualidade. Eles analisaram todos os aspectos, desde o

plantio até a exportação”, relembra o pesquisador aposentado Antonio Carlos Wutker. Porém, os feitos do passado não se refletem na atual administração dos institutos. Os aparelhos modernos aguardam a chegada de novos pesquisadores, que são afugentados pelos baixos salários e falta de perspectiva nas carreiras. “O material humano é muito mais importante do que a infraestrutura. O pesquisador entra no começo da carreira e se depara com baixos salários. Mesmo tendo ótimas máquinas, com o trabalhador descontente, a produção não avança,” afirma Roseli Torres, pesquisadora do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).

Fuga de cérebros A falta de investimento no lado humano causa grandes prejuízos administrativos para os IPPs. Os pesquisadores paulistas abandonam seus laboratórios para ganhar melhores salários nos institutos federais, universidades e iniciativa privada. Os que ficam, trabalham insatisfeitos. Para Horácio Santana, presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de

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Uma reivindicação histórica da categoria é a equiparação de seus salários com os da carreira de docente universitário. Para Roseli Torres “as duas carreiras deveriam receber a mesma quantia. Nós orientamos, pesquisamos e publicamos como qualquer cientista”. A carreira de pesquisador científico foi criada em 1975 pelo governo de Paulo Edydio Martins (75-79), considerado por Wutker como o período mais favorável aos IPPs. “Quando entrei no IAC, em 1958, não tinha carreira, esperavam alguém morrer pra abrir uma vaga. Alguns colegas tinham 20 anos de trabalho sem conseguir uma promoção”, conta o ex-pesquisador. Até 2009 os pesquisadores tiveram seus salários equiparados com os docentes em poucas ocasiões. A reivindicação foi transformada em lei, com a aprovação da LC nº 727, em 1993, que equipara o salário de pesquisador “às carreiras congêneres do Estado”. Porém, mesmo no papel, a lei não foi cumprida. Em 1999, a lei foi revista e aprovada como LC nº 859, especificando a equivalência com “docentes das universidades estaduais”, novamente sem ser posta em prática. Grupos de 40 a 50 pesquisadores entraram separadamente na Justiça exigindo o cumprimento da lei. Alguns ganharam, outros não. “Às vezes, um colega que trabalha no mesmo laboratório e faz o mesmo serviço ganha quase o dobro do que o outro. Isso gera um mal-estar na categoria”, avalia Horácio Santana, pesquisador da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen). No mês de julho, a APqC enviou uma proposta de ementa ao governador José Serra, pedindo a equivalência dos salários de todos os pesquisadores com os docentes para corrigir a diferença salarial entre eles. A disparidade salarial com os docentes é elevada. No primeiro nível, o pesquisador ganha R$ 2.700 e o docente R$3.240. No sexto nível, a diferença chega a R$ 6.400 contra R$ 9.642. março 2010

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IlustraçõES: Gil Brito

Mesmo trabalho, mesmo salário

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Ao passar no concurso, o pesquisador ingressa na carreira no nível 1 e somente após três anos pode pleitear uma promoção. Para ser aprovado, expõe toda sua produção para uma banca, eleita pela categoria, que faz a avaliação. Somente 20% dos concorrentes são contemplados. Para alcançar o último nível, o pesquisador deve ter, no mínimo, 20 anos de carreira.

Falta de renovação Os trabalhadores de apoio são aqueles que dão suporte à pesquisa, realizam trabalhos de campo, acompanham resultados e são fundamentais para o desenvolvimento dos projetos. São também os trabalhadores mais precarizados nos IPPs. Roseli Torres observa que a falta de renovação cria empecilhos dentro dos laboratórios. “Precisamos de trabalhadores qualificados para o apoio à pesquisa, mas fica complicado com esses salários. Quem, com um nível superior, vai aceitar ganhar 700 reais?”. O sistema de remuneração baseia-se em salário base e gratificações. Somadas, as gratificações representam um valor superior ao do salário. “Um trabalhador de apoio à pesquisa não consegue financiar uma casa, pois é o seu salário base que consta na folha de pagamento”, diz Laerte Machado. A aposentadoria e os quinquênios também são baseados exclusivamente no salário base. Além disso, a gratificação pode ser destituída a qualquer momento. “O fato é que se o Governo tem verba para pagar o salário base mais todas as gratificações e outras coisas, então ele tem o dinheiro total. Por que não pagar tudo como salário? Os governos se aproveitam desse fato político para ter maior inserção em determinada categoria, criando um sistema de gratificações e benefícios instantâneos, mas que não garantem os direitos trabalhistas”, acredita Horácio Santana. O surgimento de serviços terceirizados dentro dos IPPs também preocupa os pesquisadores, pois a terceirização não atende às suas necessidades. “Não há diálogo com o dono da empresa, que pode demitir um funcionário e contratar outro sem experiência. Até para os serviços básicos é importante a identificação do funcionário com a instituição”, afirma o diretor da APqC. Para Horácio Santana, a questão que causa mais perplexidade “é que se o Governo quisesse resolver a situação dos trabalhadores gastaria anualmente menos de 1% da arrecadação de ICMS do Estado. Para resolver também a situação dos trabalhadores de apoio, não chegaria a 3% do orçamento anual de ICMS”.

Modernização e demissões O Instituto de Pesquisas Tecnológicas, apesar de vinculado à secretaria de Desenvolvimento, possui um modelo jurídico diferente das outras 18 IPPs. O IPT é uma sociedade anônima e sua administração se assemelha às empresas estatais, como Sabesp, Metrô e CESP. Até 1974, o IPT respondia diretamente ao governo do Estado. Após a mudança, um conselho de administração nomeia

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a diretoria executiva do instituto. Com a transformação do modelo jurídico, o direito do trabalhador passou a ser regido pela CLT. O IPT receberá em seus laboratórios a mais alta tecnologia devido ao projeto “moderniza”, que destina R$ 150 milhões de verbas federais e estaduais ao instituto para celebrar seus 110 anos. Porém, novamente a tecnologia supera o ser humano: a verba somente poderá ser usada em infraestrutura. “Apesar de ser importante, esse dinheiro gerou uma revolta nos trabalhadores do IPT porque a maioria tem uma grande defasagem em salário”, comenta Geraldo Antunes, diretor da Associação dos Trabalhadores do IPT. Segundo ele, vários funcionários trabalham no instituto há 30 anos, mas, apesar da experiência, seus salários continuam os mesmos há 15 anos, apenas com correções da inflação. “Ele se especializou, fez cursos, mestrado, mas tem o mesmo serviço e o mesmo salário.” Em novembro de 2009, 19 trabalhadores receberam a notícia de demissão. Parte deles foi pega de surpresa pelo aviso, a outra já planejava deixar o instituto. O argumento das chefias varia entre a falta de recursos e a falta de adequação dos funcionários com o novo projeto do IPT. “Temos o caso de uma diretora que pediu para sua auxiliar de laboratório limpar a copa. A funcionária afirmou que essa não era sua tarefa e, como retaliação ela foi demitida. Existem diversas suspeitas de assédio moral e até de racismo”, afirma o diretor da ASSIPT. As demissões ocorrem em um contexto delicado. A partir de 1994, o governador Mário Covas traçou um plano de não dependência para o IPT, que previa que o instituto não traria nenhuma despesa para o governo. Na época, os custos do IPT eram divididos em 80% de gastos para o governo estadual e 20% provenientes de recursos próprios. Atualmente, esse número passou para 60% de autofinanciamento e 40% de financiamentos governamentais. “A meta do governo neoliberal era alcançar 100%, mas isso se mostrou impossível”, conclui Geraldo. Geraldo Antunes relembra um caso ocorrido em 2007, quando um grupo de pesquisadores foi dispensado após sofrer humilhações públicas. Os pesquisadores entraram na justiça contra o IPT. “Foi a primeira vitória de uma ação trabalhista de assédio moral contra uma empresa estatal.”

