Ed. 163 - Revista Caros Amigos

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JUROS

Fora do controle do Banco Central

TERRA

Qual o limite do latifúndio?

FAVELAS

Onda de incêndios mais que suspeitos

ano XIV nº 163 / 2010 R$ 9,90

Entrevista

Fábio Konder Comparato

“Nós nunca tivemos democracia”

Iraque a guerra sem fim

EXCLUSIVO

Militares espionaram após a

DITADURA

A publicidade

usa e abusa das crianças

ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUSTAVO CERATTI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

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CAROS AMIGOS ANO XIV 163 OUTUBRO 2010

Foto de capa JESUS CARLOS

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

Direto ao que importa O professor Fábio Konder Comparato tem sido um batalhador incansável da causa democrática. Tem usado todas as tribunas possíveis para pleitear medidas que transformem a pseudodemocracia em que vivemos numa democracia verdadeira – na qual a soberania seja mesmo exercida pelo povo. Ele tem denunciado o teatro armado pelas oligarquias para iludir e criar a sensação – apenas a sensação – de que o Brasil seja um país de direitos iguais para todos. Tem a visão histórica, faz a análise de quem enxerga mais longe e melhor do que aqueles que se deixam dominar pela postura rasa do imediatismo e do oportunismo. Por tudo isso é que a revista Caros Amigos tem a grata satisfação de oferecer aos seus leitores um pouco de Fábio Konder Comparato. Em entrevista exclusiva, ele ministra uma aula – com a boa didática dos grandes professores – sobre o funcionamento da política no Brasil, quem realmente manda e quais propostas concretas que poderiam proporcionar algum avanço democrático. No mesmo diapasão, a repórter Lúcia Rodrigues, da Caros Amigos, passou mais de dois meses escarafunchando os arquivos das Forças Armadas para comprovar, em documentos sigilosos, que a vigilância em cima de políticos, partidos e movimentos sociais de esquerda, não foi interrompida com o fim da Ditadura Civil Militar, em 1985. Nesta edição temos também excelentes reportagens sobre: o efeito da publicidade comercial nas crianças e adolescentes; a onda recente de incêndios nas favelas de São Paulo, cujas áreas são cobiçadas pelos projetos imobiliários e viários; a importância de se estabelecer limites de hectares para a propriedade privada da terra; os juros extorsivos praticados pelos bancos brasileiros, sob o descontrole deliberado do Banco Central; e sobre a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, que já matou mais de 100 mil pessoas, arruinou a estrutura do país e que segue um roteiro de destruição sem fim. Para nossa alegria, contamos – a partir desta edição – com a preciosa colaboração do poeta e educador popular Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa e grande incentivador dos saraus culturais que revigoram amplas parcelas da população periférica de São Paulo. Com essa receita editorial, a revista Caros Amigos está empenhada na produção do jornalismo crítico, independente e comprometido ética e politicamente com as transformações sociais.

sumário

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Guto Lacaz. Caros Leitores. José Arbex Jr. aponta o novo patamar de luta política na Venezuela. Marcos Bagno alerta sobre os discursos ecologistas de matriz neoliberal. Mc Leonardo denuncia que a perseguição ao Funk não é mania, existe mesmo.

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Pedro Alexandre Saches mostra o espírito colaborativo da música brasileira. Joel Rufino dos Santos registra como se deu a mundialização do açaí. Guilherme Scalzilli prevê a queda de credibilidade do Instituto Datafolha.

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Frei Betto especula sobre as posições de Dilma Rousseff no governo federal. Gilberto Felisberto Vasconcellos desvenda os segredos do governo Lula.

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Entrevista com Fábio Konder Comparato: “Nunca tivemos democracia”. Sérgio Vaz conta que o sarau da Cooperifa é o nosso quilombo cultural. Lúcia Rodrigues revela que militares espionaram esquerda nos anos 90. João Pedro Stedile apresenta a plataforma mínima dos movimentos sociais. Ana Miranda debate a lei da palmada e a verdadeira educação das crianças.

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Ensaio Fotográfico de Gustavo Ceratti: os personagens anôninos da cidade. Tatiana Merlino relata a guerra sem fim dos Estados Unidos contra o Iraque.

Entrevista com Márcia Camargos sobre a situação das mulheres no Irã. Bárbara Mengardo denuncia como a publicidade usa e abusa das crianças. Glauco Mattoso em Porca Miséria: fala sobre erros em textos brochantes. Eduardo Matarazzo Suplicy: Festival da Godói mostra a cultura da periferia.

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Débora Prado relata o drama das favelas incendiadas de São Paulo. Gabriela Moncau debate qual deve ser o limite do latifúndio no Brasil. Marcelo Salles mostra como os juros altos fazem a ruína de muitos brasileiros. Gershon Knispel fala de judeus e palestinos refugiados sob o mesmo teto. Rodrigo Vianna em Tacape: Lula não fez o embate com os barões da mídia. Cesar Cardoso comemora o fim das mentiras do horário eleitoral.

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Fidel Castro comenta a perseguição aos ciganos e a hipocrisia da Europa. Emir Sader analisa a onda de ceticismo e pessimismo na intelectualidade.

45 46

Renato Pompeu em Ideias de Botequim: Zero, Ganga-Zumba e índole pacífica. Claudius.

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 163, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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ALTERCOM

Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação

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Caros LEITORES

SARAMAGO

“Tenho o maior respeito pelo Gershon Knispel, do que tenho lido na Caros Amigos. Entretanto, não posso aceitar as suas colocações em “Deutschland über alles - Reflexões sobre a Copa do mundo”. Devo dizer que, de minha parte, o fato de ser teuto-brasileiro, filho de alemã, não é o fator preponderante; mas que as afirmações do artista plástico não condizem com a realidade por alguns motivos. Primeiramente, o hino da Alemanha não é mais aquele que começa com “Deutschland über alles...” (Alemanha acima de tudo), mas “Einigkeit und Recht und Freiheit” (Unidade, Direito e Liberdade) e que é perfeito para a realidade nacional alemã de reunificação e, ainda, de superação do horrendo passado nacional-socialista, que nos envergonha a todos os da comunidade alemã no mundo afora. Ainda, a Alemanha é, reconhecidamente, o país mais aberto da Europa, no sentido da recepção dos estrangeiros e integração na sua sociedade, do que dá exemplo o que dito quanto à característica multiétnica de sua seleção de futebol. Por fim, o país tem uma das legislações mais rigorosas contra o neo-nazismo e a xenofobia. Portanto, considerando o fato do sr. Gershon ser judeu e, portanto, compreendendo o seu ressentimento face a atitude de certo grupo que pretendeu representar a vontade da nação alemã em período recente da História, ainda assim defendo a utilização do hino em sua melodia original, composta por Joseph Haydn, como produto da melhor cultura humanista da minha pátria ancestral e, ainda, a sua sociedade notoriamente inclusiva.” Ricardo M. Tariki, São Bernardo do Campo - SP.

Quero parabenizar o colunista Joel Rufino dos Santos pelo texto “Um comunista”. Simplesmente maravilhoso!!!!!!! Saramago traduziu com sua obra e sua conduta a utopia de uma humanidade. A revista está de parabéns, não apenas pela publicação de Rufino, mas pelas reportagens e a entrevista fantástica com o Márcio Pochmann. Josélia Barroso Queiroz Lima.

OXIGENADA Gosto muito dessa revista. Ela tem o mesmo formato editorial desde que foi lançada. Isso é bom e ruim. Ruim porque os colunistas, do tipo Glauco, Knispel, Felisberto e outros, falam da mesma coisa há anos, que cansa o leitor. Está na hora de dar uma oxigenada na revista, trazer coisas boas que acontecem no país, sem perder a crítica. O lado bom é que a revista tem uma ideologia consistente e racional. Grato. Daniel Novais Cavalcanti Junior.

ÁREA DA SAÚDE Há alguns anos tenho acompanhado a revista Caros Amigos e suas edições Especiais. Desta forma, gostaria de sugerir um Especial sobre a saúde no Brasil, contando desde Getúlio ou antes sobre o investimento na área, a corrupção, os sucessos, a luta pela implantação do SUS, os objetivos alcançados e que deixam a desejar atualmente. Abordar a saúde mental, saúde dos negros, saúde bucal e outros temas. Agradeço desde já a atenção. Estêvão Azevedo Melo, estudante da área da saúde.

ANÁLISE ECONÔMICA

CLICHÊ ELEITORAL

Parabenizo-os pela excelente entrevista do Sr. Marcio Pochmann, análise objetiva e fundamentada. Desafortunadamente, no mesmo número, há uma entrevista com o Sr. José Luís Fiori. Reprodução simples de alguns artigos de jornais europeus. Pseudoanálise. Nosso país merece um melhor nível de informação. Lamento. Hélio Tavares.

Gostaria de compartilhar com vocês um pouco da minha indignação. Se fora da época de eleição já somos bombardeados de e-mails falando sobre política, o que dirá em período de eleição. Infelizmente, a grande maioria só traz absurdos, informações impregnadas de senso comum e informações sem o menos fundamento. Em época de campanhas eleitorais, o número

desses “e-mails eleitorais” mais que triplica. Apesar de ser um desafio à paciência, é sempre interessante saber o que se tem pensado e circulado pela rede. Como assíduo leitor da Caros Amigos, acho que seria interessante que também acompanhassem. Tenho 20 anos, sou ex-aluno do curso de letras da USP e atualmente aluno da UNESP, instituição em cujo cursinho popular leciono. Tenho muita confiança na educação e muito orgulho de lutar por ela, apesar do clichê que tal discurso virou. Gabriel Frias Araújo.

UNIFICAÇÃO DE AUTORES Sou assinante da revista Caros Amigos há anos, portanto não preciso falar de seu valor. No momento, estou elaborando um Trabalho de Conclusão de Curso. Tenho encontrado dificuldades na “busca” dos assuntos que me interessam. Já utilizei várias referências extraídas diretamente em sítios eletrônicos, por isso gostaria de citar diretamente a Caros Amigos. É que as coleciono e se eu localizo a reportagem em seus arquivos, ligada ao número da revista, facilitaria muito. Em muitos casos não há nem o mês da publicação do artigo. Ocorre também que não há uma unificação por autores. Bem, deixo a minha sugestão. Lúcia Maria Ribeiro Alves.

OPORTUNISMO Li exultante a entrevista com José Arbex Jr.. Mente lúcida e afiada. Mas a minha alegria durou pouco. Caros editores: o que fazem os cidadãos Marcos Bagno e Gilberto Felisberto nas paginas desta excelente revista? O primeiro, raivoso, trava um duelo incessante entre lingua culta e lingua popular. Desta vez o Adoniram foi acusado de invadir o lado de la (ou de ca, já nem sei). O senhor Felisberto dá um jeito de chamar os espiritos do ditador Vargas e do demagogo Brizola seja lá qual for o assunto. Vá lá que o oportunismo populista reencarne? Não quero pagar para ver o estrago. Clarissa Veiga, jornalista e assinante da revista, Porto Alegre - RS

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COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

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caros amigos outubro 2010

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José Arbex Jr.

O enfrentamento político entre o governo presidido por Hugo Chávez e a oposição de direita ganha um novo patamar na Venezuela, com o reingresso dos “esquálidos” (apelido dado por Chávez aos que tentaram derrubar o seu governo com um golpe, em abril de 2002) na disputa institucional. Os “esquálidos” decidiram boicotar as eleições parlamentares de 2005, alegando supostas irregularidades (jamais comprovadas) no processo eleitoral. Esperavam, com isso, isolar o governo. Fracassaram. Foram obrigados a participar das eleições de 26 de setembro. Chávez venceu, por margem estreita; mas sua maior vitória não pode ser computada em votos, e sim pelo simples fato de que a oposição foi obrigada a reconhecer o processo. O novo embate já está marcado: ocorrerá em 2012, para quando estão convocadas as eleições presidenciais. Com os resultados ainda não totalmente consolidados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), criado por Chávez, conquistou 95 das 165 cadeiras da assembleia legislativa. O objetivo era garantir 110 cadeiras (2/3 do total), maioria absoluta que lhe permitiria aprovar leis orgânicas sem passar pela negociação com a oposição, incluindo: remover juízes do STJ; nomear membros do Poder Eleitoral, convocar uma Assembleia Nacional Constituinte e propor reformas constitucionais. Sem a maioria absoluta, a margem de manobra de Chávez fica obviamente muito limitada. A Mesa da Unidade Democrática (MUD), que agrupa 32 partidos de oposição, elegeu 61 deputados, e o Pátria Para Todos (PTT), grupo dissidente do chavismo, conseguiu dois lugares. A participação dos eleitores foi de 67%, uma das mais altas da história (em 2005, foi de 26%). Segundo estatísticas do CNE,

o maior número de votos da oposição se concentrou nas grandes cidades. Em quatro dos 24 estados ela venceu (Zulia, Táchira, Nueva Esparta e Anzoátegui), empatou em Miranda e perdeu no Distrito Federal e nos outros 18 estados. Foram eleitos, ainda, três representantes de comunidades originárias. Ramón Guillermo Aveledo, secretário geral do MUD, alega que embora a oposição tenha obtido um número menor de cadeiras, obteve a maioria dos votos (52%). Caso isso se confirme, estará configurado um fato novo de grande importância na conjuntura política do país. A eleição para o Parlamento da América Latina (Parlatino), que decorreu simultaneamente, parece indicar um eleitorado realmente dividido: dos 12 deputados eleitos numa eleição nacional em que todos os votos contam, o PSUV obteve 47% dos votos, contra 45% do MUD. Isso tudo significa que o jogo político mudou na Venezuela. Chávez terá que contar agora com uma oposição ativa e barulhenta no congresso, ainda que completamente dividida pela falta de alguém que consiga unificar suas forças, e que tenha estatura política para enfrentar o presidente em 2012. Ainda que as eleições legislativas não reflitam diretamente a força política do próprio Chávez (pesquisas de intenção de voto dão ao presidente pelo menos 60% contra qualquer um que se apresente para disputar com ele a presidência do país), há sem dúvida um novo quadro no país. A calamitosa situação econômica e social venezuelana oferece um prato cheio para a oposição. A Venezuela é hoje o país com o maior índice relativo de homicídios das Américas; a inflação beira os 30% anuais e escândalos de corrupção (grandes e pequenos) são frequentes. Além disso, as campanhas midiáticas contra Chávez são incessantes, assim como

pressões da Casa Branca associadas à permanente presença da CIA (o que inclui ações de provocação na fronteira com a Colômbia, por enquanto atenuadas com a saída de Álvaro Uribe da presidência). Após um brevíssimo intervalo de sorrisos e amenidades mútuas, o presidente Barack Obama multiplicou demonstrações de que gostaria de ver Chávez fora do poder (e o golpe em Honduras expôs de forma muito clara que nada mudou na orientação política da Casa Branca para a América Latina). Chávez enfrenta agora, claramente, um gravíssimo dilema: para combater a violência, a corrupção, mobilizar a população contra os efeitos nefastos da inflação, expor as manobras da mídia e as ações da CIA, terá que recorrer à mobilização popular, multiplicar a formação de conselhos de bairro e de categorias profissionais, realizar assembleias nos locais de trabalho, além de combater de forma intransigente a arrogância e a corrupção de funcionários públicos . Só que uma boa parte dos principais sabotadores da “revolução boliviariana” está incrustada no próprio aparato do PSUV e em órgãos e departamentos do estado, incluindo muitos remanescentes dos antigos governos, que, por puro oportunismo, aderiram ao “chavismo”. Aproxima-se o momento crucial para todo processo revolucionário: ou bem a sua direção apoia-se no movimento de jovens e trabalhadores para promover uma mudança radical nas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais do país, ou acaba cedendo às pressões exteriores e internas, e sucumbe à própria falta de ousadia. Mais cedo ou mais tarde, Chávez terá que fazer sua escolha. O quanto antes, melhor. José Arbex Jr. é jornalista. outubro 2010

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caros amigos

Ilustração: carvalL

Venezuela entra em novo patamar de luta política

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falar brasileiro Marcos Bagno

Mania de fazer

DISCURSO ECOLÓGICO? CUIDADO!

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justiça

de mais coisas, de computadores mais rápidos, de televisores que fazem quase tudo sozinhos. Mas o modelo de desenvolvimento que impera hoje é o do consumo: um telefone celular pode durar dez anos, mas somos bombardeados pelas operadoras para trocar de aparelho a cada seis meses, se não menos. E dá-lhe quinquilharia no lixo. Me enoja ver pessoas que se comovem com a caça às baleias ou com os pandas que morreram no terremoto da China, mas que não exibem a mesma compaixão pelos adolescentes das comunidades pobres do Brasil que têm uma expectativa de vida de 17 anos, vítimas de um genocídio praticado pelos traficantes e por seus aliados, os policiais corruptos. Cientistas sociais alertam para o “terrorismo verde” praticado por entidades como Greenpeace e WWF. O catastrofismo é moeda corrente na mídia, a principal difusora (para variar) de ideias distorcidas e sem fundamento sólido na pesquisa científica, como a de um “equilíbrio ecológico” que nunca existiu e contradiz a própria noção de ecologia, ou de uma “natureza virgem” que a arqueologia desmente todos os dias. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Há muito tempo que venho alertando as autoridades que a perseguição que o Funk sofreu e sofre é algo que alimenta um forte esquema de corrupção em todo o estado do Rio de Janeiro. Pra combater essa prática lutei junto com profissionais e simpatizantes a esse movimento, o que resultou na fundação da APAFUNK (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk). Depois de muitos debates sobre o tema, chegamos à conclusão que era preciso que o Estado reconhecesse o Funk como movimento cultural para que pudéssemos exigir um tratamento igualitário com outros tipos de manifestação cultural. O Deputado Estadual Marcelo Freixo não só foi o autor da lei desse reconhecimento, como também foi autor da lei que revogou uma outra lei que estava em vigor e que servia somente pra impossibilitar a realização dos bailes em todo Estado. No processo de informação a todos sobre o que a gente estava fazendo, ouvimos muitas pessoas falarem que estávamos com mania de perseguição, que o Funk estava por todos os lados e que não entediam porque tanta questão de uma lei pra protegê-lo. Sabíamos o que estávamos fazendo, pois víamos pessoas perdendo emprego todos os dias e outras sendo obrigadas a trabalhar pra pagar propina pra policiais e políticos corruptos. No último dia 20 de setembro, o Órgão Especial de Justiça do Rio de janeiro condenou o Deputado Jorge Babú por vários crimes, e no meio de tantas acusações veio a da existência de um mensalão do Funk onde políticos cobravam propina para a realização dos Bailes em territórios onde eles atuavam. Para a APAFUNK não há novidade nenhuma no caso. Pra quem acha que a gente tem mania de perseguição, eu tenho algo a dizer. Todas as pessoas que se aprofundarem mais sobre os problemas que as incomodam, serão acusadas de estar com mania de perseguição, porém essa prática pode despertar uma mania muito boa a essas pessoas e ao seu país, que é a mania de fazer justiça.

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: koblitz

Nos dias que correm, é quase uma heresia questionar o senso comum ecologista que se impregnou nos discursos de praticamente todos os segmentos sociais e em todo o espectro ideológico: da direita à esquerda, todos se manifestam piedosos defensores do meio ambiente e se escandalizam com as sacolinhas de plástico, para não falar do sempre aludido aquecimento global causado pelo efeito estufa, efeito que muita gente nem sabe o que é e que, sabendo, talvez até se surpreendesse ao descobrir que sem o efeito estufa não existiria vida na Terra. O discurso ecológico nasceu nos Estados Unidos em meados do século XIX, na mesma época em que as tribos indígenas nativas eram sistematicamente massacradas e eram criados os primeiros parques nacionais do mundo. Será mera coincidência? Os primeiros ecologistas se filiavam a uma corrente que defendia radicalmente a “natureza” e denuciava o papel dos seres humanos com relação a ela, depreciando-os. É o que nos estudos sociológicos vem designado como “ecologia profunda”. Instaura-se uma ética biocêntrica que considera que o florescimento da humanidade entrava o das outras espécies. Assim, Paul W. Taylor afirma que “em certas situações, é até mais grave matar uma planta selvagem do que matar um homem”. O mesmo autor considera que “o desaparecimento completo da raça humana não seria uma catástrofe moral, mas antes um evento que o resto da comunidade viva aplaudiria com entusiasmo”. Fofo, não? A recente polêmica em torno dos cientistas do IPCC, o painel internacional sobre o clima, que teriam falseado dados para tornar mais dramáticos os seus relatórios, se inscreve nessa história. A Terra já passou por diversas alterações climáticas e até agora as conjeturas sobre a gravidade do atual aquecimento não tiveram comprovação científica séria. Os discursos ecologistas atuais são todos de matriz neoliberal. Em nenhum momento se questiona o modelo capitalista de consumismo doentio. A própria noção de ‘desenvolvimento sustentável’ se filia a esse espírito. Não tem mais lugar no mundo para desenvolvimento: não precisamos de carros mais sofisticados, de celulares capazes

Mc Leonardo

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

A música brasileira (re) descobre o espírito colaborativo “Tem muita coisa boa desses compositores da nova geração para ser gravada. Vamos fugir de Chico, Caetano e Gil. Eles não precisam de mais reconhecimento e dinheiro. Os nossos amados do ‘underground’, sim!”, Miranda resume o fio condutor. Afinal, também Amy, Bowie e Waits já andam bem servidos de bajulação e direitos autorais. Miranda & André reinterpretam rocks, pops e MPBs de diversos lugares do Brasil, concebidos originalmente por (pela ordem de entrada no CD) Vanguart, Curumin, ODegrau, Mombojó, Cérebro Eletrônico, Numismata, Wado, Rubinho Jacobina, Ludov, Os Mulheres Negras e Wander Wildner. Não fossem os dois últimos, seria um autêntico “disco de geração” – Wander e Os Mulheres Negras de André Abujamra e Maurício Pereira são (belos) artistas egressos do “underground” dos anos 1980. À parte essas presenças, André afirma que Hits do Underground pode, sim, ser compreendido como um retrato da música pop brasileira dos anos 2000. “Esta foi a geração de compositores que surgiu com a internet. Foi a primeira década de clara derrocada da indústria fonográfica e percepção dos músicos de que era preciso arregaçar as mangas. Ninguém sabe muito ainda o que vai acontecer, mas ninguém está esperando para ver”, diz. “O que une esta geração não é uma corrente estética, mas o meio de produção e distribuição. Não sei se estou muito no meio disso e vejo a coisa maior do que é, mas é inegável que há um barulho que vem de baixo.” O resultado, pode acreditar, é um disco muito, muito, muito gostoso de conhecer, ouvir, assimilar, cantar junto, recomendar. Uma comunhão mais ou menos incomum acontece (eis o barulho que vem de baixo), e ela se deve, basicamente, ao encontro de gente que andava perdida por aí. De um lado, compositores que não eram necessariamente os intérpretes ideais de suas próprias músicas. Do outro, dois intépretes dispostos a instilar amor incondicional à releitura de criações dispersas por outros muitos discos, de outros muitos cantores. A fórmula é a mais simples possível.

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Talvez a agora lânguida Magrela Fever, de Curumin, tenha sempre sido uma grande canção, mas isso não havia ficado tão evidente assim no disco Japan Pop Show (2008), do próprio autor. O mesmo ocorre com o rock paulistaníssimo 220 Volts, recolhido de Odegrau (2009) e enriquecido pela divisão dos versos cantados em dupla e pelo arranjo à moda de Amy. Outras, como Semáforo, da banda matogrossense Vanguart, já haviam chamado atenção em versão própria, mas crescem e aparecem como nunca. São só exemplos – a impressão de ganho, surpresa e novidade percorre todas as faixas do CD. Eis o segredo do ar novo respirado em Hits do Underground: trata-se de um processo colaborativo, entre iguais. O circuito todo se ativa quando bons cantores consolidam a identidade de boas canções de ótimos compositores, ao mesmo tempo que músicas especiais vestem de identidade intérpretes que andavam à procura de um autor, ou de muitos. Não à toa, os dois artistas que fazem parecer inédito o que de fato o é são atores, além de cantores: interpretar é sua especialidade. Ah, e também compõem lá suas próprias canções, embora ainda não as mostrem. “Quando estiverem maduras, eu sirvo”, avisa André. “Quem sabe em um determinado momento da vida eu consiga me expor e mostrar minhas composições ao mundo” amedronta-se Miranda. A barca pode correr vagarosa, mas uma identidade em comum já parece sedimentada – e trará novos frutos, certamente suculosos. “Ficamos uns três meses pesquisando e trocando idéias e levantamos umas 30 músicas”, descreve André. “Quando o disco foi ficando com uma cara, imediatamente veio a vontade de fazer volume 2, volume 3. Há um repertório muito vasto nesse universo e devemos satisfazer nossa vontade.” Nossos compositores “underground” devem estar felizes à beça, e em polvorosa, com a existência de Miranda & André. Não é para menos.

ilustração: murilo silva

Uma fazia shows em que cantava músicas de Amy Winehouse e de divas da soul music. O outro fazia o mesmo com repertório de David Bowie e de Tom Waits (nesse segundo caso com a exímia professora de interpretação Cida Moreira). Quatro anos atrás, se conheceram, se apaixonaram, foram morar juntos e acabaram constituindo uma dupla musical, também dedicada a fazer covers de outros artistas. Mas agora era uma história nova, totalmente diferente. Eram ambos brasileiros, paulistanos. Juntos, Miranda Kassin, hoje com 30 anos, e André Frateschi, de 36, foram cantar pela primeira vez em português, e fizeram um disco de covers de música brasileira que vale por dez discos de canções inéditas. “Confesso que demorei a encontrar a minha identidade vocal em português, com ressoadores e vibratos mais secos, sem melismas, com outro tipo de respiração”, Miranda explica o percurso. “Não temos intérpretes masculinos no Brasil, à exceção do Ney Matogroso e do Paulo Miklos. A adaptação e a estranheza que cantar em português me trouxe era também um objetivo desse projeto”, defende-se André. Miranda se exibe ótima cantora, o que nem chegaria a ser novidade neste país de passarinhas. André se revela excelente intérprete, peitando uma nova tradição ainda temerosa de se estabelecer, a dos bons intérpretes masculinos. Em ambos os casos, o repertório afiado ajuda intensamente a desnudar a qualidade das interpretações. Devem arrasar nas releituras inteligentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, há de imaginar o leitor mais acomodado e acostumado com a canção brasileira de sempre. Sim, arrasam, mas aqui não há lugar para os “clássicos”. O disco independente de Miranda & André se chama Hits do Underground. O trabalho da dupla, além de interpretar, foi e é o de encontrar as canções mais legais e sedutoras (e pop) dos artistas e das bandas mais legais do chamado “underground” brasileiro.

