Ed. 161 - Revista Caros Amigos

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MÉXICO

A derrota da direita em OAXACA

CINEMA

latinoamericano conquista espaço

RIO DE JANEIRO

Cultura nordestina na Feira de São Cristóvão

ano XIV número 161 / 2010 R$ 9,90

DESAFIO DO ECA

4,2 milhões de crianças exploradas no trabalho JOSÉ LUÍS FIORI “A Europa está cada vez mais dividida”

INEZITA BARROSO: a resistência da viola caipira Entrevista

Marcio Pochmann

“A desigualdade no Brasil é coisa de sociedade feudal” ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA TATIANA MERLINO

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CAROS AMIGOS ANO XIV 161 AGOSTO 2010 MÉxICO

A derrota da direita em OAxACA

CInEMA

latinoamericano conquista espaço

RIO DE JAnEIRO

Cultura nordestina na Feira de São Cristóvão

Foto de capa JESUS CARLOS

ano XIV número 161 / 2010 R$ 9,90

DESAFIO DO ECA

4,2 milhões de crianças exploradas no trabalho

JOSÉ LUÍS FIORI “A Europa está cada vez mais dividida” InEzItA BARROSO: a resistência da viola caipira Entrevista

Marcio Pochmann

“A desigualdade no Brasil é coisa de sociedade feudal” ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA TATIANA MERLINO

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EDITORA CASA AMARELA

sumário

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Nos períodos eleitorais, a maior parte da imprensa brasileira – veículos comerciais defensores das políticas (neo)liberais e do sistema capitalista – costuma fazer uma cobertura jornalística marcada pelo partidarismo (camuflado) e pelo sensacionalismo dos factóides criados pelas campanhas dos partidos e dos candidatos. Raramente essa imprensa procura fazer o debate das grandes questões nacionais e dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais da eleição de determinados candidatos. O que mais importa para essa imprensa é promover o entretenimento, a dispersão e, prioritariamente, aumentar as vendas, a audiência e o faturamento. Com o objetivo de fornecer aos leitores uma análise bem consistente sobre alguns dos temas mais quentes da realidade, a equipe da Caros Amigos realizou uma longa e abrangente entrevista com o economista Marcio Pochmann, pesquisador e professor da Unicamp e atual presidente do IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, órgão vinculado ao Ministério do Planejamento. Pochmann fornece para todos nós um excelente material de reflexão e debate, já que interpreta os acontecimentos na sua complexidade política, social e econômica. Ele fala sobre o modelo de desenvolvimento, a concentração do capital, a política de juros, a desigualdade e a exclusão social, os desafios e as perspectivas do Brasil. Por falar em desafios, apresentamos aos leitores uma importante reportagem sobre os 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente – fruto de uma conquista social histórica, mas que, na opinião de vários especialistas, tem vários aspectos que não saíram do papel. Um dado dessa deficiência na aplicação do ECA é a existência de 4,2 milhões de crianças exploradas no trabalho. Como é possível falar de um país em desenvolvimento, potência econômica mundial, se não consegue nem mesmo acabar com o trabalho infantil? Temos também duas ótimas entrevistas com personalidades de áreas completamente distintas: uma com a cantora e apresentadora Inezita Barroso, que aos 85 anos mantém no programa Viola Minha Viola, da TV Cultura de São Paulo, a cidadela de resistência da música caipira; outra é com o respeitado cientista político José Luís Fiori, da UFRJ, que analisa a crise econômica que atinge a Europa. Além dessas, vale a pena conferir outras reportagens e o conjunto de artigos dos colaboradores fixos da Caros Amigos. Boa leitura!

Caros Leitores. José Arbex Jr. aponta como está sendo construído o cordial “fascismo à brasileira”. Fidel Castro alerta sobre o perigo da guerra entre Estados Unidos e Irã. Emir Sader fala sobre o significado especial do Fórum da Educação na Palestina.

REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

O que realmente importa

Guto Lacaz.

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Ferréz faz um relato dramático sobre a confusão rotineira nas quebradas da vida. Marcos Bagno comenta o impacto das obras e das entrevistas de José Saramago. Mc Leonardo mostra como funciona a política de publicidade da FIFA.

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Pedro Alexandre Sanches em Paçoca: o clamor do voto nos festivais de música.

Entrevista com Márcio Pochmann: “A desigualdade no Brasil é feudal” Joel Rufino dos Santos deixa claro o que é ser um comunista. Guilherme Scalzilli faz reflexão sobre pragmatismo político e falta de escrúpulo.

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João Pedro Stedile debate a proposta de reforma agrária no processo eleitoral. Ana Miranda dedica belas palavras à obra e à vida da bailarina Isadora Duncan.

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Tatiana Merlino relata as conquistas e desafios dos 20 anos do ECA.

Ensaio Fotográfico de Mario Luiz Thompson: negros e negras da MPB. Marcelo Salles retrata a cultura nordestina da Feira de São Cristóvão, no Rio. Frei Betto pede o programa Fome Zero urgente para 60 milhões de brasileiros. Gilberto Felisberto Vasconcellos critica o uso do futebol pela mídia capitalista.

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Gabriela Moncau: o novo cinema latino-americano conquista o seu espaço. Tatiana Merlino entrevista José Luís Fiori: as características da crise europeia. Lúcia Rodrigues acompanha as eleições e a luta popular em Oaxaca, no México. Glauco Mattoso em Porca Miséria: sobre o surrealismo dos diplomas superiores. Eduardo Matarazzo Suplicy comenta os últimos índices de pobreza no Brasil.

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Rodrigo Vianna em Tacape: os blogueiros duvidam dos institutos de pesquisa. Cesar Cardoso embarca com tudo no festival eleitoral que assola o país.

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Gershon Knispel: reflexões sobre a Copa do Mundo e o hino nacional alemão.

Entrevista com Inezita Barroso: a eterna resistência da música caipira. Renato Pompeu Ideias de Botequim: os comunistas e o movimento camponês. Claudius.

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 161, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação

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Caros LEITORES

Escrevo da OIT Genebra, do Programa especial de Combate ao Trabalho Forçado/Trabalho Escravo. Como você pode perceber, sou brasileira, e trabalho aqui desde agosto passado. Ontem recebi um e-mail (da minha mãe) sobre a edição de julho da Caros Amigos e a matéria (de capa) sobre trabalho escravo. Soube que a matéria está bastante interessante, mas infelizmente não tenho acesso aqui em Genebra à edição impressa. Será que existe uma versão PDF para que eu pudesse dar uma olhada? Também me coloco à disposição para futura colaboração. Cordialmente. Julia Borgianni Batho – Genebra, Suíça. Parabéns pela reportagem “Capital paulista abriga escravidão”! Procuro saber se há como descobrir quais são as marcas, empresas que fazem uso da escravidão na indústria têxtil. Aquelas, já divulgadas na matéria, não entrarão mais no guarda-roupa da minha filha, no meu e no do meu companheiro. Obrigada. Abraços. Ligia Menezes de Freitas.

EXTERMÍNIO Adorei a edição de junho de Caros Amigos. Parabéns a Tatiana Merlino e Lúcia Rodrigues pelas ótimas reportagens sobre os grupos de extermínio formados por policiais, é de causar, no mínimo, indignação e vergonha. Ótima matéria também de Gabriela Moncau sobre o Teatro de Combate, espero que eles se apresentem aqui em Alagoas. E pra fechar, adorei a estreia do Rodrigo Vianna metendo o dedo nas feridas da “grande mídia”. Continuem sempre com essa linha editorial combativa e revolucionária, o Brasil precisa cada vez mais de Caros Amigos! Adriano Fernandes, estudante – Colônia Leopoldina (AL).

DEVER SOCIAL Sou Luiz Alberto, estudante de jornalismo. Ingressei na faculdade no início deste ano. Gosto muito de escrever e tenho uma visão crítica do mundo, por isso gosto de ler Caros Amigos, uma revista contestadora e que se diferencia de outros veículos da grande mídia que pouco cumprem com o seu dever social. Estou enviando meu cur-

rículo, pois gostaria muito de trabalhar em uma revista que admiro e respeito. Luiz Alberto Luz Francisco Gomes – Diadema (SP).

SEM VOZ Quanto a entrevista com Frei Betto, há muito tempo, nós leitores e eleitores, aguardávamos. Neste país, se houvesse líderes cristãos como ele, ou seja, verdadeiramente coerentes com que com que vivem, falam e acreditam, não teríamos tanta gente procurando livros de auto-ajuda, religiões alienantes; indenizações e cargos à custa do povo. A propaganda na contra-capa da “Caixa Econômica” é tão ridícula quanto o que nossos governantes e candidatos nos propõem. Sem mais, peço apenas que esta revista seja porta voz dos sem-voz. Maria de Lourdes de Oliveira – Perdizes (SP).

DOUTOR SÓCRATES Simplesmente maravilhosa a entrevista com o Dr. Sócrates, na Caros Amigos nº 159, de junho de 2010. Sugiro que o Dr. Sócrates seja um colunista de Caros Amigos. Rafael Deodoro Klafke – Porto Alegre (RS).

CONTRAPONTO CRÍTICO Tenho lido Caros Amigos virtualmente e achado bem interessante os temas debatidos, parabéns... Estes dias mesmo li alguns comentários dizendo que na ditadura militar existiam vários jornais de oposição porque existiam sedes literárias críticas. Agora é um “acomodo” geral, até parece que os eternos problemas capitais solucionaram-se, extinguiram-se por si. Vou assiná-la, sim, mas quero também receber e-mails de vocês. Parabéns mesmo, sem este tipo de contraponto crítico estamos sujeitos à escravidão intelectual! Horácio Santos Feres.

FORMAÇÃO Estou mandando este e-mail para agradecer a todos da revista e culpá-los pela grande influência causada em mim pelas ideias revolucionárias transmitidas. Acabo de me formar em Ciências Sociais pela PUC Minas e sem vocês e o RAP NACIONAL de favela eu não conseguiria me formar do jeito que me formei. Eu falo isso porque foi

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com vocês e o rap que eu fortaleci a minha fé de que um mundo diferente e menos injusto é possível, e não “abracei” a ideia de quem está por cima, e também da maioria dos “zé povinhos” da academia, com algumas exceções, de que esse mundo atual que vivemos é o melhor e o único possível. Marlos – Belo Horizonte (MG).

MARAVILHADO Conheci a revista entregue por um expositor aqui na UNB de Brasília, no evento Nacional dos Estudantes de Direito. Consegui um exemplar ano XIV número 157, de abril de 2010. Fiquei maravilhado com todas as reportagens. Hoje estou em Brasília em luta para restabelecer meus direitos e diversos direitos de meu povo. Adorei todo o conteúdo da revista que me deu forças para continuar. Silvio Giudice – Brasília (DF).

AGROTÓXICOS Sou assinante da Caros há cinco anos, e acompanho a luta. Li em uma edição sobre os transgênicos. Hoje li uma reportagem de agricultura sobre a resistência de plantas daninhas aos agrotóxicos nas lavouras transgênicas, e gostaria de sugerir uma reportagem. Trabalho na agroindústria e acompanho o descalabro que se tornou nossa agricultura. Moisés Magalhães Junior.

DESTAQUE Informo que na minha banca a Caros Amigos sempre é exposta em lugar de destaque, assim como a Forum, Le Monde Diplomatique, Revista do Brasil, Cult e o Brasil de Fato. Além disso, mesmo podendo ler sem pagar, sou o único jornaleiro que faz questão de assinar a Caros Amigos. Porphirio da Silva Mello Filho.

HOMENAGEM A BI

A equipe da Caros Amigos presta homenagem póstuma ao jornalista Ricardo Vespucci, falecido em julho em São Paulo, aos 61 anos. Bi, como era conhecido, foi colaborador da revista e editor da coleção Rebeldes Brasileiros. Foi autor, com o seu irmão, Emanuel Ferraz Vespucci, dos livros Alcoolismo - O Livro das Respostas - Esclarecendo 129 dúvidas fundamentais, e O revólver que sempre dispara - Os dependentes de drogas e os caminhos da recuperação, numa abordagem clínica, publicados pela Editora Casa Amarela.

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TRABALHO ESCRAVO

COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

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José Arbex Jr.

Lula e o cordial Calma. Não se pretende, aqui, afirmar que Luiz Inácio Lula da Silva preside um governo fascista, nem que ele próprio simpatize com Adolf ou Benito. A coisa é bem mais complicada. Ao contrário do que sugerem as aparências, o governo Lula, independentemente de suas intenções, acentuou, em vez de diminuir, as características fascistoides do Estado brasileiro. Vivemos a barbárie em nosso cotidiano, mas estamos contentes com o carro novo, a televisão de 42 polegadas e a última versão do iPhone. E, secretamente, até acreditamos que o futuro imediato do Brasil é brilhante. A coisa vai muito mal. Um indício indiscutível da barbárie é dado pelas estatísticas sobre a extrema violência policial combinadas com a ação de esquadrões da morte e milícias contra as populações de jovens e trabalhadores que vivem nas favelas e periferias. Se, em outubro de 1992, o massacre de 111 presos do Carandiru causou comoção, hoje as execuções somam UM CARANDIRU POR DIA, segundo estimativas conservadoras da ONU (veja o quadro). Os fatos são inegáveis: o Estado brasileiro pratica uma política de terrorismo contra os trabalhadores e jovens da cidade e do campo de maneira direta e indireta (não apenas na forma da violência física, mas também nas medidas típicas de regimes racistas, como o uso do expediente inconstitucional do mandado de busca coletiva em favelas). Certo, não é justo atribuir ao governo Lula o quadro geral de terrorismo de Estado. Ele é parte constitutiva da história do país – dos 400 anos de escravidão oficial à atual prática da escravidão oficiosa, passando pelos massacres de Palmares e Canudos, pelas políticas “higiênicas” do princípio do século 20,

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pelas ações da Gestapo varguista de Filinto Müller e pela ditadura militar de 1964 a 1985. Ok. Mas é justo afirmar que o governo Lula recuou inaceitavelmente diante dos ataques da direita fascistoide, em particular no que se refere ao Plano Nacional de Direitos Humanos 3, e principalmente nos itens relativos às investigações e punições dos responsáveis pelas torturas e assassinatos sob a ditadura. O mesmo aparato repressivo, e não raro os mesmos assassinos e torturadores, estão por trás das mortes e execuções atuais. Não se trata “apenas” de um problema moral, por repugnante que seja, e sim político. Lula recuou porque seu governo é de conciliação de classes. Mais precisamente, é um governo ancorado, em uma ponta, ao capital financeiro; na outra ponta, apoiado pelas classes e pelos setores sociais que, ao longo da história, foram considerados uma espécie de “lixo humano” – o “subproletaridado”, na definição do economista Paul Singer: um contingente de trabalhadores não qualificados, sem carteira profissional e de baixíssima renda que constitui a metade da população economicamente ativa. Se houvesse uma investigação sobre os responsáveis pelos crimes da ditadura, a Justiça teria de condenar muitos dos atuais apoiadores do governo Lula, incluindo empresários que financiaram a Operação Bandeirantes, e políticos que hoje fazem parte do arco de alianças da base governista (a começar por José Sarney, presidente da Arena, o partido da ditadura). O jogo arquitetado por Lula, que mobiliza com eficácia as duas pontas do espectro social – o ca-

pital financeiro e o “subproletariado” –, representa algo novo na política brasileira: a abertura de uma aparente possibilidade de melhorar a distribuição de renda e ampliar a democracia, no quadro da ordem e do respeito às regras do jogo financeiro internacional. Essa caracterização é feita pelo sociólogo André Singer (porta-voz do governo Lula durante o primeiro mandato), no texto “As bases sociais do lulismo”, publicado em dezembro de 2009. O “lulismo”, diz Singer, foi uma reação às três derrotas eleitorais sucessivas sofridas por Lula (em 1989, 1994 e 1998), quando ficou claro que nem ele nem o PT tinham o apoio do “subproletariado”. Esses setores, ao contrário do que se poderia imaginar, eram hostis ao PT, à CUT e aos movimentos grevistas, por sentirem que eles pioravam a crise econômica e, portanto, as suas próprias condições de vida (Singer demonstra meticulosamente a hipótese, por meio de estudos e pesquisas de opinião e voto feitos à época). O próprio Lula admitia, então, que a base de apoio eleitoral do PT era constituída pelo funcionalismo público, pela classe média instruída e pelos operários qualificados (com carteira assinada). Em 1989, o “subproletariado” votou no Fernando Collor de Mello da “caça aos marajás” muito mais por desconfiar do discurso socialista de Lula e por um sentimento genérico de “vingança contra os ricos”, que Collor prometia punir. Em 1994 e 1998, foram a estabilidade do Plano Real e a ideia de “ordem” com Fernando Henrique Cardoso (sempre escorado no apoio do capital financeiro e nos preciosos serviços da mídia, em particular da Rede Globo) que seduzi-

Ilustração: carvalL

“fascismo à brasileira”

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daqueles que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de renda baixa, o público-alvo por excelência do Bolsa Família. Lula foi reeleito com folga em 2006, apesar do escândalo do mensalão, com o apoio do capital financeiro e de um setor que não lia (e não lê) jornal, não compreendia o que estava em questão, mas que, pela primeira vez, começava a escapar do fantasma da fome. Em síntese: foi o voto atrasado, despolitizado e des-ideologizado, cooptado com os recursos oferecidos pelo capital financeiro, que assegurou a vitória de Lula. O segundo mandato, ainda em curso, foi aperfeiçoado com vários programas destinados ao “subproletariado” e aos setores tradicionalmente marginalizados: Luz Para Todos (eletrificação rural), construção de cisternas no semiárido, apoio ao pequeno agricultor. Além disso, Lula criou e expandiu linhas de financiamento popular, como o “crédito consignado” que permitiram a entrada desses setores na esfera do consumo. As classes médias e parte significativa do “subproletariado” passaram a consumir (ainda que às custas de um endividamento insano e brutal). O conjunto das medidas distributivas endereçadas aos pobres constitui, aparentemente, uma face “progressista” do governo Lula. Mas ela teve como contrapartida o paraíso assegurado ao capital financeiro, com todas as conseqüências conhecidas. Essa política, que só poder entendida e criticada em seu conjunto, foi aplicada mediante o desmantelamento das organizações autônomas e independentes dos trabalhadores e dos movimentos sociais que poderiam apresentar qualquer tipo de resistência às estratégias colocadas em marcha pelo imperialismo transnacional. Lideranças de trabalhadores importantes foram corrompidas e/ou cooptadas para ocupar cargos regiamente pagos pelo Estado; aqueles que resistiram, foram marginalizados, expulsos do PT, afastados dos postos de direção da CUT e de outras centrais; grupos

ram o “subproletariado” e uma parcela da classe média para derrotar o candidato do PT. O “Lulinha paz e amor” da Carta aos Brasileiros de 2002 – que declarou os seus compromissos inquebrantáveis com o capital financeiro – já demonstrava o seu afastamento do programa original do PT. O seu complemento, endereçado ao “subproletariado”, foi o Programa Fome Zero. A essência do que seria sua administração foi revelada já no discurso de posse, proferido em 1 de janeiro de 2003, no Congresso Nacional: do total de 3.824 palavras, “trabalhadores” aparece apenas três vezes. Não há no discurso um único chamado à mobilização popular, substituída pelas ideias de “colaboração”, “generosidade do povo”, “fé no amanhã”, “alegria de viver”, “paciência”, “perseverança” etc. Os trabalhadores são encorajados a manter uma postura passiva e resignada, ao passo que as iniciativas da vida política são depositadas nas mãos dos chefes de Brasília. Em contrapartida, Lula manteve rigorosamente o compromisso de 2002: assegurou a ferro e fogo o superávit primário (isto é, o pagamento dos juros esAngra dos Reis = Irlanda................. 66 corchantes ao capital fiAracaju = Argélia...........................230 nanceiro, à custa de verBelo Horizonte = França.............1.040 ba para saúde, educação, Brasília = Romênia.........................645 saneamento básico e inCamaçari = Sérvia..........................101 fraestrutura pública) e deu Campo Grande = Arzebaijão.........212 autonomia ao Banco CenCaruaru = Bélgica..........................192 tral, presidido por um banCuiabá = Suíça...............................231 queiro “ortodoxo”. Na ouCuritiba = Inglaterra......................756 tra ponta, o Fome Zero foi Duque de Caxias = Itália...............644 substituído pelo Programa Embu = Grécia.................................. 81 Bolsa Família. Às véspeFeira de Santana = Israel...............201 ras das eleições de 2006, Foz do Iguaçu = Bulgária..............332 atendia a cerca de 11,4 Garanhuns = Dinamarca.................. 49 milhões de famílias, com Guarapari = Emirados Árabes......... 42 um orçamento de R$ 7,5 Goiânia = Síria...............................438 bilhões. Entre os milhões

e movimentos que não se submeteram ao jogo foram economicamente estrangulados. Os vários e importantes movimentos grevistas que, apesar de tudo, conseguiram ganhar alguma expressão importante, não tiveram força suficiente para romper a camisa de força imposta pelo “lulismo”. O próprio PT tornouse apenas uma caricatura de si próprio, colocado à sombra do cacique Lula. Com o apoio da mídia e dos profetas do capital financeiro (jornalistas, “especialistas” e intelectuais oportunistas ou até bem intencionados), criou-se a percepção de que o Brasil passa por uma “grande fase de sua história”. Supostamente, somos agora uma potência no cenário mundial, Lula é “o cara” saudado por Barack Obama. Como diz o sociólogo Chico de Oliveira, estamos todos contentes, e aí reside o perigo. O nosso contentamento explica o silêncio diante da do morticínio diário dos milhares de jovens das favelas e “periferias”, e nos torna cúmplices passivos do acobertamento dos crimes da ditadura. Mas o que vai acontecer quando a “crise grega”, ou outra pior chegar ao Brasil e a “marolinha” virar um tsunami? Como os trabalhadores – desorganizados, impotentes e desmoralizados - poderão se defender contra uma máquina repressiva fascistóide, aliás treinada no Haiti? “Tem gente que só compreende a brasa quando ela entra nas profundezas da carne”, escreve Chico Buarque na Fazenda modelo, citado por Leandro Konder em seu esclarecedor livro Introdução ao fascismo (Expressão Popular). No mesmo livro, Konder retoma a definição precisa e clássica do fascismo, dada pelo comunista búlgaro Dmitrov, em agosto de 1935, durante o 7º Congresso da Terceira Internacional: “É a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários e mais imperialistas do capital financeiro”. Hum... O cheiro de brasa empesteia o ar. José Arbex Jr. é jornalista.

Homicídios/Ano

Guarujá = Líbano.............................. 101 Guarulhos = Espanha........................ 494 Itabuna = Marrocos.......................... 143 Itajaí = Irlanda do Norte.................... 51 Itapevi = Croácia................................. 80 Itaquaquecetuba = Escócia............... 134 J. dos Guararapes = Turcomenistão....408 Juiz de Fora = Noruega...................... 38 Londrina = Líbia................................ 160 Macaé = Jordânia.............................. 126 Maceió = Alemanha.......................... 914 Magé = Armênia............................... 126 Manaus = Lêmen............................... 587 Marabá = Letônia.............................. 170 Niterói = Suécia................................ 200 Novo Hamburgo = Áustria................. 65

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Olinda = República Tcheca...................234 Porto Alegre = Polônia.........................499 Rio de janeiro = Irã............................2.273 Santa Maria = Eslovênia........................ 36 Santo André = Eslováquia....................138 Santos = Macedônia............................... 69 S. Bernardo do Campo = Finlândia......132 São Gonçalo = Georgia.........................252 São João do Meriti = Arábia Saudita..202 São Luiz = Moldávia.............................270 São Paulo = Nigéria...........................2.546 Sorocaba = Tunísia................................119 Teresina = Lituânia...............................119 Vitória = Portugal.................................247

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Fidel Castro

A origem das

guerras No dia 14 de julho afirmei que nem os Estados Unidos nem o Irã

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Emir Sader

Fórum Mundial de Educação na Palestina Entre os dias 28 e 31 de outubro, será realizado o Fórum Mundial

cederiam: “um pelo orgulho dos poderosos e o outro pela resistência ao jugo e pela capacidade para combater, como ocorreu tantas vezes na história...”. Em quase todas as guerras uma das partes deseja evitá-la, e às vezes, as duas. Nessa ocasião teria lugar, embora uma das partes não o desejasse, mesmo como aconteceu nas duas guerras mundiais de 1914 e 1939, com apenas 25 anos de distância entre a primeira e a segunda conflagração. As chacinas foram horrendas, não se teriam desatado sem erros prévios de cálculo. As duas defendiam interesses imperialistas e achavam que atingiriam seus objetivos sem o custo terrível que implicaram. No caso que nos ocupa, uma das partes defende interesses nacionais, totalmente justos. A outra tem como objetivo propósitos bastardos e grosseiros interesses materiais. Fazendo uma análise de todas as guerras que tiveram lugar, partindo da história conhecida de nossa espécie, uma delas procurou esses objetivos. São absolutamente vãs as ilusões de que, nessa ocasião, esses objetivos serão atingidos sem a mais terrível de todas as guerras. Em um dos melhores artigos publicados no site Web Global Research, quinta-feira, 1º de julho, assinado por Rick Rozoff, ele utiliza abundantes e inapeláveis elementos de juízo acerca dos propósitos dos Estados Unidos, que toda pessoa bem informada deve conhecer. “... Pode-se vencer se um adversário sabe que é vulnerável a um ataque instantâneo e indetectável, abrumador e devastador, sem a possibilidade de se defender ou de exercer retaliações”, é o que os Estados Unidos pensam, segundo o autor. (...) “... Um país que aspira a seguir sendo o único Estado na história que exerce a dominação militar de espectro completo na terra, no ar, nos mares e no espaço.” (...) Foi “ ...o primeiro país que desenvolveu e utilizou armas atômicas...” (...) “... os Estados Unidos conservam 1.550 ogivas nucleares desdobradas e mais 2.200 (outras estimativas falam em 3.500) armazenadas, e uma tríade de veículos de lançamento terrestres, aéreos e submarinos.” Rozoff enumera as abundantes entrevistas coletivas, reuniões e declarações, nos últimos meses, dos chefes do Estado Major Conjunto e de oficiais executivos de alta patente do governo dos Estados Unidos. Explica os compromissos com a OTAN, e a cooperação reforçada dos parceiros do Oriente Próximo, leia-se em primeiro lugar Israel. Ele diz que: “os Estados Unidos também intensificam os programas de guerra espacial e cibernética, com o objetivo de paralisar os sistemas de vigilância e comando militar, de controle, das comunicações, informáticos e de inteligência de outras nações, levando-as a ficar indefesas em todos os âmbitos.” As notícias que chegam cada dia procedentes do Irã não se afastam um milímetro da posição assinalada por eles de manter seus justos direitos à paz e ao desenvolvimento, com um elemento novo: já conseguiram produzir 20 quilos de urânio enriquecido a 20%, suficientes para construir um engenho nuclear, o que enlouquece ainda mais aqueles que há um bom tempo adotaram a decisão de os atacar. Examinei isso na sexta-feira, dia 16, com os nossos embaixadores. Nem Obama poderia alterá-la, nem mostrou em momento algum a decisão de o fazer.

de Educação em Ramalah, cidade palestina. Não será mais um fórum temático. Realizá-lo na Palestina tem um significado especial. Ao não obedecer a Resolução da ONU do direito de criação de um Estado palestino, com os mesmos direitos do Estado de Israel, ocupando os territórios que deveriam constituir esse Estado, Israel – com o apoio solitário dos EUA – impede que a decisão das Nações Unidas seja cumprida. Para chegar à Palestina, é necessário chegar ao aeroporto principal de Israel – Aeroporto Ben Gurion –, onde é necessário submeter-se aos interrogatórios dos serviços de segurança israelenses, que detêm o poder arbitrário de deixar uma pessoa passar ou não. A alternativa é descer na Jordânia e fazer uma longa viagem por terra até o território palestino. Embora com uma forte identidade, uma história milenar e uma extraordinária trajetória de lutas, a Palestina ainda não existe como território soberano, como Estado independente. Está invadida militarmente por Israel, que ocupa seus territórios, mantém o país separado entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, sendo esta, por sua vez, esquartejada pelos muros que a cruzam, pelos assentamentos de judeus em pleno território palestino. Os palestinos são dominados, oprimidos, humilhados. Tenta-se fazer com que a vida deles seja impossível nesses territórios para que se submetam definitivamente a ser superexplorados por Israel ou a abandonar a Palestina, deixando o campo livre para o objetivo de Israel – apropriar-se de todo o território palestino e incorporá-lo a Israel. A realização do Fórum na Palestina tem muito mais significado do que simplesmente mais um espaço de discussão e intercâmbio dos movimentos que lutam por “um outro mundo possível”. Significa legitimar a existência da Palestina, dar voz aos palestinos, integrá-los às suas lutas no movimento global do Fórum Social Mundial. Da mesma forma que foi importante que Lula não apenas visitasse a Palestina, mas fizesse o que os outros mandatários não fazem: dormisse lá, convivesse com o povo palestino, conhecesse as reais e opressivas condições de vida deles. Mas, ao mesmo tempo, o fórum deve conhecer diretamente as condições muito precárias de funcionamento das escolas na Palestina, tanto materiais, como de materiais que permitam o conhecimento, o estudo, a continuidade do conhecimento e da consciência da identidade palestina com as novas gerações.

Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

Emir Sader é cientista político.

sugestões de leitura A POTÊNCIA DE EXISTIR

Michel Onfray Editora Martins Fontes

ATUALIDADE HISTÓRICA DA OFENSIVA SOCIALISTA

István Meszáros Boitempo Editorial

UMA PRESENÇA NO TEMPO: A vida de Jether Ramalho

José Ricardo Ramalho (Org.) Editora Oikos

Cesar ty of T

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Ferréz

Puxa uma criança pelo braço vê outra no colo dela perua desvia de um buraco a calçada cheia de lixo para a bicicleta carro tem que comer faixa farol demora pedestre filha da puta do caralho ela precisa levar a feira motorista grita algo menino desvia da moto a sacola da tia bate no joelho o silêncio não existe menino desvia da moto sacola da tia bate no joelho sai da rua arrombado menino solta a mão dela lotação vazia estoura o retrovisor o peito do homem segura um retrovisor alguém grita lincha um menino foi comprar cigarro uma lombada raspa o carro olhar é ignorado se não por lombada esses minino abusa mesmo catador de papelão cospe no chão o motoqueiro sobe o pezinho alguém acontece a venda fechou por luto o motorista grita o jovem arruma o cabelo o lixo junta som alto da porra menino quer algodão menina balança trança policial encara motoboy abaixa visor banca com ti ti ti vizinha diz que homens vieram dali negro branco um par churrasco farinha palito de bambu pipa canteiro chama no rádio com cigarros rostos secos pelo tempo frutas passadas bacias coloridas caixas amontoadas preços em varais pastel caldo de cana refrigerante ta quente faz dois pra viagem agente brinca de nação voltar pro Irene descer pro Amália subir pra Itapecerica rodar a padaria Elaine açougue lotado banca vazia frita jornal lê coxão mole caminha pra fazer a chave vai rolar quer-

Tumulto

messe hoje sabia que ele chapou o globo pior levou dois téco na caixa de catarro num gosto de simpático o joelho ta ficando ruim aquele dia lá foi sem querer hoje vai ter amistoso quanto tempo Odete vai ver se eu estou na esquina tem uma caneta ai moço us minino é ruim mesmo quanto deu na quina pega e vê se é da boa pode ser de carne mesmo vê uma lôra gelada domingão tem jogo Cê vai colar é boliviana parece da boa vou correr pra pegar o restinho do jornal menino filha da puta vive no computador entulho ética caco de vidro esgoto transbordando pedaço de papel voando pedra na calçada velho com mão na barriga corre-corre filha da puta Adamastor está embaixo do carro diz que diz que diz alguém viu ele subindo do nada apareceu um ônibus alma suja começa o culto você ta um charme hoje a escola ta de greve mentira tem aula todo dia vai fazer exame de fezes professor volta desgostoso tabela da copa do mundo pose de bom fama de macho rebolation tem cinco diz que apareceu um caroço aqui vai vir pro Brasil o policial falou que não tem boi que se pá vai querer o torro inteiro governador autoriza subir morro mulher deixa filho na escola entra no Orkut dele gás lacrimogêneo no educador pai sente saudade depois que separou ta cheio de vírus copa do mundo é assunto hoje no jornal desce escadão sobe viela abaixa nariz muita conta pra bagar encara os homi será que vai dar tempo

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o goleiro acho que é culpado mesmo todo dia a mesma novela o menino entra na sala sorriso no rosto fala fio pra mim o que você queria dizer na verdade Sônia Abrão falou que ele era pobre só ganhar dinheiro mata a vida dessa mulher é complicada mesmo eu ouvi um som assim que na moral num tem blablablá nuazinha na capa da revista deixa a gente tudo acabado a ideia é reta sem curva várias vezes eu vi eles juntos subindo o morro sai todo mundo daqui filhos da puta Ratinho vai mostrar o DNA a lotação desceu a milhão o Faustão parece doente aquilo ali é tudo miliciano corja de viado cê viu o jornal nem ação oficial do estado é de fato deixei ele lá para buscar depois fusca fura pneu índice é medido por entrevista Jabolani rola em bairro nobre começa o tiroteio só para despistar o acordo foi feito o barato é shopping acho mêmo que foi us cara é tudo forgado menino entra na classe o Junior disse que não vai mais falar com o pai senta na carteira abre o caderno quando é tiro de bandido todo mundo escracha essa maconha é da boa mesmo cheirinho bão pega uma farinha cheio de homi armado num esquenta é tudo cria nóis por nóis lado a lado ta tudo acertado tiro tiro tiro vara o coração do menino país sem um ponto de compromisso. Ferréz é escritor e mora num país chamado periferia. agosto 2010

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falar brasileiro Marcos Bagno

Mc Leonardo

FIFA e sua política de “poucos, mas bons”

Saramago, Caetano e Pelé

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Acabou a copa, e a maior entidade es-

clo de tatibitates”. E num livro publicado em 1998, o jornalista brasileiro Marcos de Castro profetizou: “Não fique nenhuma dúvida, o português do Brasil caminha para a degradação total”. Seria muito divertido ler essas patacoadas, se elas não fossem um desserviço desastroso que pessoas julgadas cultas e influentes prestam às relações entre língua, cultura e sociedade. Num documentário sobre a língua portuguesa produzido em 2004, Saramago, em seu depoimento disse uma coisa lindíssima: “Não há língua portuguesa. Há línguas em português”, num reconhecimento da diversidade do mundo lusófono. Logo a seguir, porém, lamentou a degradação da língua atual e disse que em breve voltaríamos a falar como os homens das cavernas, e até fez um gesto patético, imitando um chimpanzé e dizendo: “Ugh! Ugh!”. Depois disso, parei de ler e ouvir entrevistas do escritor. Concluí que com ele eu tinha de fazer o mesmo que faço com Caetano Veloso e Pelé: admirar sua arte, deslumbrar-me com o que sabem fazer em seu ofício, mas não ler nem ouvir suas declarações e entrevistas sobre outro assunto, porque aí as decepções são garantidas.

portiva do planeta faz as contas de quanto lucrou com a divulgação de seu seleto grupo de patrocinadores, que os executivos da área de marketing da federação chamam de “poucos, mas bons”. Pra valorizar a marca World Cup, a FIFA adota a política de não fazer negócio com qualquer um. E para proteger as marcas que a ela chegaram vale tudo. A pedido (ou a mando) da FIFA o governo da África do Sul montou um tribunal onde o sujeito era julgado em tempo recorde (no mesmo dia do delito), uma juíza de Johanesburgo disse nunca ter visto nada parecido e que estava maravilhada com aquela ideia inovadora da entidade. O objetivo da FIFA com essa atitude era combater a pirataria, que segundo o comitê organizador da copa chegou a tirar de circulação mais de 70 milhões de euros em produtos pirateados e centenas de pessoas detidas na comercialização de tais produtos. Esses cálculos foram feitos como se os produtos fossem oficiais, como se as pessoas que compraram os produtos piratas fossem comprar o oficial caso não tivesse o pirata. Vamos lá, uma camisa oficial da seleção brasileira no Brasil foi vendida durante a copa por 189,00 reais, pouquíssimos torcedores têm condição de vestir uma camisa oficial da seleção. As camisas “falsificadas” e vendidas nos lugares “não credenciados” por 40,00 reais, quando são apreendidas entram nesse cálculo absurdo. Durante a Copa do Mundo na África não se pôde vender, comprar ou consumir nenhum tipo de produto que não fizessem parte da política capitalista da FIFA. O que a FIFA tinha de respeitar é os apaixonados pelo futebol que se multiplicam a cada ano no mundo e que são na grande maioria composta por gente pobre. Quem não tem poder de compra, que não compre! É exatamente assim que a FIFA pensa, pois a política de “poucos, mas bons” não vale somente para as empresas que querem vender seus produtos, mas também pra quem quer comprar.

Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

Quando eu ainda estava na faculdade, uma professora de literatura me recomendou a leitura de O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Fui numa livraria de Brasília especializada em livros portugueses, comprei e comecei a ler. Foi uma das experiências literárias mais impactantes da minha vida. Era difícil acreditar na existência de semelhante obra-prima, foi um perfeito alumbramento, como diria Manuel Bandeira. Quando recebeu o Nobel, fiquei muito feliz, apesar da bobagem tão repetida de que era o primeiro Nobel “da língua portuguesa”, como se a fama e o reconhecimento internacional tivesse alguma coisa a ver com a língua materna do escritor e não, como é de fato, com a leitura que se faz mundo afora das traduções de sua obra. Sua morte repentina, anunciada sem aviso prévio, me pegou de surpresa e me entristeceu. Infelizmente, porém, nem tudo o que Saramago dizia me causava o mesmo encantamento de sua produção literária. Como a maioria dos escritores, de todos os matizes políticos e ideológicos, quando o assunto era língua, Saramago se mostrava adepto das mesmas superstições e preconceitos que configuram o senso comum mais rasteiro. Certa vez, um jornalista brasileiro pediu a ele que repetisse uma resposta que tinha acabado de dar porque ele, jornalista, não tinha compreendido tudo, por causa do sotaque do escritor. Saramago então disse que quem tinha sotaque eram os brasileiros, e não os portugueses, já que são os “donos” da língua. A um jornal lusitano declarou: “O português é hoje mal falado, é atropelado mortalmente todos os dias”, um discurso que pode ser encontrado quase com as mesmas palavras em declarações de intelectuais e escritores do século XVIII, XIX, XX, XXI... O escritor português José Agostinho de Macedo (1761-1831), por exemplo, escreveu: “Se não existissem livros compostos por frades, em que o tesouro está conservado, dentro em pouco podíamos dizer: ora morreu a língua portuguesa, e não descansa em paz”. Ramalho Ortigão (1836-1915), escritor e político português, decretou: “Temos a prosa histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raça moribunda. A nossa pobre geração de anémicos dá à história das letras um cicaros amigos agosto 2010

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

Estão todos juntos,

circulando por ali. Gilberto Gil e Caetano Veloso conversam com o repórter televisivo Randal Juliano, enquanto Roberto Carlos passa para lá e para cá. Nara Leão se aproxima, para, entra no meio de Gil e Caetano, fica observando. Caetano sai de mansinho e vai conversar com outros jornalistas, enquanto Nara toma o lugar dele no papo. Arnaldo Baptista circula desenvolto entre eles, de guitarra na mão. Chico Buarque está de smoking e fuma um cigarro enquanto conversa com os jornalistas. Randal diz que vai deixar a próxima pergunta para a colega Cidinha Campos, abandona o entrevistado e fica andando ao redor. “Tô meio atrapalhado agora pra falar”, Chico sua frio. Com Nara ao fundo, Gil tenta socorrer Arnaldo nas respostas a Randal, que segura o microfone numa mão e um cigarro aceso na outra. Roberto se une ao grupo e conta uma piada. São imagens que não parecem plausíveis hoje em dia, mas aconteceram, de fato, há 43 anos, na noite de encerramento do III Festival da Música Popular Brasileira. Recuperadas agora nos baús da TV Record, ressurgem no documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil. Poder saboreá-las é uma delícia, mas deixa uma certeza: nada nunca mais foi como era ali. “É divertido ver Caetano, Gil, Chico, Roberto transitando descompromissadamente no meio das pessoas e sendo puxados pelos entrevistadores para conversas desarmadas e informais”, diz Renato Terra. “São atitudes impensáveis para a TV extremamente programada e cercada de todos os cuidados politicamente corretos que vemos hoje.” O abismo que nos separa de 1967 foi cavado em grande medida pela indústria cultural que ali ia se constituindo da maneira como nos acostumamos a conhecê-la – e que hoje dá sinais evidentes de putrefação. Com exceção do “rei” Roberto, os artistas da dita MPB não são mais funcionários assalariados das TVs e não cumprem tabela sorridente como cumpriam então – ou

cumprem, mas em veículos de “celebridades”como o TV Fama e/ou a revista Caras. Em lugar do corpo a corpo entre artistas e jornalistas, estabeleceu-se na linha de fronteira um exército de assessores de imprensa, empresários, funcionários de gravadoras. Artistas tidos como mais sérios preferem dar entrevistas apenas quando estão para lançar produtos comerciais novos, como shows ou, se é que eles ainda existem, discos – jornalismo é publicidade. Roberto e Chico fogem de tal contato como quem fugisse dos nazistas. Do outro lado, os jornalistas nos acomodamos em redações também decadentes, entre entrevistas e críticas burocráticas e desconectadas do mundo lá fora. As TVs empurram programas musicais para as madrugadas, rádios perdem influência, gravadoras desaparecem, todo mundo pirateia todo mundo. Este texto vai tomando tom melancólico/nostálgico, mas não é disso que se trata. O advento de Uma noite em 67 é motivo de festa e deixa no ar um gosto de quero mais e uma promessa de boas notícias. “A história dos festivais da Record está razoavelmente preservada”, avisa Ricardo Calil. Com acesso ao acervo da emissora, ele afirma que, ao contrário do que se costuma pensar, a Record ainda possui imagens de todos festivais entre 1966 e 1969. Se o prumo saudosista persiste, mudemos de rumo. A espontaneidade das cenas de bastidores de 1967 é útil não para trazer nostalgia do que não temos mais (ou nunca tivemos, no caso das gerações mais recentes). Se admiradas com inteligência, tais imagens fornecem farto material para a invenção dos novos modelos que imploram por nascer, mas que ainda não conseguimos palpar, nós que somos consumidores, jornalistas, artistas ou isso tudo ao mesmo tempo. Para isso, o festival de 1967 pode servir de inspiração, mas o documentário também ajuda a ver que não foi assim o sétimo céu cor-de-rosa ou a estrada de tijolos dourados de Dorothy. Por trás da aparência de harmonia e congraçamento havia muita animosidade – entre artistas e artistas, de jornalis-

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tas para artistas (as entrelinhas estão todas ali, nas cenas de bastidor), entre espectadores e artistas. Pela primeira vez em quatro décadas, podem ser revistas na íntegra as circunstâncias da vaia estrondosa a Sérgio Ricardo e à sua Beto Bom de Bola – e não só o fragmento manjado no qual o cantor quebra o violão e o atira na plateia. “Ele tenta puxar o saco do público, faz piada se dizendo ‘Beto bom de vaia’, em vez de ser profissional e seguir cantando, como Roberto e Caetano”, avalia Calil. Edu Lobo e Marília Medalha venceram o festival com Ponteio, que falava de “violência, viola, violeiro”. Mas, mais até que eles, a principal protagonista daquele festival foi a vaia, e por um motivo muito simples e até hoje pouco documentado. A ditadura amarrava o país e cercava toda e qualquer liberdade de expressão, inclusive a das eleições diretas. Nesse contexto, a vaia virou uma espécie de voto e o artista se transformou na urna onde se depositaria o “sim” ou o “não” simbólico ao mundo lá fora. Tanto o “sim” como o “não” tomaram conta do pedaço, e o segundo levou até o poeta concreto a celebrar: “Viva a vaia”. O compositor Chico de Assis surge no filme mencionando a coincidência “junguiana”, não percebida à época, entre o violão quebrado de Sérgio e os versos de Ponteio, “quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”. O filme mostra que ele está errado: era exatamente sobre isso a piada que o jovem e profissionalíssimo Roberto Carlos contou na rodinha de quase-amigos de 1967. De todo modo, não era viola ou violão que lhes faltava, a todos. Era o voto. E o público, descontrolado, concordava e gritava que queria, sim, o direito de votar, escolher, intervir, participar. Aqueles artistas hoje nos parecem livres, embora não fossem – e a ditadura ainda parece persistir em gravadoras, TVs, rádios e redações onde não se pode expressar opinião, declarar preferência política, espanar o mofo e a apatia. Se Uma noite em 67 ainda pode nos dizer algo em 2010, que seja: viva o voto. Pedro Alexandre Sanches é jornalista. agosto 2010

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ilustração: murilo silva

Vaia, violão, violência, voto

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entrevista

Marcio Pochmann

Participaram: Bárbara Mengardo, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

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esquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT), professor da Unicamp e atual presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, o economista Marcio Pochmann analisa, nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, vários problemas sociais e econômicos do Brasil, aponta alguns dos grandes desafios do presente e do futuro, aborda de forma precisa e reveladora os assuntos mais delicados da agenda política, como a elevação dos juros, a concentração do capital, os salários e o desemprego, a inclusão social e as reformas constantemente adiadas. Enfim, um material fundamental para quem quer entender melhor a realidade brasileira.

Hamilton Octávio de Souza – Como você

virou economista e qual é a sua trajetória, de onde é, onde estudou? Marcio Pochmann – Bem, eu sou gaúcho, nasci em uma cidade chamada Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul, que é basicamente no centro do estado, uma cidade colonizada por imigração alemã na segunda metade do século 19, é a principal região produtora de fumo e erva-mate. Eu estudei em um colégio católico, desde os dois anos de idade até completar o ensino médio. Fiz vestibular para medicina e para a minha sorte não passei. Aí eu trabalhei quase um ano em uma fábrica de beneficiamento de fumo na minha cidade, naquela época era uma fábrica nacional que se chamava Fumo Sul, hoje é praticamente uma internacionalização das indústrias que beneficiam fumo no Brasil.

Tatiana Merlino - Fazendo exatamente o que? Meu curso de 2º grau era técnico em química. Então eu trabalhei na fábrica de fumo como analista de laboratório dessa fábrica, que media teste de nicotina, umidade do fumo, pois era basicamente fumo para exportação. Aí eu fui para Porto Alegre e lá eu fiz o curso de economia da Universidade Federal Rio Grande do Sul, de 81 a 84. Foi uma experiência muito interessante.

Tatiana Merlino – E quando você veio para a

“A desigualdade no

Brasil é coisa de

sociedade feudal”

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Unicamp? Bem, eu vou para Porto Alegre, fico quatro anos lá e a gente tinha uma experiência muito rica de participar do movimento estudantil. Tinha congresso da UNE, UEE e eu acabei até sendo presidente do centro acadêmico lá, do DAECA, Diretório Acadêmico de Economia, Contábeis e Atuárias. Foi muito rico essa possibilidade de participar do movimento estudantil lá. Bom, em 84 eu me formo, fiz toda a minha graduação fazendo estágios, minha família era humilde, eu sou filho de um relojoeiro e de uma funcionária pública municipal. Em 84 eu fazia um estágio no escritório regional do DIEESE, em Porto Alegre. Eu termi-

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nei minha graduação, isso era final de 84 e nesta época o Walter Barelli que era diretor do IPEA me convidou para organizar o escritório regional do DIEESE em Brasília. Então em janeiro ou fevereiro de 85 eu fui para Brasília. Lá fiquei até dezembro de 88, lá acompanhei as atividades do DIEESE de assessoramento do movimento sindical, que estava renascendo naquele período em Brasília. Acompanhei a Constituinte, fiz minha pós-graduação em Brasília, dei aula na Católica de lá. Em 89 eu vim para Campinas, prestei um concurso, pois naquele momento tinha um projeto de criação do CESIT, que era uma combinação de interesses daqui do Instituto de Economia, uma visão mais acadêmica do tema do trabalho e da questão social vinculado com o engajamento com o mundo do trabalho. Era uma combinação de pessoas que vinham do DIEESE com colegas que já estavam aqui naquele momento. O João Manoel era uma das referências, na época, aqui do Instituto de Economia junto com o Carlos Afonso de Oliveira. O Jorge Matoso já era professor daqui, Aloísio Mercadante também era professor e vieram outros colegas que prestaram concurso e entraram como técnicos no CESIT. Além de ter sido técnico fiz também o meu doutorado aqui.

Hamilton Octávio de Souza – Isso foi em 89? É de 89 até 93.

Hamilton Octávio de Souza – Reuniu um

grupo importante aqui no CESIT, não é? Sim, sem dúvida. E aí começou a trabalhar na formação, montar uma especialização, pesquisa na área acadêmica aqui da universidade e um trabalho de pesquisa junto com o movimento sindical brasileiro. Mas justamente isso ocorreu na fase auge no movimento sindical do final dos anos 80. Mas à partir de 1990 começa uma longa noite de refluxo sindical. Mas foi muito importante porque nos deu uma dimensão nacional no ponto de vista de atuação com o sindicalismo brasileiro. Fiquei 92 e 93 fora do país, na chamada “bolsa sanduíche”, a qual você faz a pesquisa fora do Brasil. Acabei ficando um ano e meio fora estudando as políticas de garantia de renda do pós-guerra. Fiquei na Itália, França e Inglaterra. Isso foi muito importante para terminar minha tese de doutoramento que era uma comparação, entender a anomalia brasileira no caso italiano, inglês e francês no ponto de vista da constituição de políticas de garantia de renda chamada “política de bem-estar social”. Então em 93 eu concluí meu doutoramento. Em 94 eu terminei trabalhando em Brasília junto à assessoria do ministro Walter Barelli, ministro do governo Itamar, o que foi muito importante porque me permitiu trabalhar simultaneamente na construção do plano real. Em 95 me tornei professor, fiz concurso, entrei na Unicamp. Em 2001 acabei indo trabalhar com os colegas na gestão

da Marta Suplicy. Outra experiência muito importante foi a constituição de uma secretaria que não existia naquele momento na prefeitura, uma secretaria que tratasse o econômico-social.

Hamilton Octávio de Souza - Como chamava

essa secretaria? Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade. Foi possível constituir uma equipe de diversos colegas que vieram de universidades aqui de São Paulo. Era uma espécie de Sorbonne da prefeitura porque tinha muitos doutores, muita gente que se formou e foi se engajar lá com essa perspectiva de buscar a reconstrução do desenvolvimento da cidade de um período longo de estagnação e regressão, combinando justamente a parte de programas vinculados a emancipação social, principalmente do segmento mais empobrecido. Isso permitiu desenharmos um pacote que chamávamos de estratégia paulistana de inclusão social que começava com um programa de transferência de renda. Sem falsa modéstia posso dizer que os programas federais hoje, uma parte estão referenciados ao que ocorreu em São Paulo, por exemplo o programa “Bolsa Família”. O cadastro do “Bolsa Família” ele foi, digamos, influenciado pela forma que a gente construiu do chamado cadastro cidadão na prefeitura de São Paulo.

Lúcia Rodrigues - O IPEA sob a sua

presidência teve um ponto de inflexão, passou a privilegiar as pesquisas estruturais da sociedade, em detrimento da parte conjuntural. Como isso contribui efetivamente para diminuir a desigualdade social no país? Começo dizendo que as pesquisas não mudam a realidade, permitem conhecer melhor a realidade. Ao conhecer melhor a realidade é o primeiro passo para mudar a realidade. Se a gente não conhecer a realidade, não entender a realidade, não vai mudar a realidade. O IPEA é diferente da universidade, em que você tem autonomia da produção do conhecimento. De maneira geral, o que move o pesquisador acadêmico é a vontade dele conhecer a realidade. No caso do IPEA, que é uma instituição de pesquisa econômica aplicada, é diferente, tanto é que lá os nossos colegas não são pesquisadores, são técnicos em planejamento e pesquisa. A ideia é que a pesquisa esteja articulada ao planejamento da própria política pública, tem a ver com a concepção que teve o IPEA originalmente, que é uma instituição da ditadura militar, criado em 64 e não foi pensado no Brasil. Ele é produto norte-americano, como foi também o PAEG, o plano de ação econômica do governo do regime militar, um programa de estabilização monetária, um programa ortodoxo aplicado em 64.