Até mesmo a ciência pura não surge necessariamente da curiosidade dos pesquisadores, toda pesquisa sofre interferência da sociedade em que é produzida. Por exemplo, foi durante a revolução industrial que as pesquisas do setor energético foram desenvolvidas. “Para ser aceita, uma pesquisa precisa ser publicada em revistas de pesquisa. Grande parte dessas revistas também incorpora essa vinculação com a estrutura de produção”, critica Ildo Sauer. Segundo o pesquisador, a humanidade já possui conhecimento suficiente para suprir grande parte de seus problemas sociais, o que falta é a verdadeira intenção de resolvê-los. “Existe tecnologia para alimentar todos, mas as estatísticas mostram cerca de 1 bilhão de famintos contrapondo 1 bilhão de obesos. O problema é que o alimento também virou uma mercadoria do sistema capitalista e seu objetivo é circular e gerar lucro, aqueles que não têm como comprar, não se alimentam”, analisa. Atualmente, os pesquisadores dependem de verbas de instituições de fomento à pesquisa, como FAPESP e CNPq para realizarem suas pesquisas. Para os diretores da APqC isso não se caracteriza como um problema, porém “os institutos não podem depender dessas parcerias para sobreviver e funcionar”. De acordo com Sauer, para receber financiamento, o projeto de pesquisa precisa ser considerado relevante. No entanto, “o que é relevante para um setor não é necessariamente relevante para todos. São raros os financiamentos para pesquisa de biocombustíveis na escala da agricultura familiar. Existem algumas exceções, mas esse é o efeito predominante”. Otávio Nagoya é jornalista. Colaborou Fábio Nassif.

Pesquisa de mercado Mesmo diante desse quadro desolador, tanto os trabalhadores quanto os governantes consideram que o progresso da nação depende da pesquisa realizada nas instituições e veem a ciência e tecnologia como um setor estratégico para o Brasil. O pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia, Ildo Sauer, possui uma visão diferenciada sobre a questão. “A pesquisa segue a lógica do sistema econômico atual, que se define pela necessidade de consumo, incentivo à produção e acúmulo de lucro, que é apropriado por quem controla a produção.”

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Gershon Knispel

a

guerra entre o Império Russo e o Império Otomano, entre 1914 e 1917, no Cáucaso, está retratada no talvez mais popular conto judaico: os fiscais do tzar chegaram até as cidadezinhas judaicas mais remotas, procurando retrucar jovens, para substituir as baixas em grande número que o Exército russo estava sofrendo. Quando chegaram na casa de uma viúva judaica, encontraram o filho dela escondido no fundo do porão. Ela se despediu dele dizendo: “Não faça esforço demais, meu filho – mate um turco a cada dia e descanse”. Ele respondeu: “Mas mãe, e se um deles me matar?”. Ela replicou, surpresa: “Por que, meu filho, se você não fez nenhum mal?”. Esse conto se encarnou como realidade diante de meus olhos. Não passou um ano do ataque de Israel à Faixa de Gaza e os meios de comunicação informaram: “Dois altos oficiais israelenses foram repreendidos pelo comando do Exército por aprovar o uso de bombas incendiárias contra uma área densamente habitada durante a sua ofensiva militar na Faixa de Gaza, no início do ano passado. A informação, até agora desconhecida, consta na longa e detalhada resposta do governo israelense ao Relatório Goldstone, no qual a comissão da ONU que investigou a operação militar acusa Israel de crimes de guerra, entre eles o uso de munição proibida. A reprimenda recebida pelos dois oficiais representa a primeira admissão por parte de Israel de que o uso irregular de artilharia colocou civis em risco durante os ataques na Faixa de Gaza. Até agora a posição israelense vinha sendo

a de negar com veemência as alegações do Relatório Godstone, o qual acusa de má fé”. Enfim, a mentira tem pernas curtas. Continua a informação: “Os nomes dos oficiais não são mencionados no documento, mas segundo o jornal ‘Haaretz’ eles são o coronel Ilan Maka e o general Eyal Eisenberg, esse último o comandante das forças israelenses em Gaza durante a operação”. Parecia, como foi dito acima, que a mentira tinha pernas curtas. A grande surpresa foi no fim da notícia: “Exército nega – A revelação causou surpresa e irritação no Exército israelense, além de novos desmentidos. O comando militar negou que os dois oficiais tenham sido punidos ou mesmo repreendidos, como consta na resposta oficial de Israel”. Será que somos testemunhas do golpe de morte contra a “democracia” de Israel, que desde o início da ocupação, em 1967, se transforma cada vez mais de uma farsa em uma piada amarga? Será que o Exército se tornou uma espécie de Estado autônomo dentro do Estado legítimo, Estado autônomo que transforma as decisões do Estado legítimo em espantalhos? Quando me sinto deprimido, costumo buscar a ajuda do Livro dos Livros. E um capítulo pode me restabelecer o equilíbrio. Ainda estou ouvindo, como um tambor ritmado, o trecho que meu colega, o escritor David Grossman, citou quando foi convidado a abrir a festa oficial da independência, na praça Rabin, há dois anos, alguns meses depois que ele perdeu o filho na invasão do Líbano. Ele chocou todo mundo, as 500 mil pessoas presentes,

ao recitar: “Nestes dias de hoje, não há rei em Israel”. A multidão ficou de cabelos em pé e ministros, em protesto, saíram da tribuna oficial. Procurando de novo essa frase, eu abri Juízes, 18. Lá se conta que criminosos da tribo de Benjamin bateram no meio da noite às portas da casa de um velho, em Gabaa, que dera abrigo a um casal de estrangeiros que ia para Belém, nas montanhas de Efraim. Os criminosos exigiram que a mulher do casal lhes fosse entregue, e a estupraram e torturaram durante toda a madrugada. De manhã, a encontraram ao pé da porta, sem vida. O viúvo colocou o cadáver em cima de um burro e, quando chegou em casa, cortou o cadáver em doze pedaços e enviou cada um a uma das tribos de Israel, em protesto contra o crime hediondo. Em reação, se reuniram os combatentes das Doze Tribos e, proclamando que desde o êxodo do Egito não ocorria um crime tão horrível, decidiram que era preciso desenraizar esse mal entre nós. Chegaram até Gabaa, exigindo que a tribo de Benjamin entregasse os assassinos para serem executados. Diante da recusa, estourou uma guerra que liquidou com a maioria da tribo de Benjamin. Quando eu refletia, “tudo isso por causa de uma alma inocente”, me lembrei de um formidável trecho da Bíblia: “Quem salva uma alma salvou na verdade o mundo inteiro”. Nos nossos rincões, a legitimação de crimes de guerra continua. Até quando continuaremos esperando? Gershon Knispel é artista plástico. março 2010

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Ilustração: Gershon Knispel

A legitimação

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“Enchente

não é problema natural, é social”

Alagamentos em São Paulo provocam mortes e prejuízos para as famílias pobres; moradores protestam contra descaso e interesses ocultos dos governos municipal e estadual. Texto: Julio Delmanto e Otávio Nagoya. Foto: Pedro Nogueira.

n

o dia 28 de outubro de 2009 o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) comunicou a diversos órgãos públicos municipais, estaduais e federais a “possibilidade de haver enchentes catastróficas nos meses de dezembro a março”, em texto assinado por Gilberto Câmara. Tudo indica que as providências não foram tomadas. A negligência do poder público diante do comunicado é responsável por cerca de 70 mortes no Estado de São Paulo, a grande maioria nas regiões periféricas. Além disso, famílias perderam suas casas, móveis, aparelhos domésticos e sua dignidade. Neste verão, São Paulo enfrentou 47 dias ininterruptos de enxurradas, causando um enorme caos na cidade. Os paulistanos sofreram dificuldades com o transporte e riscos à saúde. Porém, a parcela mais prejudicada foi a população pobre, instalada em regiões carentes de infraestrutura. Alguns bairros, como o Jardim Romano e o Jardim Pantanal, ficaram mais de dois meses debaixo de água, em um cenário em que às vezes mal se distingue o que é