Pedro Alexandre Sanches é jornalista. outubro 2010

caros amigos

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

Réquiem para

SOBRE O AÇAÍ

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o Datafolha As peculiaridades

pisado, o amarguinho gostoso. Para exportação, foi adocicado, não pousa macio na boca: é bom para consumidores globalizados, não só para paraenses. Segundo, seu preço na Amazônia subiu tanto que diminuiu o consumo local. Terceiro, provocou a organização das trabalhadoras do açaí. Elas se chamam peconheiras: apanhadoras de açaí que saem para a mata às cinco da manhã, extraem a capa do ramo do açaizeiro, fazem a peconha (laço de fibra para subir em árvore), apanham o cacho de açaí; depois de debulhado, o vendem aos maquineiros ou atravessadores de Belém. As associações de peconheiras crescem por todo o estado. Um item da sua luta é a defesa do modo tradicional de transportar em cestos de palmeira de guarumã. A modernização quer substituílas por basquetas, caixas de plástico (como as que transportam cerveja), poluidoras, difíceis de equilibrar na cabeça. Em Belém que, como escreveu Mário, foi feita pra mim, descobri mais uma metáfora da globalização: basquetização. Joel Rufino é historiador e escritor.

metodológicas do Datafolha sobressaíram nas primeiras pesquisas de 2010. Os entrevistadores selecionavam, em trânsito, apenas as pessoas que forneceram um número de telefone sujeito à confirmação. Além disso, não preparavam o entrevistado com informações sobre os candidatos a cargos executivos. Deve-se admitir que Mauro Paulino, o diretor do instituto, descobriu argumentos passáveis para tais excentricidades. Por exemplo, se alguém procura um registro instantâneo do comportamento do eleitorado, não faz sentido antecipar decisões, mesmo as inevitáveis. Mas existem bases científicas e pretextos materiais em quase todo procedimento estatístico. Os profissionais da área dispõem de inúmeros estratagemas técnicos capazes de ocultar eventuais manipulações. Ademais, havendo necessidade, o Datafolha poderá rebaixar-se à humilhação de repercutir gradualmente projeções alheias, ou realizar aquela boca-de-urna apaziguadora. Não seria a primeira vez que veríamos o instituto vangloriarse por acertos questionáveis. Acontece que Paulino cometeu o erro fatal de supervalorizar a “reserva de credibilidade” da empresa. A confiança do público não é patrimônio que se recupera facilmente. E ela começou a desmoronar quando o instituto foi envolvido pelo programa ideológico da Folha de S. Paulo. Além de operar em explícita sintonia com a campanha de José Serra, usou o tendencioso espaço opinativo do jornal para a autodefesa corporativa, esbanjando arrogância, muito característica da própria Folha, contra os justos questionamentos dos adversários. Profissionais e instituições que embarcaram no oportunismo eleitoral da mídia corporativa serão arrastados por sua crise de legitimidade. Quando os projetos partidários definharem rumo à inevitável obsolescência, restará apenas uma legião de órfãos desmoralizados.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: hke...

Em Teorias da globalização, Octavio Ianni enumera algumas metáforas da globalização: economia-mundo, sistema-mundo, shopping Center global, Disneylândia global, nova visão internacional do trabalho, moeda global, mundo sem fronteiras, tecnocosmo, planeta Terra, desterritorialização, miniaturização, hegemonia global, fim da geografia, fábrica global, cidade global, nave espacial, nova babel, fim da história e muitas outras. Há metáforas para todos os gostos, todas as ideologias. Por trás da maioria delas se esconde a consciência ingênua, não dialética, do mundo. Todas essas metáforas se referem à entrada do modo capitalista de produção numa época realmente global, não apenas internacional ou multinacional. É verdade que o capitalismo, desde o seu início, foi uma civilização, abarcando economia, sociedade, política, cultura, hábitos. Aquilo que estudamos no colégio como Grandes Navegações é também uma metáfora para a primeira expansão geográfica desse modo de produção: o sistema colonial. A peculiaridade da expansão atual é que ela se fez através da revolução formidável dos meios de comunicação. Tão formidável que a internet, a Superhighway of Information, com vinte anos de idade já é velha. Fui à XIV Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém. Me surpreendi com a quantidade do público. Há mais vida inteligente fora do eixo Rio-São Paulo do que imagina o nosso preconceito. Só que prestei mais atenção a Belém do que à Feira, embora a programação dos seus dez dias, dedicada desta vez à África que fala português, fosse de alta qualidade literária e política. Reencontrei na rua um velho conhecido, o açaí. Há setenta anos, Mario de Andrade, turista aprendiz, se perguntou: será que gosto mesmo de açaí? Não chega a ser ruim, longe disso, mas está longe de ser bom – pousa macio na boca, tem gosto de mato pisado, quentinha, um amarguinho longínquo... O açaí permaneceu comida (bebida?) local até uns quinze anos atrás, fornecendo aos nortistas carboidratos, fibras, minerais, vitaminas etc. Hoje se encontra em lojas de sucos do Rio, Nova Iorque, Tóquio, Buenos Aires. O açaí se mundializou, ou tende a se mundializar. A passagem da mesma coisa a outra (como diria Hegel) se fez de três maneiras principais. Primeiro, o açaí perdeu o gosto de mato

Guilherme Scalzilli

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Frei Betto

DILMA PRESIDENTE A mais votada no primeiro turno, possível sucessora de Lula na presidência da República, Dilma Rousseff deverá enfrentar, em breve, pesados desafios. O primeiro deles é a composição do ministério. O PMDB, que vivia a pressionar Lula sem ocupar a função de vice, agora desatará todo o seu rolo compressor para abocanhar os melhores quinhões da República, em especial os dotados de generosas verbas orçamentárias. O PT tem pela frente a complicada função de montar seu xadrez ministerial: quem manter (como Celso Amorim, recém filiado ao partido, e Fernando Haddad), quem substituir e a quem, derrotado nas eleições estaduais, consolar com um ministério? É matéria para muitas reuniões, opiniões, agrados e desagrados. Dilma dispõe de apenas dois meses para ter um mínimo de clareza quanto aos rumos de seu governo. Há previsões óbvias: preservará o Bolsa Família (sem porta de saída até hoje) e ampliará as políticas sociais. Mas... ousará fazer alguma reforma estrutural, tão prometida e jamais cumprida, como a política, a tributária e a agrária? Terá coragem de combater com rigor a corrupção que grassa na esfera federal? E na política externa? De mundo e de América Latina, Dilma não traz nenhuma experiência. Terá suficiente jogo de cintura para, como Lula, apaziguar ânimos entre Chávez e seus vizinhos ao sul? Continuará a defender a autodeterminação de Cuba e não fazer eco aos EUA no bloqueio a Cuba? Manterá os investimentos propiciados por Lula à ilha do Caribe? Defenderá o direito dos palestinos a seu próprio Estado e o do Irã de utilizar energia nuclear para fins pacíficos? Estreitará ainda mais, como fez Lula, os vínculos do Brasil com os países africanos? E quanto aos movimentos sociais? O governo Lula não os criminalizou, mas também não atendeu às suas demandas fundamentais, como a reforma agrária, o limite de propriedade da terra, a revisão dos índices de produtividade. Dilma reagirá ao agronegócio frente ao desmatamento, à ameaça às populações indígenas, ao trabalho escravo? Desapropriará latifúndios para efeito de reforma fundiária? O governo Lula tem muito mais méritos que falhas: aumentou o poder aquisitivo da população, reduziu significativamente a miséria, promoveu uma política externa independente e soberana, elevou a autoestima do brasileiro. Dilma poderá inovar nos pontos falhos do governo Lula, como ampliação e melhoria da infraestrutura (portos, aeroportos, rodovias), redução da violência urbana e do analfabetismo, e abertura dos arquivos das Forças Armadas referentes ao período da ditadura? Quem viver, verá.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

Gilberto Felisberto Vasconcellos

A opção do voto e o voto sem opção Hoje não há quem não se declare adversário da ditadura. E o depois da ditadura? De 1964 até os finais dos anos 70 desenvolveram-se vários golpes de Estados na América Latina dirigidos pela política externa dos EUA. A ditadura do capital internacional se espalhou por todo o continente latinoamericano, então a lógica desses acontecimentos históricos não está na dinâmica interna de cada país. O Plano Real aconteceu em dezenas de países, 6000 empresas públicas foram privatizadas, inclusive na Rússia. Aqui um líder sindical foi eleito presidente da república, lá nos EUA um afro-descendente. Agora teremos uma dona mulher. O dedo do tio Sam terá saído de cena? Lula aprofundou o domínio do capital monopolista financeiro na sociedade brasileira, mas termina seu mandato com alto nível de aprovação popular, então isso significa que fez o milagre de agradar os interesses dos bancos e do sub-proletariado? Mas como e em quê o governo Lula defendeu os oprimidos? Dobrou o salário mínimo? Fez a reforma agrária? Nacionalizou as empresas? Reestatizou o que foi privatizado? Escolarizou a população? Deu mais comida? Melhorou a saúde? Há petistas que alegam que o governo do Lula é de esquerda, mas uma esquerda pragmática e oportunista, por conseguinte não lhe é possível fazer mais do que o pouco que faz porque recebeu do governo anterior uma danosa estrutura econômica e política. O novo governo aceitou a herança sem mudá-la, ainda que houvesse vontade de fazê-lo. Pois sim... A confissão de impotência passa a ser virtude realista. Os teóricos petistas, ou melhor, os apologetas oficiais dissuadem a qualquer comparação com Chaves, Evo e Rafael. Não cotejemos estes governos, dizem, porque Lula chegou ao poder fazendo alianças com a direita e carece de maioria na Câmara e no Senado, além de não ter muitos governadores e prefeitos. Não tem o apoio militar como Chaves, que conduz o processo político de modo pacífico, porém armado. E mais: Lula não pode desagradar o capital estrangeiro, porque o seu governo depende das finanças internacionais. Lula é a “boa esquerda”, Chaves a “esquerda ruim”. O termo neoliberalismo foi substituído por “neodesenvolvimentismo”, ou seja, o capitalismo pode resolver o problema da pobreza. O impressionismo jornalístico superficial e o empirismo acadêmico limitam-se aos traços de caráter pessoal da liderança de Lula, sobre a qual é enfatizada sua origem social pobre: um pau de arara – operário – líder sindical que virou presidente da república. A explanação psicológica, ainda que tenha algum interesse, não é ainda a explicação política, que não pode prescindir da análise de classe e do quadro histórico internacional. E se a bolha financeira estourar no colo da dona Dilma? Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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entrevista

FÁBIO KONDER COMPARATO

Participaram: Cecília Luedemann, Hamilton Octavio de Souza e Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

Se há uma constante na história do Brasil, é o regime oligárquico”

p

rofessor da Faculdade de Direito da USP, o jurista Fábio Konder Comparato é conhecido por sua longa e firme militância na luta pelos direitos humanos e democráticos no Brasil. Tem contribuído com inúmeras entidades e movimentos sociais na formulação de propostas para a transformação do povo brasileiro no sujeito de sua própria soberania. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, ele analisa a questão do poder no Brasil, as várias formas dissimuladas de se adiar a democracia, os instrumentos para aperfeiçoar a participação popular nos destinos do país e outros aspectos da maior relevância para a compreensão da nossa realidade. Os argumentos lúcidos e pedagógicos do professor Fábio Konder Comparato são imperdíveis.

Tatiana Merlino - O senhor nasceu em

Santos?

Fábio Konder Comparato - Não me

perguntem se eu sou santista... (risos)

Hamilton Octavio de Souza – É santista? Eu não torço mais para nenhum clube. Futebol é o ópio do povo (risos).

Tatiana Merlino – Mas, o senhor nasceu em Santos, em que ano? Em 1936, de modo que daqui alguns dias eu farei, com a graça de Deus, 74 anos. Fiquei quatro anos morando no Guarujá, meu pai tinha um hotel lá. Depois, eu vim para São Paulo com a família. Tive uma formação de escola primária excelente. Até hoje tenho uma grande saudade das minhas professoras primárias, que eram professoras daquele tempo antigo, formadas no Elvira Brandão, muito sérias. Depois, eu cursei o Colégio São Luís; de modo que eu fui formado e deformado por jesuítas. Entrei na Faculdade de Direito em 1955, e terminei o curso em 1959. Depois, até 1963 eu fiquei na França, fazendo meu doutorado em Direito. Voltei para o Brasil e fui trabalhar em Brasília, com Evandro Lins e Silva, que era Ministro do Supremo Tribunal Federal. Lá trabalhei como secretário jurídico dele. Saí de Brasília com uma hepatite atroz, provocada pelo golpe de Estado de 1964. Em seguida advoguei, tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor titular. Comecei lecionando Direito Comercial, mas depois me converti e passei a lecionar Direitos Humanos.

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Comparato: “Luiz Inácio Lula da Silva é o maior talento populista da história política do Brasil”.

Tatiana Merlino – Na faculdade o senhor teve algum professor que o tenha influenciado? O professor que mais me impressionou foi exatamente um professor de Direito Comercial. Acho que foi por ele que eu fiz isso... Hamilton de Souza – Tinha a ver com

Direitos Humanos? Não. Mas, eu não lamento o longo período em que lecionei Direito Comercial, porque me permitiu entrar nos arcanos do capitalismo, desmontar toda a estrutura capitalista que enquadra a nossa vida social.

Tatiana Merlino – Como se deu sua conversão para os Direitos Humanos, por qual influência?

Foi, sem dúvida, por causa da Ditadura Militar. E sobretudo, porque fui convidado por Dom Paulo Evaristo Arns para fazer parte da Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo. E lá foi, realmente, um aprendizado. Dom Paulo foi um dos baluartes da luta pela defesa da dignidade humana. Lembro, apenas para dar uma ilustração, de como ele era, na época, procurado por aqueles que sofriam com os sofrimentos e a morte de seus familiares. O pai do Bernardo Kucinski, por exemplo, nunca se recuperou da morte da filha, Ana Rosa Kucinski. Até hoje não se sabe do paradeiro do cadáver dela. Ele ia procurar Dom Paulo todos os dias. Dom Paulo o recebia nem que fosse por 5 minutos. O objetivo que Dom Paulo deu para a Comissão de Justiça e Paz foi justamente o de divulgar todos os crimes do regime militar que nós soubéssemos. En-

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tão, vinham dezenas de pessoas, dizendo: “Meu filho desapareceu, estava na rua e foi preso. Nós anotávamos tudo isso, entregávamos para Dom Paulo, que ia regularmente ao quartel-general II Exército e entregava a lista dos desaparecidos ao General Comandante. Para que eles soubessem que nós sabíamos, e não inventassem mentiras, como fizeram quando mataram sob tortura o Luiz Eduardo Merlino, por exemplo: “Ele tentou fugir quando era conduzido numa viatura militar, foi atropelado e morreu.” A ditadura militar temia, sobretudo, as manifestações no exterior. É por isso que, hoje, nós temos que denunciar sistematicamente, no exterior, o acobertamento dos assassinos e torturadores do regime militar pelo Poder Judiciário. O Estado brasileiro tem receio disso. Quando meus filhos eram bebês, e viajávamos, minha mulher e eu para a França (íamos todos os anos, porque minha mulher é francesa), eu levava documentos nos cueiros deles. Eram relatos de atrocidades e listas de pessoas presas, mortas, desaparecidas. E, naquela época, nós entregávamos isso a um padre francês que morou cinco anos aqui no Brasil. E ele divulgava isso na Igreja Católica. Mas, a Igreja Católica, no Brasil, salvo algumas figuras exemplares, como Dom Paulo e Dom Helder Câmara, continuava firmemente conservadora.

Hamilton Octavio de Souza - Nesse período

da Comissão de Justiça e Paz, o senhor já tinha participação em eventos, atos, com relação à Anistia, à luta pela redemocratização do país? Como o senhor atuava, o senhor tinha militância nesse tempo? Eu não tinha uma participação muito ativa fora da Comissão de Justiça e Paz. Mas participava de alguns eventos públicos. Por exemplo, eu estive na Catedral de São Paulo, quando da celebração ecumênica da morte de Alexandre Vannuchi Leme. Eu lembro que, ao sair da Catedral, havia todo um aparato da polícia militar, com câmeras fotográficas, e ostensivamente abri o guardachuva e avancei em direção a eles para que eles não me fotografassem. Mas eles estavam fartos de saber da minha posição política. Eu não fui molestado, porque nunca me aproximei de nenhum partido ou movimento da esquerda. Mas, eles me acompanhavam. Numa certa época, eu comecei a trabalhar em banco, cheguei a diretor adjunto de um banco.

Tatiana Merlino - Simultâneo à Comissão Justiça e Paz? Exatamente. E uma vez o diretor presidente do banco me chamou e indagou: “O que o senhor acha do terrorismo?” Saquei logo de onde vinha a pergunta. Respondi com outra pergunta: “Mas, qual deles: o oficial ou o outro?” Aí ele riu um pouco....

Tatiana Merlino - Como o senhor avalia o

período da redemocratização e a justiça de transição, ou a inexistência de justiça de transição que houve no Brasil? Esse é apenas um pormenor da manutenção íntegra e até hoje inabalada da oligarquia. Se há uma constante na História do Brasil, é o regime oligárquico. É sempre uma minoria de ricos e poderosos que comanda, mas com uma diferença grande em relação a outros países. Nós, aqui, sempre nos apresentamos como não oligarcas. A nossa política é sempre de duas faces: uma face externa, civilizada, respeitadora dos direitos, e uma face interna, cruel, sem eira nem beira. A meu ver, isto é uma consequência do regime escravista que marcou profundamente a nossa mentalidade coletiva. O senhor de engenho, o senhor de escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida política. Quando foi feita a Independência, estava em pleno vigor, no Ocidente, a ideologia liberal, e, devido ao nosso complexo colonial, nós não podíamos deixar de ser liberais. Então, iniciou-se o trabalho de elaboração da Constituição, logo em 1823. E os constituintes resolveram instituir no Brasil um regime liberal, com a instituição de freios contra o abuso de poder. Evidentemente, isso foi contado ao Imperador, que imediatamente mandou fechar a Assembléia Constituinte. Mas, qual foi a declaração dele? “Darei ao povo brasileiro uma Constituição duplicadamente mais liberal.” Eles não perceberam a aberrante contradição: uma Constituição outorgada pelo poder que era duplicadamente mais liberal do que aquela que estava sendo feita pelos representantes do povo. Bom, essa Constituição não continha a menor alusão à escravidão e dispunha: “São abolidas as penas cruéis, a tortura, o ferro quente.” Porque todo escravo tinha o corpo marcado por ferro em brasa. Essa marca era dada desde o porto de embarque na África. Pois bem, apesar dessa proibição da Constituição de 1824, durante todo o Império nós continuamos a marcar com ferro em brasa os escravos. A Constituição proibia os açoites, mas seis anos depois foi promulgado o Código Criminal do Império que estabeleceu a pena de açoites no máximo de 50 por dia. E é sabido que essa pena só se aplicava aos escravos e, geralmente, eles recebiam 200 açoites por dia. Houve vários casos de escravos que morreram em razão das chibatadas recebidas. E, aliás, a pena de açoite só foi eliminada no Brasil em 1886, ou seja, às vésperas da abolição da escravatura.

“É dentro desse quadro que se deve analisar o processo eleitoral: nunca dar o poder ao povo, dar-lhe uma aparência de poder”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Em 1870, para continuar essa duplicidade típica da nossa política, como vocês sabem, foi lançado o Manifesto Republicano, aqui no estado de São Paulo. Esse manifesto usa da palavra democracia e expressões cognatas – como liberdades democráticas, princípios democráticos – nada menos do que 28 vezes. Não diz uma palavra sobre a escravidão. E, aliás, o partido republicano votou contra a lei do ventre livre no ano seguinte ao manifesto, em 1871, e votou até contra a Lei Áurea. Em 1878, votou a favor da abolição do voto dos analfabetos. A Proclamação da República, todo mundo sabe, foi um “lamentável mal entendido”, para usar a expressão famosa de Sérgio Buarque de Hollanda. E, efetivamente, o Marechal Deodoro não queria a abolição da monarquia, queria derrubar o ministério do Visconde de Ouro Preto. Mas aí, no embalo, os seus amigos positivistas o convenceram que era melhor derrubar a monarquia. Pois bem, até 1930, nós tivemos a República Velha, que, como dizia meu avô, foi substituída pela República Velhaca. E, por que foi feita a Revolução de 1930? Todo mundo sabe. As fraudes eleitorais.

Hamilton Octavio de Souza - São Paulo e

Minas que comandavam as fraudes. Sim, pois é. Foi feita a revolução para isso. Sete anos depois o regime desembocou num golpe de Estado, que suprimiu as eleições. A autoproclamada “Revolução” de 1964 foi feita em nome de quê? Leiam os documentos: a ordem democrática. Hoje, é preciso dizer que não é só no Brasil, mas no mundo todo que a palavra democracia tem um sentido contraditório com o conceito original de democracia. O grande partido da direita na Suécia, que agora chegou ao parlamento sueco, pela primeira vez, um partido xenófobo e racista, chama-se Suécia Democrática. E, num certo país da América Latina, como todo mundo sabe, o partido mais à direita do espectro político chama-se como, mesmo?

Hamilton Octavio de Souza - Se chama

Democratas. Então, esta é a nossa realidade. É dentro desse quadro que se pode e se deve analisar o processo eleitoral. Ou seja, nunca dar o poder ao povo, dar-lhe apenas uma aparência de poder. E, se possível, uma aparência festiva, alegre. Essa disputa eleitoral, que nós estamos assistindo, ela só interessa, rigorosamente, ao meio político. O povo não está, absolutamente, acompanhando a campanha eleitoral. Vai votar, maciçamente, na candidata de Lula, mas para ele não tem muito interesse essa campanha eleitoral. Então, as eleições, o que são? São um teatro. Oficialmente, os eleitos representam o povo. É o que está na Constituição. Na realidade, eles representam perante o povo, são atores teatrais. Mas, com um detalhe: eles não se interessam pelas vaias ou pelos aplausos do povo. Eles ficam de olhos postos nos bastidores, onde estão os donos do poder. É isso que é importante. De modo que, para nós, hoje, é preciso deixar de lado o superficial e encarar o essencial. O que outubro 2010

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é o essencial? Como está composta, hoje, a oligarquia brasileira. E como eliminá-la. Como está composta a oligarquia brasileira? Obviamente, há um elemento que permanece o mesmo desde 1500: os homens da riqueza. Só que hoje eles são variados: os grandes proprietários rurais, os banqueiros, os empresários comerciais, os grandes comerciantes. Mas o elemento politicamente mais importante da oligarquia atual é o dos donos dos grandes veículos de comunicação de massa: a imprensa, o rádio e a televisão. O povo está excluído desse espaço de comunicação, que é fundamental em uma sociedade de massas. Ora, esse espaço é público, isto é, pertence ao povo. Ele foi apropriado por grandes empresários, que fizeram da sua exploração um formidável instrumento de poder, político e econômico. Hoje, os oligarcas brasileiros já montaram em esquema que torna as eleições um simples teatro político. É claro que eles não podem, em todas as ocasiões, fazer um presidente da República, por exemplo. Mas eles podem – e já o fizeram – esvaziar o processo eleitoral, tirando do povo todo o poder decisório em última instância e transferindo-o aos eleitos pelo povo; eleitos esses cuja personalidade, na grande maioria dos casos, é inteiramente fabricada pelos marqueteiros através dos meios de comunicação de massa. O único risco para a oligarquia brasileira (e latino-americana, de modo geral) é a presidência da República, porque a tradição latino-americana é de hegemonia do chefe do Estado em relação aos demais Poderes do Estado. Se o presidente decidir desencadear um processo de transformação das estruturas sócio-econômicas do país, por exemplo, ele porá em perigo a continuidade do poder oligárquico. Ora, Luiz Inácio Lula da Silva já demonstrou que não encarna esse personagem perigoso para a oligarquia. Ele é o maior talento populista da história política do Brasil, muito superior a Getúlio Vargas. Mas um populista francamente conservador, ao contrário de Getúlio ou de Hugo Chávez, por exemplo. Mas o que significa ser um político populista? Populista é um político que tem a adesão muitas vezes fanática do povo, que tem um extraordinário carisma popular, mas que mantém o povo perpetuamente longe do poder. O populista conservador pode até, se isso agradar ao povo, fazer críticas aos oligarcas, mas mantém com eles um acordo tácito de permanência do velho esquema de poder. Ora, isto representa a manutenção do povo brasileiro na condição de menor impúbere, ou seja, de pessoa absolutamente incapaz de tomar decisões válidas. O populista é uma espécie de pai ou tutor, que trata os filhos com o maior carinho, enche-os de presentes, brinquedos, etc, mas nunca lhes dá o essencial: a verdadeira educação para que eles possam, no futuro, tomar sozinhos as suas decisões. É um falso pai. O verdadeiro pai existe para desaparecer. Se o pai não desaparecer, enquanto pai, alguma coisa falhou, uma coisa essencial, que é a educação dos filhos para a maturidade. O fundamental do líder po-

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pulista é que ele mantém o povo muito satisfeito, mas num estado de perpétua menoridade.