Hamilton Octávio de Souza - Qual é o papel

“O Brasil tem uma estrutura fundiária hoje pior do que era nos anos 50”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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estratégico do IPEA hoje? Todo esforço que estamos fazendo está associado a um planejamento estratégico que constituímos, cuja principal centralidade é permitir que o IPEA tenha a capacidade de atuar nas complexidades do planejamento do estado brasileiro. A sociedade brasileira, em consequência o estado brasileiro, é de uma complexidade enorme. Pegando qualquer área é um mundo de problemas e desafios. Nós operamos em forma de convênio com os ministérios, cada um tem um acordo-cooperação que diz lá o que vai fazer, quanto tempo, o recurso envolvido e é tudo transparente no nosso site. Como é que a complexidade da educação se combina com a complexidade da saúde, essa visão holística totalizante é fundamental para o IPEA, para que possamos acompanhar com os setores e monitorar o conjunto das políticas públicas e ao mesmo tempo ajudar na coordenação dessas ações no médio e longo prazo. Isso de certa maneira, não se faz no Brasil.

Tatiana Merlino - Queria que você falasse

um pouco da última pesquisa do IPEA sobre a redução da pobreza extrema, quantas dessas metas foram atingidas? Quanto se deve ao “Bolsa Família”, quanto ao crescimento da economia? E queria saber também se com isso conseguimos superar o ciclo da pobreza? Nós estamos iniciando o século 21 com problemas do século 19, nós estamos ainda com problemas de países subdesenvolvidos, pois país desenvolvido não tem pobreza, pobreza extrema, tem pobreza relativa, tem outras formas de manifestação da pobreza. Nós estamos atingindo este patamar de ter no horizonte o fim da pobreza extrema de forma tardia porque pelo patamar econômico que o Brasil atingiu já nos anos 70, início dos anos 80, já não era adequado ter indicador de pobreza como ainda tinha. A Constituição de 88 é a primeira Constituição que temos no Brasil que estrutura o estado de bem-estar social. A Constituição permite estabelecer as chamadas estruturas verticais, no caso da educação, da saúde, do trabalho, da assistência, da previdência. Hoje nós temos uma estrutura de estado de bem-estar social próxima à estrutura europeia de estado de bem-estar social. O sistema de saúde estruturado no Brasil é muito mais eficiente do que o sistema de saúde norte-americano, nosso sistema de saúde com 8% do PIB move essa massa gigantesca de pessoas, no caso dos EUA são 18% do PIB. Se você juntar os recursos públicos e privados e você tem um parte dos norte-americanos pobres que não tem acesso ao sistema de saúde, tanto é que foi feita a reforma agora, muito recente. Olhando o lado educacional, praticamente os 100 anos da república, de 1889 a 1988 foram ínfimos do que se esperava de uma educação republicana, a despeito dos discursos de que a educação é a base de um cidadão universal. A experiência democrática brasileira nos últimos 25 anos mostrou que o Brasil tem capacidade de resolver os problemas do presente que estão conectados com o passado, da forma que o Brasil teve a escravidão que gerou a desigualdade racial, as questões vinculaagosto 2010

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das à desigualdade de gênero, questões relacionadas a crianças e adolescentes, problemas que estão vinculados à transição tardia que o Brasil fez da sociedade agrária para a sociedade urbano-industrial, pelos problemas que foram gerados pelo ciclo de expansão dos anos 30 aos anos 70 sem estarem associados a democracia. Nós tínhamos uma maioria política originária da revolução de 30 e que vai até o fim dos governos militares até 82/83. Vai em uma convergência política, como diz o Fiori, está preocupada em empurrar os problemas para frente, não vai resolver os problemas, então não vai resolver os problemas. Mas o crescimento econômico é o principal elemento da ascensão social e do engrandecimento do Brasil. Agora o enfrentamento dos problemas que estão vinculados à emergência do capitalismo urbano industrial não foram enfrentados. O Brasil não fez as reformas clássicas do capitalismo contemporâneo, não fez a reforma agrária, não fez a reforma tributária e não fez a reforma social. O Brasil tem uma estrutura fundiária hoje pior do que era nos anos 50 quando ganhou primazia a defesa da reforma agrária. Nós estamos falando de 60 anos de reforma agrária e a estrutura fundiária brasileira piorou, nós não enfrentamos a questão fundiária, da tributação, os pobres continuam pagando mais impostos, os ricos continuam pagando menos impostos. Qualquer país desenvolvido tem uma estrutura fundiária menos concentrada, uma estrutura tributária progressiva e não regressiva. O que avançou mais foi a estrutura social, o enfrentamento das questões do presente que se vinculam com as questões do passado. Estamos colhendo resultados muito importantes, tem a ver com a Constituição de 88, com melhor sofisticação e orientação das políticas sociais que se combinaram com o econômico no governo Lula. Mas, para nós, estamos gestando um novo ovo da serpente, cujo sinais de exclusão são muito maiores do que esses que nós conhecemos agora. São questões do presente que se vinculam com o futuro.

Hamilton Octávio de Souza - Quando você

fala de sinais de exclusão, quais são estes sinais de exclusão? O ovo da serpente que estamos gestando está estruturado em dois grandes eixos que estruturam as sociedades pós-industriais, que é para onde nós estamos indo muito rapidamente. O primeiro está vinculado à mudança demográfica, profunda mudança demográfica. Primeiro lugar porque há uma queda na taxa de fecundidade. Estamos hoje sem condição de repor a população, uma taxa de fecundidade de 1,8 filhos. Em 92 eram 2,8 filhos, mulheres brancas com mais escolaridade já estão com a taxa de fecundidade 0,9. Hoje o Brasil já é um país formado por não-brancos, em 2030 possivelmente teremos 2 a cada 3 não-brancos. Não falo isso por uma questão preconceituosa, falo isso por que os não-brancos são os mais vulneráveis no Brasil ainda hoje. E requerem uma política de atenção específica para este segmento. Segunda questão é que a partir de 2030 o Brasil terá uma situação inédita, que é a redução absoluta de sua nação. O número de nascidos será bem

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menor do que o número de pessoas que morrem. Em 2030, o Brasil terá possivelmente 207 milhões de brasileiros. Os demógrafos estimavam há 20 anos que em 2030 o Brasil teria cerca de 240 milhões de brasileiros, vamos chegar a 207 e em 2013 nós teremos uma redução absoluta da população. Ou seja, em 2040 é esperado que tenhamos 205 milhões. Isso abre uma outra discussão, para os militares, republicanos em geral a demografia sempre foi estratégica, hoje a questão da demografia está em segundo plano, nós estamos satisfeitos com 207 milhões de habitantes, o Brasil precisa ter mais população ou menos população, o tamanho de uma economia está diretamente ligado ao tamanho da população, ainda mais pelo fato de que o grosso da população brasileira ainda está na parte litorânea do país, a densidade demográfica no Centro-Oeste é baixíssima. Esse é um ponto: a questão da mudança demográfica. Entraremos em uma fase de escassez de mão-de-obra e o Brasil sempre foi abundante na mão-de-obra. Quem farão os serviços mais simples do Brasil? Serão os paraguaios, os bolivianos, será uma outra realidade se manter esta trajetória, estou aqui especulando um pouco sobre a trajetória, com base em hipóteses.

Hamilton Octavio de Souza – Teremos novos

tipos de exclusão? Primeiro, está relacionado ao rápido processo de envelhecimento da nação. Em 2008, o Brasil tinha 3 milhões de pessoas com 80 anos ou mais. Em 2030 serão 20 milhões de pessoas com 80 anos ou mais. O Brasil não está preparado para lidar com esta situação, não tem políticas adequadas de saúde, de mobilidade. Pessoas com mais idade tem mais dificuldade de se mover. As nossas cidades não estão preparadas para essa condição, a condição do individualismo, da solidão que se remete ao fato de nós não termos mais políticas que olham a questão do lazer, da convivência, da sociabilidade. Um país com uma sociabilidade mínima exigiria centros de entretenimento, de lazer, de cultura de grande envergadura. Hoje, infelizmente, o nosso centro de integração é o shopping center. Isso aí não é integração alguma, isso aí é mercantilização do tempo livre. O risco de gerarmos uma sociedade sem coesão social é grande e a ausência da coesão é na verdade de uma dimensão de processo de exclusão muito grande. Segundo aspecto relacionado aos sinais de exclusão está associado a um movimento de desestruturação das famílias. As famílias que guardavam o mínimo de coesão comunitária e familiar eram formadas por dois adultos, duas ou três crianças. O que vem mais crescendo no país são famílias monoparentais, é um adulto e uma criança. Como adulto é uma mulher e quando não é um idoso, essas famílias não estão constituindo o mínimo de sociabilidade, porque a mãe ou o adulto

não está em casa. A criança ou está em um tempo diante da televisão ou um tempo na escola, que é um tempo não muito bem aproveitado. A escola não é mais aquele espaço como no passado, espaço de convivência e de construção de sociabilidade, é um espaço de competição.

Lúcia Rodrigues - Em relação ao mercado

de trabalho nós temos um alto grau de informalidade hoje. Como fazer para reverter este tipo de situação? Dois traços marcantes do Brasil urbano industrial estão relacionados. O primeiro é que nós temos constituído no país um mercado industrial de baixos salários, sempre com super-abundância de mão de obra. Isso se dá lá na transição da escravatura para o trabalho livre e não conecta ex-escravos no mercado de trabalho. Nós precisamos ter criado em 1931 a lei dos dois terços que obrigava aos empresários a contratar no mínimo dois terços no Brasil, porque até então eles contratavam os imigrantes. Este mercado de trabalho abundante tem a ver com a opção que o Brasil fez pela imigração branca e amarela. Foi em quantidade muito maior do que as necessidades que o país tinha; e em terceiro lugar pelo fato do Brasil não ter feito a reforma agrária, que terminou fazendo com que pessoas saíssem do campo e fossem para a cidade em número inimaginável. Foram mais de 100 milhões de pessoas que saíram do campo para cidade, sem coordenação, sem nada. No meu modo de ver, o fenômeno que estamos vivendo de mudança de estratificação social brasileira tem muito menos a ver com o que se chama de nova classe média e mais com o enfrentamento com o que os ingleses chamam de working poor, que é uma classe trabalhadora muito pobre que passou a ser beneficiada com uma política de salário mínimo mais revigorada e, de outro lado, com problemas que atendem a este segmento que estão no âmbito da classe trabalhadora. Nós mesmos estamos estudando esta questão e observamos que quando você fala de classe média, a classe social não é um fenômeno econômico, é um fenômeno pensado pela sociologia de forma muito mais abrangente e enriquecida, e não de forma primitiva como vem sendo apresentado por alguns estudos. Classe média não pressupõe apenas a renda, pressupõe uma estrutura ocupacional de como ela está inserida no mercado de trabalho. Pressupõe a sua capacidade em termos de propriedade, são pessoas que tem casa, que tem bens de consumo duráveis, gastam uma parcela de sua renda com cultura, com educação. Então é uma outra composição, portanto eu acredito que esta circunstância da informalidade, da rotatividade pressupõe crescimento econômico e ao mesmo tempo um fortalecimento muito mais ampliado das instituições que estão vinculadas ao mundo do trabalho, seja da patro-

“Um novo governo terá que fazer algumas opções, vai ter que fazer alguma reforma tributária”.

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nal, seja dos trabalhadores. O Brasil precisaria fazer uma reforma trabalhista inclusiva, pois abrir esta possibilidade de você incluir os que estão de fora e fortalecer os que estão de dentro.

Hamilton Octavio de Souza - O modelo

que foi aplicado no Brasil a partir de 90 já vinha dos anos 80, mas com o Collor e depois com o Fernando Henrique, aumentou a informalidade e se construiu um patamar bem mais alto de desemprego permanente. Houve décadas no Brasil que era menos 3% e depois foi para cima de 15%, e em algumas capitais chegou em 25%. Como esse quadro está hoje? Nós partimos do pressuposto que o Brasil está vivendo hoje o embrião de um novo padrão de acumulação com fortes implicações sociais, olhando a história de longo prazo. O que tivemos entre as décadas de 30 a 70 foi um programa de crescimento econômico em que os sociais estavam subordinados ao econômico. Não precisava muito do social, porque o econômico cria emprego e resolve o problema da empresa. Havia uma maioria política cujo elemento organizador era o crescimento econômico e o social por decorrência ia melhorando. Este crescimento econômico foi também uma grande amálgama.

Hamilton Octavio de Souza - O social que

você chama é o salário? É o estado de bem-estar social. Mesmo crescendo rapidamente, dada a migração campo-cidade, São Paulo crescia uma barbaridade, mas o fluxo de migrantes terminava sendo em maior quantidade do que os empregos gerados. Esse ciclo de expansão do desenvolvimento nacional praticamente se desorganiza na crise da dívida externa, na qual a opção que o Brasil fez foi de pagar a dívida. Portanto, ele tirou o dinamismo do mercado interno, pois para pagar a dívida, nós geramos dólar. Para pagar a dívida em dólar, você precisa reduzir o mercado de trabalho, gerar um excedente exportador, e nossas exportações não eram o que sobrava do mercado interno. Elas eram o que reduzíamos do consumo interno para poder exportar. A opção foi pagar a dívida externa, o que significou retirar o dinamismo interno do Brasil e dependermos, recentemente, da situação econômica internacional. A implicação política disso é que você desestrutura aquela convergência política que vinha desde os anos 30, que é a de crescer. Quando não tem crescimento, o grande capital diz “mas eu tenho uma estrutura de produção que está voltada aqui, eu quero ter margem de lucro assim, assim e assado, mas não vai ter crescimento e você não vai ter esta margem de lucro”. A não ser que você vá para exportação, aí pode ganhar. Mas quem tem condição de exportar no Brasil é o agronegócio e não a estrutura produtiva de São Paulo. O que acontece é que a democracia pressupõe apoio, pois a nossa trajetória de 500 anos não tem 50 de democracia. Nossa tradição é o autoritarismo, a imposição. Como se sustenta a democracia? Tem que ter apoio. A experiência democrática neste 25 anos foi criar

“Os pobres continuam pagando mais impostos”. equilibristas. A figura do presidente Lula é aquele que melhor soube combinar os extremos, ele tem o seus 70 ou 80% de apoio e é algo incrível, pois ele tem o apoio dos extremamente pobres, mas também tem apoio dos extremamente ricos. Os banqueiros não declaram que são contra, pelo contrário. A despeito de ter havido a queda das transferências de juros feita para o capital privado, continua a fazer 5 ou 6% do PIB, o que não é pouca coisa. Esse equilibrismo que se criou entre os sistemas não é novidade no Brasil. Gilberto Freyre conta a situação do império, de como é que o padrão de dominação de uma sociedade agrária se dá por esta forma de mando em que liderava os de baixo com os de cima. Na transição da democracia- em uma economia que não cresce- vai gerar a financerização da riqueza, isso é, os empresários frente a uma economia que não cresce percebem o decréscimo da sua taxa de lucro. Aí os enriquecidos pressionam o estado para que este compense a sua queda na taxa de lucro. Como ele vai compensar isso? Ele vai compensar com a macroeconomia financeira. Não se ganha mais na produção, e se ganha no juros.

Tatiana Merlino - Mas é possível fazer a

superação deste ciclo de pobreza atendendo os de cima e não fazendo as reformas que você citou? Não. Por isso eu estou falando que nós estamos no embrião de um novo padrão de acumulação, o padrão de acumulação que hoje está em curso, social-desenvolvimentista. É o padrão que, sem expropriar os ricos, vai na verdade em um trabalho de convencimento, de diálogo. No meu modo de ver, há sinais para uma nova convergência política, aqueles segmentos que eram participes da macroeconomia financeira, a financeirização da riqueza, estão cedendo gradualmente para o in-

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vestimento produtivo e variado. Os pobres estão vivendo melhor, mas os ricos também estão extremamente bem e não tem do que reclamar. E é compatível neste sistema você fazer esta mudança sem expropriação, sem radicalismo. Você faz esta negociação, uma frente que une os mais diferentes lados. Isso permite que o Brasil vá resolver os problemas do passado. Acredito que um novo governo terá que fazer algumas opções, vai ter que fazer alguma reforma tributária para sustentar o investimento, sustentar o gasto social. Olha a engenharia brasileira, nestes últimos 25 anos, tem diferenças entre os governos, os neoliberais foram muito próricos, o maior processo de transferência de riqueza ocorrido no Brasil foram nos anos 90. Os ricos nunca se deram tão bem no Brasil quanto nos anos 90, apesar da economia não ter crescido. Primeiro lugar é o seguinte: os ricos ganharam no Brasil e fora do Brasil, porque tem estrangeiro também, ganharam 15% do PIB através da privatização. O Brasil transferiu 5% do PIB que estava no setor estatal e passou para o setor privado. Segundo, a dívida pública brasileira, que no começo dos anos 90 era algo em torno de 30 foi para 60%, a dívida é aquele mecanismo que permite em cima de papéis, especulação de capital fictício transferir riqueza, transferência de riqueza pública, o estado do ponto de vista do seu orçamento repassando para 20 mil famílias. Terceiro, aprofunda a reforma tributária que foi feita no Brasil e aumenta a arrecadação. O estado participava com 25% do PIB e vai para 35% do PIB. De onde sai este recurso? Sai dos pobres, pois quem ganha dois salários mínimos paga um salário mínimo todo mês na forma de impostos. E isso aí foi para onde? Foi para o fundo público e ele viabilizou este processo de transferência. Essa equação que foi criada aumenta a carga tributária e com este aumento se atende os ricos e agosto 2010

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pobreza? Se o novo presidente do Brasil não tiver uma correlação de forças para passar para um outro patamar e fazer reformas nós corremos o risco de retroceder? Claro. O enfrentamento das mazelas geradas pelo capitalismo requer ação, como se fosse andar de bicicleta. Precisa sempre estar pedalando. Parando de pedalar, você cai. O enfrentamento das desigualdades, do processo de exclusão que está sendo gestado implica em uma ação contínua, sistêmica, organizada e planejada por parte do estado.

atender aos pobres não vai ser mais possível. Há um certo esgotamento de continuar a aumentar a carga tributária dessa maneira. Será preciso fazer uma reforma da tributação, aliviar os pobres e aumentar sobre os ricos. Começa agora a ser um governo que precisa fazer algumas opções mais duras. Ele poderá fazer se tiver convergência política, caso contrário será muito difícil.

Tatiana Merlino - Quais são as outras opções

que você considera urgentes? A questão tributária. Nós levamos ao limite as políticas de distribuição de renda. O estado brasileiro está distribuindo muito melhor o que ele arrecada. A questão é que precisamos fazer a transição das políticas distributivas para as políticas redistributivas. Políticas redistributivas não são aquelas do ponto de vista do gasto, mas do ponto de vista da arrecadação, de quem você vai arrecadar. O que acontece na sociedade brasileira, é que principalmente os que estão na grande mídia, são extremamente preconceituosos, olham os pobres e reclamam- pois os pobres recebem benefícios- e não observam que a classe média brasileira é extremamente beneficiada. A classe média tem uma série de subsídios, sem nenhuma contra-prestação. A classe média e os ricos. Uma das principais compensações está relacionada ao sistema de imposto de renda. Os ricos e a classe média utilizam-se do abono que tem na declaração do imposto de renda para financiar os seus gastos privados em saúde, em educação, em previdência. Em 2007, foram quase 12 bilhões de reais gastos para financiar a saúde privada. Tais beneficiários do recurso público financiando a saúde privada, são aqueles que contratam sete milhões de empregadas domésticas no país e somente 7% tem carteira assinada. Não tem nenhuma condicionalidade sobre aqueles que recebem recursos públicos favorecidos, subsidiados, mas há uma série de condicionalidades para os pobres no Brasil.

Hamilton Octavio de Souza - O Brasil

mantém uma contradição bastante forte há muito tempo que é o de ser uma potência econômica emergente - está entre as maiores do mundo do ponto de vista econômico e tem um IDH lá embaixo, com recordes de desigualdades. Nos últimos anos a curva da desigualdade foi modificada? Há condições concretas de dizer que a desigualdade brasileira tem sido reduzida? Do ponto de vista da desigualdade de renda, que é uma das desigualdades mais primitivas do ponto de vista da sua medida, há sinais de que os extremos estão se aproximando, seja quando você trata do ponto de vista pessoal da renda do trabalho que é o que a PNAD do IBGE nos permite analisar. Na verdade, há uma elevação do piso, eleva-se o piso e se reduz a distância. É um pou-

co a trajetória dos países que tiveram a experiência democrática. Não se corta os grandes salários e se eleva os de baixo, então a desigualdade tende a diminuir. O Brasil sai de um índice de GINI de 0,6% para um índice de GINI de 0,54%, dado de 2008. Na verdade, estamos voltando à situação do Brasil dos anos 60. Em termos de desigualdade de renda, o primeiro índice GINI feito em 1960, quando o censo demográfico brasileiro passa a capturar renda, foi de 0,69. No final de 2010, o governo Lula pode entregar o Brasil com um índice de 0,49, nós voltaríamos aos anos 60. Qualquer país em que o índice GINI seja superior a 0,4 é um país muito primitivo. Pode-se falar de países com desigualdade razoável a partir do índice de GINI de 0,4. A dificuldade da mensuração técnica da desigualdade se dá pelo fato de que hoje tem presença na renda das pessoas ganhos do não trabalho, ganho financeiro, de lucro, da propriedade. E estes ganhos de propriedade dificilmente são capturados pelas pesquisas institucionais. O fato é que crescendo as rendas do não-trabalho possivelmente nos dá um indicador maior de desigualdade pela propriedade que nós não temos uma medida neste sentido. A desigualdade no Brasil é vergonhosa, se formos olhar os dados do índice GINI na propriedade fundiária brasileira é um absurdo, coisa de sociedade feudal.

Tatiana Merlino - Levando em conta que o Brasil esgotou seu processo de políticas distributivas, nós corremos um risco de retroceder em relação à diminuição da

“Precisamos fazer a transição das políticas distributivas para as políticas redistributivas”. 16

Lúcia Rodrigues - Quando você coloca o equilibrismo do governo Lula entre as classes sociais, atendendo tanto ao setor financeiro, latifundiário e empresarial quanto aos trabalhadores, eu pergunto se não é o equilibrismo também entre o arcaico e o moderno e especificamente no modelo de desenvolvimento traçado pelo governo em cima do agronegócio, que hoje é louvado pelo governo e utiliza mão-de-obra escrava? Combinação do novo com o atrasado é uma especificidade da história brasileira, não há nenhuma novidade neste sentido. Somos especialistas neste aspecto, de tal forma que a presidência da República encontra-se em uma espécie de trapézio. Acredito que o próprio sucesso do governo Lula é utilizar ao extremo essa sua capacidade de equilibrar os extremos. Não acredito que o presidente Lula tenha dado mais ênfase ao agronegócio do que os governos anteriores. Não houve nenhuma ruptura em relação ao passado, as questões de financiamento, as questões de estrutura. A combinação do velho com o atrasado é questionada de certa maneira quando no Brasil se compara a devastação da floresta amazônica com a trajetória do crescimento econômico. O novo com o velho não é algo que a gente percebe neste exemplo que você falou do trabalho escravo, em modalidades de trabalho forçado no agronegócio, como também o uso intensivo de química que é destrutiva para o meio ambiente. Se formos olhar também para a agricultura familiar há também modalidades de combinação do novo com o velho. Lúcia Rodrigues - Como você vê a opção do

governo na constituição de grupos econômicos privados em várias áreas da economia, siderurgia, indústria petroquímica. Não acha que isso é uma concentração ainda maior e isso não vai dar um problema lá na frente? Isso não é um risco para o desenvolvimento econômico do país? Embora seja um risco, o capitalismo do século 21 é o capitalismo assentado em grandes proporções. Estamos vendo um quadro onde não são mais países que tem empresa, mas são empresas que tem países. Isso não é um fenômeno brasileiro, mas sim um fenômeno mundial. A estratégia chinesa é a seguinte: eles querem ter 150 das 500 grandes empresas do mundo, é sistema de dominação. O Brasil não tinha uma política para as grande empresas, se o Brasil quer participar deste mercado global, ou ele tem grandes empresas ou

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cidade com que grandes grupos econômicos estão comprando grupos na Argentina, Uruguai e assim por diante. Neste sentido, teremos problemas e tensões muito grandes. E isso não resulta do vigor do setor econômico, mas sobretudos da debilidade da nossa ação pública em fazer algo mais articulado de avanço do Banco do Sul, algo fundamental para você ter financiamento para as atividades econômicas. A nossa baixa capacidade de integrar do ponto de vista das políticas sociais, a estrutura do estado brasileiro está muito mais avantajada do que a estrutura do estado argentino, uruguaio e sobretudo paraguaio. O Brasil precisava ter criado uma espécie de IBGE, um IPEA dos cinco países. Essa integração pressupõe que a inteligência do ponto de vista da integração destes países. Precisamos pensar em um projeto de desenvolvimento supra-nacional. A América Latina sobretudo no sul é um arquipélago de país, pois a nossa integração em termos de ferrovias, rodovias é mínima. Qual é a integração do ponto de vista da energia? Há muito o que fazer neste sentido e isso pressupõe capacidade de estado para poder operar. Outro risco é de não ter uma estratégia de desenvolvimento internacional, sul-americano de conformar a divisão internacional do trabalho que façam que os países latino-americanos sejam produtores basicamente de bens primários. Se não tiver políticas de agregação de valor que permitem agregar a cadeia produtiva como um todo, o risco é concentrar nestas especificidades e não necessariamente vão permitir um salto de qualidade e talvez acirrar mais a competição e esta ideia de sub-imperialismo.