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córrego do que é rua. Para Anderson Laureano, morador da Vila Aimoré, na região do Jardim Pantanal, “o povo está revoltado, ao Deus-dará, sem solução e sem uma satisfação das autoridades”. Conscientes de que “as enchentes são um problema social e não natural”, como explica a geógrafa Odete Seabra, as populações afetadas pelas enchentes não aceitam mais o discurso oficial, repercutido pela mídia coorporativa, que responsabiliza os céus pelo caos que atingiu as regiões pobres. Uma série de manifestações e articulações mobilizou vários bairros da cidade, acarretando inclusive em uma audiência com o prefeito. Como resume Anderson Laureano, “nós não vamos ficar quietos de jeito maneira, vamos é fazer mais barulho, ir para cima deles”. A referência ao abandono e ao desinteresse das autoridades é praticamente unânime entre os moradores dessas regiões. Ao contrário das regiões de classe média e alta da cidade, os jardins Pantanal e Romano já haviam vivido algumas enchentes no passado, mas nenhuma chegou nem perto da mag-

nitude da atual situação. Durante dias a coleta de lixo ficou praticamente inexistente, as pessoas adoeceram e morreram por conta da água contaminada. Grande parte dos moradores perdeu os seus pertences e, no máximo, recebeu em troca uma cesta básica e um colchonete como “ajuda” para superar a situação.

As causas “A explicação que as autoridades estão dando é que quem está fazendo a enchente são os próprios moradores”, relata o deputado Federal Paulo Teixeira (PT), sobre a tentativa da prefeitura em culpar a população pelas enchentes, apontando a ocupação irregular da várzea do rio Tietê como causa dos problemas. Odete Seabra lembra que a ocupação dessas áreas em primeiro lugar não é feita por opção dos moradores, e sim pelas condições econômicas à quais estão submetidos e, em segundo, que existe tecnologia para ser feita de maneira sustentável, “só precisa de investimento. Não pode é culpar quem não tem onde morar”.

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Seabra insere os atuais problemas num processo mais antigo e amplo, que há muitos anos é responsável pela expulsão dos pobres do tecido urbano de São Paulo, por conta de interesses econômicos, como os da especulação imobiliária. Segundo ela, ao menos 20% da população paulistana vive em favelas. Para a urbanista Mariana Fix, doutoranda em economia na Unicamp, “o problema é visto de outro ângulo quando observamos que é justamente nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que a população trabalhadora consegue se instalar, assim, as ocupações ilegais, como as favelas, são largamente toleradas quando não interferem nos circuitos centrais de realização do lucro imobiliário”. Para Paulo Texeira, “a prefeitura não está trabalhando corretamente, ela está dando cheque aluguel de 300 reais e cheque despejo pras pessoas irem embora, mas não está respeitando o valor da casa das pessoas”. “Cheque aluguel” – 300 reais mensais por seis meses antes que haja um suposto realocamento definitivo das famílias em uma unidade habitacional – e dinheiro para o despejo, que varia entre 1800 e 3 mil reais, são as únicas políticas da prefeitura para lidar com o problema, ignorando a possibilidade de oferecer a essas famílias condições dignas em seus próprios bairros e mesmo a possibilidade de indenizar com justiça tudo que foi perdido com as águas. “O pessoal tá revoltado, e o prefeito tenta ganhar os moradores com esse negócio de vale aluguel”, afirma Sandoval de Farias, do Jardim Romano. Você tem seu barraco, sua casinha mais ou menos, aí vai morar de aluguel e depois derrubam sua casa, você vai morar aonde depois dos seis meses?”, critica Farias. Aqueles que concordam com o “cheque aluguel” passam a receber os trezentos reais e têm que buscar uma nova casa sozinhos, uma vez que a antiga é imediatamente demolida. Anderson Laureano aponta ainda outro aspecto da proposta: desmobilizar os que estão organizados reivindicando seus direitos. Identificado como liderança, recebeu a oferta de um apartamento em Itaquaquecetuba, município localizado a cerca de 50 km do centro da capital. “Me ofereceram esse apartamento como um cala-boca, mas a gente continua lutando, independentemente disso”, afirma, convicto.

Segundas intenções Nos casos específicos das inundações dos jardins Pantanal e Romano há indícios de que a manutenção do alagamento é fruto não da natureza, mas de uma opção política dos governos estadual e municipal, interessados na desocupação da área para construção do Parque Várzeas do Tietê, financiado por órgãos internacionais e apontado como “o maior parque linear do mundo”. O fato levanta a hipótese de que alguns alagamentos não tenham sido tão acidentais e inevitáveis quanto José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM) fazem parecer. O rio Tietê é permeado por uma série de usinas elétricas e barragens, que controlam seu fluxo. A abertura ou fechamento de uma barragem influencia o nível do rio em diversas outras regiões. Em

entrevista ao portal UOL, o engenheiro João Sérgio, responsável pela barragem da Penha, afirmou que a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia) determinou, no dia 8 de dezembro, o fechamento de uma das barragens do rio, com o objetivo de evitar alagamentos na marginal Tietê, o que complicaria o trânsito na cidade. No entanto, essa opção acarretaria no alagamento consciente de bairros como o Romano e o Pantanal. Segundo Hamilton Souza, geógrafo e morador do Jardim Romano, “foi preferido fazer isso para não atrasar as obras da marginal. Escolheram alagar os bairros, penalizando a população”. Ele afirma que “é difícil acreditar que pessoas tiveram coragem de fazer isso de propósito, porque por serem técnicos eles deveriam saber quais são as consequências”. Muitos moradores acreditam que o ocorrido não é fruto de descuido, mas de atuação criminosa do governo, que se aproveitou da enchente para expulsar as pessoas da região. “Isso tudo faz parte de um programa do Estado de fazer o dito maior parque linear do mundo”, conta Alexandre Ferreira, morador do Jardim Pantanal. “Na nossa avaliação, a prefeitura está fechando as comportas pra alagar e forçar as famílias a saírem e facilitar o trabalho de implantação do parque”, finaliza. Bruno Miragaia, da Defensoria Pública conta que o poder público afirmou que o fechamento da comporta da Penha não gera, por si só, as enchentes. Porém o advogado acredita que o fato, com o assoreamento do rio, pode ser uma das principais causas. “O objetivo do poder público é a retirada das casas na área de construção do parque, com ou sem água, só que essa remoção viola todo um sistema jurídico”, constata Miragaia.

nidade para pensarem em maneiras de superar o problema. A moradora Marta Galante acredita ser fundamental que os moradores atuem coletivamente: “aqui está crescendo o movimento, daqui a pouco não vai mais caber aqui na igreja. Quando entrou a água na minha casa eu olhei pra cima e falei meu Deus, quem vai ajudar nós? Estamos abandonados, ainda bem que existe o movimento aqui, se organizando”. Os moradores organizados convocaram um ato unificado em frente à Prefeitura de São Paulo no dia 8 de fevereiro. Cerca de 500 pessoas protestavam, cobrando providências do prefeito Gilberto Kassab, que não estava presente, segundo sua assessoria. Apesar do caráter pacífico do ato, com participação de idosos e crianças que tiveram seus lares alagados, a PM agrediu os manifestantes com empurrões e spray de pimenta. Durante o ato, uma comissão entrou na prefeitura para a negociação. Uma nova reunião foi marcada, dessa vez com a presença de Kassab. Na sexta-feira, dia 12, cerca de 26 representantes das comunidades e oito parlamentares se encontraram com o prefeito e sua equipe. Na avaliação do MLB (Movimento de Lutas nos Bairros, Comunidades e Favelas) a reunião não trará benefícios para as comunidades atingidas. Os moradores expuseram suas condições e foram respondidos com supostas realizações da prefeitura. O único encaminhamento da reunião, que durou seis horas, foi a criação, a ser publicada no Diário Oficial, de uma comissão integrada por responsáveis das comunidades para acompanhar o trabalho da prefeitura. A imediata paralisação nas derrubadas das casas, pauta principal dos movimentos, não foi atendida.