Tatiana Merlino - Por que o senhor acha que ele supera o Getúlio Vargas? Porque Getúlio Vargas tinha, teve, até o fim, uma oposição ferrenha, raivosa, não de partidos políticos, eles não existiam, mas dos grandes fazendeiros de São Paulo. Aliás, fizeram até uma revolução em 1932. Além disso, ele era autoritário, por convicção positivista: a chamada “ditadura republicana”. Lula não, ao contrário do que se afirmou em um desatinado manifesto recente. Ele tem horror à coação, à violência. Ou seja, ele é o avesso de Getúlio. Basta ler Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, para se perceber que o regime militar de 64 não inventou nada. Foi uma reedição desse aspecto tenebroso de Getúlio. Hamilton Octavio de Souza – Esse controle

que o Lula exerce, como isso tem sido possível num país carente, com demandas seculares, desigualdade? A mentalidade do Lula não é de raciocínio frio, ela é quase que toda dominada pela sensibilidade e a intuição. É por isso que ele tem lances geniais no desmonte da oposição. É um talento por assim dizer inato. E é por isso que todo esse pessoal do PT foi atrás dele, porque senão eles não subiriam, jamais. Não preciso dar nomes, mas nenhum deles tem o milésimo do talento político do Lula. Eles foram atrás e chegaram lá. Mas são todos infantis em política. Ao chegarem ao poder, procederam como a criança que nunca comeu mel: foram comer e se lambuzaram todos. Mas, enfim, esse é o homem. Isso não significa que ele seja totalmente negativo. As boas coisas do governo Lula são mantidas por influência dos seus bons companheiros. E ele sabe ouvi-los, graças a Deus. Em matéria de direitos humanos, nós temos que reconhecer o trabalho admirável do Paulo de Tarso Vannuchi. Em matéria de educação, eu entendo que o Fernando Haddad fez um bom trabalho. Mas isso não compensa o lado extremamente negativo dos maus elementos que pressionam Lula. Sinto, por exemplo, que cede a tudo aquilo que o Nelson Jobim pede. Será preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me disse: “Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos...”

Tatiana Merlino – Do presidente?

Obviamente que do governo. Digamos que o Lula não tenha feito pessoalmente isso. Mas, ele tam-

bém não pode ignorar que isto está sendo feito diante dele. Por acaso ele ignorava o esquema do mensalão?

Hamilton Octavio de Souza – A pressão é no

sentido de se ... Dar anistia aos torturadores, assassinos e estupradores do regime militar, porque todos eles se declaravam defensores da ordem democrática. Logo após o golpe, em 64, eles se declaravam também defensores da civilização cristã. Nesse ponto eu sigo o grande método da antiga Ação Católica: “ver, julgar e agir”. Que é, aliás, o método que nós procuramos seguir com os nossos alunos na Escola de Governo, aqui em São Paulo. Justamente, eu me esqueci de dizer que há 20 anos, juntamente com os amigos Maria Victoria Benevides e Claudineu de Melo, e também o saudoso professor Goffredo da Silva Telles Jr., nós criamos uma escola de formação de líderes políticos. No começo, procurávamos formar governantes. Hoje, nós tentamos formar educadores políticos. Pois bem, esse “ver, julgar e agir”, nós temos que utilizar para a situação política atual. Nós só podemos compreender a situação política atual, se tivermos a capacidade de enxergar por dentro as ações políticas, tanto do PT quanto do PSDB e dos demais partidos. E vamos perceber que há, como eu disse, um elemento que permanece incólume na vida política brasileira: é a oligarquia. Nós sempre vivemos sob regime oligárquico, pois o poder soberano sempre pertenceu à minoria dos ricos.

Tatiana Merlino – O senhor disse que as eleições não mudam nada a configuração da oligarquia. O senhor está se referindo às eleições de agora, ou de um modo geral? De modo geral. Tatiana Merlino - Como é possível mudar

essa configuração? Nós temos que saber como mudar e quais são os pontos fracos da oligarquia. Porque ela não existe no vácuo. Se ela se mantém, é porque o povo aceita esse estado de coisas. E por que o povo aceita? Em grande parte, porque ele acha que tem participação política através das eleições. Foi por isso, aliás, que o regime militar não as eliminou. Era preciso que o povo se sentisse participante e não mero espectador do teatro político. Pois bem. Como é que nós podemos mudar isso? Nós temos que seguir dois caminhos convergentes. É preciso, ao mesmo tempo, transformar a mentalidade coletiva e mudar as instituições políticas. O que significa mudar a mentalidade política? Ainda aí é preciso ver, julgar e agir. Nós temos uma herança de séculos, nas camadas mais pobres do povo, de servilismo e de dificuldade de ação comunitária. Nós sempre somos dispersos,

“O fundamental do líder populista é que ele tem o povo muito satisfeito, mas num estado de menoridade impúbere”.

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recebidas do mandante. Aqui, instituímos exatamente o contrário. O povo, dito soberano, só tem o direito de manifestar a sua vontade, quando autorizado pelos mandatários que escolheu... Outro instrumento de verdadeira democracia, isto é, de soberania popular autêntica e não retórica, como a que sempre existiu no Brasil, é o recall, isto é, o referendo revocatório de mandatos eletivos. O povo que elege tem o direito de revogar o mandato do eleito, quando bem entender. Por exemplo, alguém se elege Prefeito e, antes de tomar posse, vai a cartório e lavra uma escritura pública pela qual se compromete a não renunciar ao cargo no curso do mandato. Dois anos depois, porém, renuncia ao cargo de Prefeito para se candidatar ao governo do Estado. Pois bem, se existisse entre nós o recall, tal como ocorre em nada menos do que 18 Estados da federação norte-americana, o povo daquele Município teria o direito de destituir o Prefeito que fez aquela falsa promessa.

“Não basta tomar o poder para mudar o país, é preciso mudar a mentalidade”. disseminados, não sabemos agir por nós mesmo, e atuar em conjunto. Nós sempre aceitamos uma situação de dependência em relação aos que detêm o poder, esperando que esse senhor todopoderoso seja benévolo e compreenda as dificuldades de povo. Durante séculos, mais de 80% da população brasileira vivendo no campo, este senhor foi o grande proprietário rural, senhor de escravos. Agora, com a urbanização, 80% da população brasileira é urbana, é uma inversão completa. Com a criação da sociedade de massas, foi preciso que esse poder se transformasse. Ele não é mais local e pessoal. É um poder geral e impessoal, de certa maneira invisível. Os “donos do poder” nunca entram em diálogo pessoal com o povo. Eles se servem do instrumental fantástico dos meios de comunicação de massa, para distração geral; para que o povo não pense em si mesmo e não enxergue o buraco em que está metido. Daí a intoxicação futebolística. Daí o fato de que a novela das oito na Globo ser protegida como um programa sagrado. Mas, concomitantemente, é preciso que exista uma liderança pessoal, e aí vem o populismo. Eu fico pensando que o advento do Lula em nossa vida política atual representou para os nossos oligarcas algo como ganhar o maior prêmio da megasena.

Cecília Luedemann - Depois do processo de redemocratização, com a entrada do PT no jogo político, e a transformação do Lula em alguém que poderia ser um Getúlio Vargas mais moderno, poderia ser um populista, foi feito um pacto capital e trabalho? É isso que nós estamos vendo hoje? Hoje não existe mais organização do trabalho, o poder dos sindicatos é cada vez menor. Por outro lado, como disse, persiste nas camadas mais

pobres do povo a mentalidade servil e a ausência de espírito comunitário. Eu contesto essa palavra: redemocratização. Nós nunca tivemos democracia até hoje, porque democracia significa soberania popular, e soberania popular significa que o povo tem o poder supremo de designar os governantes, de fiscalizar a sua atuação, de responsabilizá-los, de demiti-los e de fixar as grandes diretrizes da ação estatal para o futuro. É preciso ter instituições políticas para isso. Quais são? São várias. Qual é a lei maior? É a Constituição. A quem compete aprovar uma Constituição? Obviamente, a quem tem o poder supremo. Ora, o povo brasileiro nunca aprovou Constituição alguma. A Constituição atualmente em vigor já foi emendada, ou melhor, remendada até hoje 70 vezes. Em nenhuma dessas ocasiões o povo brasileiro foi chamado para dizer se concordava ou não com a emenda a ser introduzida na Constituição. É preciso começar, portanto, por dar ao povo o direito elementar de manifestar a sua vontade, através de referendos e plebiscitos. Ora, o que fizeram os nossos oligarcas? Puseram na Constituição, para americano ver, que referendos e plebiscitos são manifestações da soberania popular. Mas acrescentaram, em um dispositivo um tanto escondido que o Congresso Nacional tem competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (Constituição Federal, art. 49, inciso XV). Como vocês veem, a nossa inventividade jurídica é extraordinária. Os deputados e senadores, eleitos pelo povo, são ditos seus representantes ou mandatários. Em lugar algum do mundo, em momento algum da História, o mandante deve obedecer ao mandatário. Bem ao contrário, este tem o dever de cumprir fielmente as instruções

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Hamilton Octavio de Souza - Isso deveria

entrar na reforma política que está sendo ensaiada há anos? Pois, então, essa reforma política não se faz enquanto não se muda o centro de poder. Eu trabalhei seis anos no Conselho Federal da OAB. Isso que eu estou dizendo a vocês: desbloqueio de Plebiscito e de Referendos, facilitação de iniciativa popular, o recall, ou seja, o povo elege, o povo também institui... “Como é, senhor fulano, o senhor quando foi, se candidatou a prefeito e o senhor foi ao tabelião e fez uma declaração de que cumpriria o mandato até o último dia, depois o senhor, no meio do seu mandato de prefeito, o senhor se candidatou a governador do Estado. Pois bem, o senhor não merece a nossa confiança, vamos fazer um abaixo assinado para a realização de nova Consulta Popular. O senhor fulano de tal deve continuar exercendo cargo de prefeito? Não”. Ele é destituído. Isso se chama recall. Portanto, não se trata de uma manobra, de um instrumento revolucionário. E, aliás, Cuba não tem recall, como todo mundo sabe.

Hamilton Octavio de Souza – O senhor falou do povo ver reconhecidos os seus direitos. Como está esta situação dos direitos no Brasil? O que o senhor acha que funciona e o que não funciona? Houve, sem dúvida, uma mudança nos últimos 30 anos, a partir do fim do regime militar. Mas, esse progresso é sempre lento, porque se faz sem organização. A função verdadeira dos partidos políticos deveria ser a formação do povo para que ele, povo, exercesse a soberania. É preciso, portanto, começar a criar outra espécie de partido político, que não persiga o poder para si, mas ajude o povo a chegar ao poder. Nós temos no Brasil duas constituições. Pela Constituição oficial, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Mas a Constituição real, a efetivamente aplicada, tem uma formulação diferente: “Todo poder emana outubro 2010

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dos grupos oligárquicos, que o exercem sempre em nome do povo, por meio dos representantes, por este eleitos”. Segundo ambas as fórmulas, o que conta é a impressão geral de que quem manda é o povo.

lo, como se sabe, fizeram uma reunião em São Paulo para angariar fundos para criar a Operação Bandeirante, que está na origem dos famigerados DOIs CODIs. Não passa pela cabeça de ninguém, hoje, infelizmente, que esses banqueiros são coautores dos assassinatos, torturas e abusos sexuais de presos políticos, praticados no quadro da Operação Bandeirante e as operações policiais e militares que a sucederam.

Hamilton Octavio de Souza - O senhor fala

em formar novos partidos? Exatamente. Hoje, no mundo inteiro, os partidos perderam a confiança popular. Li recentemente os resultados de uma pesquisa de opinião pública sobre confiança do povo em partidos políticos. Segundo essa pesquisa, no Brasil apenas 11% dos cidadãos confiam nos partidos. No mundo inteiro, ou seja, em 19 países onde foi feita a pesquisa, os partidos tinham a confiança de não mais do que 14% do povo. O que decorre, portanto, dessa pesquisa de opinião pública é que o povo passou a reconhecer que os partidos políticos agem em proveito deles próprios e não do povo. É indispensável e urgente, portanto, suscitar a criação de novos partidos políticos, com características verdadeiramente democráticas. Mas, isto é muito difícil, porque pressupõe uma mudança de mentalidade, o propósito de atuar politicamente em proveito do povo e não em benefício próprio.

Hamilton Octavio de Souza - O senhor

falou em oligarquia, que nesse processo a oligarquia controla. O senhor chegou a dizer que a oligarquia é composta por empresários... De militares também...

Hamilton Octavio de Souza - Militares,

banqueiros e tal... E do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa. Ela conta, episodicamente, com o apoio episódico de algumas instituições, como, por exemplo, a Igreja Católica.

Hamilton Octávio de Souza - Essa oligarquia,

aqui, vem conseguindo se manter com o poder, no Brasil, apesar das mudanças, mas é ela que continua ainda sendo... quer dizer, ela tem um comando, ela tem uma orientação, ela está ligada ao que se chama capital internacional? Ela tem, evidentemente, uma orientação muito firme. Veja, por exemplo, os meios de comunicação de massa. Quando eu era jovem, alguns professores diziam: “Meninos, vocês têm que ler todos os jornais do dia.” Os jornais eram muito diferentes uns dos outros. Hoje, os grandes jornais dizem exatamente a mesma coisa, têm todos a mesma orientação. Só muda o estilo e muda cada vez menos. O estilo dos grandes jornais tende a ser o mesmo. As revistas: há revistas mais sensacionalistas, há revistas nojentas no que diz respeito à defesa de privilégios, todos nós conhecemos, não é? Mas, todas elas são fundamentalmente defensoras do sistema capitalista e da ausência de democracia autêntica. É óbvio. A rede televisiva controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, entrou recentemente em conflito com um grande jornal de São

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Tatiana Merlino – O senhor disse que os casos no Brasil tem que ser denunciados, enfim, nas instituições internacionais. O STF interpretou que a Lei da Anistia anistiou os torturados. Esse caso pode ser levado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos? Ele já está sendo julgado.

“Nós nunca tivemos democracia até hoje, porque democracia significa soberania popular”. Paulo. Mas na defesa do sistema capitalista e do regime oligárquico, eles estão unidinhos.

Tatiana Merlino - Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a diferença entre os brasileiros e os outros países da América Latina que estão punindo os torturadores da ditadura. Por que o Brasil não consegue julgar esses torturadores da ditadura? Porque nós somos dissimulados. Os hispânicos, em geral, são abertos e francos. A crueldade deles é aberta. A nossa é sempre dissimulada, sempre oculta, porque nós temos que dar uma aparência de civilização, de democracia... Nos países hispano-americanos, a repressão militar nunca foi escondida e eles tiveram o cuidado de pôr a justiça fora disso. Nós, não. Não só o Poder Judiciário continuou a funcionar normalmente, como a Justiça Militar, que em si mesma é hoje uma aberração, teve a sua competência ampliada. Então, quando houve a reviravolta no Chile, na Argentina, no Uruguai, todos os chefes de Estado do regime repressivo foram processados, julgados e condenados, além de dezenas de outros oficiais militares. No Brasil, em primeiro lugar, nem se sabe exatamente qual é a identidade de 90% dos torturadores, e, em segundo lugar, quanto aos grandes chefes militares é como se eles não soubessem nada disso, nunca ouviram falar de torturas. Vou mais além. No Brasil, os banqueiros e grandes empresários colaboraram claramente com o regime militar. Os banqueiros de São Pau-

Tatiana Merlino - Sim, mas com o caso da Guerrilha do Araguaia. Sim, mas o caso do Araguaia é um aspecto do total. A Corte Interamericana de Direitos Humanos adiou o julgamento para novembro por causa das eleições no Brasil, para não dar a impressão de interferência nas eleições. Hamilton Octavio de Souza - Pode haver uma condenação do Brasil nesta corte? Sim. Aliás, o Estado brasileiro, os nossos dirigentes em geral, temem as acusações no exterior, porque isto porá a nu a nossa dissimulação no plano internacional. O Brasil quer sempre aparecer, na cena mundial, como um defensor intrépido das liberdades democráticas, da dignidade da pessoa humana, e até está aspirando a ser um dos membros permanentes do conselho de segurança da ONU. Tatiana Merlino – Se o Brasil for condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, quais as sanções que o Brasil vai sofrer? Se a Corte Interamericana condenar o Brasil, ela vai exigir que seja revogada a Lei de Anistia de 1979, com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o Brasil pode não cumprir essa exigência. E ficará, então, fora da lei no plano internacional. As consequências disso são indiretas, ou seja, isso vai ser levado em conta se o Brasil vier a pleitear, por exemplo, um cargo nas Nações Unidas, no Conselho de Segurança. Mas, não há um efeito direto. De qualquer forma, isso certamente vai ser uma derrota política para a oligarquia brasileira. Há um projeto de lei da deputada Luciana Genro, interpretando a lei 6.683 de 1979, que é a Lei de Anistia. Então, é possível que eles digam: “Vamos aproveitar isso e dar uma nova interpretação, agora legislativa (ou seja, a chamada interpretação autêntica) para a Lei de Anistia.” Isso, na melhor das hipóteses. Agora, se após essa reinterpretação da Lei de Anistia os criminosos do regime militar vão ser condenados, é outra história. A probabilidade de condenação antes de todos eles passarem desta vida para a melhor é praticamente nula.

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Sérgio Vaz

Literatura das ruas A literatura é dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Frequenta os casarões, bibliotecas inacessíveis ao olho nu e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços. Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com Victor Hugo, mas não com os Miseráveis. Beija a boca de Dante, mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da cara do Quixote. É triste, mas A rosa do povo não floresce no jardim plantado por Drummond. Quanto a nós, Capitães da areia e amados por Jorge, não restou outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a morada da poesia. Assim nasceu o sarau da Cooperifa. Nasceu da mesma Emergência de Mário Quintana e antes que todos fossem embora pra Pasárgada, transformamos o boteco do Zé Batidão num grande centro cultural. Agora, todas às quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos os lados e de todas as quebradas vem comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos poetas sob a benção da comunidade. Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilan-

tes, bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes, jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania através da poesia. Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou, a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura.O sarau da cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e se prostrar de joelhos. Somos O poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o Rastilho da pólvora. Somos Um punhado de ossos, de Ivan Junqueira Tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto. Neste instante, neste país cheio de Machados se achando serra elétrica, nós somos a poesia: Essa árvore de raízes profundas regada com a água que o povo lava o rosto depois do trabalho. Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br

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Lúcia Rodrigues

Militares espionaram

esquerda na década de 90

Documentos confidenciais do Exército, Marinha e Aeronáutica localizados por Caros Amigos revelam que a espionagem política das Forças Armadas se manteve no período democrático, após o fim da ditadura militar.

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que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização. A documentação encontrada revela que, além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo. Em 1999, veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano. (Confira a reprodução da primeira página de alguns dos documentos secretos encontrados pela reportagem da Caros Amigos em www.carosamigos.com.br). Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de

fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.

Sindicalismo A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidenciais das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT. O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.” O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Na-

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DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura. Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão. A reportagem da revista encontrou documentos inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência caros amigos outubro 2010

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cional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga. O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que a origem dessas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de infantaria Blindado) do Exército . A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste (Exército), órgão que substituiu o DOI-Codi no período pós-democratização. Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto. O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula. A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. A origem desse documento, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo. O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo,

a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica. Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar - 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército sobre a CUT apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”. Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar. A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSITA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.” O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela base. “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)... Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.” Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolveram ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.

Partidos Políticos Além da CUT, os documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que o Exército também monitorou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B). A Convergência So-

cialista, organização trotskista que deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, também foi investigada. No caso do PT, os encontros municipais e zonais do partido e o encontro de seus vereadores constam dos relatórios de monitoramento do Exército. O informe 681 – D.6/E.250/91, de 30 de setembro de 1991, trata do encontro dos parlamentares. “O referido encontro teve como principal meta a preparação dos edis petistas para as discussões do plano diretor e da política orçamentária dos respectivos municípios, segundo as diretrizes do partido. Os políticos petistas também debateram sobre o papel do PT na luta institucional, assim como o posicionamento do partido frente ao parlamento”, enfatiza o texto. O relatório 00683 – D.6/e.250/91, de 30 de setembro de 1991, sobre os encontros do partido destaca que “o principal objetivo dos eventos visa propiciar aos Diretórios Municipais e Zonais, a escolha dos delegados e observadores, assim como a discussão dos participantes dos temas que serão debatidos no Congresso petista, previsto para o período de 27 NOV à (sic) 01 DEZ 91, nas dependências do PAVILHÃO VERA CRUZ, no município de SÃO BERNARDO/ SP”. Ambos os documentos são datados de 30 de setembro de 1991 e têm como origem o Comando Militar do Sudeste. A ordem é para que as informações sejam repassadas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. Um ciclo de debates promovido pelo PC do B sobre problemas do socialismo e a situação mundial também foi monitorado pelo Comando Militar do Sudeste. O informe 00678/B91-E.250, de 26 de setembro de 1991, explica que “o PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) objetivando aprofundar a discussão sobre os temas relevantes da Tese inicial para o seu 8º CONGRESSO NACIONAL, previsto para JAN 92, promoveu e realizará um CICLO DE DEBATES no período de 05 SET A 24 out 91, todas as quintas-feiras, no salão PEDROSO HORA da CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Os debates terão como tema básico “PROBLEMAS DO SOCIALISMO E SITUAÇÃO MUNDIAL”. O agente fornece os nomes dos debatedores e a programação do ciclo organizado pelos comunistas. O documento deve ser difundido para os mesmos órgãos que os indicados para os informes relativos ao PT. Tanto os documentos referentes ao PT quanto os do PC do B possuem carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste. O informe de 19 de novembro de 1991 sobre a Convergência Socialista é o único em que não aparece como origem o Comando Militar do Sudeste. No espaço reservado a essa identificação consta a palavra Lotus, provavelmente o codinome do agente que acompanhou a reunião do outubro 2010

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Comitê Central da organização, que ocorreu em São Paulo nos dias 15, 16 e 17 de novembro. A Convergência era à época uma tendência interna do PT. O relato de sete páginas é rico em detalhes, afirma, por exemplo, que a corrente política pretendia formar a Frente Única Revolucionária. “Foi apresentado um informe sobre os grupos com os quais a organização vem mantendo contatos e reuniões objetivando a formação da Frente Única Revolucionária (FUR), parte de sua tática de organização de um novo partido”. Além dos tradicionais carimbos de confidencial e fichar e arquivar aparece escrito à mão a tipologia em que o documento deveria ser catalogado: Frente Única Revolucionária. Segundo o espião, a Convergência Socialista mantinha conversações com o Partido da Libertação Proletária (PLP) para a formação do novo partido. O texto revela que a Convergência queria manter o assunto em sigilo porque a discussão ainda era interna e, portanto, deveria ser mantida preferencialmente na cúpula das duas organizações. Lotus ressalta que “foi ainda apresentado um relatório sobre as reuniões realizadas com outros grupos”. Os nomes dos dirigentes dos grupos com os quais a Convergência estaria conversando, para a consolidação da FUR aparecem acompanhados pelas siglas DQJD ou SDQ. Caros Amigos consultou várias pessoas, inclusive militares perseguidos pela ditadura para saber o que as siglas significam, mas ninguém soube responder.