Hamilton Octavio de Souza – Aqui o capital é subsidiado? Sim, no caso da política pública. Há investimento e este investimento muitas vezes ocorre sem a presença do crédito, que é capital próprio ou, devido ao grau de internacionalização da economia brasileira, os grandes grupos estrangeiros trazem dinheiro de fora e não dependem tanto do dinheiro aqui. Agora os equívocos que os Bancos Centrais cometem não são pequenos. Se formos olhar durante a crise do último trimestre de 2008, para aqueles que lêem o boletim do Banco Central, o boletim do COPOM diz que a economia está regredindo no Brasil, sinais de aumento das demissões e o boletim do Banco Central está dizendo que a economia está bombando, que tem que aumentar os juros, só vão derrubar os juros em 2009. Dois é que no período de elevação dos juros, o equívoco maior é acreditar que o ciclo de aceleração que tivemos no início do ano tem haver com inflação de demanda. Quando você tem maior consumo do que oferta, a política monetária tem um impacto importante porque ela atua de forma generalizada. O que tínhamos no começo do ano era uma inflação localizada, pedia políticas pontuais e não políticas generalistas como são as políticas monetárias. Outra coisa é que a política monetária não tem efeito imediato, ela leva 5, 6, 7 meses para evoluir. Nós vamos começar a colher os resultados da política monetária agora no segundo semestre, daquelas que foram tomadas no início do ano para interromper o período de queda, quando na verdade não tem mais inflação, é um circuito de baixa. O pior é que a taxa de lucro tem relação com os investimentos, a melhor política de enfrentamento em relação à demanda é o aumento de investimentos, pois significa aumentar a capacidade de produção para ter oferta. A política monetária atua com a expectativa dos investimentos, no meu modo de ver nós utilizamos de forma equivocada.

Hamilton Octavio de Souza - Essa taxa de

Hamilton Octavio de Souza - A taxa de

“A combinação do novo com o atrasado é uma especificidade da história brasileira. Somos especialistas neste aspecto”. ele está fora. Sendo assim, não vejo outra opção a não ser ter grandes corporações nacionais, isso é uma necessidade.

Lúcia Rodrigues - Mas o estado não poderia fazer uma opção pelo público e não pelo privado? Ou você acha que não tem fôlego para atuar em... Mas o que quer dizer isso? Ter empresa estatal?

Lúcia Rodrigues - Sim Sim, tudo bem. Nós estamos em uma terceira etapa na formação de grandes grupos, as duas anteriores fracassaram. Nós tivemos no Plano Cruzado a tentativa de formação de grandes grupos brasileiros com inserção internacional, que era a proposta de criar uma holding, em 86, de todas as empresas estatais daquela época, pois havia uma empresa estatal como a Petrobras que era superavitária, mas tinha outras empresas deficitárias, que iria criar uma grande capacidade de intervenção a partir do estado. Era essa a visão “estatista”, mas não deu certo por várias razões. Uma segunda tentativa de grandes grupos se deu pela via mercado, pela privatização, que era tirar do estado e passar para grandes grupos privados. Ela fracassou porque parte significativa destas grandes empresas foram para o setor privado estrangeiro. Porque eles fizeram as empresas estrangeiras ganharem, as grandes empresas internacionais compraram as empresas estatais e fecharam, aumentou a nossa dependência. Fracassou e agora nós temos uma terceira através do papel estratégico do BNDES que está junto, por exemplo a Vale do Rio Doce, é uma empresa privada? É, mas o grosso das ações estão nos fundos de pensão, uma parte estrangeiros, mas uma parte nacional.

Tatiana Merlino - Como você vê este

crescimento do capitalismo brasileiro? Quais são suas consequências com a transnacionalização das empresas brasileiras e aquilo que alguns autores chamam de subimperialismo brasileiro na América Latina? Vamos olhar para uma experiência concreta que é o Mercosul, constituído originalmente do ponto de vista da regulação pública. São os governos que dão uma base para a constituição do Mercosul em um momento em que a integração econômica é baixíssima. Embora originalmente suas ideias e objetivos sejam muito amplos, o que vai dar base ao Mercosul são as relações de comércio. Infelizmente, o avanço do ponto de vista da regulação pública foi muito limitado. Não avançamos do ponto de vista de construção de fundos, de integração em termos de estrutura, em termos de políticas sociais. O que vemos nesta primeira década do século 21 é uma integração via econômica. É impressionante a velo-

juros praticada no Brasil foge do que está no mundo hoje, inclusive porque a crise econômica fez baixar o preço do dinheiro para aumentar a atividade produtiva. Por que aqui nós continuamos com essa taxa de 10,75% que é uma das mais altas do mundo? Qual o enfrentamento a se fazer? Primeiro, precisamos entender que o papel do bancos no Brasil é diferente do papel dos bancos em uma economia desenvolvida, o papel dos bancos é de inclusão dos créditos. O crédito no Brasil vem crescendo, no final do governo Fernando Henrique o crédito representava algo em torno de 1/4 do PIB, hoje está quase representado pela metade do PIB. Nos países desenvolvidos, o crédito representa o PIB ou mais que o PIB. Os bancos aqui têm uma função diferenciada, não se especializaram no crédito que é o que caracteriza a função do banco. Em grande medida, a economia brasileira está fora da dependência do crédito, por isso que embora o crédito seja alto, isso não tem o mesmo impacto negativo que teria em uma economia desenvolvida.

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investimento no Brasil é em torno de 18 ou 19 do PIB? É 18 ou 19, mas está crescendo.

Hamilton Octavio de Souza - E a

transferência de renda que isto proporciona? É muito grande? Essa visão do Banco Central vai implicar em um aumento do gasto público desnecessário. Eu não sei como calcular isso, mas os defensores dos juros altos são aqueles que dizem que tem que cortar custeio, tem que cortar salário, tem que cortar benefício e isso é aumentar o gasto, e um gasto que não tem utilidade nenhuma. É o gasto público que você faz para pagar o juros da dívida.

Hamilton Octavio de Souza - Vai pra quem

isso? Olha, isso vai para uma parcela tão concentrada que se fores olhar do ponto de vista dos clãs das famílias, são cerca de 20 a 25 mil famílias. Clãs são os Marinhos, os Ermírios. 20 a 25 mil clãs de famílias. agosto 2010

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

Reflexões

UM COMUNISTA

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pragmáticas

a definição de Saramago – é um estado de espírito caracterizado pela autonomia. Essa autonomia permite a alguém se dizer comunista mesmo depois de naufragarem os seus dispositivos históricos. Poderia um comunista não ter espírito autônomo? Certamente. Hobsbawm garante que nos anos 70, às vésperas da Glasnost, dificilmente se encontraria um comunista na União Soviética. A designação cobria então burocratas, aproveitadores do Estado autoritário, intelectuais acríticos, multidões despolitizadas. Comunista, na acepção de Saramago, se aproxima melhor de marxista. O essencial do marxismo sobrevive no comunista: a análise, até hoje insuperável, da mercadoria e a filosofia da práxis, isto é, a ideia de que o homem faz-se a si mesmo. No entanto, alguém pode estar comunista sem ser marxista, já que o marxismo é uma teoria que, como qualquer outra, exige estudo e abstração. Os comunistas lutam incansavelmente por um homem novo contra todos os sistemas sociais, inclusive os socialistas. São, por isso, otimistas e pessimistas ao mesmo tempo. Como o escritor que morreu. Joel Rufino é historiador e escritor.

O estigma que associa o pragmatismo político à falta de escrúpulos é recente e malicioso. Enquanto as esquerdas dogmáticas viviam encurraladas entre a negação do sistema sufragista e os constrangimentos do socialismo real, a prática ilustrava a habilidade estratégica do conservadorismo político. Bastou os partidos progressistas conquistarem vitórias eleitorais importantes e o termo passou a englobar certa maleabilidade ética, associada popularmente a uma falsa concepção de “maquiavelismo”. Já no mundo esportivo, a objetividade sem floreios revela a frieza e a disciplina dos combatentes invencíveis. Atletas pragmáticos têm vocação para o triunfo. A superação pessoal e a busca incessante pela vitória demonstram respeito pelo público e até pelos adversários. Simbolizam, acima de jargões idealistas e consolos ocasionais, a própria essência da competição. Curiosamente, o futebol concilia as duas concepções antagônicas. Isso acontece porque ele está entre as raras modalidades que permitem o êxito do rival menos capaz, alimentando uma ilusória distinção entre a “beleza” do jogo e o resultado final. A índole de torcedor imiscui-se no comportamento do militante. A face lúdica da utopia e o espetáculo do insucesso honroso desobrigam viabilidades eleitorais. Por outro lado, o cinismo velhaco (“rouba mas faz”) apropria-se do louvor à malandragem e da sanha competitiva para justificar imoralidades. O erro do juiz faz parte do jogo, certo? Em ambos os contextos, porém, a dicotomia soa irrelevante. A otimização de esforços e recursos com base na experiência permeia qualquer atividade humana produtiva. Na democracia liberal, é inerente ao próprio espírito reformista. Mesmo as fantasias revolucionárias mais implausíveis pressupõem alguma viabilidade material. Caso contrário, mergulham no dogmatismo estéril.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: hke...

Eu assistia a um jogo da Copa do Mundo quando soube por telefone da morte de José Saramago. O grande escritor dizia que “comunista é um estado de espírito”. Questionado por um entrevistador, disse também: “Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista”. Em poucas palavras se livrava das idealizações, erros e equívocos dos sistemas e partidos comunistas, preservando o que a definição tem de ética. Comunista é algo em que se está, talvez de nascença, uma feminilidade de espírito anterior à formação de ideias e opiniões sobre o mundo. Um policial experiente, nos anos 60, me revelou que reconhecia comunistas pela maneira insegura, ou frágil, de se dirigirem a empregados, garçons e choferes. Se visse uma mulher trocando pneu, também não tinha dúvida e, nesse caso, sua intuição de sherloque funcionava ao contrário: um corpo feminino fazendo trabalho de macho indica personalidade comunista. Ser de esquerda é uma coisa, comunista outra. Em ideas y creencias, Ortega y Gasset lembra que ao sair de casa, a cada manhã, não precisamos fazer ideia da rua: cremos, de uma maneira insofismável, que ela estará lá, com seu asfalto, seus sinais, lojas, pontos de ônibus etc. A rua não é uma ideia, mas uma crença. Por analogia, esquerda é uma ideia, tanto que podemos estar mais à esquerda, ser de centroesquerda etc. A própria palavra tem uma origem histórica precisa, a assembleia francesa de 1789, em que os deputados que queriam sustar as medidas revolucionárias se sentavam à direita da presidência, os que queriam continuálas à esquerda, os indecisos ao centro. Madalena, a protagonista de São Bernardo, de Graciliano Ramos, não era de esquerda, mas era comunista. Não que tivesse qualquer ligação com o Partido Comunista do Brasil, fundado há menos de dez anos. Seu comunismo estava em duas ou três atitudes: cumprimentava os lavradores, montou escola para seus filhos, lia romances, escrevia cartas. A insegurança do marido, Paulo Honório, para quem pessoas eram objetos, o convenceu de que a mulher era comunista. Comunista – eis de volta

Guilherme Scalzilli

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João Pedro Stedile

Ana Miranda

A reforma agrária

Poucas palavras de Isadora

e o período eleitoral

Reforma agrária é um conceito construído nos séculos 19 e 20 para definir políticas publicas que os governos adotavam com o objetivo de democratizar a propriedade da terra e garantir o acesso a esse bem da natureza a todos os cidadãos. Do ponto de vista jurídico, as políticas de reformas agrárias se baseiam no princípio republicano que garante a todos os cidadãos da sociedade os mesmos direitos e deveres. Isso se aplica ao acesso aos bens da natureza, como terra, água, alimento, moradia, trabalho etc. O Brasil é o segundo país com pior distribuição de propriedade da terra do mundo todo. Aqui, 1% dos proprietários controla 46% de todas as terras. Os fazendeiros com fazendas maiores que 2 mil hectares controlam 98 milhões de hectares, área superior à maioria dos países do mundo. No Brasil nunca houve reforma agrária, nesse sentido clássico. O censo de 2006 revelou que a concentração da propriedade agora é maior inclusive do que em 1920, quando havíamos recém-saído da escravidão e de um quase monopólio da propriedade da terra nas mãos da Coroa, rompido com a Lei de terras apenas em 1850. O que tivemos ao longo do século 20 foram medidas paliativas de assentamentos de famílias semterra. Esses assentamentos foram feitos com desapropriações pontuais, pagas a preço de mercado. E a maioria deles usou esses recursos para comprar outras áreas ainda maiores, na cidade ou no campo. A maior parte dos assentamentos foi nas regiões de fronteira agrícola usando terras públicas, inabitáveis, e se caracterizaram por projetos de colonização. Esses assentamentos resolvem problemas localizados dos pobres do campo, mas não representam a reforma agrária. Não democratizam a propriedade. Por outro lado, a concentração da propriedade aumentou porque os fazendeiros continuaram invadindo, se apropriando de terras públicas, áreas indígenas etc., ou até mesmo de pequenos posseiros, para ampliarem seus patrimônios. Invasão, pelo código penal, significa apropriar-se de um bem alheiro em proveito próprio, privado, para acumular riquezas. Segundo o professor da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira, o censo do

IBGE de 2006 revelou que existem mais de 200 milhões de hectares grilados, invadidos por fazendeiros, que não aparecem nos cadastros, mas estão incluídos dentro de suas fazendas. Por exemplo, o grande proprietário diz e registra ter 2 mil hectares, mas na verdade sua fazenda tem 4 mil hectares. Diante dessa situação, o MST, ao longo dos últimos 25 anos, tem adotado diversas formas de luta social, como marchas, audiências públicas, ocupação de prédios públicos e de fazendas. Essas lutas são formas coletivas de pressão para que o Estado brasileiro adote políticas de reforma agrária. Ocupação é por tanto uma ação coletiva, de famílias de trabalhadores, para pressionar o governo a aplicar a lei. Segundo acórdão do STJ, não se trata de crime, esbulho possessório, mas sim de um direito do povo de pressionar seus governantes. Até hoje, nenhum assentamento e desapropriação foi realizado pelo governo sem que antes os trabalhadores não tivessem pressionado por meio de ocupação. Nas cidades brasileiras, segundo a professora da USP, Ermínia Maricato, cerca de 60% de todas as moradias são fruto de ocupações de terrenos realizadas pelos moradores! Infelizmente, nos períodos eleitorais, a direita se assanha, embrutece e passa a usar sistematicamente os meios de comunicação para fazer terrorismo contra os trabalhadores e todos os que fazem luta social. O ex-governador Jose Serra já defendeu no passado que era melhor entregar um táxi ou um carrinho de pipoca e trazer o sem-terra para cidade do que fazer reforma agrária. Era um absurdo, mas agora anda dizendo mais besteiras. Perguntado pela Band sobre o que fará com a reforma agrária, afirmou que vai criar o Ministério da Segurança Nacional. Ou seja, promete repressão. E mais: vem repetindo sistematicamente que os sem-terra, o MST, são um movimento político. Que só fazem política. Repete os slogans da ditadura militar, que dizia que trabalhador não pode fazer política. Claro, na visão da direita, política é apenas para os políticos. Os filósofos gregos se divertem com os políticos brasileiros. Lamentamos as suas manipulações e idiotices. Mas a história costuma cobrar um preço alto dos farsantes.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

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Duncan

Uma delicada amiga, Isadora, mandoume palavras escritas pela bailarina, a Duncan, poucas palavras para tanta desilusão, e excessiva desilusão para tanta grandeza. Dela guardo a imagem diáfana a se mover entre quedas de uma túnica grega, os pés descalços, ou a de sua morte, enforcada pela longa echarpe que se prendeu na roda do carro conversível. Ou ainda, e afinal, a historieta que pode ser fantasia, de que teria escrito a Bernard Shaw propondo-lhe terem um filho, seria maravilhoso, ela se entusiasma, uma criança com o meu corpo e a sua mente, ao que o escritor teria respondido: Mas e se nosso filho nascer com o meu corpo e a sua mente? Sublimando o cruel gracejo, tão típico desse genial dramaturgo, o pensamento de Isadora corresponderia a sua ânsia de dar um sentido pleno à dança, de corpo e alma, e foi essa a essência de sua vida. Recusou-se a fazer de sua arte um divertimento para os ricos, almejava encontrar e expressar uma nova forma de vida. Declarava sempre inimizade contra a insípida dança de seu tempo, em sapatilhas e espartilhos. Bebia no helenismo, impregnada do mesmo sentimento encontrado no poema “Ode a uma urna grega”, de Keats. Bebia nas mais sagradas raízes dessa arte, que relacionava os movimentos a uma cosmogonia, ao lado incompreensível da nossa existência. Sua vida trágica e idealista deu-lhe a substância verdadeira da arte. Desde quando, numa infância tão pobre, ao florescer de sua vocação, tão menina, na praia, nos bosques, tirava os sapatos furados, as roupas velhas, e dançava. Balé com ondas, com árvores... Quando sonhava construir um templo de dança, ensinar a meninas a arte-religião. Ou quando, convidada a estabelecer a escola de seus sonhos em Moscou, dançou inspirada em canções revolucionárias, batalhas de operários, marchas fúnebres para líderes. Fundou a escola, com mil meninas filhas de operários e camponeses, em túnicas gregas vermelhas, mas que durou pouco. Sonhou com o milagre da alma coletiva, a dançar nos pequenos celeiros no inverno, em relvas ao sol de verão. Nada mais de falsos teatros, ovações falsas. “Não sou uma dançarina. Apenas quero expressar a vida.”

Ana Miranda é escritora. agosto 2010

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Tatiana Merlino

ECA, 20 anos de

Legislação trouxe novo olhar para a questão dos direitos da infância e juventude, mas sofre com a falta de implementação e tentativas de alteração de seu conteúdo. 20

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assados 20 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialistas avaliam que a lei representa um grande avanço na questão do direito à infância e juventude. No entanto, alertam para um grande desafio: sua efetiva implementação. Sancionada em 13 de julho de 1990, a lei 8.069 representa um marco social e jurídico acerca dos direitos do menor de idade. “O ECA rompeu com um passado de negligência com relação aos direitos infantojuvenis, marcados apenas por repressão, limpeza social, assistencialismo vicioso, criminalização da pobreza. A legislação estabeleceu a proteção integral às crianças e aos adolescentes”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Ele explica que, com a legislação sobre o tema anterior ao ECA, o Código de Menores, “vigorava a doutrina da situação irregular, pela qual o menino de rua, a menina explorada sexualmente, a criança trabalhadora, o adolescente infrator, o menino vítima de tortura, entre outros exemplos de violações, estavam em `situação irregular` e deveriam ser `objeto` de intervenção dos adultos e do Estado, já que não eram considerados `sujeitos de direitos`”. Com a nova legislação, a criança e o adolescente passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direito, aponta Lúcia Toledo, coordenadora da comissão da infância e do adolescente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. “É um grande avanço, pois os direitos da criança passaram a ser pensados, preservados. E o ECA, assim como a Constituição, estabelece quem tem que zelar por esses direitos: além do Estado, a sociedade e a família são responsáveis.”

foto: lineu kohatsu

conquistas e desafios

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Varas da infância No entanto, apesar disso, há muitos desafios a serem enfrentados, entre eles a falta de prioridade dada ao Sistema de Justiça da Infância e da Juventude. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP) realizada em 2008, apenas 92 comarcas possuem varas da infância – o que corresponde a 3,4% das 2.643 comarcas de todo o país. A pesquisa também apontou grande disparidade entre as regiões: enquanto no Norte existe um juiz especializado para 279 mil habitantes, no Sudeste essa relação é de um juiz para 503 mil habitantes. De acordo com Eduardo Rezende Melo, juiz da Vara da Infância e da Juventude, e ex-presidente da ABMP, “o número e a estruturação de varas são campos a serem trabalhados”. Ele explica que o ECA prevê que os tribunais deveriam estabelecer um critério populacional para a criação dessas varas. “Na Justiça, não se dá prioridade à infância e à juventude como estabelecido na Constituição. Os juízes têm de trabalhar em outras áreas e não têm tempo suficiente para se dedicar à criança e ao adolescente”. Além disso, explica, “as varas não possuem número suficiente de funcionários para o atendimento adequado”. Outra dificuldade é em relação à precária formação de magistrados, promotores e defensores públicos na questão do direito à infância e juventude. Apenas em 2008 o MEC obrigou os cursos de Direito a incluir a matéria “Direito da criança e do adolescente” na grade curricular. E só em 2009 o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu que, nos concursos para juiz, o ECA deveria entrar como matéria. “Os operadores da lei não têm vivência em direito da criança e do adolescente. Além disso, muitos cursos de Direito mantiveram o Código de Menores na grande curricular. Assim, ficam sem noção da lei, com uma visão pautada pela legislação anterior”, explica Givanildo Manoel da Silva, militante do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente. Para ele, a Justiça não tem dado atenção devida ao tema da infância.

Sistema de garantia Na opinião da psicóloga Lúcia Toledo, embora o assunto esteja na “ordem do dia”, a legislação ainda é muito pouco conhecida. “Ela ainda não é estudada nos bancos escolares. Nem quem vai trabalhar no sistema de garantia nem os próprios adolescentes conhecem direito o ECA. A gente não tem, de fato, uma defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente. Isso ainda não é realidade”, acredita. Outro aspecto levantado por especialistas da área é em relação à estrutura dos Conselhos Tu-

“Segundo dados da Unicef, 16 crianças e adolescentes, em média, são assassinados por dia no país”. telares existentes no país. Criados por lei a partir da promulgação do ECA, são órgãos municipais destinados a zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Hoje, há 5.772 conselhos instalados em todo o país, número que representa um aumento de 23,24% em relação a 2006, quando havia 4.657, segundo pesquisa feita pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Porém, a maioria deles carece de estrutura para desenvolver seu trabalho. O defensor público Flávio Frasseto, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da defensoria pública de São Paulo, explica que a criação dos conselhos foi uma grande aposta do estatuto, com a “perspectiva de que a participação popular é muito importante na questão do direito à infância e que a proteção dos direitos tinha de ser desjudicializada”. Segundo ele, se os conselhos não existissem, haveria muito mais violações. “Por isso, gosto de destacar o trabalho deles para minimizar as violações contra a criança e o adolescente”. Porém, Frasseto pondera que “eles estão longe de atingir os níveis de excelência que a gente pensou quando desenhou essa proposta”. Entre os problemas apontados, está a dificuldade ligada ao processo eleitoral de escolha dos conselheiros tutelares. “Há situações em que conselheiros não representam segmentos de proteção da criança e do adolescente”. Apesar disso, como balanço geral, o defensor público acredita que a experiência dos conselhos é positiva, “com uma ressalva: deveriam ser muito mais do que são e poderiam atender muito mais casos do que conseguem se não fossem alguns problemas, como falta de estrutura e recursos humanos”. Para ele, a dificuldade de mudança cultural para uma visão que reconhece a criança como sujeito dificulta a implantação do ECA. Segundo Frasseto, caso essa mudança estivesse consolidada, a atual discussão acerca do “fim da palmada” não seria necessária. “Se a cultura do mundo adulto em relação à infância tivesse se alterado, isso não estaria em pauta”. Porém, ele acredita que, para implantar efetivamente a legislação, “a gente teria de mudar totalmente o país. Se não houver uma redução drástica do nível de pobreza e discriminação social, o estatuto nunca será plenamente concre-

“A gente não tem, de fato, uma defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente. Isso ainda não é realidade”, afirma a psicóloga Lúcia Toledo. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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tizado. A má distribuição da riqueza é a grande inimiga da concretização do ECA”.

Indicadores sociais Frasseto afirma ainda que, apesar das dificuldades, de uma forma geral, “a gente caminha bem. Houve diminuição do trabalho infantil, há esforço no sentido da inclusão escolar, estamos melhorando os índices de gravidez na adolescência”. O advogado Ariel de Castro Alves também reconhece os avanços ocorridos ao longo dos 20 anos de ECA, como a redução de 60% da mortalidade infantil. “Eram mais de 60 mortes para cada grupo de mil crianças que nasciam; hoje, são 19 mortes por mil nascidos.” Em relação ao trabalho infantil, o advogado também destaca a redução dos índices. Atualmente, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 4,2 milhões de crianças e adolescentes no Brasil são explorados no trabalho infantil. Porém, apesar desse alto índice, nos últimos 19 anos a redução foi de 50% e os esforços para tal foram reconhecidos pela própria OIT e pela Organização das Nações Unidas (ONU). Já no que tange à educação, conforme o Ministério da Educação e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 98% das crianças estão matriculadas no ensino fundamental e 82% dos adolescentes, no ensino médio, “mas é notória ainda a baixa qualidade do ensino em boa parte das escolas públicas”, destaca Alves. Outra conquista do ECA foi a diminuição de casos de gravidez na adolescência. O número de partos de meninas entre 10 e 19 anos realizados na rede pública caiu 30,6% nos últimos dez anos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, em 2008 foram feitos 485,64 mil partos, contra 699,72 mil feitos em 1998.

Acesso às creches Embora haja melhora nos índices de educação, uma grande deficiência nos direitos da infância é a falta de acesso às creches. Segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), feito em 2006, apenas 1,7 milhão de crianças, 15,5% de um universo de cerca de 11 milhões com idades de 0 a 3 anos, estão matriculadas em creches. Na avaliação de Alves, porém, o principal desafio do estatuto e dos governos é em relação ao enfrentamento à violência. Segundo dados da Unicef, 16 crianças e adolescentes, em média, são assassinados por dia no país. O advogado aponta que, desde 2003, o disque-denúncia contra a violência (Disque 100) recebeu mais de 130 mil denúncias de maus-tratos, abusos e exploração sexual de crianças e adolescentes. A situação de jovens infratores internados em agosto 2010

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instituições de privação de liberdade não é menos complicada. Levantamento da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República aponta que quase 40% dos jovens infratores que estão em centros da Fundação Casa, antiga Febem, não deveriam estar internados. O relatório diz que, dos 4.769 adolescentes que cumpriam internação no estado de São Paulo no ano passado, 1.787 não deveriam estar lá, pois não cometeram infrações consideradas graves. De acordo com a legislação, a internação só deve ser aplicada em casos de “grave ameaça ou violência à pessoa” – atos como roubo, crime sexual ou sequestro, ou caso o jovem volte a cometer um ato grave – ou de descumprimento, por repetidas vezes, de uma medida imposta anteriormente. A fundação confirmou que os jovens não deveriam estar internados e atribuiu a situação ao excesso de rigor dos juízes. Para Lúcia Toledo, tal situação explicita “a falência da política pública”.