Revolta popular

Mercado imobiliário

Os moradores de regiões afetadas por enchentes se rebelaram contra o descaso do poder público nos primeiros meses de 2010. Diversas manifestações espontâneas ocorreram pela cidade de São Paulo. Moradores atearam fogo nos restos de móveis destruídos pelas águas, fechando avenidas e ruas. A maior parte das ações ocorreu na zona leste, região mais afetada, porém foram registradas revoltas populares nas zonas norte e sul. A reação da polícia foi a mesma em todas ocasiões: repressão violenta contra a população. Para dispersar as manifestações, a PM usou balas de borracha e bombas, além de spray de pimenta e cassetete. Os manifestantes não se intimidaram, respondendo as agressões com pedras e fogos de artifício. “Fizemos três manifestações na região do Pantanal. Na primeira nem conseguimos fechar a avenida, logo que fomos queimar os móveis a polícia reprimiu imediatamente. Na outra, umas 80 pessoas fecharam uma avenida por umas duas horas. Na terceira, fechamos somente por alguns minutos e a polícia apareceu, dois foram presos e liberados no mesmo dia”, relembra Alexandre Ferreira. As manifestações espontâneas e enfrentamento com a polícia mostraram aos moradores a necessidade real de se organizar. Mulheres, homens, crianças e idosos da Vila Aimoré e bairros próximos se reúnem toda semana na igreja da comu-

“Vai chegar março e vai chover menos, aí não se fala mais nisso. É o que o poder público espera para remover os habitantes das regiões alagadas”, aponta Odete Seabra, que conclui: “O governo está aproveitando as enchentes para remover essa população, isso é mais um passo no processo de remoção dos pobres”. Num momento em que se tornam cada vez mais explícitas as íntimas relações entre a prefeitura de Kassab e os interesses imobiliários, a vida de pessoas é encarada apenas como um obstáculo ao processo de acumulação. Mariana Fix diz que o poder público aposta na “criação de diferenças” que só favorecem o mercado imobiliário. “Quais os motivos de um terreno valer muitas vezes mais do que outro, em outra localização? Geralmente não são os investimentos feitos pelo proprietário do lote. Isso é obtido graças à concentração de investimentos públicos e privados”, define a urbanista, que sintetiza: “a riqueza social é apropriada por poucos em um processo que costuma receber o nome de especulação imobiliária. Enquanto as elites procuram puxar para perto de si os empregos e serviços, empurram os mais pobres para regiões desprovidas de infraestrutura”. Julio Delmanto e Otávio Nagoya são jornalistas. Colaborou o jornalista Pedro Nogueira.

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entrevista Boaventura de Sousa Santos

“A esquerda tem o poder político,

mas a direita continua com o poder econômico” Por Tatiana Merlino. Foto Divulgação.

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os últimos dez anos, a América Latina se transformou na vanguarda da luta anti-imperialista: “foi o continente onde o socialismo do século 21 entrou na agenda política”. A análise é do intelectual português Boaventura de Sousa Santos, que vê grandes avanços no domínio político e “alguns avanços sociais” durante a década passada no continente latinoamericano. No entanto, ele afirma estar receoso com início do novo decênio: “vejo sinais perturbadores”, diz, referindo-se à recente derrota eleitoral da “esquerda moderada” no Chile e ao crescimento da direita na Venezuela. Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e professor titular da Universidade de Coimbra, em Portugal, Boaventura é considerado um dos principais intelectuais da língua portuguesa na área de ciências sociais. Em conversa com a Caros Amigos, o português falou sobre a crise do capitalismo, o papel da China no novo cenário político-econômico mundial, as propostas de integração da América Latino, e criticou o primeiro ano do governo de Obama: “Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra”.

Diferentemente do que muitos analistas imaginavam, a crise financeira mundial não resultou no colapso do capitalismo. Como o senhor vê a situação daqui para a frente? O que podemos esperar? Boaventura de Sousa Santos – Essa situação mostra duas coisas: uma, que o pensamento crítico e de esquerda deveria fazer uma moratória de uma ideia que anda sempre presente, que é a crise final do capitalismo. Quantas crises finais já vimos, quantas foram anunciadas? Meus amigos Immanuel Wallerstein e David Harvey já estão falando em crise final. É evidente que haverá um fim, mas é muito difícil imaginá-lo agora. Hoje, o capitalismo não é

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um modo de produção, e sim um modo de civilização. Temos hábitos que não se imagina que possam existir fora da sociedade capitalista. Portanto, essa é uma luta por uma nova hegemonia, uma nova cultura. São necessárias transformações civilizacionais, e é por meio de uma luta de civilização que o capitalismo vai, eventualmente, cair. Mas não será já. Por exemplo, a crise financeira mostrou exatamente a capacidade de fôlego e de renovação interna que o capitalismo tem. Ele não tem princípios – só tem um, o lucro. Por isso que o capitalismo é, por essência, antidemocrático. Ele tolera a democracia enquanto ela for irrelevante para a proteção dos seus interesses. No momento em que ela ameaçar o desenvolvimento dos seus interesses, o capitalismo pode se transformar em anti-democrático.

Mas o fatos dos bancos terem recorrido ao Estado não muda o cenário do capitalismo mundial? A partir de uma leitura marxista de Estado não há nenhuma surpresa. O Estado está aí para segurar o capital, e obviamente o Estado americano sustentou o capital financeiro. É aí que podemos discutir em que fase do capitalismo estamos. Nesse ponto eu concordo com os meus colegas. Acho que estamos numa fase particularmente perdedora do capitalismo. E, historicamente, uma certa derrocada do capitalismo acontece fundamentalmente nos momentos em que o capital financeiro começa a dominar o capital produtivo. Foi assim no declínio da Inglaterra, e hoje cremos que pode vir a dar-se a crise desse sistema. A palavra mais demonizada dos últimos tempos foi a “nacionalização”. No entanto, os homens de Wall Street não hesitaram em aceitar a nacionalização da grande empresa de seguros A&G e de alguns bancos. Foram salvos exatamente pelo Estado. Ou seja, não há princípios, há resultados, há lucros. Essa crise não foi superada, pois, agora, foi aparentemente resolvida pelo capital financeiro. O presidente Obama declara que tem que haver uma regulação do capital financeiro porque a situação não é admissível para os cidadãos. Isso, mesmo numa democracia tão limitada como a norte-americana, em que tantos trilhões de dólares foram injetados no sistema financeiro para obter lucros fabulosos e se distribuir bônus e subsídios aos seus executivos, como faziam antes. Então, nada mudou. Essa é a primeira razão para mostrarmos que temos que ter uma certa prudência quando declararmos as fases finais do capitalismo. Temos que continuar a lutar, mas sabendo que esse é um sistema que tem uma capacidade histórica de se renovar. A segunda razão pela qual nada mudou é que a esquerda nas duas últimas décadas comprou as teses neoliberais. Aquela esquerda que tem a pretensão de chegar ao governo em muitos países – com exceção de alguns países do con-

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tinente, como Equador, Bolívia ou Venezuela – acabou por aceitar que o mercado é um princípio de eficiência fundamental, que é melhor que o Estado, que a desregulação é importante, que a iniciativa privada é importante. Ou seja, a esquerda ficou desarmada.