Forças Armadas A reportagem de Caros Amigos entrou em contato com os comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, para que se manifestassem a respeito do monitoramento realizado na década de 90 pelas respectivas Forças, mas nenhum deles aceitou conversar com a reportagem. Em nota, o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica reconheceu que a instituição faz o monitoramento e compartilha as informações com os demais órgãos. O texto enviado pela comunicação da Aeronáutica afirma, ainda, que esse compartilhamento é componente doutrinário dos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência. “O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informa que o comunicado nº. 008/A-2/ IV COMAR, de 02 de outubro de 1991, é oriundo da 2º Seção do IV Comando Aéreo Regional, que constituía, à época, o elo sistêmico da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal. Assim como em 1991 o compartilhamento de informações faz parte, doutrinariamente, do cotidiano dos órgãos que compõem o atual Sistema Brasileiro de Inteligência. Cabe destacar que eventos de qualquer natureza, envolvendo aglomerações urbanas, são

normalmente acompanhados por órgãos de segurança civis e/ou militares.” A nota enviada pela Marinha é assinada pelo contra-almirante Paulo Mauricio Farias Alves. O militar informa que o órgão não se posicionará a respeito. “Em procedimento investigatório realizado, não foi encontrado o documento referenciado em seu pedido. Em decorrência dessa inexistência, não é possível responder os dados requeridos.” A assessoria de comunicação do Exército também não respondeu aos questionamentos. “Sobre um pedido de entrevista com o Comandante do Exército, a respeito de documentos sigilosos, o Centro de Comunicação Social do Exército informa o que se segue: o Comandante do Exército não concederá a entrevista solicitada”, frisa a nota encaminhada. Caros Amigos também procurou o Ministério da Defesa para que o ministro Nelson Jobim se posicionasse sobre o monitoramento realizado pelas três Forças Armadas, mas a assessoria de imprensa do Ministério informou que ele não se pronunciaria sobre essa questão.

Os investigados Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, o Estado brasileiro precisa avançar muito para que a sociedade se torne realmente democrática. “Mesmo após a redemocratização do país há um conjunto de documentos que demonstram que parte dessa estrutura de perseguição e monitoramento continuou. É um absurdo. Deveria ter sido enterrado com o fim da ditadura. Espero que, hoje, isso não esteja acontecendo”, critica. O sindicalista explica que a década de 90 foi marcada pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais e do movimento sindical, em particular. “Não chega a causar surpresa”, afirma ao se referir ao monitoramento que a CUT sofreu por parte das três Forças Armadas. “Sempre viram o movimento sindical como uma possibilidade de perda do controle.” A deputada federal Iriny Lopes (PT-ES) quer a punição dos responsáveis pelo monitoramento praticado pelas Forças Armadas. “É um ato de violação de direitos, uma violação à Constituição, um desrespeito ao Estado de direito. Quem dirigiu, quem autorizou, quem conduziu essas operações cometeu um ato ilegal, inconstitucional. Os responsáveis devem ser exemplarmente punidos, para que isso não se repita.” Iriny, que integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, destaca que esse tipo de ação de espionagem foi feita ao arrepio da lei. “Faz parte de um pensamento atrasado e policialesco. Demonstra que parcelas das Forças Armadas e do sistema de segurança mantiveram a mesma visão do tempo da ditadura. Revela uma arbitrariedade, uma flagrante in-

“ CUT e PCdoB foram espionados por agentes do governo ” 20

constitucionalidade, uma flagrante ilegalidade. É um absurdo. Repudio veemente um comportamento dessa natureza”, frisa a petista. A parlamentar alerta que aqueles que tiveram sua privacidade devassada podem acionar o Estado. “Eles (militares) monitoraram ilegalmente, catalogaram, perseguiram ideologicamente. A legislação permite que as pessoas que foram violadas tomem medidas legais para a reparação desse tipo de ilegalidade.” O monitoramento dos comunistas pelas Forças Armadas não causa espanto no presidente do PC do B, Renato Rabelo. Mas o dirigente se surpreende, no entanto, com o período em que isso ocorreu. “Mesmo com o fim do regime militar, as Forças Armadas mantiveram o serviço de inteligência voltado a vigiar e acompanhar os movimentos sociais. Isso para mim não é novidade. Mas a gente não sabia que isso foi feito na década de 90. Pensei que fosse só até ao final da década de 80. No começo dos anos 80 invadiram várias casas, inclusive, a minha, levaram meus livros, documentos”, revela. O PC do B foi uma das organizações duramente atacadas pelos militares durante a ditadura. O partido teve seu Comitê Central praticamente dizimado no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa, em 1976, quando os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram fuzilados por militares do Exército e João Baptista Franco Drummond assassinado sob tortura no DOI-Codi paulista. Na primeira metade da década 70, o PC do B já havia sofrido um dos piores golpes impostos pelos militares, quando seus ativistas que atuavam no Araguaia foram executados pelas forças da repressão. Assim como a deputada Iriny, o dirigente comunista enfatiza o fato de os militares realizarem esse tipo de monitoramento à revelia da lei. “As Forças Armadas não têm o preceito constitucional para vigiar o povo. É uma excrescência, um absurdo.” Ele também questiona a envergadura do aparato montado para espionar a esquerda. “Tem uma estrutura enorme para fazer esse trabalho de investigação. Eu não sei como isso vem se desenvolvendo de lá pra cá, se mantém esse tipo de serviço secreto”, questiona. “Os movimentos sociais e os partidos políticos que não aceitam a ordem vigente são monitorados”, afirma o presidente do PSTU e ex-candidato a presidente da República, José Maria de Almeida, o Zé Maria. “Pode ser infiltrado ou serviço de escuta. A democracia representativa é um mito. O Estado tem lado, é capitalista e monitora qualquer agrupamento que possa vir a representar algum perigo para a manutenção do status quo”, ressalta. As Forças Armadas devem uma satisfação à sociedade brasileira sobre a espionagem praticada, segundo o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão. “Isso caracteriza monitoramento ilegal. O monitoramento só pode ocorrer com autorização judicial”, enfatiza Paulo Abraão, que também é advogado. Para ele, o não afastamento dos agentes, que serviram ao regime militar, de seus cargos após a redemocratização e a ausência de uma

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profunda reforma nas Forças Armadas permitem que situações como as identificadas pela reportagem da Caros Amigos aconteçam. “Na Argentina, houve o afastamento das pessoas que participaram de funções gerenciais durante a ditadura militar, houve um processo de depuração. Aqui isso nunca aconteceu.” Paulo Abraão também questiona o termo “doutrinariamente” utilizado pela Aeronáutica na nota enviada a Caros Amigos. “As palavras têm força, têm um simbolismo muito grande. A que tipo de doutrinamento se refere? Àquele do regime militar que não respeitava os direitos fundamentais?”, indaga. Curiosamente o Comando da Aeronáutica publicou portaria, no dia 23 de agosto, instituindo uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos do Comando da Aeronáutica. A Comissão está subordinada diretamente ao comandante da Aeronáutica, tenente coronel do Ar, Juniti Saito. O presidente da Comissão de Anistia vê com preocupação o fato de não haver o controle da sociedade civil. Ele considera estranho também o fato de a portaria se referir à documentação produzida e arquivada pelo Comando da Aeronáutica. “As Forças Armadas ainda não se submeteram integralmente ao poder civil. Há um ranço ideológico ao direcionar o monitoramento para a esquerda.”

Cuba na mira A Ilha de Fidel sempre provocou calafrios na cervical dos homens de farda que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985. O socialismo cubano era visto como elemento desestabilizador da ordem imposta pelos generais. Era visto... é força de expressão. Porque pelo que a reportagem da Caros Amigos apurou, Cuba continuou sendo motivo de preocupação entre os militares, também nos anos 90. Documentos confidenciais, de setembro de 1991, comprovam que as Forças Armadas acompanharam os passos dos cubanos Roberto Garcia Robaiña, da União da Juventude Comunista (UJC), e Ana Maria Peñon Saez, da Organização Continental Latinoamericana de Estudantes (Oclae), desde o momento em que os dois desembarcaram, em 21 de setembro, no aeroporto internacional de Guarulhos, localizado na Grande São Paulo. O nível de detalhamento do relatório produzido pelo serviço de espionagem chama a atenção. Descreve em minúcias, horários e locais por onde os dois passaram durante sua estadia no país, registra suas intervenções. A documentação que revela o monitoramento dos ativistas apresenta grau de sofisticação superior aos demais relatórios encontrados pela reportagem. A espionagem feita contra os cubanos vem acompanhada, inclusive, por um “álbum” com oito fotografias. Uma delas chama particularmente à atenção pela forma como foi obtida. Tirada por um agente, provavelmente, escondido no interior de um veículo, Robaiña aparece identificado, com o número 1 escrito à caneta, e Ana Maria, com o número 2. Além dos dois cubanos, uma terceira pessoa, que acompanhava o casal, também aparece na foto e é identificada no relatório. Os três

Espiões vigiaram e fotografaram o cubano Roberto Garcia em visita ao Brasil.

estão na rua e carregam bolsas e pacotes. Outras duas fotos do “álbum” também surpreendem. Aparentemente foram extraídas de câmeras filmadoras do circuito interno do aeroporto (confira as imagens em www.carosamigos.com. br). Robaiña é identificado em uma delas. Na outra, aparece Cristobal Pupo Telles, descrito pelos militares como membro da Embaixada Cubana. O documento do serviço de espionagem afirma que Robaiña e Ana Maria deixaram o país, na noite do dia 27 de setembro, na companhia do compatriota Pupo Telles. “Às 22h30, Ana Maria, que portava passaporte diplomático, Pupo Telles e Robaiña embarcaram no vôo 820 Vasp, com destino a Aruba.” A informação de que Ana Maria viajou com passaporte diplomático demonstra que o serviço de inteligência do Exército contava com apoio de agentes da Polícia Federal no aeroporto. O órgão era o responsável pela fiscalização do documento no momento de embarque dos passageiros com destinos internacionais.

Passo a passo O relatório intitulado: Atividades de Roberto Garcia Robaiña e Ana Maria Peñon Saez é rico em minúcias. O serviço de espionagem se preocupa em fornecer o maior número possível de informações. A descrição dos horários é uma praxe no texto. Logo na abertura do relato, o agente afirma que os dois cubanos chegaram ao Brasil, às 19h45 do dia 21 de setembro, procedentes de Santiago do Chile. “Na manhã seguinte, Robaiña e Ana Maria seguiram com destino a Santos/SP, onde chegaram às 11h30.” O serviço de espionagem informa que eles se dirigiram a um colégio onde se realizava o 7º Congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas (Upes). O agente infiltrado relata que ao terem os nomes anunciados, no local onde se realizava a plenária dos estudantes, os cubanos foram ovacionados aos gritos de solidariedade a Cuba. “Dirigindo-se à platéia, Ana Maria agradeceu a acolhida, falou da importância da solidariedade prestada pela juventude brasileira à causa cubana e reafirmou a determinação do povo cubano na manutenção da ‘revolução cubana’ na Ilha. Às 12h30, o grupo deixou a cidade de Santos/SP, retornando para São Paulo.” O relato afirma ainda que à tarde os ativistas visitaram um mutirão

de moradias populares em Guaianazes, bairro da periferia da zona leste da capital paulista. Rico em detalhes, o relatório informa ainda que à noite “às 21h, embarcaram no aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro/RJ, no vôo 401 – TAM”, ressalta o espião. No dia seguinte, 23 de setembro, o serviço de espionagem continuou seguindo os passos dos dois cubanos, agora no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relato, os ativistas foram ao município de Campos, onde foram recebidos pelo então prefeito Anthony Garotinho. “A Prefeitura de Campos/RJ vem firmando convênios com Havana.” Às 9h do dia 24 de setembro teriam participado de uma entrevista na sede do jornal O Globo. Uma hora e meia depois, participaram de uma audiência e, posteriormente, de um almoço com o então prefeito do Rio, Marcello Alencar. Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio, recebeu os cubanos às 15h, em audiência. Às 18h, foram recebidos por Ivo Biasi Barbieri, então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde participaram de um debate no auditório 71 da instituição, às 19h. O serviço de espionagem informa que participaram do evento cerca de 300 pessoas. Parte da intervenção do cubano também é relatada. “Roberto Robaiña iniciou seu discurso expondo as dificuldades pelas quais Cuba vêm passando após o desalinhamento com a URSS e a constante pressão do “imperialismo” norte-americano”, informa o texto do agente. Caros Amigos apurou que o cubano investigado pelos militares se tornou ministro das Relações Exteriores de Fidel Castro, anos mais tarde. A sessão solene em homenagem a amizade entre os povos brasileiro e cubano e pelo fim do bloqueio econômico a Cuba, realizada no dia 25 de setembro de 1991, na Câmara Municipal de São Paulo, que contou com a presença de Robaiña e Ana Maria foi acompanhada de perto pelo Exército. O informe 00688-A/91/E.250, de 30 de setembro de 1991, apresenta carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste e traz o nome das pessoas que compuseram a mesa da solenidade identificadas com as siglas DQJD ou SDQ. Cinco fotografias registram o evento. Além de Robaiña e Ana Maria, também é identificado o vereador da capital paulista Jamil Murad (DQJD), à época deputado estadual (PC do B-SP). Assim como os demais documentos produzidos pelo Exército, esse também determina que as informações sejam difundidas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. A origem do relatório é identificada como Outono, provavelmente o codinome do agente que acompanhou o evento. outubro 2010

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Movimentos sociais foram vigiados

por infiltrados da Polícia Civil de São Paulo O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, também foi monitorado pelos espiões do órgão que sucedeu o Dops. Assim como as três Forças Armadas, o órgão que sucedeu o antigo Dops não abandonou os métodos empregados por seu antecessor. Os agentes da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo continuaram realizando o monitoramento de movimentos sociais na década de 90. Relatórios encontrados por Caros Amigos no Arquivo Público do Estado de São Paulo revelam que os arapongas acompanharam manifestações, passeatas, assembleias sindicais, encontros de organizações políticas. O novo órgão deu atenção especial ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O agente responsável pelas duas universidades produzia geralmente três relatórios semanais descrevendo o que lia nos murais das faculdades. A Associação dos Docentes da USP (Adusp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) também foram monitorados pelo órgão. Os espiões da Polícia Civil se identificavam em seus relatórios por um código alfa-númerico. Na esmagadora maioria dos casos, os infiltrados se apresentam como Gama e acrescentam um número, que os diferenciava. A reportagem identificou, no entanto, relatórios em que alguns agentes se identificavam como Quebec e Lince. A reportagem da Caros Amigos localizou o delegado Ayrton Martini, responsável pelo Departamento de Comunicação Social ao qual estava subordinada a Divisão de Informações Sociais, que fazia esse monitoramento. Ele negou que o órgão que dirigia realizasse esse tipo de ação. “Não, não, não. No meu tempo não tinha mais isso. Eu acho que deve estar havendo um engano. Não havia mais monitoramento. No tempo do Dops, sim. No meu tempo, não. Foi a re-de-mo-cra-ti-za-ção do país”, afirma cadenciando a palavra. Hoje, ele está aposentado, mas além de exercer a direção do órgão de monitoramento, Martini conta que também atuou na Corregedoria e no Departamento de Polícia Científica. Caros Amigos também apurou que ele foi secretário de Segurança Pública em Mairiporã, município do interior de São Paulo, na gestão do PFL (Partido da Frente Liberal).

De olho na lupa Os agentes subordinados a Martini monitoraram todo tipo de assembleia ou encontro de trabalhado-

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res: bancários, médicos, aeroviários, lixeiros, aposentados, condutores, frentistas, jornalistas, metalúrgicos etc. etc. etc. Nada escapava da lupa desses agentes. As reuniões de organizações políticas também estiveram no alvo das investigações. As passeatas do Fora Collor, é claro, também foram monitoradas. Caros Amigos teve acesso a um desses relatórios. Nele, o delegado Cesar Silva de Sousa informa ao delegado responsável pela operação, Enos Beolchi Jr, que a Operação Setembro, como era conhecida a ação, envolveu 33 policiais da DIS, seis da DCC e oito da assistência policial. Ainda de acordo com o relato do delegado, foram utilizadas sete viaturas no evento. “Nossos policiais recolheram vários panfletos durante a manifestação”, ressalta Sousa, que, hoje, é delegado no 14º Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. O delegado Beolchi Jr., segundo informações da assessoria de imprensa da Delegacia Geral de Polícia, já faleceu.

Comunista O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, é citado pelo menos em três relatórios de agentes. “Um dos incitadores à massa foi Jamil Murad”, afirmam os agentes Gama 16, 22, 38 e 50, no relatório 498/94, de 7 de dezembro de 1994. O relato descreve o comportamento do parlamentar durante ato contra o leilão de privatização da Embraer, que ocorreu no centro da capital paulista. O serviço de espionagem mandou para o local pelo menos quatro espiões. Jamil também aparece no relatório 574/93, de 01 de outubro de 1993. Os infiltrados Gama 21 e Gama 29 acompanharam uma manifestação de aposentados no centro de São Paulo. No relatório, eles afirmam que o parlamentar “mencionou o ‘sucateamento’ das empresas estatais pelo governo federal e a intenção de privatização no sistema previdenciário”. Os mesmos agentes também acompanharam uma passeata organizada pela CUT contra a revisão constitucional, em setembro de 1993. “Notamos a presença de 200 pessoas dentre militantes do Partido dos Trabalhadores, do Partido Comunista do Brasil, entre outros,” destaca o relatório 569/93, de 29 de setembro de 1993, desses agentes. Eles contam que houve distribuição de panfletos e falas contrárias à revisão constitucional e

citam Jamil Murad, como um dos oradores. O parlamentar ficou surpreso ao saber que foi monitorado pelo setor de inteligência do órgão que substituiu o Dops. “Eu não sabia que isso tinha acontecido. Para mim foi uma surpresa”, frisa Jamil Murad. “Aqui não houve um processo de ruptura com o passado, como ocorreu em Portugal após a Revolução dos Cravos. Lá as forças salazaristas foram varridas das instituições. No Brasil, houve um longo processo de acomodação”, completa o vereador comunista.

Trotskistas As organizações Causa Operária e Convergência Socialista também foram monitoradas pelos espiões na década de 90. Na época, as duas eram tendências internas do PT. Os ex-candidatos à Presidência da República, Rui Costa Pimenta, e à governadora, Anaí Caproni, nas últimas eleições pelo Partido da Causa Operária (PCO) tiveram um curso de formação política da corrente política, que aconteceu em Mairiporã, monitorado. Pelo menos dois agentes, Gama 23 e Gama 73, acompanharam o curso. Os relatórios 01/90 e 12/90, ambos de 16 de junho de 1990 fornecem uma riqueza de detalhes sobre essa atividade. Até mesmo o alojamento onde os militantes se acomodariam é citado no texto. “Cada quarto continha de 4 a 6 beliches e um banheiro.” Horários de deslocamento dos dirigentes da organização também são ressaltados. O agente Gama 73 conclui seu relato afirmando que “os endereços dos militantes já foram fornecidos em relatórios anteriores”. O Delegado Geral de Polícia não quis comentar o assunto. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que “as questões referentes aos procedimentos devem ser feitas diretamente aos policiais que integravam a Polícia Civil de São Paulo na época em que os fatos teriam ocorrido”. A Delegacia Geral de Polícia nega que esse tipo de ação seja desenvolvida hoje. “A DGP esclarece também que todos os levantamentos e/ou monitoramentos, atualmente realizados pela entidade, têm natureza criminal. Ou seja, são iniciados a partir de algo que indique a existência de um crime”, diz o texto. Lúcia Rodrigues é jornalista luciarodrigues@carosamigos.com.br

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João Pedro Stedile

Ana Miranda

Plataforma mínima dos

A criança

MOVIMENTOS SOCIAIS

e a palmada

Passado o período eleitoral, agora mais do que nunca será necessário que as forças sociais se organizem, se mobilizem, para de fato pressionarmos o novo governo e construirmos uma correlação de forças na sociedade, capaz de passar dos freios ao neoliberalismo do governo Lula, para as necessárias mudanças estruturais. Durante o primeiro semestre de 2010, as várias articulações que compõem os movimentos sociais, populares e sindicais como a Coordenação dos Movimentos Sociais, a Assembléia Popular e a articulação das centrais sindicais, realizaram muitos debates e construíram propostas comuns das mudanças necessárias para o país. Tomei a liberdade de buscar entre elas o que há de comum e fundamental, que poderia ser uma plataforma mínima dos movimentos sociais brasileiros.

Política econômica

É fundamental mudar a política do superávit primário, que nenhum país desenvolvido utiliza. E utilizarmos os mais de 200 bilhões de reais anuais para os programas sociais e investimentos produtivos na sociedade. É inaceitável as atuais taxas de juros praticadas pelo Banco Central no comércio e indústria, que chegam ao absurdo de 190% ao ano, no cartão de crédito. E todos exigem a valorização dos salários e a redução da jornada de trabalho para 40 horas.

Problemas sociais

É necessário priorizar a solução imediata dos problemas sociais, crônicos, que atingem os mais pobres, sem os quais não superaremos os atuais níveis de pobreza e desigualdade e jamais construiremos uma sociedade democrática. É preciso um programa massivo de construção das 10 milhões de casas que faltam aos mais pobres. Precisamos fazer um verdadeiro mutirão nacional para erradicar o analfabetismo e ensinar as letras aos 14,2 milhões de trabalhadores adultos. É preciso garantir um amplo programa de fortalecimento do ensino médio, para superar a marca dos 38% de jo-

É urgente mudanças no regime político do país, se quisermos construir um sistema realmente democrático. As entidades da sociedade civil (OAB, CNBB, Abong, CMS, AP) já apresentaram uma proposta de reforma política, que garante participação direta da população no controle dos governos, além de maior democracia no legislativo. O povo deve ter o direito de convocar plebiscitos para decidir sobre temas importantes e revogar mandatos que não honram com seus eleitores. E precisamos garantir uma ampla democratização dos meios de comunicação para que o povo tenha acesso a informações democráticas e os movimentos e forças sociais tenham direito de ter seus jornais, rádios e canais de televisão. O atual oligopólio dos meios de comunicação não combina com democracia. Combater todas as formas de discriminação existente, por renda, cor da pele, gênero ou orientação sexual.

tar de minhas férias com os netinhos, renovada por uma vivência amorosa e feliz. Sem nenhuma palmada, sem nenhum grito. Nem sempre me obedeceram, tive de dividir com eles a autoridade e conceder-lhes direitos de decisão sobre sua própria atividade. Tudo resolvido entre conversas e negociações. Dá trabalho, mas assim me sinto bem e eles adoram e respeitam a casa da vovó. Meu primeiro trabalho neste retorno será uma palestra para professores, cujo tema, os direitos da criança, se baseia num livro que escrevi, uma carta para ser lida às crianças, sobre seus direitos e deveres. Calhou de esse livro ser publicado no aniversário da Declaração dos Direitos da Criança (encartada no livro), formulada em 1959 pela Assembleia das Nações Unidas e ratificada pelo Brasil, ou seja, nosso país se comprometeu, faz cinquenta anos, a resguardar os princípios de direito à proteção social, moradia, escola, saúde, recreação, alimentação, compreensão e amor. Sei que nesse tempo avançamos, com a luta de muitos, mas sei também que há inúmeras crianças em dificuldades e desassistidas. Casos extremos são revelados pelos jornais, estatísticas são levantadas, conquistas são discutidas ou celebradas. Este ano as crianças receberam um presente, que foi a Lei da Palmada. Lei que vai incutir na mente dos adultos, especialmente os pais, uma maneira civilizada de educar, sem a covardia de agressões contra seres indefesos. A violência física, ou verbal, não educa, apenas cria revolta interior na criança, estimula um comportamento agressivo, e pode provocar sentimentos de medo, falta de amor próprio, insegurança ou sensação de impotência. Palmada é exasperação, é raiva antiga, quem bate na criança não sabe educar. Educar é dedicação, paciência, explicação e negociação. Há muito não se admite que professores batam em seus alunos, e eles encontraram maneiras de liderar a classe, sem violência. Os mesmos pais que batem ficariam furiosos se soubessem que suas crianças levaram palmada na escola. Aliás, os professores, as pessoas mais importantes deste mundo, deveriam ter também a sua Declaração dos Direitos do Professor, ratificada por todos.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Ana Miranda é escritora.

vens que conseguem terminar, e sobretudo ampliar as vagas no ensino público superior, para muito além dos atuais vergonhosos 10% de jovens que conseguem ter direito à universidade.

Agricultura e natureza

O governo deveria priorizar a agricultura familiar e campesina, que se dedica a produção de alimentos, de forma sadia e compatível com o meio ambiente. Precisamos realizar uma reforma agrária que garanta terra a todos os que querem trabalhar nela, que hoje somam mais de 4 milhões de famílias, e quase 100 mil deles estão acampados na beira das estradas há muito tempo esperando... Precisamos banir o uso dos agrotóxicos na agricultura, que matam os seres da natureza, contaminam as águas e o solo, e envenenam nossos alimentos. Precisamos difundir as técnicas agroecológicas que conseguem produzir massivamente sem afetar o meio ambiente.

Sistema político

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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caros amigos

Ilustração: HKE

Outubro, mês das crianças, e acabo de vol-

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ensaio Gustavo Ceratti

Sem Nome. Defesa daqueles que olham, mas não querem enxergar, dos maravilhados pelas promessas de um mundo que não se cumpre, por que olhar? Nossos olhos hesitam, não querem acreditar e no final das contas são eles quem nos olham e não se enxergam entre a sociedade, mas além dela. Exemplificação disso é esse olhar indiferente, esse vazio com que os moradores de rua encaram uma máquina fotográfica, uma distância abissal de tempo e espaço, mas que paradoxalmente é parte integrante da grande maioria das cidades do planeta. A existência deles é a exemplificação da insensibilidade que nos governa e da ausência de espiritualidade que nos consome. Com o coração cego não poderíamos viver em um mundo diferente.