Tortura e rebeliões Nas instituições de privação de liberdade, as violações aos direitos humanos continuam existindo. Em 2006, a antiga Febem de São Paulo, instituída durante a ditadura militar e palco de incontáveis casos de tortura e rebeliões, foi substituída pela Fundação Casa. A proposta era que fosse feito um processo de descentralização do atendimento aos adolescentes, com a construção de unidades em todo o estado. De acordo com o Conanda, tais estabelecimentos deveriam atender, no máximo, 40 adolescen-

“Há uma herança histórica de violência contra os adolescentes internados. Há uma cultura arraigada pautando a relação de muitos funcionários”, diz o defensor público Flávio Frasseto. tes. Embora defensores de direitos humanos reconheçam que a descentralização foi positiva, a instituição continua tendo problemas de atendimento. “Há uma herança histórica de violência contra os adolescentes internados. Há uma cultura arraigada pautando a relação de muitos funcionários. Sobretudo porque as unidades da capital não estão dentro do modelo de 40 meninos. São unidades grandes, e as denúncias de violação continuam chegando”, afirma o defensor público Flávio Frasseto. A psicóloga Lúcia Toledo relata que desde 2006 o Conselho Regional de Psicologia vem fiscalizando as unidades de internação geridas pela Fundação Casa. Segundo ela, “o que temos visto dentro das unidades ainda está bem distante do adequado”, explica. Ela dá como exemplo a ausência de planos individuais de atendimento aos internos, bem como a falta de um plano educacional. “Há, ainda, problemas de habitabilidade”, diz. Givanildo Manoel da Silva, do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente, também critica as unidades de internação. “As edificações são verticalizadas e parecidas às das de unidades prisionais. Temos informações de que há unidades com 120 adolescentes”.

O militante da infância e juventude também rebate o discurso oficial do governo estadual de São Paulo, que aponta que houve diminuição da reincidência nos casos de infração de menores. “O que tem acontecido é que o público do sistema prisional tem rejuvenescido. Quase 60% têm entre 18 e 24 anos. Por que ele não reincide? Porque ele está indo direto para o sistema prisional”, explica. Outro aspecto semelhante ao do sistema prisional é em relação ao perfil do público das instituições de privação de liberdade, composto, sobretudo, por jovens provenientes das classes baixas do país. “Essa é uma questão geral no país. Com os adultos, acontece o mesmo”, aponta o juiz Eduardo Melo. “Há uma leitura criminológica de seleção, desde a polícia que atua com preconceito. E isso também chega na Justiça”, diz. Para Lúcia, essa diferença de tratamento da Justiça com os jovens infratores está presente na sociedade e na mídia. “Quando ouvimos na imprensa o caso dos meninos que atearam fogo num índio em Brasília, eles eram chamados de adolescentes. No caso de ser um adolescente pobre, ele é chamado de menor. Já é uma tratativa de cara diferente. Também se fala que “o menor machucou o adolescente”. E esses adolescentes a gente não vê nas unidades. De fato, minha hipótese é que a gente tenha dois pesos e duas medidas para classe média e classe baixa”, conclui.

Ameaça a direitos

foto: sxc.hu

Além dos desafios para a consolidação da legislação, especialistas alertam para as ameaças aos direitos garantidos, como a discussão acerca da redução da maioridade penal, que vem à tona toda vez que ocorre um crime cometido por um menor. “Não tenho dúvida que essa é uma questão muito frágil”, aponta o Flávio Frasseto. Ele lembra que há uma emenda constitucional já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, em 2007, para tal diminuição. “Ela está para ser julgada há bastante tempo. Creio que se acontecer outro crime desses, que causam comoção, e a imprensa não parar de explorar, essa emenda vai ser votada e aprovada”, acredita. “Esse é um perigo constante”. Há também um Projeto de Lei que prevê a modificação do ECA, aumentando o tempo de internação do adolescente que cometeu ato infracional considerado grave. Além desse, no Congresso Nacional há vários projetos de lei ou Propostas de Emenda Constitucional (PECs) apresentadas com o objetivo de modificar o ECA ou a Constituição. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br

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ensaio Mario Luiz Thompson

A história da música popular brasileira está precisamente registrada para a eternidade. São figuras humanas que estão sempre marcadas em nossas vidas, deixaram e deixam com suas imagens o grande acervo da nossa cultura. Aqui, compositores (as), cantores (as) e músicos negros e negras mostram a estética mais pura dos ritmos e artes que construíram os sons do Brasil. Aí estão: Cartola (1), Sandra de Sá (2), Naná Vasconcelos (3), Dona Ivone Lara (4), Luiz Melodia (5), Paulinho da Viola (6), Clementina de Jesus (7), Zezé Mota (8), Raul de Souza (9), Jorge Ben (10), Jackson do Pandeiro (11). Informações e contatos pelos emails mariothompson@uol.com.br e mariothompson2@yahoo.com.br ou pelo telefone (11) 5093-8816.

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Marcelo Salles

Feira nordestina, sotaque carioca

Tinha até fumo de rolo Rede, rapadura e queijo Dizendo: – Aqui conterrâneo Este é puro e sertanejo Eu garanto a qualidade Você come e tem saudade Mata a fome e o desejo (Trecho do cordel “A feira nordestina”, de Mestre Azulão)

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m jegue parado na porta, música no último volume e a estátua em bronze de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, em tamanho natural, que repousa sorridente sobre o mapa do Brasil e é ladeada por dois cactos, com direito à sanfona e ao tradicional chapelão do cangaço. Carrosséis, pula-pula e uma multidão que entra e sai descontroladamente complementam o cenário da entrada principal do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, mais conhecido como Feira de São Cristóvão, encravada no bairro homônimo da Zona Norte do Rio de Janeiro. Palco para grandes artistas da música popular brasileira, como Alceu Valença, Domingui-

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nhos e Moraes Moreira, a história da feira começa em 1947, quando os primeiros paus-de-arara começaram a chegar na então capital do país. Iam desembarcando paraibanos, alagoanos, pernambucanos, baianos e outros nordestinos em busca de trabalho – que conseguiam, na maior parte das vezes, na construção civil. Muitos fugiam da seca, da fome, e tudo o que queriam era juntar algum dinheiro para mandar de volta para a família. Nessa época, o que existia era um entreposto comercial, improvisado sobre lonas, que também servia para amenizar a saudade dos imigrantes que ali tinham acesso a comidas, instrumentos musicais, vestuário e demais artigos típicos da re-

gião – uma história imortalizada por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira na canção Asa Branca. O pavilhão de São Cristóvão passou a abrigar a feira apenas em 2004. O lugar, antes destinado a exposições de automóveis, tem cerca de 10 mil metros quadrados; sua estrutura abriga dois palcos, dezenas de restaurantes e bares, e 700 barracas. De sexta de manhã a domingo à noite a feira não fecha. De dia, a entrada é gratuita e à noite o preço é dois reais. Na entrada principal, há a estátua de Luiz Gonzaga. Do lado oposto, Padre Cícero. Música e religião, dois pontos marcantes da cultura nordestina dão as boas-vindas aos visitantes.

foto: renan oliveira

Música, culinária e cultura do Nordeste reúnem imigrantes, cariocas e estrangeiros na Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro

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A feira tem de tudo um pouco. No centro, há uma pequena praça, onde repentistas travam duelos de viola. Rimam de improviso, brincam com o público, sem nunca perder a graça. Os visitantes têm todas as caras e tipos. Desde o imigrante nordestino, que encontrou um lugar com o qual se identifica, até turistas estrangeiros, passando pelos cariocas que vão lá fazer compras ou se divertir. Negros, brancos, mestiços, adultos e crianças se misturam ao ritmo do forró, ao sabor do baião de dois, às cores da tapeçaria. Por volta do meio-dia é impossível transitar sem ser abordado por garçons que oferecem pratos e preços. A uma da tarde, há que se reduzir o passo, pois o espaço torna-se minguado diante da multidão que toma conta do lugar. Algumas ruelas do pavilhão lembram becos de favelas cariocas, como a Maré, erguida em grande parte por imigrantes nordestinos: estreitas, as calçadas guardam os mesmos azulejos pequenos e coloridos, a contrastar com o asfalto pretinho, pretinho. Na feira, a música é de ensurdecer. E tem gente dançando a qualquer hora do dia ou da noite. As barracas de CDs valorizam os sons nordestinos, enquanto a culinária, viçosa, exibe doce de buriti, cocada, tapioca, goiabada, pé de moleque, rapadura, pães regionais, variedades de queijos, acarajé, castanhas. Carne de sol tem pra tudo quanto é lado: patinho, alcatra e picanha. O quilo varia entre 10 e 18 reais. Também há boas opções de calçados, vestuário e tapeçaria. Uma manta de casal paraibana, por exemplo, feita de um tecido bastante resistente, custa apenas 20 reais. As ruas da feira têm nome de estados do Nordeste e figuras de destaque, como Lampião e Maria Bonita. Quando chega a noite, surgem luzes coloridas. A movimentação de bandas é intensa. Nos palcos, Jackson do Pandeiro e João do Vale, um em cada ponta do pavilhão. Restaurantes e bares lotados, a bebida rola solta, principalmente a cachaça em suas inúmeras variedades. Quem está perto do palco não para, a pista ferve. Às margens, sinuca e caraoquê salpicados com petiscos nordestinos. Até às cinco da madrugada a vida pulsa intensamente na feira. Euclides da Silva Santos, de 34 anos, veio de Molungu, na Paraíba. Desde então voltou à terra natal apenas três vezes. Euclides trabalha como porteiro no Flamengo, bairro da zona sul carioca, e quando pode vai à feira, que prefere visitar à noite. “Lugar pra se distrair não tem melhor”, diz. O imigrante elogia o ambiente acolhedor: “Eu vou lá para comer, beber uma cachacinha... Tem muitas coisas boas e é um lugar mais adequado pra gente que é um pessoal mais humilde. Em restaurante lá fora as pessoas não se falam, não fazem uma brincadeira, e na feira é diferente”. Heleno Alves, coordenador do Núcleo Artístico e Cultural das Faculdades Integradas Hélio Alonso, ressalta que a música é o fator mais importante nesse processo de identificação cultural. “[A feira] é onde eles vão reviver todo o Nordeste, porque lá você dança, se descontrai da melhor maneira possível”, explica. Mas nem tudo são flores. O professor fala do

preconceito contra a cultura nordestina, que no Rio de Janeiro culminou com a expressão “Feira dos Paraíbas”. Heleno Alves acredita que isso seja fruto do desconhecimento. “Essa coisa de Paraíba é linguagem da galera que não quer ou não está a fim de conhecer um pouco mais”. Além do preconceito, há outro problema. Apesar de preservar as raízes do Nordeste, a feira já incorpora elementos “estrangeiros”. “É mais ou menos o que se deu com a Lapa. Antes, ninguém ia. De repente virou, como dizem, um point. É o que aconteceu com o pavilhão”, analisa o professor. Heleno Alves acredita que o fio condutor para entender a mudança está na passagem das gerações. “O forró tomou uma linha dianteira de divulgação muito forte, o que já acontecia com o mestre Luiz Gonzaga. Mas a juventude até então não tinha abraçado tal coisa, e veio o Falamansa

Mestre Azulão:

“Eu sou poeta, escola nenhuma ensina a ser poeta” Mas um país que o povo Vive quase escravizado Pela cultura de fora Fanático e alienado Em vez de ser patriota Não passa de idiota Mal visto e mal governado (Trecho do cordel “Vamos evitar a dengue”)

Hoje os pastores errados Estão dando o mesmo exemplo Dos cambistas lá do templo Por cristo chicoteados Jesus disse em altos brados

Este templo é de orações Expulsou os vendilhões Dizendo aos pérfidos judeus Esta é a casa de Deus Não de negociações (Trecho do cordel “As falsas religiões”) Um metro e meio de altura e magérrimo, mas o homem é um gigante. Veste sapato e cinto pretos, calça vinho desbotada e blusa cinza de botão. Chapéu de cangaceiro, desses com o couro escorrendo em cachos. Alinhadíssimo. O rosto já exibe os sinais dos 78 anos, mas o vigor segue inalterado. Mestre Azulão permanece de pé durante toda a manhã, enquanto conversa com jornalistas e curiosos. Todos querem saber um pouco mais

Autor de mais de 300 títulos de cordel, Mestre Azulão é um dos fundadores da Feira de São Cristóvão.

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trazendo esse ritmo para a juventude. Aí eu acho que o perfil da feira mudou um pouco”, pontua. O diretor cultural da Associação dos Feirantes, Carlos Marabá, vai além e critica a expansão desordenada, sobretudo a partir do momento em que a feira foi incorporada ao pavilhão. “Começaram a se instalar pessoas que não tem nada a ver com nossa cultura e estão aqui somente para ganhar dinheiro”, afirma. De fato, hoje existem barracas que vendem artigos padronizados, como bonés e presilhas para cabelo. Artigos que poderiam estar em qualquer camelódromo do país. Enquanto se luta para manter viva a tradição nordestina na Feira de São Cristóvão, o público faz a sua parte e comparece. Segundo os organizadores, 500 mil pessoas passam por aqui todos os meses. Apesar de a resposta parecer óbvia, cabe a pergunta: o que será que essa multidão procura?

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da história do sujeito que virou um mito no Rio de Janeiro. José João dos Santos – nome de batismo – é filho de agricultores e nasceu em Sapé, na Paraíba. Estudou até a 3ª série do curso primário e começou a fazer literatura de cordel aos sete anos. Aos quinze já tocava viola na qualidade de repentista, mas trabalhou na terra até os dezessete. “Meu pais gostavam muito da poesia, os cantadores cantavam lá em casa. Meu pai tinha a ideia, mas não sabia fazer porque era analfabeto”, recorda o mestre. O nome de guerra vem de um velho cantador chamado Azulão, já falecido, com quem ele aprendeu a toada. Mestre Azulão veio para o Rio de Janeiro em 1949, e conseguiu emprego de ajudante de bombeiro-hidráulico. Nos fins de semana, cantava na obra para alegrar a peãozada. Autor de mais de 300 títulos de cordel, é um dos fundadores da Feira de São Cristóvão e vive da venda de seus folhetos, palestras, oficinas e cantorias. É membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel e já se apresentou em diversas universidades do Brasil e do exterior. Atualmente vive em Engenho Pedreira, na Baixada Fluminense. Quando perguntado onde aprendeu a compor, ele trata de explicar, curto e grosso: “É porque eu sou poeta, escola nenhuma ensina a ser poeta”. Autodidata, portanto. Se a prática leva à perfeição, como dizem, não dá pra dizer. Mas a prática associada ao dom... é batata! E um bom exemplo é ouvir o Mestre Azulão cantando e falando do processo de composição de seus cordéis. Ele cita o mote “Sofri mais do que bêbado em atoleiro”, que nasceu do trabalho árduo na construção civil. E explica: “O mote era esse. Nessa métrica são seis sílabas em cada verso. Numa estrofe de dez versos, são seis sílabas métricas. Eu dou aula de literatura popular brasileira nas faculdades. Tem de sextilha, setilha, oitava, décima, tem o décima em martelo e o décima em galope beira mar, queAM 548-10agalopado ANUNCIO REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 1 à6/25/10 10:05 são 11 sílabas em cada verso”. 548-10 ANUNCIO REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 1 6/25/10 10:05 AM

De repente, o olhar vagueia pelo alto. E a alegria da cantoria vira tristeza pela situação da feira, que em termos de tradição caminha sem eira nem beira. O Azulão faz duas críticas: à perda da autenticidade da feira e ao desprezo das corporações de mídia pela cultura nordestina. “Essa mocidade [de hoje] está desgraçada porque está alienada com tudo quanto não presta que vem da América do Norte e de outros países”, diz. E antes que possa ser interrompido, complementa o raciocínio: “Mas eles não têm culpa, a culpa é dos nossos governantes que abrem as pernas para os americanos tirarem o amor pátrio do nosso povo. Porque a cultura faz parte do nosso patriotismo”. “Não tem mais aquela feira, acabou-se”, desabafa o poeta, indignado. “Estamos numa batalha para ver se sobrevive alguma coisa da cul-

tura nordestina, porque por eles não tinha nada aqui. A cultura autêntica, hoje, não tem”. Azulão lembra que antigamente bastava que começasse a cantar um folheto para que “rodeasse isso aqui de gente”. Todos compravam seus livros, os que não podiam pagar pegavam emprestado e a cultura cordelista se espalhava. Azulão ressente-se da falta de atenção, de público, de gente interessada em sua arte, e na cultura nordestina em geral. “Agora, as pessoas que vêm do exterior, que são turistas, têm mais consideração. Mas o povo daqui não”, queixa-se. Entre uma pergunta e outra, o cantador abre um livro, canta um trecho, volta para trás de sua barraquinha, atende a um cliente, tira dúvidas, e vai vendendo seus cordéis. Em uma hora foram comprados 12 livretos, que custam dois reais cada. Quando perguntado sobre a influência da imprensa nessa questão, ele é direto: “A Globo não quer nem saber, vira as costas. Se por acaso a Globo passar aqui e filmar 30 segundos, eles não botam nem 10 segundos no ar. Eles chegam aqui e eu falo: por mim você pode desligar a câmera, porque vocês não botam no ar então eu não vou perder meu tempo. Isso já aconteceu milhares de vezes”. A conversa-entrevista esquenta e o poeta quase octogenário permite-se embalar na análise crítica dos meios de comunicação. “Querem roubar a pureza, a nacionalidade do país, destruindo a sua cultura. O brasileiro, ou qualquer pessoa de outra nacionalidade, tem amor à sua pátria também através de sua cultura. E não tendo chance de apreciar e participar de sua cultura, torna-se uma pessoa despatriada”. Como dito no início, o homem é um gigante. Marcelo Salles é jornalista. Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.

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Frei Betto

Ainda há fome no Brasil? O IBGE, órgão de pesquisa do governo brasileiro, divulgou em junho dados no mínimo preocupantes: mais de um terço dos brasileiros admite que, “às vezes” ou “normalmente”, não come o suficiente. No total, 35,5% da população declaram ingerir menos alimento do que gostariam. Isso se chama fome. A situação mais grave – de quem “normalmente” não come o suficiente – afeta 9,2% dos brasileiros. Os que “às vezes” passam fome somam 26,3%. Os que “sempre” comem o suficiente são 64,5%. Apesar dos dados alarmantes, a condição alimentar dos brasileiros melhorou nos últimos sete anos. Na última pesquisa de Orçamentos Familiares (2002/2003), 46,7% da população admitiram comer menos do que o necessário. Agora são 35,5%. Os piores quadros são os das regiões Norte e Nordeste: 50% das famílias consideram insuficiente a quantidade de alimentos consumidos. A despesa com alimentação nas famílias com renda mensal mais alta (acima de R$ 10.375, equivalente a US$ 5.700) é quase seis vezes maior do que naquelas com renda mais baixa (até R$ 830, equivalente a US$ 460). Os mais ricos gastam em alimentação, dentro e fora de casa, em média, por mês, R$ 1.198,14 (cerca de US$ 665). Os mais pobres, R$ 207,15 (cerca de US$ 115) em compras mensais de alimentos. A média geral dos brasileiros é de R$ 421,72 (US$ 234). Os gastos com alimentação, habitação e transporte correspondem a 75,3% das despesas mensais das famílias. Só com alimentação elas gastam 19,8% do orçamento, segundo o IBGE. O grupo de carnes, vísceras e pescados lidera os gastos com alimentação, tanto na média do país (21,9%) quanto nas áreas urbana (21,3%) e rural (25,2%). A seguir, na área urbana, vêm leites e derivados (11,9%), panificados (11%) e bebidas e infusões (10%). Na área rural, cereais, leguminosas e oleaginosas (13,1%), leites e derivados (8,7%), e aves e ovos (8,5%). A família brasileira gasta por mês, em média, R$ 2.626,31 (US$ 1.460). Isso varia muito conforme a região do país. A desigualdade social continua marcante: no Sudeste, que tem o maior gasto médio, o valor é de R$ 3.135,80 (US$ 1.742), quase o dobro do registrado no Nordeste, com R$ 1.700,26 (US$ 944). A distância média da despesa, per capita, dos 10% mais ricos, em comparação com os 40% mais pobres, é de 9,6 vezes. Apesar de alta, essa desigualdade revela um recuo em relação à ultima pesquisa realizada (2002/2003), quando o índice era de 10,1 vezes. Esses dados oficiais demonstram que, apesar das políticas sociais do governo Lula, miséria, pobreza e desigualdade social continuam a desafiar quem sonha com um país justo. Oito anos depois de o PT estar no poder, o Fome Zero se faz urgente para um terço da população brasileira! Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Nada mais importa:

esporte mata Eu gosto do Dudu, do Trajano, do Kifuri. Seriam excelentes jornalistas em qualquer ramo. Agora: o deplorável mote da ESPN (que não é pior do que as outras televisões) é um desastre cultural e político, um desserviço à educação do povo brasileiro: como nada mais importa a não ser a Copa? No Rio de Janeiro, um médico se recusou a fazer uma cirurgia na hora do jogo do Brasil. Certamente o facultativo levou a sério o que ouviu na televisão: danese a dor, dane-se a saúde, o que importa é o gol salamaleque do Robinho. Eu me lembrei de Theodoro Adorno: a televisão é o reflexo estúpido do hábito ou o hábito engendra a televisão? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Acabou a ditadura formal (a ditadura das multinacionais continua), mas o cretinismo futebolístico do Médici exorbitou com a democracia. Collor consagrou o poder esportivo ou o estilo esporte no poder. Nosso atual presidente não daria um ótimo técnico do Corinthians? Dei graças a Deus de a seleção ter saído desclassificada. A sociedade brasileira piora quanto mais expande o futebol. A boçalidade cresce, o barulho aumenta, o nível da conversa decai, o domínio da televisão se estende ao inconsciente. O futebol é contra o socialismo. Mas e a alegria do povo? A alegria também pode ser fascista. Hoje o monopólio do capital financeiro se faz pelo esporte em escala mundial. O poder político também é cada vez mais pop esportivo: Clinton e Jagger são bonecos da camiseta multinacional. Obama, o afrodescendente de Wall Street, anda tal qual jogador de basquete. O que restou de esquerda deve discutir a relação marxismo e futebol. Noel Rosa nunca praticou esporte, Lima Barreto associou futebol com espigão no Rio, Oswald de Andrade chamava os “futebolers”, Glauber Rocha achava que Pelé chutava a cabeça do povo brasileiro. Eu estou de acordo com esses escritores e artistas, porque o futebol é a volátil mais-valia que justifica a extração do excedente de trabalho do povo. É impossível separar o futebol da televisão, o futebol é falado pela televisão que exerce o super fetichismo da mercadoria do capital monopolista. Já dei o nome para este monstro: capitalismo vídeo financeiro. A televisão é que faz com que o esporte exista, eu diria que cada gol é a celebração da televisão como valor de troca e aparato de domínio. A tv é a mais-valia ideológica do futebol. O câncer totalitário apreendido pelo olho e ouvido. À semelhança da telenovela, em que a miséria é apresentada como destino natural, a televisão do futebol extrai o excedente psíquico da massa marginalizada, por isso o futebol é contrarrevolucionário e a favor do subdesenvolvimento. É impossível imaginar um Maracanã chamado Karl Marx, um Morumbi Engels, um Mineirão Lênin ou Trotsky. Meu amigo José Róiz dizia que esporte mata e envelhece, e que o homem é bípede e não foi feito para correr, e sim para andar e dançar. O futebol satisfaz as demandas do mercado capitalista mundial. Nada mais do que isso. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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Gabriela Moncau

Festival em São Paulo mostra nova safra de produções e reflete sobre papel político, cultural e social.