Como o senhor vê o papel da China nessa nova conjuntura político-econômica? Ela tem potencial para redefinir a geopolítica mundial? Tem, sim, e estamos a falar de mais de um quinto da população mundial, com uma parcela significativa da humanidade. Esse país tem uma grande capacidade de ser uma força internacional. Ao contrário dos países ocidentais, injetou dinheiro na economia produtiva e, portanto, é o primeiro país a sair da crise. Com um crescimento que, calcula-se, será de 9% neste ano. Entre suas limitações está a disjunção entre o sistema político e econômico. É um sistema do lucro, do egoísmo, governado por um partido único autoritário que tem outras lógicas de funcionamento. Por quanto tempo essa disjunção vai existir? A China vai ser uma influência boa e má. Boa no sentido de moderar os instintos imperialistas dos Estados Unidos. Mas isso não é garantia que não possa vir a prejudicar outros interesses da humanidade. Quando Barack Obama ganhou as eleições presidenciais, o senhor escreveu um artigo falando do valor simbólico da vitória. Passado um ano de governo, recém-completado, qual é o balanço que o senhor faz, tanto da política interna quanto externa? Nesse artigo eu já mostrava alguma distância em relação ao Obama. É curioso que fui talvez uma das primeiras pessoas a escrever colunas internacionais que não “embandeiraram arco”, como a gente diz em Portugal, com a eleição de Obama. É claro que simbolicamente há um poder enorme, porque, não ele, mas sua mulher, é descendente de escravos, e, assim, entra na Casa Branca uma descendente dos escravos que construíram a mesma Casa Branca. E isso é de um valor simbólico notável, do mesmo modo que é chegar um operário ao governo no Brasil. Mas um ano depois, o que vemos é que, por mais inteligente que seja um homem – e ele é o melhor aluno de Harvard até hoje –, por mais que ele tenha uma capacidade retórica impressionante, quando chega ao poder fica totalmente enredado a esse poder. Ao fim desse primeiro ano de mandato só temos desilusões. De fato, não há nada de positivo. Quando da crise financeira, o Obama ainda era candidato e o vi na televisão rodeado pelos grandes homens do Goldman Sachs [um dos

“A crise financeira mostrou a capacidade de renovação interna que o capitalismo tem” maiores bancos de investimento do mundo], que são hoje seus consultores. Portanto, ainda como candidato ele deu sinais de que não ia mudar a política do país. Mas foi pior do que aquilo que se esperava, na medida em que ele tinha um perfil de luta contra a guerra. Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra. O Obama também tem a sua. E esta, todavia, é quiçá mais perigosa que a guerra do Bush contra o Iraque. Porque é uma guerra no Afeganistão, onde historicamente ninguém ganha. E é uma guerra que se estende a um país que antes era amigo, o Paquistão, que está a ser desagregado devido à influencia dos EUA. Portanto, a desilusão no campo da guerra é total. A segunda desilusão é o comportamento em relação à América Latina. Não é desilusão porque eu não estava iludido, mas é evidente que muita gente ficou, porque Obama veio com um discurso completamente distinto, de estender a mão aos colegas latino-americanos. Mas a verdade é que a Quarta Frota continua e vieram as sete bases militares na Colômbia, que não têm nada a ver com a droga, nem sequer com a guerrilha. Elas estão orientadas basicamente para a biodiversidade desse continente, área estratégica para os Estados Unidos. Portanto, não pode ocorrer nada nesse continente que ponha em risco os seus interesses estratégicos ou o seu acesso aos recursos naturais.

E em relação ao Haiti e à militarização da ajuda humanitária por lá? Evidentemente, essa é uma das vergonhas porque é a mais recente de todas. Antes dessa, houve Honduras. Depois dos Estados Unidos terem dado a ideia de que estavam do lado democrático, falou mais alto a necessidade de manter as bases em Honduras, e, portanto, acabaram por ceder ao golpe hondurenho. O Haiti é um caso patético de emprego de forças de intervenção. O último episódio ocorreu em 2004, com a saída do Aristide [Jean-Bertrand Aristide, que sofreu um golpe de Estado apoiado por EUA e França]. Depois, veio essa força internacional em que os brasileiros se meteram e que não reconheço como uma força de estabilização de um país, mas sim como uma força de liquidação de um país. Para os EUA, o Haiti é uma zona de segurança onde nada que ponha os seus interesses em jogo pode ocorrer. Depois do terremoto eles privilegiam a segurança, as forças militares e só apoiam as pessoas que estão em áreas de segurança.

“Historicamente, uma certa derrocada do capitalismo acontece fundamentalmente nos momentos em que o capital financeiro começa a dominar o capital produtivo” Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Como o senhor vê o momento político da América Latina? O momento político da década passada foi exultante. Temos um lado mais trágico e antidemocrático, dos que tentam liquidar os avanços dessa década por meio da criminalização dos movimentos. É o caso do MST no Brasil, dos Mapuche no Chile. Mas tivemos uma década gloriosa. Foi um momento em que esse continente se transformou na vanguarda da luta anti-imperialista. Onde se fala em anti-imperialismo hoje? Em nenhuma parte do mundo, senão na América Latina. Foi também o continente onde o socialismo do século 21 entrou na agenda política. Uma palavra que para muita gente tinha sido abandonada. É uma década de altos avanços no domínio político e alguns avanços no domínio social. Eu não sou daqueles que embarcam na ideia de que já estamos no socialismo, porque já passei por muitas experiências, já vi o socialismo ali na esquina e depois não era. Portanto, também não acredito que seja agora. No domínio político, houve transformações. Mas, no econômico, elas são muito mais limitadas. Portanto, podemos dizer que a esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. Há tentativas de desestabilização, como houve na Bolívia, no Equador e como vai haver na Venezuela. Eu acho que a Venezuela pode, em breve, passar por um problema grave que vai exigir toda a solidariedade internacional, e solidariedade do Brasil, que é uma potência fundamental nesse continente. Por outro lado, firmaram-se formas de integração regional que são significativas. O Brasil fez alguns movimentos interessantes e importantes. Pelo menos, ajudou a tornar claro para o continente que a América Latina não era o quintal dos Estados Unidos. Por exemplo, a postura em relação a Honduras, em relação às bases na Colômbia, o apoio ao Chávez. Claro que o Brasil não está envolvido a fundo nas formas de integração regional que tenham sentido anticapitalista. Em relação ao Banco do Sul, o Brasil tem marcado passo. Em relação à Unasul, a mesma coisa. E o país nem faz parte de iniciativas como Petrosul e Alba. Mas essa foi uma década da qual os latino-americanos devem estar orgulhosos. Obviamente, não estou tão seguro que a próxima década seja tão gloriosa quanto essa. Simbolicamente, a vemos começar com a derrota de uma certa esquerda muito moderada no Chile. Além disso, não sabemos o que vai acontecer com o Brasil nas próximas eleições, nem o que vai acontecer na Venezuela. Então o senhor acha que corremos o risco de dar uma guinada para a direita com as eleições no Chile, Venezuela, Argentina e Brasil? Pode ser. O que eu vejo são sinais perturbamarço 2010

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dores. No continente, há a continuidade de certas tradições antidemocráticas e autoritárias: os jagunços, as milícias privadas, o paramilitarismo (que está aumentando e que espalha terror nas comunidades rurais, onde estão os recursos naturais, a água, a terra, a biodiversidade, o petróleo e o gás natural). E não vejo que os partidos progressistas estejam a dar muita atenção a isso. O paramilitarismo é capaz de ser uma novidade para muita gente, até de esquerda.