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Tatiana Merlino

A guerra sem

FIM

e

m 31 de agosto deste ano, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou o fim da operação militar no Iraque, dizendo que seu país “arcou com suas responsabilidades” e pagou um “preço alto” para controlar a violência e deixar o futuro da nação árabe nas mãos do seu povo. Desde a invasão, feita em 2003 por seu antecessor, George W. Bush, quase cinco mil militares foram mortos e mais de 34 mil ficaram feridos. A ação tinha como justificativa capturar um suposto arsenal de armas de destruição em massa e tirar o ditador Saddam Hussein do poder. Em sete anos e meio de guerra, tempo em que ficou mais do que provado que as intenções dos EUA no Iraque eram controlar a exploração de petróleo, estima-se que entre 97 mil e mais de 106 mil iraquianos tenham sido assassinados, de acordo com a ONG Iraq Body Count. Nesse período, mais de 3 trilhões de dólares foram gastos no Iraque, de acordo com pesquisa de Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, feita com a ex-conselheira do governo Clinton, Linda Bilmes. Apesar de Obama anunciar que, com a retirada, teria cumprido com sua promessa de campanha, segundo analistas, a guerra do Iraque não terminou. “A guerra continua. Os atentados se sucedem quase todos os dias, com dezenas de mortos e feridos. Tropas americanas ainda lá permanecem, a pretexto de treinar as do Iraque”, afirma o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira, professor titular aposentado de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília. Para ele, retirando parte das tropas do Iraque, Obama “pretendeu salvar as aparências”.

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Mercenários

Cem mil homens já saíram do Iraque, e cerca de 50 mil estadunidenses permanecem por lá. Porém, além destes, há mercenários empregados a título de “Private Security” (segurança particular), que fazem a guarda das instalações governamentais no Iraque, explica Moniz Bandeira. Segundo ele, o número de “Private Security Contractors” trabalhando para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos no Iraque aumentou 23% no segundo semestre de 2009; no Afeganistão, 29%. Os Estados Unidos contam com um total de 250 mil mercenários, como contractors, nos dois países. O prazo para a retirada total dos soldados do Iraque é 31 de dezembro de 2011. “Só então a guerra terá chegado ao seu fim. Mas, mesmo depois do fim, o Iraque terá que lutar por anos para alcançar estabilidade e paz”, explica Raed Jarrar, arquiteto e analista político iraquiano residente nos Estados Unidos. Após sete anos de ocupação, o quadro do Iraque é de caos. Raed Jarrar afirma que, hoje, o país tem um governo “bagunçado e a sociedade civil iraquiana tem sido destruída pela ocupação”. Segundo ele, três quartos da população não têm acesso a serviços básicos, como água, eletricidade, educação, saúde, esgoto. “O governo iraquiano está entre os mais fracos e mais corruptos do mundo. E Bagdá é um dos piores lugares da terra para se viver”. Segundo dados da ONU, o Iraque tem 23% da população vivendo abaixo da linha da pobreza (menos de US$ 2,20 por dia). Além disso, os vizinhos do Iraque, organizações terroristas internacionais e outras forças mundiais continuam interferindo no país. “Mas,

Apesar da retirada quase total das tropas estadunidenses do Iraque, o segundo maior produtor de petróleo do mundo continua sob controle dos Estados Unidos. Ilustrações: Cavani

mesmo com todas essas perdas, a maioria dos iraquianos não desistiu do seu país. Eles querem que os Estados Unidos partam, e eles querem trabalhar junto para consertar a destruição”, diz Jarrar. O iraquiano recorda que o estado de guerra entre Iraque e Estado Unidos já dura 20 anos, desde a primeira Guerra do Golfo, em 1991, passando pela invasão de 2003 e sete anos de violência e ocupação militar: “Milhares de iraquianos foram mortos, feridos, desalojados ou forçados a fugir e viver como refugiados. Depois de 20 anos de guerras, sanções e ocupações militares, os EUA não são vitoriosos. Eles perderam seu sangue e sua reputação no Iraque”. Além das mortes provocadas pela invasão, a violência também resultou na fuga em massa de milhares de iraquianos ao longo dos anos. Junto com o Afeganistão, o país é responsável hoje por quase metade dos refugiados do mundo sob proteção da Acnur, agência das Nações Unidas sobre o tema. Pelos seus cálculos, são 1.785.220 iraquianos, abrigados em países do próprio Oriente Médio, norte da África e Europa.

Democracia débil Para piorar, a democracia implantada no país pelos Estados Unidos é, na opinião do cientista político Moniz Bandeira, uma farsa. “O regime no Iraque é instável. E é difícil governar um país dividido em seitas islâmicas, etnias e tribos. Atualmente, não existe nenhum tipo de Estado. E não há nenhuma democracia”. Além disso, explica o professor, os Estados Unidos vão tentar manter o controle da exploração do petróleo, motivo real da guerra para derrubar Saddam Hussein.

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Mais de seis meses após as eleições legislativas ocorridas no Iraque, em 7 de março deste ano, o país vive um impasse entre partidos de grupos sunitas, xiitas, curdos e laicos para a formação de um governo de coalizão. A vitória, apertada, foi do Bloco Iraquiano, aliança xiita com apoio sunita dirigida pelo antigo chefe do governo Iyad Allawi, que obteve 91 das 325 cadeiras do Parlamento. Logo atrás, ficou a exclusivamente xiita Estado de Direito, do atual premiê interino, Nouri Al Maliki, que conquistou 89 cadeiras. A também xiita Aliança Nacional Iraquiana (ANI) obteve 70 cadeiras e outras 43 ficaram com a aliança curda. Eram necessárias 163 cadeiras para se formar um governo sem a necessidade de coalizão. No entanto, como isso não se concretizou, a coalizão mais previsível seria a formada pelo grupo de Maliki e a ANI, que precisaria de mais algumas poucas cadeiras para garantir a maioria simples e derrubar o Bloco Iraquiano. Mas a ANI recusa um segundo mandato de Maliki, que, por sua vez, recusa-se a deixar o cargo e desafia a oposição a apresentar um candidato melhor. O impasse político revela como o país ainda continua dividido entre sunitas, xiitas e curdos. “Defesa nacional” A invasão do Iraque foi justificada pela doutrina da guerra preventiva, conhecida como “Doutrina Bush”, estratégia político-militar que passou a ser adotada após os atentados de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas em nome da defesa nacional, de maneira preventiva e antecipada: atacar antes e perguntar depois. Com a chegada de Obama ao poder, havia expecta-

tivas de que fossem feitas mudanças na política externa do país. Para o iraquiano Raed Jarrar, no entanto, tal esperança não se concretizou. “Obama pode ter trazido uma nova retórica – melhor e mais inteligente – mas não trouxe uma nova doutrina e não mudou o fundamental da política externa dos EUA”. O cientista político Moniz Bandeira também acredita que Obama não aplica uma doutrina diferente. “Ele não conseguiu, como sempre previ, mudar a articulação do governo, sustentada e dominada pelos profundos interesses do complexo industrial-militar. Ele se revelou uma espécie de Bush colorido, pintado de marrom. A mim não surpreendeu. Sei perfeitamente o que é uma estrutura de poder nos países capitalistas. Nos Estados Unidos, ou mesmo no Brasil, um presidente da República não faz o que quer. Faz o que pode”.

Eleições legislativas Porém, com parte das tropas em casa, Obama cumpriu uma promessa feita em 27 de fevereiro de 2009 e agradou a maioria da população dos Estados Unidos: 62% dos eleitores são declaradamente contrários à presença militar em território iraquiano. Em novembro, a população volta às urnas para escolher os membros do Congresso estadunidense, bem como os governadores de 37 dos seus 50 Estados. As eleições legislativas não serão fáceis para os democratas, que atualmente detêm a maioria na Câmara e no Senado. Com os problemas enfrentados pelo governo, como desemprego alto, déficit das contas federais e queda do setor imobiliário, os aliados de Obama correm

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o risco de sair derrotados. Os números indicam que o partido de Obama deve perder influencia. Segundo pesquisa do instituto Zogby, os republicanos teriam 43% dos votos nas eleições de novembro, contra 41% para os democratas. Entretanto, de acordo com o cientista político José Farhat, a retirada parcial das tropas do Iraque pode ajudar os democratas nas eleições legislativas. “A retirada vai dar aos democratas o ar de salvadores da pátria dos jovens. A sociedade americana liga a ocupação do Iraque e do Afeganistão ao Vietnã. Eles acham que daqui a pouco vai chegar a rapaziada aqui, viciados em drogas, derrotados, procurando emprego e não encontrando... e vai se acabar com mais uma geração americana. É isso que o americano comum pensa”, explica.

Crise interna O jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud concorda que a retirada parcial de soldados do Iraque ajudará os democratas. Segundo ele, o partido reivindicará que Obama cumpriu sua promessa de eleição “e que as tropas remanescentes estão no Iraque para garantir uma saída ordenada em 2011 e uma transição pacífica para a democracia e a estabilidade”. Fato é que as eleições de novembro testarão o tamanho do desgaste do governo Obama. A guerra do Iraque trouxe sérias consequências para a economia estadunidense e mundial, como o aumento da dívida interna dos Estados Unidos e crescimento do preço do barril de petróleo. Para Baroud, a guerra não foi a única responsável pela atual recessão, mas é um fator a se levar em conta. “Se o dinheiro que outubro 2010

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foi gasto perseguindo vitórias no Oriente Médio e Ásia fosse investido para arrumar a economia interna quando dos primeiros sinais, o pior dos desastres teria sido evitado”. O jornalista aponta para outro aspecto preocupante: o gasto em guerras foi feito com dinheiro emprestado, aprofundando a dívida e o déficit do país, “causando uma grande perda da confiança na habilidade dos EUA pagarem suas dívidas e na sustentabilidade da economia em geral”. Os prejuízos da guerra para a economia estadunidense foram tratados em um artigo recente de Joseph Stiglitz e Linda Bilmes, no jornal The Washington Post. O texto diz, por exemplo, que, quando os EUA foram à guerra no Iraque, o preço do barril de petróleo estava em menos de 25 dólares, e que, no mercado, acreditava-se que ficaria assim. Porém, com a guerra, os preços subiram, chegando a 140 dólares o barril, em 2008. “Acreditamos que a guerra e seu impacto no Oriente Médio, maior fornecedor mundial de petróleo, foram cruciais. Não só a produção iraquiana foi interrompida, mas a instabilidade derrubou os investimentos na região. No início, ao calcular nossa estimativa, culpamos a guerra por um aumento de 5 dólares no preço do barril. Hoje, acreditamos que o impacto dela nos preços seja de 10 dólares por barril, o que significa mais 250 bilhões de dólares em custos diretos em nossa estimativa inicial”. A guerra também teria colaborado para o crescimento da dívida federal estadunidense, apontam Stiglitz e Bilmes, autores do livro “A guerra de três trilhões de dólares: o verdadeiro custo do conflito no Iraque”. Como foi a primeira vez na história dos EUA que o governo cortou impostos durante um conflito, a guerra foi totalmente financiada por empréstimos. Assim, a dívida estadunidense cresceu de 6,4 trilhões de dólares, em março de 2003, para 10 trilhões de dólares em 2008, antes da crise financeira. “Pelo menos um quarto desse aumento pode ser atribuído à guerra. E isso não inclui pagamentos por assistência médica e invalidez a veteranos, que somarão outros 500 bilhões de dólares à dívida. Em razão de duas guerras caras financiadas por dívidas, nossa situação fiscal estava em péssima forma antes mesmo da crise financeira, o que contribuiu para a recessão”. (Os pesquisadores também afirmam que a crise financeira global resultou em parte da guerra, já que preços mais altos do petróleo significaram mais gastos para importação do óleo e menos recursos gastos em casa).

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Segundo Stiglitz e Bilmes, os custos da guerra, portanto, teriam freado a economia dos EUA. “Pagar empreiteiros estrangeiros no Iraque não foi nem um estímulo de curto prazo nem base para o crescimento no longo prazo. Ao contrário, uma política monetária flexível e regulamentos frouxos mantiveram a economia andando – até a bolha imobiliária estourar, provocando a crise”. Internamente, além da crise financeira, os soldados que voltarão do Iraque aumentarão o número de desempregados, aponta o cientista político Moniz Bandeira. Além disso, o país terá que atender os milhares de soldados que devem retornar ao país mutilados, com traumas psicológicos e que perderam seus empregos. Cerca de 30% dos soldados que retornaram do Iraque sofrem de problemas mentais graves após terem presenciado mortes, mutilações, combates e a tensão constante de viver em uma zona de guerra.

Guerra de Obama Com o Iraque supostamente “sob controle”, analistas acreditam que os Estados Unidos passarão a investir suas forças no Afeganistão e a disputar influência na Ásia Central. As movimentações do governo estadunidense dos últimos anos – como o envio de mais tropas ao país e a aprovação de mais verbas para a guerra – deixam evidente tal prioridade. Inclusive muitos dos soldados que deixaram o Iraque foram mandados justamente para o país centro-asiático. O Afeganistão já vem sendo chamado constantemente como a guerra de Obama. O jornalista Ramzy Baroud afirma que é triste ver que todo presidente dos EUA parece ter sua própria guerra, “dando a impressão de que o país está em estado de guerra perpétuo”. “O centro da realidade é o Iraque, e como ele já está dominado, só falta o Afeganistão”, aponta o cientista político José Farhat, que acredita que, por meio do Afeganistão, os Estados Unidos continuarão a ser uma ameaça ao Irã. Além disso, também aumentarão sua área de influência sobre os estados centro-asiáticos. “Dominando o Afeganistão, eles não deixarão que o Paquistão se transforme num país dos talebãs”, explica Farhat. Segundo ele, se os EUA dominarem o Paquistão e o Afeganistão, começarão a olhar “para cima, para o norte, onde estão todos os países islâmicos da ex-União Soviética, alguns deles ricos em petróleo, outros que são passagem dos oleodutos que eles possam dominar”. Ou seja, o “caminho do petróleo”. Vale lembrar que a região também abriga significativas jazidas de gás natural.

Falta de perspectiva Porém, será difícil vencer a guerra no Afeganistão, aponta Moniz Bandeira. “Lá, os Estados Unidos e as tropas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) estão chafurdadas. Não há perspectiva de vitória”. Dos 2.100 soldados da Otan mortos de 2001 até outubro de 2010, cerca de 1.300 são estadunidenses. Somente nos dois anos do governo de Obama, tombaram cerca de 1.053, mais do que nos sete anos anteriores. Além disso, a guerra no Afeganistão resultou num fortalecimento do fundamentalismo islâmico no país. “A guerra no Afeganistão, no Iraque e a questão da Palestina só contribuíram e contribuem para fortalecer o fundamentalismo islâmico e o terrorismo”. Mas, acredita Moniz Bandeira, os Estados Unidos sempre necessitaram de um inimigo. “Além dos interesses econômicos, políticos, geopolíticos e estratégicos do Império, a guerra está enraizada na mentalidade de grande parte do povo americano”. Com a saída das tropas dos EUA do Iraque, especulou-se que o país estaria se preparando para atacar o Irã. Em agosto deste ano, um alto comando do Pentágono disse que os Estados Unidos contam com um plano de ataque contra o país persa caso haja necessidade de usá-lo para evitar que seu governo construa uma arma nuclear. Para os analistas entrevistados, não há nenhuma chance do governo Obama ordenar o ataque ao país de Mahmoud Ahmadinejad. Moniz Bandeira lembra que o Irã está armado, é um país muito grande, com cerca de 1,5 milhão de quilômetros quadrados, cheio de cavernas, onde as instalações nucleares estão escondidas e que não podem ser detectadas pelos satélites e outros meios eletrônicos. Sua população é de cerca de 66,5 milhões de habitantes, mais ou menos o dobro da população do Afeganistão (28,4 milhões de habitantes) e imensamente maior que a de Israel (7,2 milhões). “E, mesmo sem bomba nuclear, o Irã, com mísseis e bombas convencionais, pode devastar Israel, um país com apenas 22 mil quilômetros quadrados, e, também, causar milhares de mortos, bombardeando as bases militares dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Ademais, os Estados Unidos, altamente endividados, não mais estão em condições financeiras de investir em outras guerras. Aceleraria a decadência do Império”, conclui Moniz Bandeira. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Irã: conflito entre arcaico e moderno

Caros Amigos - As autoras são duas mulheres ocidentais escrevendo sobre o Irã e sua questão feminina. Como foi isso? Márcia Camargos - É extremamente complexo porque é como se a gente estivesse tentando levantar esse chador e ver o que tem debaixo. Mas é um desafio muito grande porque é impossível se desvestir do olhar de mulher ocidental do século 21 vivendo em São Paulo. Mas a gente procurou tentar evitar um olhar estereotipado, preconceituoso, ou com aquela noção de que o ocidente é superior ao oriente. Claro que você não pode se colocar no lugar delas porque a sua educação é outra. É uma falsa premissa, mas era um desafio o tempo todo. Se elas estão lutando por maiores liberdades individuais, que realmente estão, e sofrem uma série de opressões que eu senti na pele, presenciei, por outro lado elas não querem abrir mão da religião islâmica, não querem se tornar umas novaiorquinas ocidentais. Elas têm orgulho das suas tradições, dos seus princípios éticos, morais, religiosos. É um desafio enorme se conseguir fazer um relato minimamente equilibrado respeitoso, sem cair nas armadilhas dos estereótipos e clichês. O Irã é uma sociedade cheia de contradições. Existe a polícia de comportamento, as mulheres têm que se sentar no fundo do ônibus, e ao mesmo tempo elas ocupam 67% das vagas das universidades. Eu queria que você falasse sobre isso... Teerã é uma cidade eivada de contradições porque há o regime teocrático com normas mui-

Mulheres reunidas durante reza, vestem chador, manto iraniano usado para cobrir o corpo feminino da cabeça aos pés.

to duras e restritas que regulam esse comportamento, e ao mesmo tempo é uma sociedade cosmopolita, moderna, plugada em todas as redes da internet. Então, é impossível manter aquilo fechado. Há esse contato com o mundo exterior queira ou não o governo. A maioria das vagas na universidade é ocupada pelas mulheres, mais de 70% da população tem menos de 30 anos, então são pessoas que nasceram depois da revolução islâmica, que não conheceram o regime corrupto do xá Reza Pahlevi e nem os primeiros nos da revolução islâmica. Há uma ânsia de mudança muito forte, embora eles sintam esse orgulho das tradições e raízes persas.

Qual é a sua impressão do Irã sob Ahmadinejad? Não é o Irã sob ele, porque ele tem que se submeter a forças muito maiores, que são os aiatolás, os conselho de guardiões da revolução, então mesmo se o [Mirhossein] Mousavi tivesse sido eleito teria sido uma grande decepção porque ele não teria conseguido implementar mínimas mudanças. Então, o fato de Ahmadinejad continuar ali é porque ele está sendo mantido e legitimado por forças que estão muito acima dele, os tais guardiões da revolução. Existe uma trinca dos aiatolás que detem realmente esse poder. É um regime teocrático e enquanto isso não mudar o que se pode fazer?. Então tem que haver uma mudança no seio desse poder, dessa teocracia. Mas eu acho que esse país é um caldeirão prestes a explodir, não só há todo esse contato com esse mundo exterior – apesar de todas as tentativas de brecar isso – é o país que mais tem proporcionalmente redes de relações sociais, muito maiores do que na China, por exemplo, acho que eles são os terceiros maiores usuários de facebook, blogs, sites. Há, também, sanções econômicas, crise, desemprego, e isso está acuando o regime. Há muita insatisfação com o regime teocrático? Imensa, sobretudo nos grandes centros urbanos, entre a juventude, já que eles formam 70% do país, pode se dizer que a maioria dos iranianos está insatisfeito com a política interna, há o cerceamento das liberdades individuais, violações de direitos

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humanos, embora apóie o governo na questão das relações externas do programa nuclear. Eles acham que o mundo exterior não tem direito de interferir nesse aspecto e por outro lado há uma imensa insatisfação. Isso é visível, nas conversas, antes das eleições fraudulentas. As meninas se vestem no limite do permissível, elas tentam parecer modernas e atuais dentro daquelas regras muito fortes.

Como você vê a polêmica internacional em torno do caso da Sakineh (condenada à morte por adultério), que teve repercussão grande no Brasil? Tem dois lados. Um que ela foi usada no nível doméstico, como um exemplo de um governo que está acuado, sofrendo rupturas internas, uma intensa crise econômica e a oposição de grande parte da população. O caso dela foi usado como um bode expiatório para o governo mostrar que tem a força, para aterrorizar os opositores e internamente se firmar como um poder de fato, ainda que de forma truculenta e totalmente fora de tempo e lugar. Em pleno século 21, usar uma tática medieval é inadmissível e que também vai contra os ensinamentos do alcorão, que prega tolerância, perdão. No fundo isso mostra que o governo estava fazendo um uso muito peculiar do alcorão, de acordo com as suas necessidades políticas e não lendo ao pé da letra. E em nível internacional, claro que a gente tem que condenar esse ato, não há quem concorde, mas não podemos cair na armadilha porque é muito oportuno para os EUA e potencias europeias demonizarem o Irã tendo em vista sanções econômicas e até ações futuras, aos moldes do que foi feito no Iraque. Eles querem ganhar a opinião pública para justificar ações que não tem nada a ver com direitos humanos, eles não estão preocupados com isso. Eles mesmos violam direitos humanos e não condenam, por exemplo, a Arábia Saudita, que decapita mulheres, a China, que diariamente decapita dezenas de opositores, mas são aliados do ocidente. É um peso e duas medidas. O Irã é o demônio condenável e os outros não? Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br outubro 2010

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foto: marcia camargos

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oucos sabem que o Irã não é árabe e sim persa. Que a língua falada no país é o farsi e não o árabe. Lá, as mulheres são obrigadas a se sentar no fundo dos ônibus, mas, ao mesmo tempo, ocupam 67% das vagas nas universidades. É nesse país do Oriente Médio que está a cidade sagrada de Pasárgada, conhecida por nós pelo verso de Manuel Bandeira. Com o objetivo de desvelar as contradições existentes na sociedade iraquiana, Adriana Carranca, jornalista e Márcia Camargos, escritora e historiadora, escreveram o recém-lançado “O Irã sob o chador”, resultado de viagens feitas por ambas em momentos diferentes. Lá, encontraram uma sociedade que vive um conflito entre “renovação e tradição, arcaico e moderno”, conta Márcia Camargos, nesta entrevista.

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Bárbara Mengardo

Assédio da publicidade em cima das crianças cil fixar uma marca na cabeça de uma criança do que na de um adulto, então vale tudo para chamar a atenção dos pequenos: animações, atores mirins, jogadores de futebol, apresentadoras etc. De bonecas a planos de celular, tudo deve focar a criança. Estudiosos ligam a prática de assistir muita televisão durante a infância ao grande número de casos de obesidade infantil, ao estímulo à violência, consumismo e perda do potencial criativo das crianças. Tudo isso está ligado a um mercado milionário e perverso: o da publicidade infantil.

Peça para a mamãe

Sem regulamentação adequada, agências de publicidade utilizam crianças para vender de brinquedos a poupanças bancárias, incentivando o consumismo infantil. 30

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m grupo de crianças está sentado no chão. Na frente delas, uma mulher segura dois papéis, e fala em voz alta: “Aqui tem dois papéis, em um está escrito brincar, e em outro comprar”. Mal ela termina de falar, coloca os papéis no chão, e as crianças se debruçam para escolher qual dos dois elas mais gostam: 3 colocam a mão sobre o papel escrito comprar, 2 sobre o brincar. A cena descrita acima integra o documentário “Criança, a alma do negócio”, dirigido por Estela Renner. Chocante, o filme mostra uma realidade à qual muitos não estão atentos: a sociedade em que vivemos, por meio principalmente da publicidade, criou uma geração de crianças fanáticas por consumo, que estão deixando para trás aspectos importantes da infância para se dedicar a um hábito que antes era próprio dos adultos. Para o mercado publicitário, é muito mais fá-

Segundo dados do Ibope de 2007, o Brasil é o país onde as crianças passam mais tempo em frente à televisão: quatro horas, 50 minutos e 11 segundos por dia. O dado fica ainda mais preocupante com a informação da advogada Isabella Henriques, coordenadora do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, ONG que, entre outras ações, desenvolve atividades em torno da questão da publicidade voltada para crianças: “Em média, até os seis ou oito anos de idade as crianças não conseguem fazer a distinção entre o que é uma mensagem comercial e o que é o conteúdo de entretenimento. Ela está lá sentadinha vendo o desenho animado, ele é interrompido pela publicidade e a criança não entende muito aquilo, para ela é tudo conteúdo de entretenimento”. Utilizando estes dados, o mercado publicitário conseguiu tornar a publicidade infantil muito mais sutil. Não são mais veiculadas, por exemplo, propagandas em que os personagens digam “peça para a mamãe comprar”. Ao invés disso, as empresas bolaram uma série de mecanismos para chamar a atenção e até confundir as crianças. Para acentuar essa confusão entre programa e publicidade, a maioria dos produtos voltados para o público infantil utiliza personagens de filmes, desenhos ou programas infantis. Muitas vezes os programas são cortados e posteriormente sucedidos por propagandas que utilizam os mesmos personagens que estavam sendo exibidos até então. Isabella cita como exemplo os desenhos da Barbie, que visualmente são muito parecidos com as propagandas da boneca, e às vezes são veiculados um em seguida do outro. Na televisão ainda é comum a veiculação de propagandas que são iniciadas por desenhos, para depois mostrarem os produtos que serão vendidos novamente. A Barbie é uma das campeãs deste tipo de publicidade. Com isso, as empresas tentam emendar a mensagem publicitária aos desenhos infantis.