Cinema latino-americano

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cotidiano de uma família burguesa em uma mansão na parte baixa da cidade de La Paz permeado pela relação contraditória com seus funcionários indígenas que oscila entre escravidão e carinho. Um solitário intelectual cubano abandona seu país subdesenvolvido para perceber, por meio de lembranças e sonhos, que sua nova vida nova-iorquina desenvolvida também não funciona. A conflituosa relação entre dois irmãos argentinos de meia-idade transitando entre um pequeno balneário uruguaio e Buenos Aires. Essas são algumas das histórias contadas em filmes contemporâneos da produção cinematográfica latina que foram exibidos durante o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, entre os dias 12 e 18 de julho. A mostra dessa nova remessa de produções audiovisuais da América Latina trouxe reflexões a respeito do espaço que essa cinematografia ocupa hoje no mundo: seu papel político, cultural e social. Já não se trata mais do “Nuevo Cine Latino-Americano” impulsionado pelo argentino Fernando Birri no final da década de 1950, nem de uma resistência cultural às violentas ditadu-

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ras que o continente enfrentou. Trata-se ainda de um cinema de resistência? Quais características unificam hoje a produção audiovisual desses países? Há políticas públicas que impulsionam a produção e o acesso a ela? Algumas das discussões que estiveram presentes nos debates ocorridos durante o festival trazem contribuições para responder tais questões. Durante uma “conversa entre diretores” que reuniu os brasileiros Felipe Bragança, Maria Dora Mourão, Marcelo Gomes e a costa-riquenha Paz Fábrega discutiu-se a dificuldade que os realizadores de filmes encontram em conseguir salas de cinema, bem como atrair o público. “O consumo de audiovisual independente com algum tipo de investigação de linguagem está diminuindo muito. O fato é que está faltando dinheiro para fazer esses filmes no mundo inteiro”, acredita Felipe Bragança. O jovem cineasta, diretor-assistente e coroteirista de Karim Ainouz em O céu de Suely, lançou em 2009 em parceria com Marina Meliande o premiado A fuga da mulher gorila. Marcelo Gomes, diretor de Cinema, aspirinas e urubus e do mais recente Viajo porque preci-

so, volto porque te amo, acredita que é necessário explorar novas estratégias. “Por que não reinventar caminhos, como os artistas plásticos fazem muito bem com vídeoarte? Como o filme da gente tem um caráter experimental, uma narrativa diferente da clássica, imaginamos exibir o filme não todos os dias em cinco sessões, mas uma vez por semana. É uma coisa boa pra esse tipo de cinema que a gente faz, para deixar o filme mais tempo em cartaz”, exemplifica contando da experiência de seu último longa-metragem. A jovem Paz Fábrega, cujo primeiro longametragem, Água fria do mar, foi escolhido como abertura do festival, chama atenção para a situação na Costa Rica, ainda mais complicada que a brasileira. Enquanto aqui produzimos cerca de 100 películas por ano, lá o recorde em um ano foi de cinco. “O que eu sinto na Costa Rica é que assistimos muito pouco cinema, e pouca variedade. Há muito cinema comercial gringo. Normalmente há cinco filmes em cartaz nos cinemas, sendo dois infantis, então realmente nos sobram poucas opções. Se vê muita televisão”, descreve a cineasta.

foto: divulgação/festival de cinema latino-americano

conquista seu espaço

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Hegemonia comercial Para a professora da Escola de Comunicação e Artes (ECA/USP) Marília Franco, o desenvolvimento da indústria do cinema estadunidense além de ter se apropriado da necessidade humana de contar e ouvir histórias na forma linear simples com imensa eficiência do ponto de vista capitalista contou com algumas “sortes históricas”. Eles se desenvolvem nas primeiras décadas do século 20, justamente entre duas guerras mundiais que impedem que as indústrias cinematográficas dos países europeus cresçam, por um motivo muito objetivo: a matéria-prima que faz película, o nitrato de prata, é a mesma que produz munição. “Assim como os EUA tinham a Kodak, a Alemanha tinha a AGFA, que podia fornecer película para todo o mercado europeu. Porém, a Europa teve que parar completamente a produção de película e a matéria-prima foi pra indústria bélica”, narra a docente. Como o lazer cinematográfico da população já era uma necessidade cultural instalada, o cinema de Hollywood não teve grandes dificuldades em ocupar esse espaço, até hoje representando hegemonicamente o mercado comercial de cada país. Terminada a Segunda Guerra Mundial, os italianos ganham atenção com uma inovadora cinematografia voltada para a documentação da situação do país pós-guerra. Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, inaugura, em 1945, o cinema neo-realista. Nesse momento, uma série de latino-americanos estudava cinema na Itália, tais como Rudá de Andrade (filho de Oswald de Andrade), os cubanos Julio Garcia Espinosa e Tomás Gutiérrez Alea e o argentino Fernando Birri, que, de volta a seu país, fundou em 1956 a Escola Documental de Santa Fé. Já no contexto da bipolarização da Guerra Fria, o cinema da juventude de esquerda, com formação cultural de denúncia das situações econômicas, políticas e sociais de estrondosas desigualdades, começa a criar esse olhar dentro de cada país latino-americano, num modelo bastante influenciado pelo neo-realismo italiano. Inicia-se, então, o Novo Cinema Latino-americano, quase como uma cinematografia de exceção. “Em Roma, Cidade Aberta, o próprio nome já diz, o espaço era a rua, o italiano comum, as mulheres que tinham se prostituído durante a guerra para alimentar seus filhos, os homens voltando pra casa mutilados, as viúvas, o papel da Igreja, do Partido Comunista, essa era a temática. Isso caiu como uma luva para as cinematografias latino-americanas”, assinala Marília Franco.

Cinema de resistência Esse cinema de exceção, de denúncia, de cultura nacional, caminhava na contramão de toda a empreitada estadunidense hegemônica de exaltação do bem-estar social capitalista durante a Guerra Fria. Como, então, ele conseguiu florescer? Simples: não conseguiu, porque não tinha tela. Não havia quem conseguisse viver de cinema. No entanto, essa cinematografia sustentavase politicamente, enquanto resistência. Para se ter ideia de como não havia espaço e

como não era comercial, explica a professora, “O Grande momento [1958, de Roberto Santos] foi lançado no dia 31 de dezembro, num cinema que era trajeto da corrida São Silvestre. Portanto, não dava para chegar porque as ruas estavam bloqueadas. Esse é o esquema de lançamento desses filme”. Por não haver lançamento, “não tem como esses filmes darem dinheiro para sustentar os cineastas. Se o Brasil é assim, o resto da América Latina é igual ou pior”, exemplifica Franco. Semelhanças com as problemáticas levantadas pelos cineastas presentes ao Festival Latino-Americano de São Paulo não são mera coincidência. Para o cineasta brasileiro João Batista de Andrade, diretor de O homem que virou suco, Vlado 30 anos depois, entre outros, o cinema dos anos 1960 e 1970 “é profundamente marcado pelas ditaduras no Brasil, na Argentina, no Chile, na Bolívia, por todo lado. Você precisa ter um país para fazer um cinema nacional. E o que tínhamos eram as ditaduras vergonhosas. Você precisa ter dignidade e o que tínhamos era a violência regada à corrupção. Essa consciência nos impregnou nesse período e criou um cinema fortemente político com muita criatividade. Passadas as ditaduras, ficou o desafio: o que fazer?”. A professora da ECA, Marília Franco responde: “continuamos fazendo um cinema de resistência, pois continuamos sem tela”. Segundo ela, “para fazer resistência político-ideológica, está se voltando para a discussão desse período, e eu chamaria de cinematografia de reflexão”. Há vários exemplos de filmes com essas características, como História oficial (1985, Luis Puenzo), que aborda a temática de filhos de militantes desaparecidos adotados por militares no período da ditadura argentina, Kamkatcha (2002, Marcelo Pyñero), Postais de Leningrado (2007, Mariana Rondon), e O ano em que meus pais saíram de férias (2006, Cao Hamburger) relatando as guerrilhas argentina, venezuelana e brasileira sob a ótica de crianças, Machuca (2004, Andrés Wood), que conta a história de um garoto no Chile, durante o final do governo Allende, entre outros.

Novas descobertas Felipe Bragança, porém, chama atenção para o cinema das décadas posteriores à Guerra Fria e à ditadura: “esse aspecto político-engajado tornouse também uma grife de ‘world cinema’ que se desgastou no final do século 20 por meio de uma política de internacionalização da produção que adestrou o cinema latino-americano, de alguma forma”, afirma. Por outro lado, pondera, “estamos em um momento de novas descobertas do político e das brechas estéticas para o novo, que passam por uma nova onda de realizadores emergentes a partir do começo do século 21”, completa. Alguns filmes latino-americanos, com destaque para os argentinos, têm conquistado mais espaço internacional, como O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, que recentemente ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, assim como aconteceu com História Oficial em 1986. Trata-se de uma proximidade de alguns filmes latino-americanos com a produ-

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ção hollywoodiana? A maioria dos entrevistados considera que não, que é, na realidade, uma conquista de espaço e de reconhecimento. Para Marília Franco, essa cinematografia de reflexão usa bastante a linguagem do cinema clássico estadunidense: “É aquela história linear, direta, personagens com uma densidade dramática, suas contradições, alguns finais felizes. Todas as cinematografias que foram contra, buscando um espaço de tela, fizeram algo rebuscado do ponto de vista narrativo. Então quando você volta para a simplicidade da narrativa linear, está voltando para aquela história contada em volta da fogueira. Toda cultura humana é construída sobre histórias contadas”, aponta a professora. E adverte para possíveis interpretações que na sua avaliação seriam preconceituosas: “não podemos, portanto, crucificar uma cinematografia que está contando a sua própria história, uma história muito simples, sem grande glamour, muito identificada com a cultura cotidiana do seu consumidor. Com isso, eles têm o ‘perigo’ de fazer sucesso, estão conseguindo um diálogo com o público. Não há mal há nisso. Afinal de contas a gente vai passar a vida toda fazendo filme de uma cópia só?”, questiona.

Mercado dominado João Batista de Andrade destaca o que chama de “globalização perversa”: “o sistema internacional de produção independente ‘catando’ talentos na América Latina e deixando nossos mercados absolutamente dominados pela indústria cinematográfica norte-americana. O cinema independente (fora dos grandes estúdios) parecia antes ser uma coisa de países de segundo ou terceiro mundo e de repente se tornou uma alternativa de mercado”. De qualquer modo, a verba para a produção e o espaço para exibição e distribuição de cinematografia alternativa parecem estar escassos e em grande disputa. Para Maria Dora Mourão, presidente da Sociedade de Amigos da Cinemateca Brasileira (SAC), “por um lado já temos uma retomada de produção importante, mas por outro ainda não foi acompanhada pelo espaço distribuidor”. Assim, se não há espaço distribuidor, essa produção não é vista. “Se ela não é vista, diminui o número de espectadores. É uma equação muito difícil e complicada. São várias ações que tem de ser desenvolvidas para criar um público que mantenha o seu interesse de ir ao cinema. Sem política pública não se desenvolve o cinema de jeito nenhum”. Felipe Bragança considera que as políticas públicas de incentivo à produção cinematográfica no Brasil correm o risco de criar um ciclo vicioso, no qual “grandes produtoras consumam 5, 6 milhões de reais por produção e vivam eternamente à custa de investimento público direto. Algo muito diferente de editais e fundos de apoio à pequena produção de cinema autoral de custos controlados e limitados. Hoje precisamos ainda de uma política pública de difusão cultural dos filmes e uma melhor definição de política que consiga dar autossuficiência para os produtores interessados em cinema como indústria”. Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo agosto 2010

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entrevista

José Luís Fiori

“A Europa está cada vez mais dividida” Para o cientista político José Luís Fiori, a situação econômica do velho continente expõe a desaceleração do seu processo de integração; segundo ele, seus principais estados impediram um poder centralizado que poderia ter evitado a crise.

Fiori prevê o declínio da importância da Europa e o aumento da sua dependência aos EUA.

Por Tatiana Merlino

Por Tatiana Merlino

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cia da Europa dentro do sistema internacional e o aumento da sua dependência com relação aos Estados Unidos, não apenas no campo militar, mas também no campo das grandes decisões estratégicas e diplomáticas da escala global”.

Caros Amigos – Qual a diferença entre

a crise da Europa de 2010 e a crise estadunidense de 2008? José Luís Fiori – Do meu ponto de vista, a crise europeia de 2010 tem um parentesco causal com a crise americana de 2008, mas tem uma natureza específica e diferente. A crise de 2008 foi uma crise financeira que começou pelo mercado imobiliário americano e depois se estendeu a todo o sistema bancário e financeiro, atingindo finalmente a própria atividade produtiva devido à contração creditícia, sobretudo nos EUA e na Europa. Foi uma crise que se alastrou pelo mundo de forma diferenciada, através das portas abertas, pela desregulação dos mercados financeiros e pela globalização do sistema monetário “dólar flexível”, que se consolidou mundialmente depois da crise do Sistema de Bretton Woods, de 1973. Porém, em nenhum momento esta crise financeira se transformou numa crise de insolvência da moeda e dos títulos públicos norte-americanos, pelo contrário. No auge da crise houve uma “fuga para a segurança” dos grandes investidores internacionais, na direção do dólar e dos Títulos da Dívida do governo americano, que atuam como uma espécie de base não metálica do próprio dólar. Já no caso da crise europeia de 2010, o que ocorreu e está em pleno curso é de fato uma crise monetária, e de insolvência do próprio euro, uma moeda

que é emitida por um Banco Central “metafísico”, que não pertence a nenhum Estado, nem administra a dívida de nenhum Tesouro Central. E que, portanto, não aceita atuar como “last resort” em caso de crise fiscal ou financeira de qualquer um dos estados membros da “eurozona”.

Em artigo recente o senhor disse que o euro tem uma “falha de nascimento”. Que falha é essa? Como ela está se refletindo na recente crise do continente? O novo sistema monetário europeu começou a ser construído com o Tratado de Maastricht, em 1992, e culminou com a criação do Euro, em 2002, baseado na suposição dos dirigentes europeus de que esta nova moeda “global” conduziria à criação de um poder central capaz de geríla, apesar da história europeia ensinar que foram sempre os seus estados que emitiram suas próprias moedas soberanas, definindo e garantindo o seu valor e a sua circulação com base na sua capacidade de tributação e de endividamento. É por isso que digo que o euro tem uma “falha de nascimento”, e que funcionou até hoje como uma espécie peculiar de moeda semi-privada e inconclusa, sendo aceita com base na crença privada e na certeza pública de que o BCE e a Alemanha cobririam todas as dívidas emitidas pelos 16 estados membros da “eurozona” – como de fato ocorreu até 2008, permitindo que todos estes países praticassem taxas de juros quase iguais às da Alemanha, apesar da imensa desigualdade política e econômica que existe entre os estados membros da união monetária europeia. Essa situação mudou depois do colapso financei-

foto: divilgação

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ano de 2010 ficará marcado pela crise econômica dos chamados PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha). Para saná-la, a principal economia do continente, a Alemanha, propôs uma série de medidas de arrocho fiscal e social, que, ao serem aplicadas em economias “que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, foi como colocar gasolina na fogueira e apostar numa profunda e prolongada recessão, como fizeram os Estados Unidos no início da crise da década de 1930”, acredita o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Luís Fiori. Nesta entrevista, ele explica que as perspectivas de integração e unificação europeia são cada vez piores, “porque a União Europeia vive cada vez mais prisioneira de uma armadilha circular”. Ou seja, “ela precisa de um poder centralizado, mas seus principais estados impedem esse processo de centralização, porque, no fundo, a Europa está cada vez mais dividida entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra”, explica. O cientista político acredita que a recessão e a desvalorização do euro, “apesar de tudo”, acabarão beneficiando a Alemanha como principal economia exportadora do velho continente, e, como consequência, transferirão para as economias mais fracas “o ônus da recessão, do desemprego, da perda salarial e da proteção social, e do aumento da luta de classes, da xenofobia e do nacionalismo de direita”. Já do ponto de vista da ordem mundial, Fiori prevê que tal desaceleração do processo de integração europeia “deverá apressar o declínio da importâncaros amigos agosto 2010

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ro de 2008, quando a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel, estabeleceu o novo princípio de que cada país europeu teria de ser responsável – a partir daquele momento – pelos seus próprios bancos, e pela cobertura de suas dívidas soberanas. A consequência imediata da nova posição alemã foi a crise de insolvência de alguns governos da Europa Central, no ano de 2009, contornada pela intervenção do FMI. No início de 2010, entretanto, a denúncia do novo governo socialista da Grécia, de que o déficit orçamentário grego do ano anterior havia sido maior do que havia sido publicado inicialmente, serviu como estopim de uma nova crise, que foi magnificada pelo veto alemão – durante seis meses – a qualquer tipo de ajuda comunitária ao governo grego. Isso até o momento em que a situação da Grécia ameaçou se estender a outros países endividados e acabou atingindo a própria “credibilidade” do euro, obrigando a Alemanha a aceitar a aprovação apressada de um Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com capacidade anual de mobilização de até 750 bilhões de euros. Tal valor é suficiente para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do próprio sistema monetário criado em 2002.

Existe uma possibilidade do euro se extinguir? Como e por quê? A possibilidade existe, mas não é provável que isso ocorra a curto prazo, porque seria um fracasso intolerável para as potências ocidentais que conceberam a estratégia da formação da União Europeia. Mas não há duvida que, a médio prazo, a “eurozona” poderá sofrer um estreitamento com a possível saída de alguns dos seus integrantes atuais, começando talvez pela própria Grécia, o que teria um impacto imediato, pelo menos sobre Portugal, Irlanda e Espanha. Para enfrentar esse desafio imediato, e tentar corrigir ex- post a falha de origem de toda a estratégia. A França vem propondo, há algum tempo, a criação de um “governo econômico europeu”, que não é aceito pela Alemanha, e muito menos pela Inglaterra. O governo alemão, por sua vez, está propondo – sem contar com o apoio francês – a criação de um Fundo Monetário Europeu, para exercer o controle rigoroso da disciplina fiscal da eurozona, com o poder de expulsão dos faltosos. O impasse permanece, mas assim mesmo, a curto prazo, se impôs a posição alemã favorável a um ajuste fiscal draconiano de todos os países incorporados à zona do euro. Como o ajuste está sendo aplicado em economias que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, é como colocar gasolina na fogueira e apostar numa profunda e prolongada recessão, como fizeram os Estados Unidos no início da crise da década de 1930. Mas atenção,

porque nesse caso, a recessão e a desvalorização do euro, apesar de tudo, acabarão beneficiando a Alemanha como principal economia exportadora do velho continente e acabarão transferindo para as economias mais fracas o ônus da recessão, do desemprego, da perda salarial e da proteção social, e do aumento da luta de classes, da xenofobia e do nacionalismo de direita. O que é mais complicado, entretanto, é que nada disso resolverá o problema da insolvência do euro, porque a moeda europeia só teria um valor efetivo no momento em que fosse lastreada por um poder e por um Tesouro Central capazes de assumir a responsabilidade permanente pela sua sustentação, com base na sua capacidade de tributação e endividamento. Ou seja, no momento em que o euro se transformasse efetivamente numa moeda estatal.

Então o senhor acredita que também exista uma “falha de nascimento” da própria União Europeia? Por quê? Se fosse possível hierarquizar sonhos, a criação da União Europeia estaria entre os mais importantes do século 20. Depois de um milênio de guerras contínuas, os estados europeus decidiram abrir mão de suas soberanias nacionais para criar uma comunidade econômica e política, inclusiva, pacífica, harmoniosa, sem fronteiras, sem discriminações e sem hegemonias. Um verdadeiro milagre para um continente que se transformou no centro do mundo, graças à sua capacidade de se expandir e dominar os outros povos, de forma quase sempre violenta e muitas vezes predatória. Depois de 50 anos do Tratado de Roma, o projeto inicial de unificação europeia dobrou de tamanho, nasceu uma moeda única, e o PIB comunitário ultrapassou o dos Estados Unidos, com renda média alta e confortável. E, no entanto, as perspectivas de integração e unificação europeia são cada vez piores, porque a União Europeia vive cada vez mais prisioneira de uma armadilha circular. Ela precisa de um poder centralizado, mas seus principais estados impedem esse processo de centralização, porque, no fundo, a Europa está cada vez mais dividida entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. Depois do fim da Guerra Fria e da reunificação da Alemanha, este país se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos laços econômicos e financeiros com a Europa Central e com a Rússia. Esse comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União

“Fragilidade política e militar de Europa desautoriza qualquer expectativa de que o euro possa substituir o dólar dentro desse sistema monetário internacional” Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Europeia, e trazendo de volta velhas fraturas e divisões que estiveram presentes em suas infindáveis guerras seculares. Enquanto isso, a União Europeia segue sem um poder central unificado capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas aos seus estados membros. Tal situação é agravada pela sua submissão militar aos Estados Unidos, que impôs a expansão apressada da UE em direção ao leste para “ocupar” os estados que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, e haviam estado sob controle soviético até 1991. Como consequência, a União Europeia se transformou num “ente político” fraco, com uma moeda falsamente “forte”, e com muito pouca capacidade de iniciativa autônoma dentro do sistema mundial.

Quais serão as consequências da crise na zona do euro? O que isso pode causar na ordem mundial? Muitos previam que o euro substituiria o dólar em influência. O mais provável é que em breve haja algumas deserções da zona do euro, e que com isso aumente a desconfiança dos novos membros e dos candidatos a entrada com relação à viabilidade do próprio projeto político de unificação do velho continente. Do ponto de vista da ordem mundial, essa desaceleração do processo de integração europeia deverá apressar o declínio da importância da Europa dentro do sistema internacional e o aumento da sua dependência com relação aos Estados Unidos, não apenas no campo militar, mas também no campo das grandes decisões estratégicas e diplomáticas da escala global. Com relação ao euro, entretanto, nunca houve essa possibilidade de substituição, só que agora ficou mais visível que isso não acontecerá de forma nenhuma, nem hoje nem amanhã. Durante o período em que a “moeda internacional” teve uma base metálica, a libra e o dólar também tiveram uma restrição financeira intransponível, imposta pela necessidade de equilíbrio do Balanço de Pagamentos do país emissor da moeda de referência. Porém, depois do fim do Sistema de Bretton Woods, em 1973, essa restrição desapareceu, com o novo sistema monetário internacional “dólar-flexível” que não tem nenhum tipo de padrão metálico de referência. Nesse sentido, pode se dizer que houve uma nova “revolução financeira”– na década de 1980 –, que provocou uma espécie de retorno às origens da relação entre o poder, a moeda e o crédito. Os EUA voltaram a definir, de forma soberana e isolada, o valor da sua moeda e dos seus títulos da dívida pública. E hoje, o valor ou credibilidade da moeda americana está lastreada pelo próprio poder americano, político, militar e financeiro. Trata-se de um estado e de um tesouro nacional que emitem a moeda e os títulos que aparecem de um lado ou do outro do “balcão” em cerca de 70% das operações feitas dentro da economia mundial. Diante disso, a fragilidade política e militar de Europa desautoriza qualquer expectativa de que o euro possa substituir o dólar dentro desse sistema monetário internacional vigente desde a crise de 1973. Qual é a sua avaliação da proposta do governo alemão de criar o Fundo Monetário agosto 2010

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europeu? E sobre a proposta de ajuste fiscal aos países da zona do euro? Como uma forma da Alemanha de exercer um “protetorado macroeconômico” sobre o resto da Europa. A Alemanha já controla a política do Banco Central Europeu, mas o BCE não tem capacidade de intervenção direta dentro das economias nacionais da comunidade. Com a criação desse Fundo Monetário, a Alemanha adquirirá também um instrumento de intervenção mais direta, com poder de punição dos “faltosos”, reproduzindo a situação vivida pela América Latina durante a década de 90. Só que no caso europeu, o poder de intervenção da Alemanha seria muito maior que o que tiveram os Estados Unidos e do Fundo Monetário Internacional naquele período, na medida em que a intervenção do Fundo Europeu seria autorizado pela União Europeia. Mas o que de fato se estaria criando na Europa seria uma espécie de “império fiscal” alemão. E como o senhor vê o papel maior e permanente da Alemanha tanto na consolidação da UE como na atual crise? O projeto de unificação europeia foi concebido originalmente no início dos anos 50, em grande medida, para incluir e desmilitarizar a Alemanha, e para conter a União Soviética, sob a batuta franco-americana. Mas depois de 1991 esse projeto virou de ponta cabeça com a reunificação da Alemanha e o fim da URSS. A partir daí, a Alemanha se aproximou da nova Rússia, e estendeu sua influência a toda a Europa Central, alargando sua liderança econômica dentro da EU. Por isso, quando a primeira-ministra Ângela Merkel foi eleita, em 2005, pôde montar um governo de “união nacional” com os social-democratas, fortalecendo o governo e o estado alemão, para seu trabalho contínuo e silencioso em favor da aprovação da nova Constituição europeia, o Tratado de Lisboa, e pelo controle político de todos os novos estados que se associaram à UE. Mais recentemente o governo de Merkel se desfez da aliança com os social-democratas e assumiu com os liberais a liderança das posições ortodoxas dentro da Europa, transformando-se numa referência mundial na luta contra o intervencionismo estatal e contra qualquer tipo de ativismo do Banco Central Europeu. Depois de 2008, e em particular, desde a crise de 2010, a Alemanha parece estar assumindo uma posição cada vez mais egoísta e autônoma com relação à França e aos demais membros da União Europeia. E todos os sinais indicam que a Alemanha vem se comportando, tanto no campo econômico como no campo político e diplomático, orientada exclusivamente por seus interesses nacionais, tendo abandonado sua posição tradicional de solidariedade com o resto da

Europa. Não é por acaso que pesquisas recentes indicam que muitos empresários e banqueiros europeus já estão achando que não é impossível que a própria Alemanha abandone o euro.

Como o senhor avalia a reação dos governos da Grécia, Espanha e Portugal diante da crise? E quais serão as consequências do ajuste para os países dos PIIGS? Enquanto membros da EU e da “eurozona”, Grécia Espanha, Portugal, Irlanda e todos os pequenos países da Europa Central não tem muito mais o que fazer senão aceitar a imposição alemã da nova política de austeridade generalizada. Do contrário, teriam de antecipar sua saída da zona do euro, e acho que nenhum deles está preparado para isso, nem política nem economicamente. O problema é que essa política alemã de austeridade teria alguma possibilidade de funcionar economicamente – a médio prazo e com enorme custo social – se a Alemanha não estivesse fazendo o mesmo e se autoaplicando as mesmas estratégias recessiva. Mas aplicada em conjunto, essa política de austeridade está empurrando a União Europeia numa direção autodestrutiva. Numa entrevista recente, o professor Luiz Gonzaga Beluzzo disse que o tipo de capitalismo dominante nos últimos 30 anos “sobretudo desde a desfiguração do estado do bem-estar na Europa e do avanço do projeto neoliberal, é um modelo que terminou, está com os dias contados”. O que o senhor acha disso? Acho que o Beluzzo tem razão, mas não há que esquecer que o capitalismo está em constante mutação. O que nunca se sabe nem se consegue antecipar são as novas formas que ele vai assumindo e que deverá assumir daqui para frente, uma vez que – do meu ponto de vista – não estamos vivendo ou assistindo a uma “crise final” do capitalismo. Assim mesmo, gostaria de chamar a atenção para uma outra tendência destes últimos 30 anos que está se fortalecendo em quase todo o mundo e que deve se prolongar ainda por muito tempo, independente das mudanças propriamente econômicas do sistema capitalista. Refirome à hegemonia das ideias e ao aumento do peso mundial das forças conservadoras que já foram neoliberais, mas também podem vir a ser keynesianas do ponto de vista estritamente econômico. Acho que tudo começou no final dos anos 70, e para ser mais preciso e heterodoxo, diria que começou na hora que o Vaticano surpreendeu o mundo católico – em 1978 – ao transformar um cardeal obscuro, proveniente de uma das comunidades católicas mais reacionárias e piegas da Europa, no Papa João Paulo II. Sua eleição foi o verdadeiro ponto de partida ideológico desse lon-

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go período conservador que se prolonga até hoje, começando na forma de uma resposta aos movimentos emancipatórios dos anos 60 e à grande crise econômica da década de 70. Para ser fiel às datas, Karol Wotjyla foi eleito em 1978, Margareth Thatcher, em 1979, Ronald Reagan, em 1980 e Helmut Khol, em 1983. Suas eleições não fizeram parte de uma mesma estratégia, nem obedeceram a uma cadeia coordenada de comando ou decisão. Mas todos eram profundamente conservadores, e suas ideias e ações convergiram em torno de uma mesma estratégia anticomunista, criando-se uma força política e ideológica coesa que derrubou o mundo comunista, atravessou os anos 90 e chegou até os nossos dias cada vez mais conservadora, autoritária e expansiva. Já se estudou e falou muito sobre as transformações econômicas e financeira que começaram com a crise mundial dos anos 70, em particular as reformas e políticas neoliberais, mas talvez não se tenha dado a devida atenção à essa dimensão cultural e ideológica da expansão vitoriosa dos conservadores, pelo menos até o momento em que o fundamentalismo religioso se transformou no grande cabo eleitoral da reeleição de George Bush, em 2004. A partir daí, com exceção da América do Sul, o conservadorismo seguiu crescendo em todo o mundo, de forma particular na Europa, mas também nos Estados Unidos, onde o presidente Obama se encontra cada vez mais fragilizado do ponto de vista ideológico e político para as próximas eleições parlamentares e para a sua própria sucessão presidencial. Acho muito importante prestar atenção nesse movimento político e ideológico que está atravessando os EUA e a Europa, como se fosse um tufão, porque ele terá um peso decisivo na determinação dos novos caminhos da economia capitalista. Tatiana Merlino é jornalista.