O senhor pode falar sobre os três processos de transição política que o senhor diz que estão em curso na América Latina? São três processos sobrepostos, que não estão igualmente distribuídos no continente, mas que estão presentes em muitas partes. Primeiro, é aquele que de alguma maneira mais se estudou no continente, que é a transição da ditadura à democracia. Toda a literatura da ciência política sobre transição trata, normalmente, sobre a transição da ditadura para a democracia. Justiça de transição, justiça transicional etc. Ela é muito importante, e muita gente pensa que ela está superada, mas não está. Vimos o caso da Colômbia, que nunca teve uma ditadura, ao contrário de outros países, mas viveu estados de sítio em sucessão e que, hoje, tem paramilitarismo supostamente lutando contra uma guerrilha. Essa transição também ocorre aqui no Brasil. Toda a discussão acerca da Lei de Anistia, da tortura, mostra que a transição não está completa. A impunidade significa que a ditadura e sua lógica ainda estão presentes no Brasil. A segunda transição é forte aqui no Brasil, devido à grande emergência dos movimentos indígenas e dos movimentos quilombolas, que é a transição do colonialismo à descolonização. Foi uma transição que teve seu lugar nos Estados Unidos, por meio de movimento negro, dos direitos civis e políticos. Também há o exemplo dos movimentos indígenas em alguns países, com a ideia da plurinacionalidade. Aqui no Brasil, há a questão das políticas afirmativas, dos direitos coletivos, que mostram que há dois tipos de nação, a nação cívica e a nação étnico-cultural. E as duas não colidem. A terceira transição é uma que se fala mais em alguns países do que noutros, que é a transição do capitalismo ao socialismo, e, portanto, a ideia de que podemos caminhar para o socialismo do século 21. Primeiro, na Venezuela, depois no Equador e na Bolívia, com nomes diferentes. Essa é uma transição muito interessante. Na sua versão venezuelana, eu não vejo muito de século 21 nas discussões que tem havido. Na própria prática, está mais para século 20. Não gostei nada da forma como foi criado o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), sem participação popular, sem movimento de base. Na Bolívia e no Equador, estamos com outros padrões civilizatórios. A influência indígena é maior, a legitimidade da defesa da natureza é maior, há a ideia de que a frente agrícola tem que ser dominada para proteger a natureza, de que as frente extrativista e produtivista devem ser dominadas para termos uma relação mais harmo-

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“O Brasil fez alguns movimentos interessantes e importantes. Pelo menos, ajudou a tornar claro para o continente que a América Latina não era o quintal dos Estados Unidos” niosa com a natureza. Tudo isso, a meu entender, mostra um socialismo, como se diz no Equador, do “Bien Vivir” [Bem Viver]. É uma fórmula que tenta buscar alguns elementos do imaginário indígena para compor uma ideia não eurocêntrica de socialismo. Porque, na essência, o socialismo é tão produtivista quanto o capitalismo. As relações de produção são diferentes, mas a vontade de que as forças produtivas avancem sem limites é tão forte na tradição do socialismo como no do capitalismo. E o socialismo do século 21 também pode, eventualmente, ser pós-estatista. Ou seja, ninguém acredita mais na planificação centralizada. Acredita-se numa descentralização, nas autonomias. Portanto, há um movimento novo aqui também, mas é evidente que são movimentos embrionários. O que vimos até agora, nomeadamente no Equador e na Bolívia, e até na Venezuela, não é propriamente socialismo: pode-se chamar de capitalismo de Estado. Aliás, quem utiliza melhor esse conceito é um grande marxista deste continente, que é o Álvaro García Linera [vice-presidente da Bolívia], que propõe uma internacional dos movimentos sociais, e que tem dito muitas vezes que, neste momento, o socialismo não está na agenda, mas sim o capitalismo andinoamazônico.

Qual é sua opinião sobre a proposta de Hugo Chávez de criar uma Quinta Internacional? São propostas interessantes: a do Álvaro García Linera, da internacional dos movimentos sociais, e a Quinta Internacional, do Chávez. A do Álvaro é nitidamente influenciada pelo Fórum Social Mundial, mas com o desejo de irmos para frente, com outro sentido de ação coletiva. Não penso que será o fórum em si mesmo, mas as suas organizações é que podem criar essa internacional dos movimentos. No caso da proposta do Chávez, não é muito do século 21, porque as internacionais vêm do século 19 e 20. O continente está dividido entre essa esquerda revolucionária e uma esquerda mais moderada. Mas a diferença é entre a esquerda que tem como horizonte o socialismo do século 21, e diz isso, como Aliança Pais [Equador], MAS [Bolívia], PSUV [Venezuela], Frente Farabundo Martí [El Salvador]; e outros que não põem essa questão na agenda, como o Brasil, como o peronismo, na Argentina. O Polo Democrático, na Colômbia, coloca, mas de uma maneira muito vaga. A divisão é essa. Como o senhor vê o crescimento da direita na Europa? Como está o panorama da xenofobia, das leis de imigração etc? O avanço da direita na Europa deriva de várias causas. Uma delas é a crise da esquerda eu-

ropeia, que deixou se seduzir pelo discurso do neoliberalismo. A influência da Inglaterra foi muito forte, por meio da chamada terceira via que Anthony Giddens teorizou e que era uma socialdemocracia sem socialismo e sem redes populares. A esquerda faliu completamente na Europa, e, portanto, perante essa crise, não havia nenhuma alternativa. Por outro lado, essa crise estancou o crescimento econômico. A Europa continua praticamente estagnada, os países menores e mais vulneráveis sofrem mais com isso, como é o caso de Portugal. A Europa, como tinha um problema de abastecimento e de mão de obra, no seu período de expansão teve que dar muito espaço à imigração. Mas vem a estagnação e a Europa vê-se com uma população indesejada em seus territórios. Então, quem capitaliza isso é a direita, com o argumento populista muito fácil de dizer que esses indivíduos estão a nos tirar o emprego. E assim começam a xenofobia e as políticas de imigração completamente inconstitucionais, que violam os direitos fundamentais. A Europa está, neste momento, num beco sem saída, esperando que os Estados Unidos saiam da crise para ela própria sair. É evidente que a Europa está numa situação de alta estagnação e com problemas sociais e políticos graves. O que vemos é uma certa reinvenção da esquerda na Europa.

Como o senhor vê os novos partidos de esquerda, como o Die Linke, na Alemanha, o Partido Anticapitalista, na França, e o Bloco de Esquerda, em Portugal? O partido mais notável dessa nova esquerda é o Bloco de Esquerda, em Portugal, que, com suas vitórias eleitorais, tem um grupo parlamentar notável. É, sem dúvida, a grande novidade política da Europa. O Die Linke tem algum poder também e está num país muito mais importante, muito mais visível. Mas eu penso que o Bloco de Esquerda é das grandes inovações políticas que a Europa teve desde o final da guerra, porque não houve de fato grandes inovações dos partidos comunistas e socialistas. Em Portugal, continua havendo o Partido Comunista da maneira que sempre foi, mas houve espaço para criar um bloco de esquerda significativo. Por quanto tempo? Não sei. É um grande problema. Eu acho que o Bloco de Esquerda, assim como o Die Linke, na Alemanha, vão ter que enfrentar o problema de saber se vão continuar a ser partidos de denúncia ou se vão ser partidos de governo. Se um dia vão aliar-se às forças de governo. E isso é um dilema que eles estão a passar. Tatiana Merlino é jornalista.

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Neco Tabosa

A escola flutuante do Recife

Uma rotina diferente de professores e estudantes que participam do projeto de educação ambiental em barco que navega nas águas do rio Capibaribe.

de camarões em viveiros ao longo do seu leito. Naquela sexta-feira, a maré era de lua crescente e o caminho escolhido foi o que contorna a Ilha do Recife Antigo. Ainda em terra, os alunos aprendem noções básicas de segurança na navegação, e embarcam para vestir seus coletes salva-vidas. Só aí o barco se prepara para zarpar.