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A televisão, entretanto, não é o único meio que aposta nesta possível confusão. “Quando existe um merchandising que é na internet, é mais difícil para a criança entender que aquilo é uma mensagem comercial. Só com 6, 8 anos de idade ela já consegue fazer uma distinção: ‘isto é o joguinho da Internet que eu estou jogando e isso é um banner’, mas ela não consegue entender que por trás da publicidade existe todo um mercado querendo escoar a produção”, afirma Isabella. Ao jogar na Internet as crianças são bombardeadas com publicidades, e muitas vezes ainda acessam jogos criados pelas próprias empresas, como forma de divulgar seus produtos. Um exemplo disso é o site do achocolatado Toddynho, onde estão disponíveis diversos jogos. Em um deles é possível comandar o personagem da marca em uma maratona, e para aumentar sua velocidade é preciso pegar as caixas de Toddynho que um personagem joga. Nem as revistas em quadrinhos escapam desta lógica. Nas revistinhas da Mônica, por exemplo, muitos dos produtos anunciados no interior da publicação utilizam os personagens das histórias. “Você está lendo a história e quando acaba tem um comercial: ‘Você precisa da piscininha da Mônica, você precisa da sandalinha da Magali’. É o personagem que a criança acredita chamando ao consumo. Às vezes a publicidade é feita também no formato de história em quadrinhos”, diz Isabella. A publicidade voltada ao público infantil chegou inclusive às escolas, conforme explica Isabella: “O instituto Alana recebe uma série de denúncias de, por exemplo, uma marca de achocolatado que vai para dentro da escola ensinar o que é alimentação saudável, mas no final todos ganham um achocolatado”. Uma das características que fazem com que as crianças sejam mais vulneráveis à publicidade é o fato de elas assimilarem as mensagens no sentido literal. Assim, quando uma marca faz uma propaganda em que um menino consegue ser mais rápido porque usa uma determinada sandália, as crianças que estão assistindo àquilo provavelmente acreditarão naquela mensagem. “A criança não entende o caráter de persuasão da publicidade”, simplifica Isabella.

desenhos e jogadores Não são só as marcas que fazem produtos para crianças que se aproveitam deste público. O mercado já percebeu que é muito mais fácil convencer uma criança a comprar do que um adulto, e se utilizam disto para vender desde roupas e aparelhos eletrônico, até poupanças bancárias e inseticidas. É só ligar a televisão e comprovar: é muito grande o número de marcas que fazem propagandas utilizando desenhos animados, crianças ou oferecendo brindes. “As crianças estão recebendo muita publicidade de produtos que não são voltados para o mercado infantil, mas que anunciam também para as crianças. São utilizados recursos que são super estudados pelo mercado publicitário para atingir esse público”, afirma Isabella. A operadora de celular Claro, por exemplo,

produz constantemente peças publicitárias encenadas apenas por crianças, e que utilizam linguagem infantil. “Existem pais que chegam em casa e falam: ‘Vou trocar meu celular” e o filho já sabe qual a marca mais legal, qual o modelo, plano”, diz Isabella. Outra técnica é utilizar animação para chamar a atenção das crianças. Neste ponto também são inúmeros os exemplos, desde a marca de papel toalha que utiliza um elefantinho até o inseticida que tem como mascote uma baratinha. O último, inclusive, não deve ser manuseado por crianças, mas mesmo assim utiliza elementos que podem ser atrativos a elas. Oferecer brindes também é uma das maneiras de tentar fazer com que as crianças convençam seus pais a comprarem determinados produtos. Tornou-se comum que produtos venham acompanhados de brinquedos, e que suas propagandas sejam voltadas para o público infantil. É o caso da Caixa Econômica Federal, que fez uma linha de monstros de brinquedo que poderiam ser adquiridos ao se abrir uma poupança. As propagandas e cartazes da promoção eram feitos com animações e continham fotos de crianças. Os brindes se tornam ainda mais problemáticos quando incitam uma criança a consumir determinado produto para conseguir completar a sua coleção. Essa prática é bastante comum em redes de Fast-Food, mas Isabella cita um exemplo bastante alarmante desta prática: “A Sadia fez, na época dos jogos pan-americanos, uma coleção de bichos de pelúcia em que cada um tinha a roupa de um esporte e também chamava as crianças para fazer essa coleção. Para você ter a coleção precisava consumir 25 embalagens de produtos Sadia em um período de 20 dias”. Para chamar a atenção das crianças, ainda é preocupante que as empresas convidem ídolos do público infantil para atuarem nas propagandas. Jogadores de futebol, apresentadoras e outras figuras tentam vender todo o tipo de produto, em especial, no caso dos jogadores, bebida alcoólica. Todo esse esforço tem um resultado. Pesquisa feita em 2003 pela empresa InterScience mostrou que 80% dos pais admitem que os filhos interferem nas compras de casa, não só de brinquedos, mas principalmente de alimentos e também de roupas. O estudo faz ainda uma comparação com o ano de 2000, quando a mesma pesquisa mostrou que as crianças influenciavam em 71%. Essa influência acontece de maneiras distintas. A maioria das crianças pede os produtos para os pais, e um número menor pede o produto de uma marca específica. Em muitos casos a criança não pede, mas ao passar pelas prateleiras indica algo que viu em uma propaganda, e como os pais não têm preferência por uma determinada marca, escolhem a que o filho apontou. Assim, supondo-se que uma mãe ou pai vá com seu filho ao mercado, e se detenha para comprar papel-toalha, a criança vai ver uma marca, lembrar do comercial do elefantinho azul, e apontar aquele produto. Caso a mãe não tenha uma marca preferida, talvez leve aquela.

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Caveirão de brinquedo Não é de agora que a publicidade usa e abusa das crianças para vender, entretanto, enquanto as empresas conseguiram “evoluir” e desenvolver novas técnicas para aumentar suas vendas, a legislação brasileira continuou permissiva, e as conseqüências disso são visíveis. Cada vez mais as crianças, que conviveram desde que nasceram com a televisão e consequentemente com a publicidade, apresentam características de adultos consumistas, e se comportam em função do consumo. Devido a seu senso crítico ainda não definido, as crianças acreditam nas propagandas quando estas afirmam que, para ser feliz, é preciso consumir. A publicidade conseguiu embutir na cabeça das crianças valores que antes eram dedicados somente aos adultos, e não podemos desvincular este fato com os crescentes casos de obesidade infantil, consumo precoce de tabaco e álcool, banalização da violência, erotização, perda da capacidade imaginativa etc. Segundo levantamento sobre o estado nutricional da população feito pelo IBGE entre 2008 e 2009, 1 entre cada 3 crianças brasileiras está acima do peso. É possível cruzar estes dados com os da pesquisa feita em 2006 pela Anvisa, que afirmava que 80% da publicidade de alimentos voltados para as crianças são de alimentos calóricos, com alto teor de açúcar, gordura e pobres em nutrientes. Claro que o problema do excesso de peso infantil também está ligado a outros fatores, como a frequência com que as crianças realizam atividades físicas, mas é necessário lembrar que a publicidade é a principal maneira pela qual as crianças conhecem determinados alimentos, estes, em sua grande maioria, não saudáveis. Outro fator associado ao consumismo é a violência, dado que uma pessoa que acha que só conseguirá ser feliz comprando poderá fazer qualquer coisa para este fim. Isabella relaciona: “Em um país como o nosso, que tem todas as diferenças sócio-econômicas, levarmos essa mensagem para as crianças é potencializar cada vez mais a violência. Hoje nós sabemos que na Fundação Casa, por exemplo, 80% dos delitos cometidos são patrimoniais, ou seja, delitos que tratam de tráfico de drogas, roubo e furto. Eu já tive oportunidade de ver resultados de pesquisas e trabalhos acadêmicos que mostram que estes jovens e crianças acabam entrando no mundo da criminalidade por uma série de fatores, entre eles a questão do consumo. Claro que a questão da violência é muito mais complexa, mas este fator interfere”. Outras vezes, a questão da violência é muito mais clara. Em agosto deste ano, a fabricante de brinquedos Roma Jensen veiculou no Rio de Janeiro uma publicidade do brinquedo Roma Tático Blindado. O comercial era iniciado com dois meninos correndo dentro de uma casa, um deles fala ao outro “precisamos de reforços”. Na cena seguinte, os dois garotos brincam com o produto anunciado: um caveirão (veículo blindado utilizado pelo BOPE para invadir favelas cariocas e matar supostos criminosos), que inclui dois policiais outubro 2010

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armados de brinquedo. Enquanto isso, o narrador anuncia: “Com o Tático Blindado você tem todo o suporte que precisa para proteger a cidade”.

O sonho está ali As empresas que têm como estratégia atrair o púbico infantil se utilizam da premissa de que é possível vender mais se os consumidores forem formados mais cedo, e isso prejudica em muito as crianças. O psicólogo Yves de La Taille coloca a sua opinião: “O principal valor associado ao consumo é a vaidade. Você consome muitas vezes não para ter, mas para mostrar”. A vaidade, explorada principalmente nas propagandas voltada para meninas, é talvez a principal responsável pela erotização precoce, fenômeno presente há muitos anos na nossa sociedade. Devido ao apelo da publicidade e também de muitos programas de televisão, as crianças têm adquirido características típicas de adultos, como o uso de salto alto, roupas apertadas e curtas, maquiagens etc. Muitas crianças atualmente pautam suas relações a partir dos bens de consumo que possuem, sempre incentivadas pela publicidade. Muitas propagandas mostram crianças que possuem um determinado produto e são mais fortes, mais rápidas ou têm mais amigos, e as crianças levam essa mensagem ao pé da letra, pois não conseguem entender que aquela é uma estratégia de marketing para estimular a venda. Conforme vão crescendo, as crianças moldam seus pensamentos e atitudes a partir destas mensagens, que não estimulam a criatividade ou originalidade. A psicóloga Roseli Goffman, integrante do Conselho Federal de Psicologia, resume: “O anuncio dirigido para crianças formata a subjetividade, formata comportamentos, formata escolhas e cria estereótipos. Para pensar é preciso de uma ideia, se você está cercado por um mundo de imagens e estereótipos, a sua possibilidade de pensar e produzir uma ideia original é muito limitada”. Para muitos estudiosos, essa dificuldade em criar algo novo chega tão fundo nas crianças que afeta sua capacidade de brincar, já que imaginação é fundamental durante as brincadeiras. “A TV concorre com atividades ativas. Na televisão as crianças assistem o que os outros preparam para você”, afirma Yves. A psicóloga Ana Lúcia Villela, fundadora do Instituto Alana, exemplifica as consequências dessa limitação causada, em partes, pela televisão e consumismo em uma entrevista publicada no livro Criança e Consumo - A importância do brincar, produzido pelo Instituto Alana: “Eu dava aulas e ficava muito irritada com a influência da mídia no comportamento infantil. As crianças falavam: ‘vamos brincar de Pokémon?’ E eu entrava na delas. Elas começavam a brincar, e eu observava que havia uma limitação: ‘Não é assim, você não viu ontem como era? O Pokémon não faz isso!’. As crianças ficavam circunscritas à imitação fiel do que viam e não criavam nada em cima daquilo”. “Com essas imagens, essas coisas coloridas que as crianças vão recebendo desde cedo ela não precisam nem sonhar, o sonho está ali” completa Roseli.

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Regulamentação Muitos países em todo o mundo já regulamentaram a relação entre infância e publicidade, e através de leis conseguiram fazer o que o Brasil não fez: combater as grandes empresas e proibir que as crianças sejam utilizadas como promotores de venda. Na Bélgica e Dinamarca, por exemplo, é proibida a publicidade durante programas infantis e cinco minutos antes ou depois destes. Nos Estados Unidos há um limite de 10 minutos e 30 segundos de publicidade por hora nos finais de semana e 12 minutos por hora nos dias de semana. Na Holanda não é permitido às televisões públicas interromperem com publicidade programas dirigidos às crianças menores de 12 anos, e na Grécia é proibida a publicidade de brinquedos na televisão no horário das 7h às 22h. Outros países têm legislações ainda mais detalhadas. Na Inglaterra, por exemplo, é proibido o uso de mascotes em publicidade de alimentos e efeitos especiais para insinuar que o produto faz mais do que pode. Caso o produto seja de uso manual, deve ficar claro para a criança que ele não funciona sozinho, e é proibido insinuar que uma criança será inferior a outra se não usar o produto ou serviço anunciado. É proibida ainda a veiculação de publicidade voltada para crianças de produtos ou serviços via telefone, correio, celular, internet etc. No Canadá, além de ser proibida a publicidade de produtos não destinados às crianças em programas infantis, a publicidade não pode sugerir a compra pela criança, nem levá-la a pedir para seus pais que comprem. Não pode haver publicidade com bonecos, pessoas ou personagens conhecidos, e a propaganda não pode mostrar uso inadequado do produto, como jogar um bombom para cima e pegá-lo com a boca. Em caso de alimentos, deve ser mostrado o real valor nutritivo do produto, e o custo dos produtos não deve ser minimizado utilizando-se palavras como “somente”, “apenas”, “preço de barganha”, “os menores preços” etc. No Brasil, entretanto, o único marco regulatório que visa distanciar publicidade e criança é o Código de Defesa do Consumidor, que diz, no parágrafo 2 do Artigo 36: “É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua segurança”. Outro órgão que eventualmente age no sentido de impedir a publicidade abusiva voltada para crianças é o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), formado por entidades e empresas ligadas à publicidade. O órgão não tem poder de multar, elaborar leis ou retirar propagandas do ar, mas emite avisos para as agências publicitárias, veículos de comunicação, anunciantes etc. Em geral, quando o CONAR emite uma recomendação para que uma propaganda seja retirada ou modificada, as empresas acatam, mas isso não é suficiente por alguns motivos. Primeiramente porque até o CONAR fazer a notificação, o comercial já

foi exibido diversas vezes, já influenciou o comportamento e divulgou a mensagem que gostaria. Roseli aponta mais dois problemas: “O CONAR são os próprios anunciantes, o que nós entendemos que é mais ou menos como colocar o lobo para cuidar das ovelhas. Além disso, a atuação mais intensa dele é no sudeste, no eixo Rio-São Paulo. Sabemos que existe, por exemplo, programações de rádio no Brasil que veiculam inclusive propaganda de cachaça a qualquer horário”. Aqui, diversas organizações e partidos já tentaram criar leis para regulamentar a situação a qual chegamos, mas nenhuma obteve sucesso. Atualmente, dezenas de projetos de leis vagam pelas instâncias burocráticas do nosso sistema legislativo, mas não são aprovadas pelo peso que as empresas exercem no Brasil. “O mercado não quer que se discuta a adequação da mensagem comercial pelo judiciário, a alegação que eles fazem é que ‘o juiz não vai entender, o que ele sabe sobre isso?’. Mas o mercado também não quer lei, não quer que o poder legislativo discuta o assunto. Eles dizem: ‘não precisa de lei, pode deixar que o CONAR faz e fiscaliza as regras’’, afirma Isabella. A advogada explica o argumento utilizado para barrar a regulamentação: “O Brasil é o único país em que se diz que a restrição da publicidade implicaria no cerceamento da liberdade de expressão, mas a publicidade não é uma livre expressão do pensamento, ela tem o objetivo de vender, então ela não se enquadraria nestas manifestações do pensamento, como o jornalismo, para receber essa proteção que a liberdade de expressão constitucional traz”. Em junho deste ano, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) publicou a resolução número 24, que se aproxima de uma regulamentação neste setor. Segundo a resolução, que deve ser posta em prática até meados deste mês, as empresas devem informar em suas propagandas se o alimento divulgado contém muito açúcar, gordura ou sódio. Esta resolução segue os moldes do que é feito atualmente nas propagandas de bebidas alcoólicas. As informações sobre o excesso de gordura, açúcar e sódio deverão ser pronunciadas por um dos personagens da propaganda ou exibidas ao final desta, seguido dos problemas que estes ingredientes podem causar, como obesidade, cáries, problemas no coração e pressão alta. Apesar de ser um importante passo para que a sociedade entre em contato com as informações nutricionais de determinados produtos, é provável que a medida não surta nenhum efeito sobre as crianças. Para Roseli, é extremamente urgente que seja regularizada a situação que se instalou no Brasil, ou nossas crianças perderão mais do que já perderam até agora. “Essas regras que o Estado deveria seguir e aplicar são condutas para preservar a criança brasileira de uma vida banal. Porque a vida no pensamento único é uma vida banal, sem originalidade”. Barbara Mengardo é estudante de jornalismo.

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Eduardo Matarazzo Suplicy

porca miséria! Glauco Mattoso

[SONETO 3415]

tração for vaginal? Si for anal ou oral ainda seria “attemptado violento ao pudor” ou bobagem que o valha? Existe a figura juridica do “sequestro relampago” ou é ficção da chronica policial? Deante de tantas incertezas, ou “inseguranças juridicas”, como dizem os advogados, não admira que neste paiz existam leis que “pegam” e que “não pegam”. Como sabermos si foi abbreviado um prazo de “desincompatibilização” ou si a ficha limpa vale para o passado, o presente ou o futuro? Mysterio!

Convidado por meus amigos do Hip-Hop – Mano Brown e o Ferréz – e os responsáveis pelo Projeto Periferia Ativa/100% Favela, assisti o Festival da Godói que acontece, há dez anos, na Rua Adoasto de Godói, continuação da Avenida Albert Sabin, no Capão Redondo, na cidade de São Paulo. Lá há 38 anos se instalou a Favela da Godói. No primeiro final de semana após o 7 de setembro, as famílias cercam os três últimos quarteirões da rua, para organizar uma quermesse e festa beneficente em prol do Projeto Periferia Ativa, que reúne uma brinquedoteca, uma biblioteca – com 4.000 livros – e salas de computadores utilizados por crianças e jovens da comunidade. De suas portas e janelas, ou de barracas montadas em frente às casas, as famílias vendem sanduíches, doces e salgados, pipoca, algodão doce, sucos e refrigerantes. A festa começa na sexta à tarde e só termina na madrugada de domingo. Ali se reúnem mais de cinco mil pessoas, vindas do Capão Redondo e bairros vizinhos, para assistir aos mais diversos grupos de Hip-Hop, Rap e Música Popular Brasileira da região e convidados especiais. A festa era sempre feita sem quaisquer formalidades e tudo corria muito bem. Nesse ano, entretanto, uma reportagem do Sistema Brasileiro de Televisão - SBT sobre as festas funk, na zona sul do município de São Paulo, preocupou as autoridades e colocou em risco a realização do evento. Em razão disso, exigiram documentos que garantissem a segurança. Sanadas essas exigências e após apelos ao prefeito Gilberto Kassab e ao Secretário da Segurança, Antonio Ferreira Pinto, a Festa da Godói foi realizada, entre os dias 10 e 12 de setembro, com sucesso e sem problemas. Pude testemunhar como todos vibraram e dançaram ao ouvir Tref, Negredo, Império Z/O, DMN, RDG, Brothers of Brazil - Supla e João Suplicy, Leci Brandão, uma das convidadas especiais, Ferréz e o grupo Racionais MCs, sempre mais esperado e querido. Eles costumam cantar por cerca de hora e meia, quando o sol já está raiando. O que mais me impressiona é como aqueles jovens acompanham e cantam juntos as letras de Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e Kl Jay, como “O Homem na Estrada” e “Vida Loka”. Se quisermos compreender o sentimento dos moços de nossa periferia é importante participarmos de eventos como esse.

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Mas que coisa! Existe gente que não sabe onde começa e onde acaba, exactamente, cada verso! Aguentem essa! Não consegue, nem que tente, escandir e, nem que meça pela rima, não vê, rente ao final! Preguiça ou pressa? Nunca acertam o logar de quebrar ou não quebrar toda linha que eu componha! Eu encurto o verso, e nada! Acho, impressa, a rima errada e de novo broxo a bronha! Recemsahido em livro o meu “Tractado de versificação” (que, para facilitar, não está graphado no systema que ora adopto), ainda tenho sido, ironicamente, victima da ignorancia poetica dos revisores e diagrammadores, que cortam meus versos onde bem (ou mal) entendem, como ja occorreu nesta mesma columna. Contratempos dessa ordem me levam a reflectir: que adeanta o legislador zelar pela constitucionalidade do seu texto, si no proprio “Diario Official” o que foi approvado sae, como elle diz, “eivado de vicios” que não commettera ao redigil-o? A reflexão vae mais longe: até que poncto os leitores percebem o que sahiu errado? A immensa maioria ignora o que está ou não em vigor, mais ainda si uma lei seria, de facto, legal. Até ja fizeram um teste, restaurando a escravatura, a monarchia e a reannexação do Brasil como colonia portugueza, e varios parlamentares assignaram o projecto sem lel-o, justamente porque, si o lessem, nem notariam o absurdo, tamanho o seu despreparo. Que dizer do cidadão commum? Quem garante que a palmada no bumbum dum pestinha está inconstitucionalissimamente configurada? Alguem sabe si o adulterio é crime? E o estupro, só existe si a pene-

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Ilustração: bruno paes

Dez Anos do Festival da Godói

RATTA QUE EMPATA

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Débora Prado

Além de enchentes, desabamentos, os moradores das favelas de São Paulo enfrentam um novo problema: o aumento assustador dos casos de incêndios. Não há provas, mas existe a suspeita de que alguns tenham sido provocados por interesses imobiliários. Fotos: Joelma Couto.

FAVELAS INCENDIADAS

Onde há fumaça, há fogo

n

o fim do dia, me deram logo 3 injeções e o médico perguntou como é que eu tava lá em pé. Mas, na hora do fogo a gente nem pensa nisso, né?”, dizia rindo um morador que perdeu suas doses de insulina no incêndio da favela Real Parque e quase teve uma crise de diabetes. Ele conta que também perdeu os eletrodomésticos recém comprados via crediário e só sobraram as dívidas. Os moradores das favelas têm um cotidiano estranho para as classes com mais renda em São Paulo. Não é só pelas condições precárias e a difícil luta pelo direito a uma moradia digna. Nem pela exclusão social, preconceito, presença da tropa de choque na vizinhança ou pelo descaso do poder público. É também pela convivência constante com incêndios, que estão fazendo desses moradores especialistas na contenção de fogo. Segundo dados do Corpo de Bombeiros de São Paulo, a cidade registrou 113 incêndios em favelas desde o início do ano até a última semana de setembro e, enquanto esta reportagem era apurada, um novo incêndio deixou cerca de 1200 pessoas sem casa na Real Parque, na zona sul. No dia 24 de setembro, uma sexta-feira, depois de dois focos de incêndio controlados por moradores, um terceiro queimou centenas de barracos na comunidade, além de atingir dois alojamentos ‘provisórios’ em que dezenas de famílias viviam desde outro incêndio que aconteceu há 8 anos. “Foi muito estranho, o fogo lambeu tudo muito ligeiro, parecia uma boca engolindo os barracos”, relata um morador. Uma moradora da favela Água Espraiada,

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zona sul, conta que o último incêndio “ainda não venceu um mês” e deixou 83 famílias sem moradia. “A causa do incêndio mesmo nunca fica em evidência, né? As autoridades não vêm aqui fazer uma perícia direito. Os bombeiros demoram e ainda chegam aqui com o caminhão vazio, muitas vezes. A defesa civil vem, faz um cadastro, dá um colchão, uma cesta básica e depois não aparece mais. Quando a gente é pobre, filha, só pode contar com a gente mesmo, quem apaga o fogo e começa tudo de novo é a própria comunidade. Em todas as favelas é assim”, diz. Um incêndio também atingiu um alojamento, em tese provisório, na comunidade Paraisópolis, também zona sul, em setembro. Marisa Feffermann, psicóloga engajada na campanha Paraisópolis Exige Respeito, conta que as famílias já estavam no alojamento há um ano, com o dobro de pessoas em relação à capacidade e sem infraestrutura, desde que outro incêndio atingiu a região. Os casos de incêndio são recorrentes e tem aumentado tanto que geram suspeitas. Na Real Parque, muitos moradores desconfiam de incêndio criminoso. Segundo eles, o fogo se espalhou com uma velocidade surpreendente. “Teve barraco que queimou de fora pra dentro”, diz um morador. “A perícia não vai acontecer, a prefeitura já limpou o terreno e os técnicos que vieram aqui disseram que vai ser difícil apurar, porque o terreno não foi isolado”, reclama outra moradora. A área mais atingida pelo fogo é antigo palco de embate entre a comunidade e o poder público.