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Lúcia Rodrigues

Mexicanos se levantam, mais uma vez, contra a tirania Ao lado a foto da prisioneira desaparecida Ida Adad e as fotos dos militares envolvidos nas torturas.

Mesária orienta eleitor oaxaqueño na capital do Estado durante a eleição de 4 de julho.

a

tradição de luta contra os tiranos permeia a história mexicana. Em setembro deste ano, a revolução que derrubou o regime ditatorial do oaxaqueño Porfírio Díaz completa cem anos. No mês passado, os oaxaqueños destituíram do poder, desta vez pelo voto, o Partido da Revolução Institucional (PRI), que governou o Estado com mão-de-ferro por oitenta longos anos. Mas a luta recente dos oaxaqueños não se limita ao voto. Em 2006, ela ultrapassou as fronteiras do México, ganhou o mundo e brindou todos aqueles que defendem uma sociedade igualitária, com uma insurreição que derrubou a institucionalidade e abriu espaço para o poder popular. Durante seis meses, a comuna de Paris latinoamericana, destitui os poderes formais (executivo, legislativo e judiciário) e forja ativistas nessa escola de luta. A comuna europeia do século 19, primeira experiência de governo popular do mundo, durou um terço do tempo que a latinoamericana. Assim como a francesa, a comuna mexicana sofreu o peso da repressão e foi duramente golpeada por um Estado ditatorial.

Pelo menos 26 pessoas perderam a vida em Oaxaca de 2006, dentre as quais se destaca o jornalista norteamericano Brad Will, que documentava ações populares na América Latina. As prisões ficam abarrotadas de opositores, que são barbaramente torturados pelas forças repressivas. As baixas entre os lutadores sociais, sem dúvida, são significativas, mas o saldo político dessa experiência comunal em que todas as rádios foram tomadas pela população, que passou a controlá-las, foi positivo e se refletiu no resultado da eleição de 4 de julho. A vitória da oposição é certamente fruto das barricadas montadas nas ruas e estradas de Oaxaca quatro anos antes. Por isso, em julho de 2010, o clima de terror imposto pelo governador Ulises Ruiz, para tentar eleger seu candidato, Eviel Pérez Magaña, não consegue mais intimidar os eleitores: 55,9% destes compareceram às urnas e uma parcela considerável vota pela mudança. O índice é bastante expressivo se se levar em conta que no México o voto não é obrigatório. O baixo comparecimento de eleitores às urnas sempre foi um dos aliados do PRI, para que o par-

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tido se mantivesse no poder durante todo esse tempo. No entanto, a principal estratégia disseminada pelos priistas para continuar no controle político do Estado que faz fronteira com a Chiapas dos zapatistas, no sudoeste mexicano, é a do terror. A feroz repressão contra os opositores é a marca registrada do partido, que se vale da ação paramilitar para atingir quem lhe impõe obstáculos. A fraude eleitoral é outro dispositivo que conjugado à violência estatal encabeça a lista do manual priista de se fazer política. O legislativo e o judiciário são dependentes do executivo. E como não poderia deixar de ser, o instituto eleitoral oaxaqueño, responsável por garantir a lisura do processo eleitoral, também está subordinado às ordens do governador. Tudo, rigorosamente tudo, é milimetricamente articulado para evitar sobressaltos nas urnas. A cooptação do eleitorado por meio da compra de votos também faz parte do cotidiano priista para se perpetuar no poder. Geralmente esse mecanismo é empregado em bairros carentes da periferia ou em locais onde a população vive em condições de exagosto 2010

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foto: lúcia rodrigues

Terror imposto pelo governo de Oaxaca não intimida eleitores, que vão às urnas e votam contra partido que governou Estado com mão-de-ferro durante 80 anos. Caros Amigos acompanhou o processo eleitoral.

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trema pobreza. Oaxaca é o segundo Estado mais pobre do país, só perde para Chiapas. A distância econômica entre pobres e ricos é abissal.

Denúncias A pobreza excludente permite que essas pessoas vendam seu voto em troca de uma cesta básica, uma quantidade de algum tipo de material de construção ou ainda uma pequena quantia em dinheiro. Como não são atendidas por nenhum tipo de política pública, ainda acabam considerando esse crime como uma bondade do governo do PRI. A pressão dos priistas sobre os servidores públicos, para que votem pela continuidade do governo, também é dramática. Há relatos de que esses eleitores são acompanhados por seus chefes até as seções eleitorais, onde recebem destes um celular para fotografar o voto no interior da cabine. Na saída, esses funcionários devem entregar o celular com a prova de que mantiveram o PRI no poder. No município de Xoxocotlan, onde está localizado o aeroporto de Oaxaca, havia denúncias de que militantes do partido estariam oferecendo três mil pesos para que os mesários não comparecessem às zonas eleitorais. Mas é a violência disseminada por meio de grupos paramilitares, financiados pelo governo de Oaxaca, que tem sido o elemento central desse tipo de política. Várias lideranças oposicionistas foram assassinadas no decorrer do processo eleitoral de 2010. Apesar do risco iminente de um banho de sangue, desta vez a estratégia da disseminação do terror não se confirmou. A eleição de 4 de julho transcorreu, praticamente, sem incidentes. Apenas um morteiro foi atirado contra uma das urnas. Em Oaxaca, as urnas são colocadas no meio das praças, ao longo das ruas e mesmo quando o colégio eleitoral funciona no interior de uma escola, as cabines eleitorais ficam no pátio e não dentro das salas de aula, como é comum no Brasil. A população oaxaqueña não se amedrontou, foi às ruas e optou pela mudança. Elegeu o economista Gabino Cué, da coalizão de oposição, para assumir um mandato de seis anos, que começa a partir de dezembro. A principal dificuldade agora será governar com um arco de alianças tão amplo como o que lhe deu a vitória. A coalizão Paz e Progresso reúne partidos que vão da esquerda (Partido da Revolução Democrática, PRD, e Partido do Trabalho, PT) à direita (Partido da Ação Nacional, PAN), passando pela centrista Convergência, de Cué. No discurso para uma multidão em uma das principais praças da capital, logo após as pesquisas de boca de urna apontarem a vitória da oposição, o governador eleito não esqueceu de citar o presidente Felipe Calderón, do PAN. A mensagem deixa claro que pretende tê-lo como aliado. Calderón é considerado pela oposição o principal responsável, ao lado do governador Ulises Ruiz, pelo massacre que ocorreu em 2006 quando forças policiais federais sufocaram a insurreição popular, que se levantou contra o autoritarismo do governador priista. A justificativa apresentada pelo então presidente recém-eleito para a medida truculenta era a de que precisava conter um

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bando de vândalos que sublevaram o Estado. Na verdade sabe-se que Calderón temia que a força do poder popular pudesse marchar para o distrito federal e derrubá-lo do poder, já que sua eleição também era contestada pela oposição. A reportagem da Caros Amigos conversou com Gabino Cué no dia seguinte à eleição. O discurso político da véspera se manteve. Ele prometeu uma administração pautada na transparência e austeridade e uma gestão comprometida contra a impunidade, a corrupção e a pobreza. A geração de emprego foi outra bandeira destacada pelo político, que fez questão de ressaltar ainda, que sua gestão não irá impor nada. As decisões serão tomadas após consultar a população. Oaxaca é o único Estado da República onde a maioria da população é indígena. Concentra 16 grupos etno-linguísticos. Isso criou uma situação especial no processo de resistência e rebeldia de seu povo. A luta pela autonomia sempre representou uma tensão muito forte da população indígena contra a estruturação central do Estado mexicano. Oaxaca possui 570 municípios, dos quais apenas 152 elegem seus prefeitos e representantes locais baseados na estrutura político-partidária. Os demais 418 seguem uma norma que eles definem como usos e costumes. Os moradores desses 418 municípios seguem regras próprias e só vão às urnas para eleger governador e deputados, além do presidente da República.

Apoio ao zapatismo Coube aos triquis, uma das principais etnias indígenas oaxaqueñas, a primeira manifestação de apoio à Revolução Zapatista em 1994. Foi deles a primeira carta declarando que os zapatistas não estavam sós nessa luta em defesa da população de Chiapas, mas que contavam com o apoio das comunidades da zona triqui. Esse foi o primeiro gesto de respaldo aberto que os zapatistas receberam. O comprometimento com as causas sociais e populares, além da atuação em defesa da autonomia de seu território rendeu a fúria do poder estatal. Neste momento a comunidade triqui de San Juan Copala está sendo dizimada por forças paramilitares, patrocinadas pelo governador Ulises Ruiz, que cercou a região. Os triquis estão isolados, sem comida, sem acesso a saúde, educação. Ninguém entra ou sai do território. Um comboio humanitário que tentou furar o bloqueio, em abril deste ano, foi fuzilado por paramilitares, um jornalista finlandês e uma ativista mexicana de direitos humanos foram assassinados no ataque. A repressão contra a etnia ocorre desde 2007, quando eles declararam o território autônomo, mas tem se intensificado nos últimos meses. A região pode ser considerada um oásis, com recursos naturais e água em abundância, em um território cercado pelo clima árido, muito comum no sul do México. A presença das mineradoras em Oaxaca tem sido fonte de violência contra a população indígena. O exemplo mais gritante das consequências desastrosas desse tipo de intervenção acontece no município de San Jose del Progreso, localizado a pouco mais de uma hora da capital, e onde também

existe um nascente importante de água. A Fortune Silver, responsável pelo empreendimento que deve entrar em operação em 2011, pretende explorar prata por 50 anos com possibilidade de renovação do contrato de concessão. Quando não conseguem a adesão espontânea das pessoas, que na maioria das vezes são ludibriadas a vender suas terras por uma bagatela, os emissários dos exploradores e a prefeitura partem para ameaças e violência física. Até mesmo o padre da região foi agredido porque se posicionou contra as mineradores durante a missa. Espancado precisou ser hospitalizado e teve o carro apedrejado. Em setembro, nos dias 11 e 12, San Jose del Progreso sedia a assembleia de atingidos ambientais, que vai reunir representantes de 50 movimentos do México e de várias partes do mundo.

Poder popular O papel desempenhado pelas organizações indígenas na vida política de Oaxaca tem sido fundamental. Durante a insurreição popular de 2006 não foi diferente. A tradição de compartilhamento de poder se expressou na organização da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca, que ficou conhecida mundialmente pela sigla APPO. Estrutura de luta que mesmo sem ter um escritório para a realização de suas reuniões, até hoje, continua se pautando pela horizontalidade no comando das ações, reunindo centenas de organizações populares e de classe. Essa identificação do povo com a APPO despertou o ódio da classe dominante. A mídia passou a veicular ataques contundentes contra suas lideranças. As rádios foram tomadas pela população. E o governo passou a divulgar sua versão por meio de uma rádio pirata e a instigar a violência contra os membros da APPO. Aos professores que acampavam no centro da capital, os locutores dessa rádio incentivavam os apoiadores priistas a oferecer alimentos com veneno. Em julho de 2010 não houve incentivo explícito ao envenenamento dos opositores. Mas a mídia continuou inflamada contra a oposição. A maioria dos jornais de Oaxaca estampou manchetes explosivas destacando o perigo de uma vitória da oposição. O Despertar, que segundo consta pertence a Ulises Ruiz, era um dos mais raivosos e apesar de custar seis pesos foi distribuído gratuitamente no dia da eleição. Sua sede é diariamente protegida por seguranças armados com fuzis. O México é um dos países onde mais se assassinam jornalistas no mundo. A violência contra esses profissionais é quase em sua totalidade cometida a mando dos donos do poder. A presença de uma missão internacional de comunicadores e observadores de direitos humanos, integrada pela reportagem da Caros Amigos, além da Ciranda, contribuiu para inibir a violência do governo priista, segundo relataram lideranças sociais, políticas e intelectuais. Além do Brasil, integraram a comissão, representantes da Argentina, Espanha, Itália, Suécia e do Uruguai. Lúcia Rodrigues é jornalista Luciarodrigues@carosamigos.com.br

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porca miséria! Glauco Mattoso

Avanço na erradicação

DUAS MEDIDAS [SONETO 3169] Paiz surrealista é este nosso! Ter grau de “jornalista” ja não posso... “Juiz”, como “advogado”, é “profissão”, mas estes, resentidos com a imprensa, lhe cassam superior graduação. No entanto, vejam só do que eu me inteiro: /estão propondo lei que dê charteira de trampo ao “repentista”! Entra quem queira/ na “classe”: o cantador, o violeiro... Eu mesmo, si quizer, peço e me dão de “cego menestrel” uma licença! Será que isso assegura o ganhapão? Si alguns acham “porreta” esse “negoço”, aos “phocas” eu me irmano, e não o endosso!

Si os proprios diplomados nas areas universitarias de communicações ja não podem ser reconhecidos como jornalistas profissionaes, que dizer dos collaboradores e columnistas? Eu, que sou bacharel em bibliotheconomia pela Eschola de Sociologia e Politica e não completei a graduação em lettras vernaculas na USP, acabei me aposentando como funccionario do Banco do Brasil e, ja totalmente cego, virei confrade dos trovadores e cantadores, mesmo sem ter entrado para a UBT ou para a ABLT. Da Academia Brasileira de Litteratura de Chordel, aliaz, eu nem seria o membro mais indicado, ja que minha litteratura é menos de chordel que de bordel. Mas eis que um meu discipulo de officinas poeticas, Danilo Cymrot, agora advogado formado nas Arcadas, me informa que, pela lei 12.198, de 14 de janeiro de 2010 (dispondo sobre o exercicio da profissão de repentista), eu estaria garantido officialmente no officio, visto que o projecto inclue na “categoria” até contador de causos e glosador

de mottes! Quer dizer então que um sujeito pode ser poeta profissional com diploma de museologo mas não pode ser jornalista profissional com diploma de jornalista? Só no Brasil, mesmo... Fico aqui mattutando: os magistrados que, para vingar-se da vigilancia da imprensa e do impertinente alumno dum questionador professor, cassaram-lhes a legitimidade academica, são os mesmos juizes que, si consultados, diriam que o poeta popular merece todo o respaldo institucional e estatal, coitado, sendo a cultura tão indigente quanto tem sido “neste paiz”. Por traz dessa leitura, o que eu deduzo é: “Magina! Esses repentistas e sonetistas não passam duns palhaços inoffensivos, por mais desboccados que pareçam! Nem de longe incommodam como aquelles reporteres abelhudos e patrulheiros!” Peor é que elles teem razão... e ai de quem diga que juiz não tem razão! Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

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O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou Comunicado nº 58, de 13 de julho último, sobre a dimensão e a evolução da pobreza no Brasil. As linhas de pobreza absoluta e extrema utilizadas pelo estudo levaram em conta o rendimento médio domiciliar per capita. Foram consideradas famílias em condição de pobreza absoluta as que recebem até meio salário mínimo mensal, e as que estão em condição de pobreza extrema as que recebem até um quarto de salário mínimo mensal per capita. De 1995 a 2008, 12,8 milhões de pessoas saíram da condição de pobreza absoluta. Assim, a taxa nacional de pobreza absoluta passou de 43,4% para 28,8%, 13,1 milhões de brasileiros saíram da condição de pobreza extrema. A taxa nacional de pobreza extrema caiu de 20,9% em 1995, para 10,5% em 2008. Essa redução ocorreu nas cinco regiões geográficas do Brasil. Foi mais acentuada nas regiões Sul e Sudeste do que nas regiões Centro-Oeste e Norte. A taxa de pobreza absoluta na região Nordeste, que era a mais alta, 69,8% em 1995, caiu para 49,7% em 2008, enquanto a taxa de pobreza extrema, que era também a mais alta, 41,8% em 1995, baixou para 24,9% em 2008. Os estados que apresentaram maior redução na taxa de pobreza absoluta, entre 1995 e 2008, foram SC, PR e GO. Os que apresentaram menor diminuição foram AP, DF e AL. Em 1995, os estados com maior taxa de pobreza extrema eram MA, PI e CE. Já em 2008, foram AL, MA e PI. Ainda que o Brasil se apresente como um dos países de maior desigualdade de renda entre todos os países do mundo – tem o décimo maior índice segundo o relatório de 2009 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD ) – houve importante progresso no período. O coeficiente Gini de desigualdade, que era de 0,60 em 1995, teve queda gradual durante quase todo o período até atingir 0,54 em 2008. Em 1995, os mais altos índices de desigualdade eram de AL com 0,64; TO com 0,63; e CE com 0,62. Os menores eram SP e AM, ambos com 0,53; e SC com 0,54. Em 2008, os maiores índices ocorreram no DF com 0,62; e em AL e PE, ambos com 0,58. Já os estados com menor desigualdade foram AP com 0,45; SC com 0,46; e RR com 0,48. Será muito importante que o Brasil, na formulação de políticas públicas, avance na direção de aplicar os instrumentos de política econômica que possam assegurar, nos próximos anos, a completa erradicação da pobreza.

Ilustração: bruno paes

da pobreza

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador. agosto 2010

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Cesar Cardoso

tacape Rodrigo Vianna

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Os tupinambás

PESQUISAS ELEITORAIS: ERRO OU MANIPULAÇÃO?

e a formação do novo mundo europeu

O Eduardo Guimarães é um dos pioneiros da chamada “blogosfera” no Brasil. Ele edita o Blog da Cidadania (blogdacidadania.com.br). Para os menos conectados com o mundo digital, lembro que blogosfera é o termo que se usa para definir a rede de sites e blogs “alternativos” (não gosto dessa palavra, mas é uma forma de deixar claro que não são ligados a grandes portais da internet como UOL, Terra, IG, G1). Entre os blogueiros com maior índice de leitura, a maioria é de jornalistas profissionais (cito, como exemplos, Paulo Henrique Amorim e Luis Nassif). Eduardo é exceção. Ele não é jornalista. E talvez isso seja uma vantagem. Escreve sem a pretensão do “profissional de comunicação”, já que trabalha como vendedor de auto-peças e toca o blog nas poucas horas vagas. Um vendedor que sabe se comunicar, e não tem medo de comprar brigas importantes. A ONG que o Eduardo fundou com os leitores de seu blog em 2007 e da qual é presidente (o “Movimento dos Sem-Mídia” - MSM) entrou com uma representação junto à Procuradoria Geral Eleitoral, pedindo a investigação dos institutos de pesquisa. O motivo é muito simples: desde o segundo trimestre desse ano, os números apresentados pelos quatro grandes institutos (DataFolha, Ibope, Vox Populi e Sensus), para a eleição presidencial, são muitas vezes contraditórios e discrepantes. Os dois últimos têm mostrado, já há alguns meses, que Dilma Rousseff estaria à frente de José Serra na corrida presidencial. Os dois primeiros, em especial o DataFolha, seguem a apresentar quadro mais favorável ao candidato tucano. Em alguns casos, as diferenças chegam a 8 ou 10 pontos percentuais! Até aí, poderíamos estar diante de simples erros estatísticos (santa ingenuidade). O mais grave é que, diante das discrepâncias, o jornal “Folha de S. Paulo” partiu para uma tentativa de desqualificar Vox Populi e Sensus. Em notas e reportagens, o jornal paulistano levantou dúvidas sobre os procedimentos técnicos dos institutos concorrentes. E deixou no ar a questão: Sensus e Vox Populi estariam a servi-

Não foi por acaso que, em 1500, os Tupinambás saíram do porto do Rio de Janeiro e navegaram até as terras do Novo Mundo, batizando-as de Europa. Eles sabiam muito bem o que iam fazer por lá: levar o primeiro processo de globalização ao continente desconhecido. É verdade que de início se limitaram à retirada do Pau-Europa, mas com o ciclo da beterraba iniciaram a produção de açúcar, que exportaram para todo o Velho Mundo, desde a Argentina até o Canadá. Junto com o lucro vieram os conflitos com os índios europeus – franceses, ingleses, portugueses, espanhóis e os temidos holandeses, que se aliaram aos Xavantes quando estes invadiram o Nordeste da Europa em 1630, liderados por Juruna de Nassau e sua Companhia Xavante das índias Ocidentais. Nos anos 1700, para explorar o ouro descoberto no interior da Europa, os Tupinambás são obrigados a importar mão de obra estrangeira, já que a indolência do europeu o torna incapaz de trabalhar nas minas. É criado assim o tráfico negreiro para a Europa, que dura até 1888, quando os Tupinambás promulgam a Lei Áurea e dão liberdade a todos os escravos. No século XX, chegam as guerras de independência, com Churchill, De Gaulle, Stalin e outros líderes terroristas sacudindo uma Europa até então pacífica. E se no século XXI já não há mais colônias, há os populistas como Sarkozy e Berlusconi oferecendo milagres à população. Mas a dura realidade histórica é que nada disso altera o quadro do subdesenvolvimento europeu. Afinal, seria ele resultado de séculos de imperialismo tupinambá ou do inóspito clima frio do continente somado à preguiça natural dos índios, sejam eles ingleses, portugueses, franceses ou alemães?

ço da candidatura de Dilma Rousseff? A blogosfera reagiu e, por sua vez, levantou dúvidas sobre o DataFolha – instituto que pertence a um jornal claramente alinhado com a candidatura do PSDB – e sobre o Ibope – cujo diretor, Carlos Augusto Montenegro, chegou a prever que Dilma não passaria dos 15% (chute, torcida ou previsão errada?). Pela primeira vez, desde a redemocratização, explicitou-se para o público uma informação que só percorria os bastidores da política: as pesquisas são instrumentos que podem ser usados, de forma pouco técnica, a serviço de uma ou outra candidatura. É o óbvio ululante. O MSM reuniu todos esses indícios e resolveu cobrar explicações definitivas: quer uma investigação nos 4 institutos. A representação do MSM foi acolhida pela vice-procuradora-geral, a polêmica Sandra Cureau, que abriu procedimento sob o número 4559.2010-33 e determinou abertura de inquérito pela Polícia Federal. Provavelmente, a investigação não estará concluída antes das eleições – se é que será feita. Mas é o pontapé inicial para que se abra a caixa preta dos institutos de pesquisa. Aliás, se nossos congressistas (aí incluída boa parte da base de sustentação do governo Lula) não tivessem tanto medo da velha mídia brasileira, já deveriam ter convocado uma CPI para investigar os institutos e suas estranhas pesquisas (na última rodada, antes do início do horário eleitoral, o Ibope alinhou seus números ao Sensus e Vox Populi, mostrando Dilma entre 5 e 8 pontos pontos à frente de Serra; o DataFolha ficou sozinho na trincheira). De novo, santa ingenuidade! Dezenas de congressistas (incluindo gente do PMDB neolulista, e os “companheiros” do PP, PR, PTB) têm ligações estreitas com jornais e emissoras de todo o Brasil. Não comprariam nunca a briga com o Ibope (parceiro da Globo) e o DataFolha (filhote do jornal mais vendido do país). É por isso que restou ao Eduardo e ao MSM comprar essa briga. Está em boas mãos.

Rodrigo Vianna é jornalista.

Cesar Cardoso é historiador e leciona na University of Tchucarramãe.

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Gershon Knispel

“Deutschland, Deutschland über alles”. Será?

Reflexões sobre a Copa do Mundo

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posição de sentido em que ficou a seleção alemã no estádio Green Point, na Cidade do Cabo, enquanto se executava o arrogante hino nacional de seu país – que não foi mudado mesmo com a queda do Terceiro Reich e da concepção de superioridade da raça germânica –, contrastou com o fato de que quase a metade dos seus jogadores não é de origem alemã. Isso me provocou profundas reflexões e me despertou muitas lembranças do passado remoto: na Olimpíada de Berlim, em 1936, Hitler não conseguiu impedir a participação de Jesse Owens, que ganhou a medalha de ouro dos 100 metros, ridicularizando a ideia de raça superior. A segunda e última derrota de Hitler em questões de raça foi, no início de maio de 1945, no bunker – ele ficou chocado ao ser informado por seus generais de que o que havia restado das divisões alemãs em Berlim não tinha mais forças para deter o avanço do Exército Vermelho rumo ao coração da capital. A última ordem pessoal do Führer antes de seu suicídio foi a de que numa cova aberta na entrada do bunker fossem jogados o seu corpo e o de sua esposa Eva Braun, com a qual havia acabado de se casar, e que fossem lançados sobre os cadáveres vários galões de gasolina e, em seguida, se ateasse fogo, para que seus restos não caíssem “nas mãos dos bárbaros soviéticos”. A queda do Terceiro Reich como um castelo de cartas, enquanto das principais cidades da Alemanha só restavam ruínas, não obrigou os alemães a mudar esse hino prepotente (“Alemanha, Alemanha acima de tudo”). Passaram 65 anos e os cronistas esportivos chegaram ao consenso de que o massacre dos argentinos pela seleção alemã só pôde ser concretizado pelo caráter multiétnico do time da Alemanha. E é verdade, as ondas da imigração, que começaram logo depois do grande fiasco, foram de turcos e norte-africanos que chegaram para executar os trabalhos sujos, que os alemães não queriam mais fazer. A queda do Muro de Berlim, no fim dos anos 1980, levou a uma grande onda de imigrantes dos países ex-socialistas da Europa Oriental. Acrescente a compra de jogadores de alto nível de outros países e esses fatos podem explicar a presença de Serdar Tasci e de Mersut Özil, de origem turca, e de Dennis Aogo, de origem nigeriana; de Jerome Boateng, de origem ganesa; de Samir Khedira, de origem argelina; de Mario Gomez, de origem espanhola, e dos poloneses Miroslav Klose, Lucas Podolski e Piotr Trochowski, do bósnio Marko Marin, e do brasileiro Cacau.