Escola Ambiental – Em 2002, Alfio

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despertador do professor Alfio Mascaro toca às seis da manhã de uma sextafeira. Na noite anterior ele dormiu por volta da meia noite e meia, montando provas “apaguei, não dava mais. O dia tinha sido super puxado. Pensei: amanhã continuo”, conta esse neto de italianos e filho de pernambucanos que nasceu no Rio de Janeiro e veio morar no Recife aos 2 anos de idade. Sempre bem-humorado e falante, o ex-bancário e ex-vendedor de sanduíches naturais de 49 anos impressiona pela energia que transmite quando fala de um dos seus assuntos prediletos: educação. Na condição de professor ou de estudante, já que atualmente o bacharel licenciado em geografia é mestrando do Programa de PósGraduação e Desenvolvimento e Meio Ambiente Prodema da UFPE e ainda cursa aulas de percussão. “A equipe da escola brinca dizendo que eu sou hiperativo”, diz, sem desacelerar. Antes de sair de casa, no bairro da Madalena, em direção ao Bairro do Recife, ele ainda monta oito questões de Geografia para um

simulado de vestibular e passa um e-mail para esta reportagem. Às oito e meia, Alfio já está na praça do Marco Zero, pouco antes dos 50 alunos, com idades entre 10 e 11 anos, da Escola Municipal Nossa Senhora do Pilar chegarem acompanhados de três professoras e uma estagiária. Eles são recebidos pela equipe da Escola Ambiental Águas do Capibaribe – o Barco Escola – um sala de aula flutuante que recebeu em 2008 o Prêmio Vasconcelos Sobrinho para projetos ambientais da Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (CPRH). Uma das primeiras preocupações é checar se todos os alunos trouxeram as autorizações assinadas por um responsável para embarcar. Outra dúvida é confirmar a altura da maré, o que determina o percurso da incursão pedagógica pelo rio Capibaribe. Nos períodos de lua cheia e lua nova, nas chamadas ‘marés de sigiza’, os alunos têm o privilégio de visitar a diversidade do Parque dos Manguezais, o segundo maior manguezal urbano do Brasil, que está seriamente ameaçado pela criação clandestina

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Ecologia aplicada – Quando assume o microfone, Alfio aproveita que a turma é da comunidade do Pilar, no Porto do Recife e a aula passa a ser sobre Geopolítica. “Vocês sabiam que estão estudando a possibilidade de, daqui a 15, 20 anos transformarem parte do porto em um complexo turístico? Cheio de espaços culturais e prédios gigantes? Onde é que vocês vão estar nessa história? Será que a comunidade de vocês vai ficar ali no mesmo lugar? Será que vocês vão morar num desses prédios?”. Um menino responde: “Que lenda!”, que na linguagem popular do recifense quer dizer: que mentira! Ao que o professor retruca, rindo: “Lenda? Não é lenda, não. Isso vai acontecer, e vocês têm que pensar nisso”. E a aula segue com mais observações das alterações da paisagem ao longo dos tempos. O istmo que estava ligado a Olinda e hoje forma a ilha do Recife, que servia para ancoragem das caravelas. Os resíduos sólidos (plásmarço 2010

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foto nina wicks de almeida

As aulas no barco estimulam o debate sobre a preservação da natureza.

foi convidado pela Secretaria de Educação do Recife para fazer parte do grupo que projetou, desenvolveu e construiu o barco. Ele chegou a medir a altura das pontes do Centro do Recife, ser um dos redatores do projeto pedagógico e visitar a oficina de construção náutica em Cabedelo, na Paraíba. Quando o barco estava pronto, surgiu o novo convite: acumular as funções de professor e diretor da escola. “Foi um trabalho coletivo e que selou o compromisso da Prefeitura na questão da Educação Ambiental. A ideia surgiu nas reuniões para discutir o Projeto Pedagógico da nova gestão da rede pública de ensino, quando notou-se a falta de percepção que estudantes e professores tinham dos rios. Isso na cidade que é popularmente conhecida como a ‘Veneza brasileira’”. Durante a aula no barco, os professores se revezam na condução dos assuntos, lembrando que todos ali são responsáveis pelo equilíbrio e preservação do meio ambiente. A equipe do Barco Escola quase nunca consegue repetir o mesmo roteiro de aula. “Tem o benefício da novidade, é sempre uma turma nova e os professores estão muito atentos às alterações da vida no rio para incorporar novos assuntos. É o trabalho ideal para um idealista”, completa a professora Jerrana Cantarelli, uma das três biólogas que compoem o quadro de professores com três geólogos.

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ticos, cordas de navio) que a turma encontra no caminho. Além de outros recursos pedagógicos, como uma foto de satélite para entender o caminho percorrido, e a leitura cantada de um forró com um refrão hipnótico “Capibaribe / vamos limpar esse rio / vamos limpar esse rio...”. Uma hora e meia depois, na volta para o marco zero, os alunos são chamados para dizer o que mais chamou a atenção deles no percurso. Os depoimentos variam entre o interesse pelas esculturas de Francisco Brennand, a escola vista do rio, o aparecimento de um Sotalia guianensis (uma espécie de boto cinza) que encantou a cena logo no começo da incursão. Mas a imagem negativa mais citada é uma só: a quantidade de lixo no rio. O professor José Hildo pergunta: “E como a gente faz para não ter lixo no rio?”. Lucas Soares, de 10 anos, responde: “Jogando o lixo no lugar certo”. “O lixo que jogam no canal lá na sua comunidade tem a ver com esse lixo que a gente vê aqui?”. Os meninos respondem, em coro: “Tem”. “E o que a gente vai dizer pra quem for visto jogando lixo no canal, no rio? Que tá certo ou que tá errado?”. “Tá erraaado”.

Tarde na base terra – Quando não está dando aula no barco, Alfio pode ser encontrado na administração da escola, às voltas com cálculos e telefonemas para manter o projeto funcionando. Ele aproveita o dia calmo para comentar a importância das parcerias e os ajustes que a equipe faz diariamente. “Recebemos um treinamento adequado da Marinha do Brasil para conhecer o barco, seus equipamentos e as leis que regem a navegação. Teve uma vez que um cabo grosso de outro barco enganchou no motor e ele saiu do eixo, danificando os calços – que mantém o motor suspenso, evitando trepidação –. As peças só podiam ser compradas em São Paulo ou no Japão. Aí nós adaptamos calços de motor de caminhão. Ajustamos num torneiro e, de cerca de R$ 2.000, o custo caiu para R$ 210. É que uma semana com o barco parado significa quase 500 crianças que não fazem a incursão, essa é a nossa motivação”, explica Alfio. São oito horas da noite, e antes de sair para mais uma atividade, Alfio ainda tem fôlego para comentar os prós e os contras de trabalhar na rede pública. “Educação é importante, mas não só ela. É preciso cuidar paralelamente da geração de empregos e renda. Agora, o trabalho do professor podia ser mais valorizado. Vejo muitos colegas ficando doentes, enfartando, com câncer. Essa loucura de ter que se dividir entre vários empregos, não ter tempo adequado pra fazer um mestrado e se especializar com qualidade, na minha opinião, é a maior dificuldade da rede pública de ensino. E o piso nacional, que é uma piada.” Neco Tabosa é jornalista.

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Emir Sader

A CRISE DA IMPRENSA É ÉTICA

Chovem os artigos na imprensa internacional sobre a crise da imprensa, enquanto crescente número de jornais fecham, despedem jornalistas, diminuem suas tiragens. Os diagnósticos, ao serem feitos, em grande medida por pessoal ligado a essa imprensa, não consegue sair do rame-rame usual: a difusão da internet grátis, dos jornais grátis, etc., etc., seriam os responsáveis. Será? Mas um artigo, desta vez da prestigiosa publicação norte-americana “The Nation” – “How to save jornalism?”, de John Nichols e Robert W. McChesney, de 25 de janeiro deste ano – classifica o jornalismo como um “bem público”, que deveria ser considerado da mesma forma que a educação, a saúde pública, o transporte, a infraestrutura. O fato de ser financiado por publicidade já desvia esse caráter, porque a publicidade visa interesses de venda de mercadorias, de prestação de serviços na esfera privada. Isso remeteria ao tema do financiamento público da imprensa. Os autores recordam que a crise começou muito antes da internet, já nos anos 1970, apontado para a busca de maximização dos lucros pelas grandes corporações, que foram tornando as mídias empresas como outras quaisquer de seu imenso leque de investimentos, tendo como resultado a diminuição da qualidade e a banalização do jornalismo. As propostas de superação da crise apontam normalmente para o pagamento das páginas de internet. No entanto, apenas um ou outro jornal que acredita na sua capacidade de manter audiência sendo pago – como o The Wall Street Journal – se arrisca nessa direção. Ainda assim é duvidoso que possam arrecadar uma proporção minimamente significativa do que perdem com a diminuição da tiragem e, principalmente, com a retração da publicidade.