Uma parte do terreno que pertence a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.) já tinha sido desocupada por uma ação de despejo em dezembro de 2007. “O fogo foi justamente numa área que a prefeitura queria nos tirar, que era uma briga na justiça pela desocupação de um terreno da EMAE”. Em nota, a Sehab confirmou que “a Prefeitura vem enfrentando dificuldades com as lideranças para retirar a população do local”, mas porque a região ‘é considerada de risco’. A professora Ermínia Maricato, da Universidade de São Paulo (USP), explica que as favelas mais bem localizadas passam por um processo de adensamento muito grande e esse movimento, aliado às condições precárias – inclusive de instalações elétricas - gera um quadro de maior risco de incêndio. “A favela vai continuar aumentando enquanto o problema do direito à cidade e do transporte não for resolvido, principalmente as mais bem localizadas. Este processo indica uma necessidade das pessoas estarem mais perto do trabalho, gastar menos com ônibus, estar mais perto de possíveis bicos”, explica a professora. Segundo Ermínia, esse quadro é fruto da ausência de uma política fundiária para diminuir o preço e a especulação com terra e viabilizar a moradia para população de baixa renda. “Numa sociedade como a nossa, se melhoraram as condições num determinado local, não tem jeito: aumenta o preço e aumentando o preço você expulsa o pobre”, afirma. A moradora de Paraisópolis que conseguiu garantir seu direito à moradia depois de mui-

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ta luta conta que os gastos subiram demais para o padrão de renda da população. “Depois de seis meses, a gente começa a pagar uma prestação de R$ 86 e tem várias contas, a água, luz, a iluminação pública – que aqui é a gente que tem que pagar, nunca vi isso. Só a conta de gás veio R$ 300,00 nos últimos 3 meses, pra quem ganha um salário mínimo (R$ 510,00) é totalmente inviável. Todo mundo quer pagar, mas nem todos tem condições, é muita falta de dignidade”, lamenta. Pelo fogo, certamente, é que a favela não irá acabar. Isto porque os próprios moradores estão se habituando a conter as chamas, retirar seus pertences e botijões de gás, arrecadar e distribuir doações e reconstruir seus barracos. A moradora da Água Espraiada conta que, após o último incêndio, a prefeitura quis encaminhar algumas famílias para alojamentos em outras regiões da cidade, mas os moradores não aceitaram, já que lá vivem com a ameaça do despejo. “O pessoal não aceitou, né? Eles sabem que se saírem daqui perdem a posse, então eles arregaçaram as mangas e tão reconstruindo. As pessoas têm história, raízes, escola, emprego, vínculo aqui”, explica. Ela mesma diz que vive com esta preocupação desde 1962, quando o pai comprou a casa na Espraiada. “A gente tá sempre na corda bamba, pode ser locomovido a qualquer momento. Eles querem fazer da Espraiada uma nova (Avenida) Paulista, até a Copa de 2014 tiram a gente daqui”. O receio é fundamentado – a Operação Urbana Água Espraiada prevê a remoção das famílias das favelas próximas à avenida que passou a se chamar Jornalista Roberto Marinho. A maior reclamação da moradora é em relação ao descaso. Segundo ela, faltam informações sobre o encaminhamento que será dado aos desabrigados. “Tem umas 15 famílias que receberam o auxílio aluguel para 6 meses, no total de R$ 3.600,00, mas não sabem o que acontecerá depois deste prazo. O pessoal não tem informação, não sabe do futuro, não sabe nem onde ir cobrar daqui esse tempo”. A moradora de Paraisópolis retrata uma situação semelhante: os desabrigados receberão o aluguel social, mas ainda não sabem ao certo por quanto tempo e nem tem a garantia da nova moradia. “As pessoas não têm seus direitos garantidos, então são obrigadas a invadir de novo”, conta. “Eles tão prometendo entregar as habitações em 18 meses, mas eu mesma fiquei 4 anos esperando e tive que fazer muita pressão”. As famílias despejadas em 2008, por exemplo, ainda lutam pela sua moradia. “Teve caso de família que saiu pra trabalhar e quando voltou sua casa tinha sido derrubada com tudo dentro. Teve gente que entrou em depressão, eles viram tudo destruído por um trator, enquanto eram empurrados pela polícia”, relembra. Nelson Saule, do Instituto Pólis, avalia que a questão da legalização dessas áreas para as comunidades é uma das principais reivindicações no horizonte. “O processo de legalização é fundamental, porque então as próprias famílias vão investir mais para melhorar a condição da habitação”, destaca.

briga pela frente para os moradores. “A polícia chegou mais rápido que os bombeiros e o carro ainda não tava com o tanque 100% abastecido, tinha uma mangueira furada. Os moradores amarram a mangueira com roupas pra remendar, pra você entender como foi”, conta uma moradora, reclamando da presença da tropa de choque na favela no dia do incêndio. Até o fim da tarde da sexta, centenas de pessoas estavam sob a fina garoa paulistana nas ruas da comunidade, sem saber onde iriam passar aquela noite. Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), informou que representantes da própria secretaria, da Defesa Civil Municipal, do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e da Subprefeitura do Butantã se reuniram com moradores e lideranças e “explicaram que em um primeiro momento iriam cadastrar as famílias”, além de afirmar que “não podiam fazer nada imediato para abrigar as famílias”. Uma liderança reclama que o tratamento deveria ser mais humanizado. “Cerca de 1200 pessoas perderam tudo e até hoje a prefeitura não voltou aqui, está tudo muito confuso”, disse na segunda-feira, três dias após o incêndio. Ela conta que na reunião foi cobrada uma ação para que as pessoas não dormissem na chuva, mas não houve encaminhamento e ainda assim o Projeto

Tropa de choque cerca favela Real Parque, enquanto os próprios moradores tentam conter o fogo.

Real Parque No dia do incêndio na Real Parque a consternação era generalizada, mas ainda há muita

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Comunitário Casulo – uma organização social – fechou suas portas no final de semana. As famílias desabrigadas buscaram abrigo em outras casas na favela. “A gente dá um jeito por aqui, né?”, disse uma moradora. Somente na noite do dia 27, foi feita uma segunda reunião entre poder público e moradores. Uma reivindicação das lideranças era justamente que houvesse a vinculação do auxílio aluguel com as moradias que serão construídas naquela região. A Real Parque é considerada uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) e faz parte de um processo de urbanização. Em 2008, a prefeitura cadastrou 1.131 famílias para receber as moradias que devem ser construídas no local. Após o incêndio, a Sehab informou que “a Prefeitura ofereceu Auxílio Aluguel de R$ 400 mensais para todas as famílias, porém, apenas as famílias que constam do cadastro original, de 2008, terão direito a um apartamento, que será construído em 18 meses”. O problema seguia, entretanto, para as famílias que foram morar na área atingida depois de 2008 que, até o fechamento da edição, poderiam receber o auxílio aluguel por um tempo, mas não tinham a moradia garantida. Segundo os dados da Sehab, foram cadastradas 380 famílias vítimas do incêndio. Dessas, 161 constam na lista de 2008 e a maioria, 191 famílias, não estavam cadastradas. Outras 19 são casos de desdobro, quando alguém da família já cadastrada ocupou outro barraco, e 9 famílias serão atendidas em outras áreas. Dessas 380 famílias, aproximadamente 40 são indígenas Pankararu - uma média de 180 indígenas desabrigados. Quem perdeu tudo, ainda vai enfrentar um problema até conseguir o auxílio aluguel – a falta de documentos. A reivindicação por uma unidade móvel de Poupatempo para que as pessoas fizessem novos documentos não tinha sido atendida até o dia 29 de setembro. Para Jota Batista, coordenador estadual do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), os incêndios nas favelas estão ligados a várias questões, mas em última análise são uma consequência da própria favela – da existência de pessoas sem moradia, sem infraestrutura, sem poder aquisitivo. “Não é culpa da criança que brinca com o fogo ou do gás que explode. É claro que é preciso ter cuidado, mas isso é fruto da ausência de uma política de habitação de massa que seja de fato acessível para a base”, explica. Nelson Saule, do Instituto Pólis, lembra que o Estatuto da Cidade legitima legalmente o Direito à Cidade pela população. “Todos os habitantes têm que ter moradia e serviços urbanos, infraestrutura, trabalho e lazer assegurados. Essas populações que estão em condições mais desiguais e vulneráveis devem reivindicar esse direito coletivo”, destaca. Entretanto, é necessário haver uma mudança de paradigma como contraponto a este modelo de planejamento que favorece os interesses imobiliários e econômicos. Enquanto isso, na habitação, vale a velha máxima brasileira: quem tem menos é justamente quem é mais penalizado. Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br outubro 2010

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Gabriela Moncau

Qual deve ser o

limite do latifúndio?

a

inda que com omissões por parte da mídia hegemônica, a questão do limite da propriedade de terra no Brasil tem aparecido com mais força nos últimos tempos, tanto por conta das campanhas e debates eleitorais quanto pela realização do Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade de Terra, organizado pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) e realizado em todos os estados do Brasil entre os dias 1 e 7 de setembro. Apesar da ideia da limitação da apropriação privada das terras rurais não ser algo novo, o debate mais quente acerca do tema tem despertado uma série de dúvidas a respeito da real possibilidade da implementação de uma legislação como

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essa em nosso país e as suas principais implicações políticas, culturais, econômicas e sociais. O Brasil apresenta um dos quadros de concentração fundiária mais grave do mundo. De acordo com dados do IBGE de 2006, quase 50% das propriedades rurais têm menos de 10 hectares, ocupando 2,36% da área do país enquanto menos de 1% das propriedades rurais (46.911) têm área acima de 1000 hectares, ocupando 44% do território nacional. Segundo o INCRA, as propriedades com menos de 10 hectares representam 31,8% do total e ocupam 1,8% das terras agrícolas. Já os imóveis com mais de 5 mil hectares são apenas 0,2% do total e têm 13% das terras. O cientista social e engenheiro agrônomo Ho-

rácio Martins de Carvalho atenta para o fato de que ao passo que esses grandes estabelecimentos rurais são rentáveis segundo os padrões de lucratividade esperados pelas grandes empresas, os custos dessa rentabilidade são impagáveis: “homogeneização dos plantios e das criações, o que significa o monocultivo, inclusive das pastagens, com a consequente redução drástica da biodiversidade, comprometendo o equilíbrio ecológico e facilitando a degradação ambiental”. “Ademais, os estabelecimentos rurais com menos de 100 hectares já evidenciaram, conforme os dados do Censo Agropecuário de 2006, que são os mais eficientes economicamente, os que garantem uma oferta agropecuária diversificada e a

foto: sebastião salgado/acervo MST

O movimento social do campo quer definir o tamanho da propriedade no Brasil; existem dúvidas se o limite deve ser único para todo o país ou se deve ter tamanhos diferenciados de acordo com cada região.

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maior percentagem de pessoal ocupado no campo”, completa Martins. Pois bem, em que marcos se daria uma limitação do tamanho da propriedade no Brasil hoje? Faz sentido ter um único limite para todo o país ou é melhor ter tamanhos diferenciados conforme a vocação de cada região? O estabelecimento do limite prejudicaria a economia e as relações comerciais internacionais? Dados estatísticos, comparações com a estrutura agrária de outros países e conversas com especialistas permitem-nos chegar às respostas.

Módulos fiscais A proposta de tamanho limite lançada no manifesto do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) é de 35 módulos fiscais. O módulo, conceito formulado no Estatuto da Terra na década de 1960, é o indicativo físico de uma área rural que proporcionaria renda adequada à reprodução social de uma família, variando em cada região de acordo com a qualidade do solo, o clima, a infra-estrutura, a proximidade dos mercados, etc. Para Guilherme Delgado, economista do IPEA e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, a proposta de 35 módulos fiscais é “razoável, pois esse limite varia de 3500 hectares na região do semiárido, da Amazônia, para um mínimo de 180 hectares nas franjas urbanas. A produção de bens que porventura não forem compatíveis com essa restrição diz respeito a uma discussão técnica de casos excepcionais e não deve estar na frente dos critérios éticos e políticos gerais para governar”. “Não vejo dificuldade nenhuma porque as economias capitalistas avançadas do mundo inteiro trabalham com uma estrutura fundiária de produção com um tamanho médio menor do que esse”, aponta. De acordo com a marcação do INCRA, propriedades com mais de 15 módulos fiscais são consideradas grandes. Assim, a proposta não acabaria com os grandes latifúndios do Brasil, permitindo propriedades de até 3500 hectares, equivalentes a aproximadamente 3500 campos de futebol. De fato, como afirma Delgado, há muitos países que estabeleceram legislações bem mais restritas do que a proposta, como é o caso do Japão onde o limite é de 12 hectares, ou a Coréia do Sul, que é de 3 hectares. “Na maior parte dos países, o comércio de terras é considerado especial, não funciona com as facilidades que se implantou no Brasil e que tornou a terra uma mercadoria como outra qualquer. Há critérios rigorosos não apenas para o tamanho como para o acesso de novos pretendentes à terra. A terra deve ser disposta a partir de apropriação social, ou seja, sob o controle rigoroso da sociedade”, complementa Horácio Martins. Se a restrição de 35 módulos fosse estabelecida no Brasil, somente 50 mil imóveis seriam atingidos, correspondendo a 2% das propriedades rurais do país (e a 40% do total da área de imóveis), possibilitando disponibilizar 200 milhões de hectares para a reforma agrária. Delgado expõe que as implicações para a eco-

nomia do país não seriam negativas e que preocupações como a falta de terra para produzir estão na realidade encobrindo o fato de que “setores do agronegócio não querem abrir mão da acumulação financeira em cima da valorização patrimonial da renda da terra. Ora, esse modelo de acumulação de capital não é um bem para a economia nem para a sociedade, é um bem para a acumulação de riquezas”. Questionado sobre os impactos que a limitação da propriedade rural teria sobre a economia brasileira, Martins lembra que isso significaria que cada pessoa e ou empresa nacional podem se apropriar privadamente da natureza. “Isso não quer dizer que as terras que passam a se tornarem disponíveis não sejam colocadas em produção por outras famílias, pessoas ou empresas. É de se esperar que ao se ampliar massivamente o número de produtores rurais nessas terras não apenas se contribua para novas ocupações de trabalho no campo como, também, para a diversificação da oferta agropecuária e florestal e para uma melhor relação homem-natureza no processo de produção agrícola amplo senso”, elucida. Para o cientista social, a limitação tornaria o perfil da oferta agropecuária e florestal “mais amplo e diversificado, inclusive proporcionando à economia do país menor dependência econômica a uns poucos produtos, seja na oferta para o consumo interno seja para a exportação, que estão sob o controle comercial e tecnológico mundial de algumas grandes empresas transnacionais”.

Confissões do latifúndio Não é à toa que o Brasil apresenta estrondosas diferenças no que diz respeito ao modo como se estruturam as relações com a terra e as facilidades em utilizá-la enquanto uma mercadoria qualquer, como um sabão em pó ou um par de tênis. O país atingiu os atuais números de concentração fundiária graças a um processo histórico que teve início na colonização, quando o rei de Portugal dividiu o território brasileiro e o distribuiu para alguns poucos amigos – as chamadas capitanias hereditárias – que com a posse perpétua da terra tinham sobre ela o controle econômico e político do país. A Lei de Terras (1850) aprovada pouco antes da extinção do tráfico de escravos foi o mecanismo de regularização fundiária que garantiu o escasso acesso aos meios de produção. O custo que as terras passaram a ter enquanto mercadoria deixava de fora do processo legal todos os escravos que foram “libertos” a partir da Lei Áurea de 1888 e os imigrantes que tiveram suas passagens financiadas para vir ao Brasil, engrossando uma imensa população miserável. O povo foi liberto e a terra presa. Assim, ora personificado no coronel das oligarquias agrárias, ora no grande empresário do agronegócio, a concentração das terras em pouquíssimas mãos no Brasil já completa cinco centenários. “As pessoas não conseguem vislumbrar a possibilidade de colocar esse limite porque o grande engano é achar que capitalismo é uma geléia geral igual em todo lugar. Não é: o nosso capita-

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lismo agrário é fundado em padrões de desigualdade bem brasileiros, fundados numa Lei de Terras, que precedeu as sesmarias e que foi sucedido por um processo avassalador de apropriação privada de terra pública, a grilagem, sem qualquer resguardo legal. Até hoje”, diagnostica Guilherme Delgado, insistindo que a limitação do tamanho da terra deve estar somada a uma política agrícola de controle e fiscalização. O economicista ressalta a importância do debate acerca do tema pelo conjunto da população. “A mídia não dá uma linha a respeito do plebiscito, a televisão não fala nada, os candidatos preferem se omitir a respeito, ninguém quer mexer no pacto do agronegócio”, critica Delgado. “Dá impressão que a sociedade está anestesiada e parece que nós estamos falando de uma loucura. E quando você vai abrir a caixa preta você vê que a loucura é o status quo, é o que temos hoje”, salienta. O intocável pacto do agronegócio a que Delgado se refere merece ser destrinchado. Mudanças na estrutura fundiária brasileira desestabilizariam pilares políticos e econômicos que sustentam uma série de atores bastante poderosos. De acordo com o site Transparência Brasil, a bancada ruralista na Câmara dos Deputados corresponde a 82 políticos, representando 16% do total de deputados. A nível de comparação, são praticamente o dobro do agrupamento dos sindicalistas, que equivalem a 9%. A informação sobre se o parlamentar é proprietário rural ou pecuarista é obtida de suas declarações de bens à Justiça Eleitoral. Para ilustrar quais os interesses defendidos pela bancada, peguemos alguns nomes. Abelardo Lupion (DEM-PR) é agropecuarista e empresário, foi fundador e presidente da União Democrática Ruralista do Paraná e atua como líder da bancada ruralista na Câmara. Posiciona-se contra a emenda constitucional que propõe a expropriação de fazendas que utilizam o trabalho escravo e, segundo a Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária, recebeu financiamento das empresas transnacionais Nortox e Monsanto para a sua campanha em 2002. É réu no inquérito nº 1872, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), por crime eleitoral. Ronaldo Ramos Caiado (DEM-GO) é deputado federal pela terceira vez e foi fundador e presidente nacional da União Democrática Ruralista (UDR). Proprietário de mais de 7669 hectares de terra, é investigado pelo Ministério Público Eleitoral por captação e uso ilícito de recursos para fins eleitorais. Luis Carlos Heinze (PPB-RS), eleito pelo PP, foi Secretário da Agricultura e Prefeito de São Borja (RS). É dono de uma série de frações de terras, totalizando 1162 hectares. Ainda de acordo com a Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária, teve sua campanha financiada pela empresa de tabaco Alliance One, “responsável por diversos arrestos irregulares em propriedades de pequenos agricultores” e se posicionou contra a regularização de terras quilombolas. Valdir Colatto (PMDB-SC), também deputado federal por três legislaturas, foi superintenagosto 2010

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dente estadual do INCRA em Santa Catarina entre 1985 e 1986, período em que desapropriou área de 1000 hectares na mata nativa para fins desconhecidos. Apresentou projeto que tiraria a responsabilidade de desapropriação de terras por descumprimento da função social dos poderes Executivo e Judiciário, passando-a para o Congresso. Todos os parlamentares citados emplacaram a CPMI contra a Reforma Agrária.

Demanda por terra Quanto à demanda por terra no Brasil, em entrevista feita por Raquel Junia com o geógrafo Paulo Alentejano para o site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, (Fiocruz), o professor explica que há variadas possibilidades de mensurar o número de famílias que necessitam de um pedaço de terra para sobreviver. “Há aquelas que trabalham com número de famílias acampadas, que seria a demanda mais direta pela terra, cuja estimativa é de 150 a 200 mil famílias acampadas. Tem uma estimativa que toma como base uma proposta do governo Fernando Henrique, de cadastro de interessados via correio, que chegou a 800 mil famílias cadastradas”, explica. “E há dados do Censo Agropecuário que apontam os que seriam os assalariados em condição precária no campo: os arrendatários, parceiros, de forma geral, os trabalhadores rurais sem terra – que chegariam a quatro milhões de famílias aproxi-

madamente. Se agregarmos isso ainda a milhões de famílias que foram expulsas do campo e vivem precariamente nas cidades, e algumas delas podem ter interesse em voltar para a terra, isso poderia chegar a 10 milhões de famílias”, aponta Alentejano, para quem a limitação da terra supriria a demanda. “Aquele que sustenta contra a ideia do limite cria a ideia da propriedade enquanto idolatria ilimitada pra comprar, vender, sem nenhuma regulamentação. Em minha opinião isso não é civilizado porque não contemporiza, não apresenta a ideia de recursos naturais finitos, não produzíveis, guardados e preservados intergeracionalmente”, defende Delgado. Horácio Martins sustenta que as implicações de um limite só poderiam ser positivas: “A ampliação massiva do número de produtores rurais proporcionaria melhores condições de vida no campo ao reconstituírem, agora pela presença humana efetiva, territórios que se esvaziarem de gentes, expulsas da terra pelas grandes propriedades que praticam os monocultivos e a motomecanização pesada e intensiva”. “Isso tornaria a oferta de infraestrutura e de serviços públicos menos onerosa porque usufruídos por maior quantidade de pessoas. E, não menos importante, permitiria a recomposição de vilas rurais com padrões de qualidade de vida similares aos melhores bairros urbanos das gran-

des cidades sem o ônus dos congestionamentos de várias naturezas que esses centros urbanos estão vivenciando”, conclui. Como lembra poema do vídeo da campanha nacional do Plebiscito pelo limite da propriedade de terra, “Na reforma se fala mas emperra/ que não vai para frente é só pra trás/ Pois não é só pensando que se faz/ um povo ser forte e varonil/ ou o Brasil põe fim ao latifúndio/ ou o latifúndio acaba com o Brasil”. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingênuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. José Saramago, livro Terra, de Sebastião Salgado Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo

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Juros: ruína de muitos,

ilustração: paloma frança

paraíso de poucos

A ausência de regulamentação sobre as taxas de juros e o mercado oligopolizado são responsáveis por um cenário de cidadãos endividados.

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ernandes de Souza Chaves é um engenheiro civil de 63 anos. Tem dois filhos e está casado pela segunda vez. Até o final da década de 1990, ele trabalhou em empresas de telecomunicação, época em que adquiriu um apartamento e um carro. Em 1998, Fernandes decidiu mudar de ramo. Seu objetivo era montar uma padaria em Vila Isabel, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Mas essa não seria uma padaria comum. Seria a primeira padaria do bairro a fabricar pães especiais, doces rebuscados e a servir diversos sabores de cafés, entre outros quitutes. Como bom engenheiro, Fernandes fez os cálculos e levou sua proposta ao Sebrae – agência de apoio a micros e pequenos empresários – com pesquisa de viabilidade, cronograma de faturamento, previsão de custos e tudo o mais. Com a ideia aprovada com louvor pelos especialistas do Sebrae, dirigiu-se à Caixa Econômica Federal para solicitar um empréstimo de 50 mil reais do Fundo de Amparo ao Trabalhador, que através do Programa Geração de Renda concede crédito subsidiado, coisa de 0,5% ao mês. Metade do crédito seria usado para comprar o maquinário e o restante para despesas iniciais e capital de giro. No entanto, o banco só liberou R$ 25 mil. “Foi um susto, até pensamos em desistir. Mas como já tínhamos começado a obra, não dava mais para recuar. Eu e minha só-

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cia tínhamos deixado o emprego e o aluguel da loja estava em R$ 2,2 mil por mês”, explica. Para contornar o veto inesperado, que classifica como abuso do banco, já que se trata de um dinheiro que não é dele, Fernandes teve que recorrer a outras modalidades de crédito, em diversos bancos e com juros muito mais elevados. Apesar do reconhecimento da padaria entre os moradores do bairro, o que motivou duas reportagens em jornais locais, a coisa começou a desandar. Fernandes e a sócia fizeram uso de cartões de crédito, entraram no cheque especial e tomaram empréstimos empresariais e pessoais. Os juros lhes custavam, em média, 8% a cada mês. “O que sobrava do faturamento não cobria os juros, e entrava cada vez menos. Estávamos começando. Nossa dívida chegou a R$ 130 mil”, lembra ele, com tristeza. Três anos depois, Fernandes passou a firma pelo preço da dívida. Hoje, ele vive numa casa alugada em Rio das Ostras, na região norte fluminense, e dirige um carro ainda não quitado. Continua no ramo comercial e está animado com a sua nova empreitada: uma loja de mobília e decoração de interiores, que inaugurou sem recorrer a empréstimos junto ao sistema financeiro. Outra que sofreu – e ainda sofre – com os juros bancários é a jornalista Paula Máiran, 42 anos, mãe de uma filha e divorciada. Seus problemas começa-

ram em 2007, quando foi demitida do jornal Extra. Paula perdeu o emprego, mas não parou de trabalhar. Corria atrás dos frilas (o famoso bico do jornalista), que lhe rendiam uma remuneração cinco vezes menor do que era antes. Para manter um padrão ao menos parecido com o que tinha, ela passou a recorrer a empréstimos automáticos em caixas eletrônicos e a usar o cartão de crédito. No total, Paula pegou doze empréstimos – média de um novo empréstimo a cada quatro meses. “Na pior fase, pegava empréstimo para pagar a parcela mínima do cartão de crédito. Mesmo depois de conseguir salários melhores ainda não consegui sair da ciranda de juros que me enfiei. Mais da metade do que ganho vai pra pagar empréstimo”, lamenta ela, que ainda tem parcelas a pagar nos próximos dois anos. Segundo seus cálculos, desde 2007 ela já pagou cerca de R$ 100 mil e tem mais R$ 50 mil para pagar. “Mas com certeza o valor total que eu tomei emprestado não chega a cinqüenta mil reais”. Paula atualmente gasta R$ 4 mil mensais com as dívidas e a taxa média de juros que os bancos lhe cobram gira em torno de 7%. “É uma loucura. Eu tentei ao máximo não levar esse problema para ninguém, mas no final das contas tive que pedir dinheiro pra minha mãe. E ela, por sua vez, pegou um empréstimo bancário para me ajudar a quitar um dos cartões de crédito”, diz

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Paula, que no ano passado não estava conseguindo nem pagar a parcela mínima do cartão. “Eu sempre pagava a mínima, mas ela estava vindo cada vez maior”. O total da dívida era 9 mil reais, foi a 12 mil e depois 15 mil. “Isso numa velocidade incrível”, recorda. “Eles já estavam me telefonando ameaçando processar, aí negociamos e quitei a dívida por R$ 6 mil”.