Os comentaristas disseram que o sangue novo (não é “puro” do ponto de vista da velha concepção “ariana”) impediu que a seleção alemã ficasse esclerosada na rotina. Mas entoado para essa mistura de raças, o Hino alemão soou muito mal para os neonazistas que são cada vez mais influentes na Alemanha, e para a maioria das pessoas nos outros países da União Europeia, onde também crescem os movimentos nacionalistas xenófobos, contrários à imigração. Será que a Alemanha venceu? Desde que o esporte do futebol se tornou uma indústria de prosperidade em ascensão, quase uma mina de ouro, obrigando a participação nas seleções de jogadores naturalizados, os governos foram forçados a descobrir novas combinações de leis para tornar esses estrangeiros cidadãos da pátria. Quando, após cair a máscara, aparece o rosto feio da hipocrisia, com as novas leis que impedem a entrada de mais imigrantes, o que se pode esperar dos governos que dizem querer que os imigrantes se tornem cidadãos? Mas, quando se fala em futebol, os imigrantes estão longe de ser a pior coisa... Na Folha de S. Paulo de 4 de julho, domingo, seção Mundo, foi publicado um artigo de meia pá-

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gina com a manchete “Alistamento abre as portas para a imigração” e o subtítulo “Servir às Forças Armadas Americanas é caminho cada vez mais comum entre estrangeiros para obter cidadania”. Os países europeus abriram as portas para a imigração para dar a eles os trabalhos mais penosos, mas os Estados Unidos estão abrindo as portas para a legião estrangeira mascarada, para usar os estrangeiros como carne de canhão nas guerras mais horrendas e mais vergonhosas, das quais os americanos já cansaram de participar, desiludidos com as promessas enganosas que Obama fez na campanha eleitoral, de mandar em poucos meses todos os soldados para casa. Na verdade, Obama dobrou o número dos novos recrutas e achou a solução: vão incorporar os imigrantes, obrigados a prestar o serviço militar fora do país, para garantir a cidadania; esses imigrantes vão ter o privilégio de voltar em caixões de madeira cobertos com a bandeira de 54 estrelas, e os familiares que receberem esses caixões poderão gozar de plenos direitos. Mas, voltando ao nosso assunto, será que não chegou a hora da República Federal da Alemanha, aberta e plural, mudar esse hino, diante das novas realidades? Afinal, a senhora Merkel não teria a oportunidade de abraçar seus amigos eminentes no Green Point, ao final do jogo com a Argentina, sem a ajuda desses jogadores imigrantes. O espaço é curto para mais reflexões sobre esse assunto muito sério, de modo que prosseguiremos nele no próximo mês. Gershon Knispel é artista plástico.

II Artistas plásticos contra a ocupação Shimon Tzabar, artista plástico, escritor, poeta e caricaturista, nasceu na Palestina em 1927, filho de imigrantes pioneiros dos judeus da Ucrânia, foi o criador do famoso anúncio de abaixo assinado contra a ocupação da Palestina depois da guerra de 1967; quando percebeu que só doze intelectuais aceitaram assinar esse manifesto se exilou em Londres, onde dividiu seu trabalho como operário de construção civil e publicou a revista “Novidades do Império”, na qual criticava venenosamente a ocupação. Prometeu que só voltaria para Israel depois do fim da ocupação e da devolução de todas as colônias judias da Cisjordânia e do Golan. Não conseguiu realizar sua promessa, morreu há três anos sem completar seu desejo. O desenho em nanquim: Refugiada da Palestina carregando seu bebê. agosto 2010

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entrevista

Inezita Barroso na. Até que um dia, um primo meu que nasceu em Presidente Prudente, morou na fazenda até vir estudar em São Paulo e tocava violão, convenceu os caipiras a me ouvirem e eles ficaram de queixo caído: “nossa, ela toca!”. Aí eu peguei a viola de um e de tanto assistir, sai tocando “Boi Amarelinho” e essas modas muito antigas. Eu consegui pegar algumas, escrever a letra, eu sempre admirei muito, muito, admirei muito os ritmos de São Paulo, e mais tarde eu viajei pelo Brasil inteiro, cantei no Brasil inteiro, fiz uma viagem maravilhosa de jipe até a Paraíba, porque era um filme que iam levar muito bonito, eu era a estrela, eu fui para conhecer o ambiente da Paraíba, daí me casei com um cearense, também conheci o Ceará de ponta a ponta e tinha muitos amigos pernambucanos, tudo isso antes de ser profissional.

Tatiana Merlino – A senhora estudou música

Viola Minha Viola, 30 anos de resistência da

música caipira

a

Participaram: Bárbara Mengardo, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

cantora e apresentadora Inezita Barroso é conhecida e respeitada por sua dedicação ao folclore e à cultura mais autêntica do interior do Brasil. Aos 85 anos de idade comanda um dos raros programas de TV que abre espaço e promove a música popular brasileira e a chamada música caipira de raiz: o “Viola Minha Viola” acaba de comemorar 30 anos de resistência, na TV Cultura de São Paulo. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Inezita fala de suas lutas..

Tatiana Merlino – Fale sobre a senhora, onde nasceu e como se ligou à música? Inezita Barroso – Nasci em São Paulo, capital, na rua Lopes de Oliveira, na Barra Funda. Era um domingo de Carnaval, passava na porta o Cordão Camisa Verde, hoje Escola de Samba Camisa Verde e Branco, então o primeiro som que eu ouvi na mi-

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nha vida foi música. Acho que eu era uma bebezinha bem boazinha, calminha. Qualquer coisa que eu chorasse punham música e eu parava. Isso me contaram muito, muito mesmo ao longo da minha vida. Então, eu já nasci amando música, a música de todas as espécies, de todas as nações, estudei muito música, fiz três cursos de piano, estudei violão, estudei viola, estudei viola não, viola é folclórica, eu aprendi de ouvido, de ver a caipirada tocar, mas a minha viola era autentica, era bem caipira, não tinha floreado nenhum, muito simples e já com 7 anos, 8 eu admirava música caipira e a poesia caipira principalmente, então eu tomava nota de tudo, das letras. Só que era eu no meio de dez primos homens, porque menina não podia tocar viola, não podia se expandir, tocar violão, mas eu assistia às rodas de viola todas com eles e tinha uma vontade de aprender aquilo tudo, só que a caipirada não deixava, porque eu era uma meni-

como formação? Muito, muito, muito. Três cursos de piano e muito sérios. Mas eu nunca me encontrei no violão e na viola por música, nunca! Eu achava que quebrava aquele som que eu ouvia caipira, que tinha uma cadência diferente, como tinha mesmo. Esse não, aqui por música fica quadrado, fica amarrado num ritmo que não é isso que eu gosto, não é isso que eu ouvia desde pequena. Até hoje eu toco viola não é por música, é de transmissão oral e violão. Agora, no piano, meu pai me obrigou a fazer um curso de música porque tocava de ouvido, aí eu fiz três cursos, porque eu queria abrir um conservatório de música, tinha que ter um diploma na parede, e eu não tinha. Aí arranjei um diploma, resolvi abrir um pequeno conservatório, que não deu certo, aí virou um restaurante, é impressionante.

Hamilton Octavio de Souza – Onde isso? São Paulo. Era no Brooklin, Santo Amaro, na avenida Santo Amaro, chamava-se Casa da Inezita. Eu sempre pesquisei culinária, costumes caipiras e tudo, não só caipira como do Nordeste, eu viajei muito de jipe. Dirigindo, parava no lugar que eu queria, via o que eu queria. Aí tem uma coisa engraçada, porque foi uma coisa da minha cabeça, assim, que eu fiquei apaixonada, que era meu ideal: trazer todos os produtos das coisas que eu recolhi com repentistas, com cozinheiros famosos do Nordeste – vendo tudo isso de perto, provando tudo –, e abrir um restaurante brasileiro com tudo isso.

Hamilton Octavio de Souza – Você já era

profissional na época? Aí já era. Eu comecei a carreia profissional por acaso em Recife, na Rádio Clube, o diretor era o Capiba, grande compositor de frevos, de canções, e ele se encantou muito comigo, me deu muitas músicas, eu não era profissional, e cantei dois meses na Rádio Clube.

Hamilton Octavio de Souza – Naquele

tempo era tudo ao vivo? Era, não tinha nada, não tinha botãozinho, não tinha nada.

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Tatiana Merlino – Em que ano foi isso? Foi em 1956, e as operadoras da rádio eram todas mulheres, isso me chamou a atenção. Não tinham nem locutores nem operadores de som. Assim, era simples de fazer, mas o que me chamou atenção é que eram todas mulheres e faziam muito bem.

Hamillton Octavio de Souza – O que você cantava na época? Lá eu cantei coisas mais do Sul, coisas gaúchas, coisas paulistas, mineiras. Então, foi também uma troca com o Luiz Gonzaga, porque nessa época ele veio para o Sul e eu fui para o Nordeste. Então era assim, os dois cobras, né? Ele muito mais, muito mais prestigiado, porque sempre mulher fica pra trás. Lúcia Rodrigues – Você estava no cenário eminentemente masculino, da música sertaneja, da música caipira... Exato.

Lúcia Rodrigues – ... masculina. Como foi

palestras no colégio São Bento para os professores e eles iam dar uma festa junina. Eu ia, mas eu ia abrir o bico e falar o que eu quisesse. Porque eu sou assim, eu não guardo, eu não torço a coisa, porque depois eu não sei voltar. Então, algumas pessoas não gostam de mim por causa disso. “Você é muito dura, você fala o que pensa”. Claro. Se eu estou pensando, eu ponho para fora. Eu não vou atacar ninguém de graça, mas o que eu estou dizendo para você é verdade, não tenho o trabalho de voltar para fazer conta, para lembrar.

Lúcia Rodrigues – Como você vê esse

sertanejo que está aí hoje e não é bem o sertanejo? Queria que você definisse como que seria. Não é nada. É um modismo. É um modismo, como a gente já passou por muitos e muitos. A verdadeira música, a verdadeira cresce no caipira, o verdadeiro amor pela terra vem de dentro para fora. E tudo isso que está aí vem de fora para dentro.

superar esse preconceito e se transformar nesse mito que você é hoje? Muito difícil. Começando de criança, pois os caipiras não deixavam nem pegar na viola deles. Menina, não.

Tatiana Merlino – Então não é verdadeiro?

Lúcia Rodrigues – Mas na carreia você

Tatiana Merlino – Eu queria que você falasse

enfrentou preconceito por ser mulher? Muito. Principalmente do caipira, não era só por ser mulher. Já tinham umas mulheres fantásticas que já cantavam e tal. E preconceito da família também, né?

Não, é cheio de vícios, de coisas de outros países. Gente, não casa. Não casa. Esse sertanejo universitário, copiado do forró universitário não tem nada que ver também o forró com o sertanejo.

um pouco mais sobre a luta contra esse estereótipo do caipira. Que é o coitadinho.

Tatiana Merlino – É. Como é lutar contra

de vez em quando nos teus programas... É, né? É, agora mesmo que a gente comemorou os 30 anos do Viola elas cantaram, foi sábado a reprise, né? Um pedaço da festa foi muito bom.

isso? É muito difícil. Porque já está enraizado. Algumas cidades do nosso interior ainda têm esse preconceito. Então, quadrilha, né? Criança com o jeans remendado no traseiro, né? Costurado no traseiro, o dentinho preto com carvão, chapéu esfiapado. Por que o caipira ia para uma festa com o chapéu desgraçado? E as meninas com pintinhas na cara? As meninas ainda estavam melhores com trancinha postiça e tudo, mas os meninos eram um desbunde, eu tinha que acabar com isso. Fiz uma série de palestras no São Bento, aí o reitor disse que daria uma festa aqui de criança, do curso primário, “e a senhora vem assistir à festa”. Olha, foi a coisa mais linda da minha vida.

Lúcia Rodrigues – Inezita, é muito difícil

Lúcia Rodrigues – Então, o termo certo é o

Hamilton Octavio de Souza – A maior parte eram duplas masculinas, né? É. Tem muito mais do que mulher.

Lúcia Rodrigues – Tinha as Irmãs Galvão

também. Elas têm mais tempo de carreira, mais tempo do que eu.

Hamilton Octavio de Souza – Elas aparecem

manter um programa com músicas de raiz ainda hoje? Dificílimo.

Lúcia Rodrigues – Por quê? Porque sempre o caipira foi considerado um idiota, um burro, sem cultura, preguiçoso, doentinho, sem dente, sem roupa, com um chapéu todo esfiapado, você vê os vestígios nas festas de escola e eu to acabando isso por etapas.

Otávio Nagoya – O dente pintado. É o dentinho pintado de preto. Gente! Até que um dia me convidaram para fazer uma série de

caipira? Caipira. Caipira. Por que o homem do litoral que é caiçara tem um baita orgulho de ser caiçara, o homem do mar? E por que o caipira tem vergonha de ser caipira, que é o homem da roça, da plantação, de dentro do país?

Hamilton Octavio de Souza – Depois de

Recife, como foi a sua carreira em São Paulo? Aqui em São Paulo? Quando eu voltei para São Paulo a família não queria saber de artista, cantora de rádio, eu já estava casada e não tinha que dar satisfação para a família. Aí, o Costa Lima, que foi um grande diretor da Tupi – um baiano

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muito inteligente –, foi ser diretor da rádio Nacional de São Paulo e me convidou para a inauguração. A do Rio já era famosa e eu participei da inauguração e aí pegou no breu, né? Mas foi em Recife, pela primeira vez na vida, que eu ganhei para cantar.

Hamilton Octavio de Souza – Mas você

chegou a comandar programa nessa época, você tinha um programa seu? Ou só se apresentava? Não tinha programa exclusivo de um artista. É porque depois, em 54, eu cantei muito em teatro. Foi o quarto centenário e todas aquelas caravanas de médicos e advogados do estrangeiro. Eu morri de cantar, eu e o Dorival Caymmi, nós éramos os escolhidos. Ele cantava mais a parte do Norte e Nordeste e eu cantava para cá. Então, sempre tinha um recital para esses estrangeiros com nós dois. Eu gostava demais. Daí a Record anunciou que iria abrir a televisão, também em 54. E aí fiquei louca, né? Eu tinha que ver como era essa tal de televisão, já tinha a Tupi.

Hamilton Octavio de Souza – Você fez

programa na Record? Eu fiquei louca para saber como é que era. Televisão eu tinha feito um programa na Tupi com o Túlio de Lemos, um grande intelectual, um grande cantor – um baixo profundo – cantava nas óperas e tudo. Como ele trabalhava lá, me convidou: “vamos fazer um programa? Um programa sobre Noel Rosa?” Aí eu fui pesquisar o Noel Rosa e consegui muita coisa. Aí, eu representava uma ceninha, pegava o telefone, falava com não sei quem, cantava um pedaço e foi muito sucesso. Ele até me convidou para ficar lá, mas eu achei televisão meio chata e preferi ficar na rádio mesmo e nos recitais. Aí eu soube que a Record iria fazer a televisão, e um grande amigo nosso, o Eduardo Moreira, disse para eu ir lá, conversar e ver como iria ser. Eu aceitei e aí eu fui. Comecei na Record e eu tinha um programa que se chamava: Vamos Falar de Brasil, muito bem cuidado, não tinha recurso nenhum, não tinha botãozinho nenhum.

Hamilton Octavio de Souza – Tudo ao vivo? É tudo ao vivo. E era no aeroporto, então quando passavam os aviões tinha que parar o programa e enfiar anúncio. O avião descia e aí continuava. Olha, a gente penava. Uma coisa artesanal, ninguém sabia nada de nada. Aí eu tinha um programa, depois chegou a Maysa com o programa dela e depois a Ângela Maria. Eram as cantoras contratadas para meia hora de programa, exclusivo. Depois chegou o conjunto Farroupilha, Juca Chaves, que eram cantores isolados.

Hamilton Octavio de Souza – Tinha muito

espaço para a música brasileira na época, né? Tinha. Maysa, Ângela Maria, Elizeth Cardoso – fantásticas.

Otávio Nagoya – Durante a sua carreia, você acompanhou tanto a tecnologia para a música e para a TV e também a invasão de agosto 2010

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música caipira tem chegado para o público? As gravadoras estão lançando CDs? Ou é mais no boca a boca? Olha, você falou gravadora, e essa é uma palavra que vai sair já, já do mapa. Porque ninguém mais grava em gravadora. Então, a coisa é particular, produção particular. Você investe, você contrata um técnico, você estuda aquilo com um cara que tem um bom maquinário e você divulga. Daí a gente dá uma de mascate: enche o porta-malas de disco e vende no show, vende pelo computador.

Lúcia Rodrigues – Selo independente? O meu é. Cansei de não receber.

Lúcia Rodrigues – As gravadora embolsavam

o dinheiro e não repassavam para os artistas? É, venha a nós ao vosso reino e o resto de morra. Então você não pode viver de disco e nem dizer aquela história de vendeu 3 mil discos, é tudo falso.

Lúcia Rodrigues – São as gravadoras que Inezita Barroso comanda o programa “Viola, minha viola” há 30 anos, na TV Cultura de São Paulo.

culturas de fora para dentro do Brasil. Você acha que isso prejudicou muito a cultura popular brasileira? A música popular prejudicou, sim. A música caipira é caipira dentro do coração trancado e não tem perigo, não acaba. Fica amortecida muitos anos, mas, se cutuca, sai tudo de novo, porque tem as festas religiosas, como a Festa do Divino, Festa dos Três Reis Magos, o Natal caipira. Então, aquilo é daquela cidade, daquela comunidade que faz todo ano, queira ou não queira. E eles não adotam essas coisas que vêm de fora. Enquanto a popular tremeu, viu? Teve um tempo muito bom do Milton Nascimento, do Chico Buarque, foi um tempo bom. Mas eu acho que, em minha opinião, parou ali.

Lúcia Rodrigues – Você acha que a indústria

cultural matou os novos nomes da música popular brasileira? Matou. Tem essa reação do tempo do Chico, do Caetano. Mas não sei, parece que eles se cansaram. Não sei. Não entendo. E arranjos muito estranhos, tudo no mesmo ritmo depois disso, muitas invenções e muitos aparelhos. “Ai, como dança aquela moça!”. Ela anda no palco, ela não dança. Não tem passo, pode reparar. E com um computador grande atrás do retorno e a maioria dublada. Experimenta dar dez pulos e cantar o hino nacional que eu quero ver se você canta. Nem uma frase. As dançarinas dão pulos no palco, com aqueles saltos enormes, mas só a boca está mexendo. Lá trás está tudo dublado, porque é impossível. Desde tempo daqueles Dominós que dominaram as criançinhas que dançavam, era tudo dublado.

Hamilton Octavio de Souza – Existe algum

programa na TV que você acha que expresse a música brasileira? Olha, eu vou ser franca com você. Tem pouquíssimos programas de música, não tem? É muito no-

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ticiário, muito anúncio, é muito não sei o que e aí eu já viro logo, fico procurando, já não acho mais nada.

Hamilton Octavio de Souza – Você tem um

balanço de quantas pessoas, quantos músicos, você lançou ao longo dos teus programas? Certo, eu acho que não. Mas aqui na Cultura, no Viola, tem muitos, como eu falei hoje. Esse menino alto que cantou, o Dudu, e tocou muito bem viola é uma das crias da gente. O outro da guitarra havaiana também, ele era pequenininho. Tem a Juliana Andrade, que toca uma viola muito boa, que esteve no outro programa.

Hamilton Octavio de Souza – O programa Viola Minha Viola abriu espaço para muita gente. Muita gente. Muita gente. Tatiana Merlino – A senhora disse que a

música caipira está crescendo. Onde está crescendo? Quem são esses nomes? Grandes poetas, grandes músicos e grandes orquestras de viola, que não existiam. Nessas orquestras tem criança, tem velho, é tudo misturado. Não é um negócio de uma música feita por uma faixa de idade.

Tatiana Merlino – A senhora pode citar

alguns exemplos? Posso, claro. Tem a Orquestra de Campinas, Orquestra Cabocla de Campinas, que é muito boa. Temos a orquestra do Rui Tornez, que é a orquestra Paulistana de Viola Caipira, é muito séria, eles tocam por música, e outras. Pelo interior têm muitas. Então você vai viajar e vai vendo mais uma e mais uma. Só que é difícil de trazer, são muitas pessoas.

Otávio Nagoya – E como esse crescimento da

divulgam isso? A gravadora ficou com o tutu e deu um dinheiro lá para o cara. Não, não tem jeito. Não tem jeito. Então, 98% hoje são de discos particulares.

Bárbara Mengardo – Uma coisa que é muito bonita no seu programa é ver como as pessoas são muito ligadas nas músicas, cantam, dançam. É porque a gente dá liberdade para eles. Nunca aqui teve aqueles cartazes de aplausos, silêncio. Aí o nego sai daqui, tem uma amiga lá e vai dançar. E tem pouquíssimos homens e muitas mulheres. Então eles vêm aqui e ó, não tem nem espaço. Toda vez, se tiver um forró ou uma valsa, dançam, mas quando está lotado é um empurra empurra, porque todo mundo quer dançar. Eles são muita boa gente, uma gente muito simples. Hamilton Octavio de Souza – Quantos anos tem o programa? 30.

Otávio Nagoya – É uma resistência forte. Não permitindo que entrasse coisas que não são próprias. Tem lugares para os outros cantarem e não precisa vir aqui. Então, tem uma resistência de cantar só música realmente de raiz, música de moda de viola, de cartira e essas danças todas. Às vezes a gente põe uma dança gaúcha linda, que o pessoal é crente nela. Aquelas tradições todas, centros de tradição gaúcha e as mulheres que dançam são senhoras com roupas de gaúchas. É lindo, o auditório delira. Tatiana Merlino – Quantos discos a senho-

ra tem? Mais ou menos 98.

Tatiana Merlino – Quantos filhos e quantos

netos? Uma filha, três netos e três bisnetos por enquanto. Vem mais um por aí.

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

Os comunistas e o movimento camponês,

E OUTRAS HISTÓRIAS Os comunistas foram mais importantes, para o movimento camponês no Brasil, do que as Ligas Camponesas ou a Igreja Católica. Essa é a tese polêmica do historiador americano radicado no Brasil e professor da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), Clifford Andrew Welch, filho de um meeiro e ele próprio antigo sem-terra em seu país, em seu livro A semente foi plantada – as raízes paulistas do movimento sindical camponês no Brasil, 1924-1964, editado pela Expressão Popular. Welch faz um exaustivo levantamento do movimento camponês no Estado de São Paulo não só nos 40 anos que são o tema central do trabalho, mas desde meados do século XIX até praticamente os dias atuais. O original, em inglês, foi publicado em 1999, após 12 anos de pesquisas por todo o interior paulista. Outro livro importante de história é, justamente, chamado de A grande história – do Big Bang aos dias de hoje, lançado pela Civilização Brasileira, da americana Cynthia Stokes Brown, que morou em Fortaleza, Ceará, e foi fortemente influenciada pelo educador brasileiro Paulo Freire. Combinando ciências naturais e humanas, a historiadora faz o que é a rigor a primeira história abrangente do planeta Terra, desde a explosão primordial até os impactos sobre o planeta, provocados, a partir da pré-história até a contemporaneidade, pela atuação dos seres humanos. Com isso ela ganhou em seu país o prestigioso Prêmio Americano do Livro. Essa não é mais uma história universal, é uma verdadeira história do Universo. Agora, um livro de antropologia que também é de história. Você sabia que a mantilha, tão comum entre as mulheres do Nordeste brasileiro, e a tradição nordestina, de erguer igrejas e santuários no alto dos montes, ambos costumes que vêm da Colônia, são na verdade tradições de origem judaica? Pois é o que demonstra o antropólogo de Pernambuco, doutor pela Universidade de Salamanca, Espanha, Caesar Sobreira, em seu livro Nordeste semita – Ensaio sobre um certo Nordeste que em Gilberto Freyre também é semita, publicado pela Global Editora. Sobreira se debruça sobre as consagradas obras de Freyre para pinçar aqui e ali vestígios hoje ainda bem vivos no Nordeste de elementos culturais judaicos, além da presença física de judeus e judias. Ainda de história são três livros lançados pela Editora Unesp, todos so-

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bre revoluções sul-americanas que não deram muito certo. Em pequeno formato, na Coleção Revoluções do Século 20, dirigida pela bem conhecida historiadora Emília Viotti da Costa, há A revolução colombiana, de Forrest Hylton, professor em Bogotá, que cobre a tensão social e a luta armada no país vizinho desde meados do século XIX até os dias atuais – em que poderemos verificar se a guerrilha colombiana cumpre os preceitos de Che Guevara. Na apresentação da coleção, Emília Viotti da Costa pergunta: “O século 19 foi o século das revoluções liberais; o 20, o das revoluções socialistas. Que nos reservará o século 21?”. E há também em pequeno formato, na mesma coleção, A revolução chilena, do americano Peter Winn, que discute o governo Salvador Allende e sua derrota pelo golpe. Ainda ecoam como contemporâneas as palavras de Allende: “Milhões de pessoas no mundo querem o socialismo, mas não querem ter de enfrentar a tragédia da guerra civil para consegui-lo”. De fato, esse é o dilema no horizonte previsível para as forças progressistas em geral e para as forças de esquerda em particular. Em grande formato, e mais próxima de nós, está a obra, também lançada pela Editora Unesp, O fantasma da revolução brasileira, do sociólogo Marcelo Ridenti, em segunda edição, revista e ampliada, de 324 páginas. Diz a apresentação: “É preciso acertar as contas com o fantasma de uma revolução derrotada. E abrir perspectivas para a emancipação da classe trabalhadora. Ridenti desvenda aqui o significado e as raízes sociais da luta dos grupos de esquerda. Especialmente da esquerda armada, que buscava nos anos 60 uma sociedade mais justa. E o autor vai além da política, mostrando ainda como essa derrota repercute na matriz cultural brasileira”. O autor discute especialmente o papel das camadas intelectualizadas nessa revolução fracassada e documenta as tentativas de inserção das organizações revolucionárias armadas nos movimentos sociais de base das classes trabalhadoras. Por que tudo aquilo não deu certo, é a grande questão.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

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