Na realidade, a crise da imprensa é a da perda de credibilidade – é uma crise ética, de sua transformação em um instrumento da publicidade – do ponto de vista econômico, e da sua constituição em mentor político e ideológico da direita. Os dados, publicados recentemente, demonstram como todos os grandes jornais brasileiros perdem leitores, mas sobretudo perdem influência. Se pensarmos que todos os maiores jornais e mais quase todas as revistas semanais – à exceção da Carta Capital – são de férrea oposição ao governo, que mantém 83% de apoio, e eles conseguem apenas 5% de rejeição ao governo, temos uma ideia da baixíssima produtividade desses órgãos de oposição.

Jornais progressistas,

como La Jornada, do México; Página 12, da Argentina, e Público, da Espanha, que gozam de alta credibilidade, se consolidam e se expandem, tendo páginas abertas amplamente visitadas. Seu patrimônio é sua ética social, suas posições políticas democráticas, o espírito pluralista dos seus comentaristas, a originalidade da suas coberturas jornalísticas.

sugestões de leitura PONTO DE CULTURA

Célio Turino Editora Anita Garibaldi POLOP

Centro de Estudos Victor Meyer A HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO

Olivier Petré-Grenouilleau Boitempo Editorial

Emir Sader é cientista político.

caros amigos março 2010

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

Uma editora que resiste ao

NEOLIBERALISMO: A UFRJ Praticamente ignorada pela grande mídia, a Editora UFRJ, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem lançado obras importantíssimas do ponto de vista progressista, pouco conhecidas até entre os intelectuais esquerdistas. A editora está sob a direção do eminente intelectual baiano radicado no Rio de Janeiro, Carlos Nelson Coutinho, um dos principais nomes do país do marxismo de linha humanista, isto é, mais preocupado com questões de ética social, da alta cultura e de bem-estar existencial do que em destrinchar os mistérios da economia política. Em outras palavras, mais preocupado com a problemática do jovem Marx do que com as questões enfrentadas pelo chamado velho Marx. Isso não quer dizer que as obras não enfrentem questões candentes da atualidade. Prova disso é o volume Por um socialismo indoamericano, com textos do famoso intelectual peruano José Carlos Mariátegui, considerado “o mais importante e inventivo dos marxistas latinoamericanos”, criador de um “marxismo herético” que “tem profundas afinidades com alguns dos grandes pensadores do marxismo ocidental: Gramsci, Lukács e Walter Benjamin”, pelo selecionador e organizador da obra, o bem conhecido intelectual marxista brasileiro radicado na França Michael Lowy. Mariátegui foi o fundador da fusão do marxismo e do socialismo com o indigenismo, hoje consagrada na prática em países como a Bolívia. Outro livro de importância crucial da editora é Marx (sem ismos), em que o professor universitário espanhol Francisco Fernández Buey procura resgatar o que Marx realmente disse, escreveu e propôs que fosse feito em relação ao que, após sua morte, foi dito, escrito e feito pelos que falaram e agiram em seu nome: “Deve-se distinguir entre o que Marx fez e disse como comunista e o que outros disseram, ao longo do tempo, no seu nome. (...) Seria uma injustiça histórica acusar o autor do Manifesto comunista pelos erros e delitos dos que, com boa ou má vontade, continuaram utilizando seu sobrenome”. Em Sociedade civil e hegemonia, o professor cubano, atuante em seu país, Jorge Luis Acanda, procura discutir a atualidade da herança do pensador e militante comunista italiano Antonio Gramsci. O catálogo editorial escolhido por Coutinho é particularmente enriquecido pelo clássico O jovem Marx e outros escritos de filosofia, do eminente pensador húngaro György Lukács, que defende a tese de que a liberdade não é inata, mas “é o produto da própria atividade humana, a qual, embora sempre engendre concretamente algo diferente daquilo que se propusera, termina por ter consequências que ampliam, de modo objetivo e contínuo, o espaço no qual a liberdade se torna possível”.

Outra reedição de obra clássica, agora brasileira, é Cangaceiros e fanáticos – gênese e lutas, de Rui Facó, que discute o cangaço e o fanatismo religioso como reações ao tratamento semiescravos que as classes dominantes agrárias continuaram reservando aos pequenos camponeses e trabalhadores em geral do campo depois da Abolição da escravidão. E mais um ponto alto do marxismo heterodoxo é Marxismo e filosofia, do alemão Karl Korsch, que entre as duas Guerras Mundiais defendeu que a luta filosófica contra a consciência burguesa é tão importante quanto a luta econômica, social e política contra o capitalismo. Convém notar que, bem depois dessa importante obra, inspiradora até hoje entre os marxistas de linha humanista, Korsch se tornou anticomunista e militou na Guerra Fria em defesa dos Estados Unidos. Também são importantes Heidegger e a destruição da ética, do filósofo e teólogo brasileiro Alexandre Marques Cabral, em coedição com a Editora Mauad, e Para além dos direitos – Cidadania e hegemonia no mundo moderno, em que o professor também brasileiro Haroldo Abreu procura demonstrar que “a cidadania jamais foi limitada à sua constituição formal”. Um estudo mais empírico é Os arquitetos da memória – sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940), da historiadora Márcia Regina Romeiro Chuva. O espaço de Ideias de Botequim nos permite apenas citar os títulos e autores de outras obras muito interessantes e muito importantes do catálogo da Editora UFRJ: Dialética e materialismo – Marx entre Hegel e Feuerbach, dos pensadores brasileiros Benedicto Arthur Sampaio e Celso Frederico; Democracia ou bonapartismo, do teórico italiano Domenico Losurdo, Reconstrução histórica da luta pela conquista dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais; Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais, organizado pelo professor canadense nascido na Grã-Bretanha Stephen Gill; Arte e sociedade – escritos estéticos, 1932-1967 e Socialismo e democratização – escritos políticos, 1956-1971, ambos de novo de György Lukács; Revolução e democracia em Marx e Engels, do pensador francês Jacques Texier, e Roteiros para Gramsci, do professor italiano Guido Liguori. Em suma, pode-se dizer que a linha intelectual da Editora UFRJ obedece ao lema: “Sem democratização não há socialismo, sem socialismo não há democratização”. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP. março 2010

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No palco, crianças. Nos bastidores, todo o apoio da CSN.

A Fundação CSN promove projetos que melhoram a vida das crianças, assim elas se tornam mais felizes em casa, na rua e na escola. O Projeto Garoto Cidadão funciona no contra-turno escolar com atividades artísticas, aulas de português, matemática e inclusão digital. Em 2010, o projeto chegará a mais de 1.300 atendimentos em 7 unidades educacionais. Iniciativas como o Caminhão para Ziraldo e para Jorge Amado, permitem o acesso ao teatro, formam platéias e incentivam a leitura. Desde 2006, o caminhão já percorreu 65 mil quilômetros em mais de 184 cidades em 20 estados brasileiros. A Orquestra Sinfônica Jovem estimula a inclusão social por meio da música. Formada por jovens em situação de vulnerabilidade social, oferece bolsa de estudo para o aprendizado de música e os valores do trabalho coletivo e solidário. O ponto em comum entre todos eles? Um futuro melhor para nossas crianças. Para saber mais sobre esses projetos, acesse www.fundacaocsn.org.br

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