Maioria tem dívida Paula e Fernandes, infelizmente, não são exceções. O Brasil, que vive um grande momento na economia, com crescimento de empregos formais, é também um país onde a maioria do seu povo tem algum tipo de dívida. A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor da Confederação Nacional do Comércio (CNC), divulgada em setembro de 2010, constata que 59,2% das famílias brasileiras possuem algum compromisso financeiro ainda não quitado. Dessas, 71,5% tem suas dívidas na modalidade cartão de crédito, seguido pelos carnês (24,6%) e pelo crédito pessoal (10,7%). Dos endividados, 24,7% têm contas ou dívidas em atraso e sabe-se que 9% não conseguirão saldar seus compromissos. Entre as famílias que estão com contas em aberto, quase a metade (45%) deve a mais de 90 dias. O tempo médio de comprometimento com dívidas é 6,7 meses, sendo que 30,4% assumem compromissos superiores a um ano. A pesquisa da CNC engloba cheque pré-datado, cartões de crédito, carnês de lojas, empréstimos pessoal, prestações de carro e seguros. O problema central se chama juros, o outro nome do preço cobrado pelo “aluguel” do dinheiro. Como explica o economista do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, Paulo Passarinho, “o juro é o preço do dinheiro. É o preço que alguém que o necessite acaba por pagar pelo dinheiro de quem se disponha a emprestá-lo. Assim como o aluguel de um apartamento tem um custo, o preço para você obter alguma soma em dinheiro é o juro que você paga”. Passarinho acha importante frisar que, ao contrair o empréstimo, o devedor fica com duas dívidas: o valor inicial e os juros que irão incidir sobre o total que foi emprestado. No Brasil, existe uma guerra surda em torno dos juros, que muitas vezes não chega ao conhecimento dos maiores interessados, gente como Fernandes e Paula. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 192, limita a cobrança de juros em 12% ao ano. No entanto, a Súmula 648 do Supremo Tribunal Federal, divulgada em 24 de setembro de 2003, reconhece que a aplicabilidade do artigo 192 estava condicionada à edição de lei complementar e ressalta a sua revogação pela Emenda Constitucional número 40/2003. E essa guerra não vem de agora. Em 1933, durante a Era Vargas, o decreto 22.626 já previa essa taxa de 12%, e proibia a cobrança de juros sobre juros. Era a chamada Lei da Usura. Três décadas depois, no dia 31 de dezembro de 1964, foi baixada uma lei que exclui as instituições financeiras da abrangência da Lei da Usura. A mesma norma atribui ao Conselho Monetário Nacional as deliberações sobre as taxas de juros. Tal entendimento foi cristalizado na Súmula 596 do Supremo Tribunal

Federal, d 15 de dezembro de 1976. Em 2004, o STF mostra as garras novamente e estende o benefício às empresas administradoras de cartão de crédito. A Súmula 283 diz o seguinte: “As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura”. Por outro lado, o artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional diz que a taxa de juros moratórios, nas obrigações fiscais, é de 1% ao mês.

Fora do controle Para esclarecer essa questão, ou pelo menos tentar, entrei em contato com o Banco Central do Brasil, onde fica o Conselho Monetário Nacional. Minha pergunta era a seguinte: quem regulamenta as taxas de juros bancários, tanto os de cartão de crédito, cheque especial e empréstimo pessoal? É o Banco Central? Outra entidade? Também pedi acesso a atas de reuniões em que o tema “regulamentação das taxas de juros” tenha sido tratado e perguntei se existe algum ranking produzido pelo BC ou outra entidade que compare o Brasil a outros países do mundo no quesito taxa de juros bancários. A resposta demorou 20 dias e muita insistência para chegar, mas veio incompleta. Eis a íntegra: “As operações ativas dos bancos comerciais, de investimento e de desenvolvimento, ressalvadas as operações incentivadas regidas por legislação específica, como as de crédito rural e crédito imobiliário, são realizadas a taxas de juros livremente pactuáveis (Resolução nº 1.064, de 1985). Com vistas à transparência, os contratos de concessão de crédito devem discriminar as informações a respeito de todos os encargos e despesas incidentes no curso normal da operação, tais como juros, fatores de remuneração, tarifas, impostos e demais despesas (art. 8º da Circular nº 2.905, de 1999, com a redação dada pela Circular nº 2.936, de 1999). Da mesma forma, é obrigatória a informação, previamente à contratação de operação de crédito, do Custo Efetivo Total (CET) correspondente a todos os encargos e despesas incorridos (Resolução nº 3.517, de 2007). Ademais, as taxas praticadas em diversas modalidades de operações são divulgadas pelo Banco Central em sua página na internet, contribuindo para a redução de assimetrias de informações e para o aumento da concorrência. Também estão disponíveis na internet os normativos mencionados”. Nada sobre as atas, nada sobre o ranking. Mas há um fato jornalístico relevante na resposta. O Banco Central do Brasil assume que os juros bancários no país estão fora do controle estatal. Todo o poder à Federação Brasileira dos Bancos! Novamente é o economista Paulo Passarinho quem comenta. “O grande problema é que o mercado bancário é oligopolizado – poucos ofertam recursos a uma demanda que é enorme. O resultado é que as taxas tendem a ser altas, pois a competição é muito restrita”. Passarinho sublinha que os bancos sempre apresentam justificativas técnicas para a composição das taxas, como o risco de inadimplência, mas ele acredita que a questão de fundo é outra. “Soma-se ao mercado oligopolizado a natu-

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reza da política monetária e o controle que os bancos exercem diretamente sobre o Banco Central, e temos o cenário ideal para as mais altas taxas de juros do mundo”. Com essas taxas, os bancos brasileiros lucram bilhões e bilhões de reais por ano. De acordo com informações obtidas no portal do Banco Central, os bancos que cobram os maiores juros mensais do cheque especial para pessoa física são, em valores de setembro deste ano: Santander (9,20), HSBC (9,15%), Bradesco (8,43), Itaú (8,40%), Banco do Brasil (8,08) e Caixa Econômica Federal (6,58). Esses valores, mensais, são similares aos cobrados, por ano, nos Estados Unidos. Os juros dos empréstimos pessoais tendem a cair um pouco nos bancos citados acima, mas explodem quando são feitos nas chamadas “financeiras”, essas cuja a propaganda fala em dinheiro na hora, sem burocracia. Novamente segundo o Banco Central, a Crefisa estava cobrando, em setembro deste ano, nada menos que 24,20% ao mês. Mas os recordistas são os juros cobrados pelas administradoras de cartão de crédito. Ao contrário das informações sobre as outras modalidades, o Banco Central não informa em seu portal os dados dos cartões de crédito. A minha fatura Mastercard, em setembro, avisa que o “Custo Efetivo Total ao ano” é de estrondosos 374,14%. Um assombro ter que pagar quase cinco vezes o valor inicial. A Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade divulgou pesquisa com a taxa média de juros para pessoa física, em que considera todas as modalidades de crédito: 6,75% ao mês, ou 118,99%. Os números são de agosto desse ano. Passarinho explica que as taxas de juros ao consumidor sofrem influência da taxa básica de juros definida pelo Banco Central. No Brasil, a taxa básica está em 9,50% ao ano, conforme a última decisão do Comitê de Política Monetária do Banco Central. Segundo o jornal Brasil Econômico, num ranking de 23 países só perdemos para a Argentina, que está em 11,15%. O México tem 4,5%, enquanto a África do Sul está em 6,5%. Em outro patamar estão os Estados Unidos (0,25%), Canadá (1%) e Inglaterra (0,5%). Na avaliação do economista, uma taxa de juros elevada significa que o custo do dinheiro nesse país é alto, o preço do dinheiro é caro. Desse modo, todos os devedores desse país estarão tendo muita despesa financeira com o pagamento de juros a quem empresta dinheiro – que são os bancos. Em países onde a taxa de juros é muito elevada, a tendência é existir uma transferência de renda líquida para os rentistas, aqueles que vivem da renda do dinheiro. Enquanto isso, os que em algum momento precisam de dinheiro, como Fernandes e Paula, acabam se afundando no pântano de juros que virou o mercado de crédito brasileiro. Diante das cifras astronômicas cobradas pelo sistema financeiro em nosso país, o que teria dito o teatrólogo alemão Bertolt Brecht, autor da famosa pergunta: qual crime é maior, roubar um banco ou fundar um banco? Marcelo Salles é jornalista, coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. salles@carosamigos.com.br outubro 2010

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Gershon Knispel O levante no Vale Salib

Em 1987, primeira Intifada, o levante palestino contra a ocupação, que abre o caminho da paz.

04/11/1995 – Os participantes da manifestação na Praça de Rabin. No momento que Rabin foi assassinado por fanáticos israelenses, junto foi assassinada a paz.

Detalhes do baixo-revelo de Titus (Arco do Triunfo) em Roma. Após a derrota dos fanáticos judeus, os soldados de Roma carregam o candelabro destruído no 2º Templo em Jerusalém. Foi o início da grande diáspora.

A emigração

como forma de salvar a vida

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ão é nosso costume elogiar colega colunista de nossa revista, mas desta vez não há como evitar isso: reflexões sobre a última entrevista de Fidel. Nessa entrevista, que Fidel Castro deu para o jornalista americano Jeffrey Goldberg, o líder cubano deixou todo mundo de boca aberta... Nos assuntos econômicos, em que foi citado declarando que o modelo econômico cubano não funciona mais inclusive para Cuba, Fidel desmentiu o entrevistador. No tema do conflito iraniano-israelense, onde Fidel fez acusações duras contra Ahmadjinejad, com candentes denúncias sobre a tentativa do líder iraniano de ignorar o Holocausto. Fidel ainda defendeu o povo judeu como nenhum líder da esquerda ou do centro fez em muitos anos. O ex-presidente cubano concluiu que esse povo foi vítima de perseguições e de genocídios como nenhum outro povo na história humana. Fidel pôs fim à versão mentirosa que foi repetida nos últimos anos, infelizmente, por muitos círculos da esquerda em todo o mundo, confundindo as fronteiras entre os últimos governos de Israel, que são diretamente responsáveis pela ocupação da Palestina e os males que provocou, e os judeus da Diáspora. Na “Folha de S. Paulo” de 12/09/2010 apareceu uma entrevista de página inteira com o jornalista americano Lee Anderson, da revista “New Yorker”, que nos anos 1990 esteve em Cuba. Anderson defendeu a tese de que a bomba atômica seria o trunfo do Irã que poderia levar a um pacto de não-agressão com Israel, que tem mais de 200 mísseis atômicos. A alternativa poderia ser bem mais trágica. Os projetos estão focados, hoje em dia, em uma faixa territorial minúscula, cujo tamanho, visto do Brasil, é ridículo: a distância desde a cidade fronteiriça de Metula, no norte de Israel, junto às fronteiras do Líbano e da Síria, até Eilat, no extremo

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sul, não chega a 600 km, enquanto de oeste para leste a distância média não ultrapassa 50 km. Com esses tamanhos, as pretensões desse governo israelense radical, de se apoiar só na força militar, parecem uma paródia. Como pode o governo israelense ter esquecido as suas recentes derrotas militares, na Segunda Guerra do Líbano, em 2006, e na Operação Chumbo Fundido na Faixa de Gaza, em 2009, quando nenhum dos objetivos mencionados como razões da guerra foi alcançado? A visão pessimista de Anderson, de que se corre o risco de uma guerra nuclear, está longe de ser uma impossibilidade. A tomada de posição por Fidel dando a sua entrevista se origina justamente do medo do líder cubano de que a guerra nuclear ocorra. Mas vamos ao nosso tema do mês, a emigração como forma de sobrevivência de nações. Duas nações pequenas estão pedindo para o mundo se lembrar de fatos que já ocorreram há centenas de anos nessa faixa em miniatura. De um lado, os palestinos, uma reunião de tribos do deserto, os beduínos, com os felás, trabalhadores do campo, reunião que forma a maioria da população árabe radicada nessa faixa em miniatura, incluindo tribos que estavam lá bem antes do êxodo dos judeus a partir do Egito. De outro lado, os judeus sobreviventes de uma nação que se espalhou por todo o mundo depois da derrota diante dos romanos que arrasaram o Segundo Templo e toda Jerusalém, ocasião em que muitos judeus se refugiaram na fortaleza de Massada, no deserto de Judá, no sul do país, enquanto os romanos cercavam essa fortaleza, levando os judeus de Massada a se jogarem, com mulheres e crianças, do alto da fortaleza, suicidando-se em massa. Esse foi o início da Grande Diáspora, com os judeus errantes andando de um país para outro,

de um continente para outro. No início do século 20, os judeus despertaram diante das lutas anticolonialistas e nacionalistas, e procuraram encontrar sua identidade nacional, pelo sionismo. Essas duas nações em renascimento agarraram angustiadamente aquela faixa, como as duas mulheres agarrando o bebê diante do rei Salomão. Quem tem direito à Terra Prometida? Pergunto, em que etapa estamos hoje dessa luta pela Terra Prometida? Uma coisa fica bem clara: o número de palestinos e de judeus que se acham fora das fronteiras de Israel e da Palestina, ou da Grande Israel, é pelo menos o dobro dos que estão dentro desse território-cárcere. Hoje está claro demais que a concepção israelense, muito divulgada, de que os judeus da Diáspora podem estar mais seguros depois da criação de Israel, está cada vez mais abalada. Enquanto isso, os mais importantes cientistas políticos do mundo inteiro estão temerosos de que essa região se torne uma arena do combate nuclear. Será que o público de Israel, em meio a essas realidades, vai continuar a ficar envolvido com a euforia dos colonos judeus na Cisjordânia que esperam a iminência da vinda do Messias, repetindo-se o roteiro da fortaleza de Massada? Tenho a esperança de que mais e mais intelectuais e escritores adotem o exemplo da maioria dos artistas plásticos e escritores israelenses que se recusaram a participar de festas nas colônias judaicas da Cisjordânia, declarando: “Não podemos ignorar a circunstância de que o grande pensador, o refugiado palestino Edward Said, já falecido, ao aprender na sua própria pele que, apesar de ser um dos mais importantes acadêmicos dos Estados Unidos, ficou isolado de seus companheiros palestinos ao afirmar: ‘Eu disse que podiam viver em Israel os sobreviventes da tragédia do Holocausto. A meus olhos, cada judeu ou judia, não importa de onde venha, é uma vítima pessoal do Holocausto. Nesse sentido, não se pode esquecer que há uma grande união entre Israel e o Holocausto, que são uma coisa só. Acrescentei que isso não diminui, mas aumenta a responsabilidade dos israelenses em relação ao que fizeram aos palestinos e ao nosso modo de nos ver, nós palestinos, como vítimas de vítimas, que temos um argumento moral muito efetivo, reconhecendo o fato de que essa tragédia que aconteceu para eles é a origem do resultado trágico que estamos sofrendo’. Ao lado dele estava o camarada e irmão, o emigrante judeu da Argentina, o maestro Daniel Barenboim, que chegou no topo da carreira mundial de músico, que realizou o sonho que tinha com Edward Said de criar uma orquestra sinfônica em que há músicos filhos de judeus emigrantes e de palestinos refugiados, que estão vivendo debaixo do mesmo céu num pedacinho de terra cheio de conflitos desde o início da humanidade. Gershon Knispel é artista plástico.

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Cesar Cardoso

tacape Rodrigo Vianna

LULA E A COMUNICAÇÃO: UM BALANÇO Sei que há entre os leitores, e mesmo entre os jornalistas e articulistas que ajudam a fazer “Caros Amigos”, muita gente que pensa da seguinte forma: “PT e PSDB são a mesma coisa”. Ou: “Dilma e Serra são farinha do mesmo saco”. Acho necessário dizer que discordo frontalmente dessa avaliação. Tão logo se conclua o processo eleitoral, começa a fase de balanço do governo Lula. Humildemente, listo aqui os 4 eixos em que, a meu ver, Lula significou um avanço extraordinário para o Brasil: - criação de um mercado consumidor de massas (recuperação do salário-mínimo, do salário do funcionalismo, Bolsa-Familia, política mais agressiva e popular de crédito) – teve papel fundamental no enfrentamento da crise, porque o Brasil deixou de depender só das exportações e pôde basear sua recuperação no mercado interno; - respeito aos movimentos sociais – parceria com sindicatos, diálogo com as centrais, com o MST; - recuperação do papel do Estado – fim das privatizações, valorização do funcionalismo, novos concursos públicos, recuperação do papel planejador do Estado (por exemplo, no campo da energia), fortalecimento dos bancos públicos (não mais como financiadores de privatizações fajutas, mas como indutores do desenvolvimento); - política externa soberana – enterro da Alca, criação da UNASUL, valorização de parcerias com China, India, Irã; fim do alinhamento com os EUA. Os leitores mais críticos dirão: mas nada disso aponta para o socialismo. É fato. E quem disse que o governo Lula se propôs a isso? O PT e Lula cumprem trajetória muito parecida com a da social-democracia europeia: surgem com forte base operária, têm em seu substrato teórico o marxismo, mas aceitam o jogo democrático, passando a atuar como reformadores do capitalismo. Lula, digamos claramente, fez um governo socialdemocrata moderado. Para a tradição brasileira - senhorial, oligárquica e excludente - é muita coisa. Importante reconhecer, entretanto, que – apesar dos limites que estavam dados pelas características de um governo moderado e de alianças – Lula poderia ter avançado mais em algumas áreas. Vou-me concentrar em uma, que acompanho com interesse especial: a Comunicação.

No segundo mandato, Lula bancou Franklin Martins na SECOM – como um contraponto a Helio Costa nas Comunicações (esse último conhecido como “o ministro da Globo”). Franklin fez uma gestão com muitos méritos: criou a TV Brasil (que ainda precisa melhorar muito), democratizou as verbas de publicidade oficiais (em 2003, 179 jornais recebiam verbas federais; em 2008, já eram mais de 1.200; e o mesmo ocorreu com as rádios Brasil afora), convocou a Confecom (a Conferência Nacional de Comunicação - bombardeada pelos barões da mídia), e agora prepara-se para estabelecer novos parâmetros para concessões de rádios e TVs. Não é pouca coisa, num país em que a Comunicação é dos setores mais atrasados (costumo dizer que, nessa área, ainda não fizemos nem a Revolução de 30). E não é à toa que Franklin, ao lado de Marco Aurélio Garcia e Marcio Pochmann – é das personalidades mais odiadas pela direita no Brasil. Mas o que Lula não fez – durante quase 8 anos - foi o embate político com os velhos barões da mídia. E o maior símbolo disso foi ter mantido Helio Costa como Ministro das Comunicações. Lula acreditou sempre que não precisava bater de frente com a velha mídia, confiou em seu papel de grande comunicador. Falou direto com as massas. E parece ter sido bem sucedido, se pensarmos no curto prazo. Acontece que Lula não aproveitou sua liderança para estabelecer o debate pedagógico, deixando claro para os cidadãos brasileiros que a mídia tem lado, defende interesses claros e transforma-se – mais e mais - no núcleo duro do pensamento conservador do Brasil. É na mídia – e não mais nos partidos ou na Universidade – que estão hoje os principais ideólogos conservadores do país. Só agora, durante a campanha eleitoral, o presidente parece ter acordado para a necessidade de confrontar os barões da mídia. Novamente, o confronto improvisado pode dar resultado eleitoral – no curto prazo. Mas o combate político fica pela metade. E sem esse combate – corajoso, aberto e permanente - as mudanças não virão. Rodrigo Vianna é jornalista.

Leia esta crônica e VENÇA NA VIDA!

Acabaram-se as eleições, estamos livres dos mentirosos do horário eleitoral e podemos voltar a mentir por conta própria e a qualquer hora. Eu já comecei lá no título da crônica. Você não vai vencer na vida lendo isso aqui nem fazendo coisa alguma. A vida termina sempre com uma derrota chamada morte. E ponto. Só que essa afirmação também pode ser mentira. A mentira é só uma verdade que esqueceu de acontecer, mas ela vem sendo perseguida através dos tempos. Mentir é feio, é pecado, é anti-ético, é contra-revolucionário. Cada um tem seus motivos pra condenar a mentira e no entanto não fazemos outra coisa a não ser mentir. Acordar e dar bom dia a essa altura da humanidade é mais do que otimismo: é cascata pura. O planeta não tem recursos pra sustentar nosso consumo e a temperatura vai subir até derreter todos nós: bom dia por quê? Além disso, você está indo pra praia, pra um barzinho tomar caipirinhas, pra um cineminha e vai fechar o dia no motel? Ou vai deixar as crianças atrasadas na escola, se meter no metrô lotado e ir pro trabalho, aturar seu chefe? Bom dia? Você só pode estar de sacanagem! Mas não se desespere: eu minto, tu mentes, ele mente. Eis a verdade nua e crua. Contar lorotas, potocas, patranhas, imposturas, enganos, fraudes ou falsidades já virou até profissão. Está aí a publicidade que não nos deixa mentir, porque mente primeiro e com muita verba. E nem Deus escapa: se Caim mentiu quando Ele perguntou onde estava o Abel, Deus mentiu primeiro, quando fingiu que não sabia. Ele não é onisciente e onipresente? Então, vamos descriminalizar a mentira já! Afinal, diga a verdade: tem coisa melhor do que mentir?

Cesar Cardoso diz que é escritor e que tem o blog PATAVINA’S (http://cesarcar.blogspot.com). Você acredita? outubro 2010

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Fidel Castro

Emir Sader

A infinita hipocrisia

de céticos e cínicos

do Ocidente

Embora houvesse artigos sobre o tema antes e depois de 1º de setembro de 2010, nesse dia, o jornal La Jornada, do México, publicou um de grande impacto intitulado “O holocausto cigano: ontem e hoje”, que lembra uma história verdadeiramente dramática. Sem acrescentar nem tirar uma só palavra da informação que oferece, selecionei algumas linhas textuais de seu conteúdo que refletem fatos realmente comoventes, dos quais, o Ocidente e, sobretudo, o seu colossal aparelho midiático, não diz nada. “Em 1496: auge do pensamento humanista. Os povos rom (ciganos) da Alemanha são declarados traidores dos países cristãos, espiões a soldo dos turcos, portadores da peste, bruxos, bandidos e sequestradores de crianças.” “1710: o século das luzes e da razão. Um edital ordena que os ciganos adultos de Praga sejam enforcados sem julgamento. Os jovens e as mulheres são mutilados. Na Boêmia, cortam-lhes a orelha esquerda. Na Morávia, a orelha direita. “1899: o apogeu da modernidade e do progresso. A polícia de Baviera cria a Seção Especial de Assuntos Ciganos. No ano 1929, a seção foi elevada à categoria de Central Nacional e transferida para Munique. Em 1937, foi instalada em Berlim. Quatro anos mais tarde, meio milhão de ciganos morreu nos campos de concentração da Europa central e oriental.” “Qualificados de criminosos inveterados, os ciganos começaram a ser presos em massa e, a partir de 1938, foram internados em blocos especiais nos campos de Buchenwald, Mauthausen, Gusen, Dautmergen, Natzweiler e Flossenburg.” “Num campo de sua propriedade de Ravensbruck, Heinrich Himmler, chefe da Gestapo (SS), criou um espaço para sacrificar as mulheres ciganas que eram submetidas a testes médicos. Foram esterilizadas 120 meninas ciganas.” “Milhares de outros ciganos foram deportados da Bélgica, da Holanda e da França para o campo polonês de Auschwitz. Em suas Memórias, Rudolf Hoess (comandante de Auschwitz) relata que entre os deportados ciganos havia idosos quase centenários, mulheres grávidas e grande número de crianças.” “Na Iugoslávia, eram executados por igual os ciganos e os judeus na floresta de Jajnice. Os camponeses ainda lembram os gritos das crianças ciganas levadas para os locais de execução.” A música foi o fator que manteve neles a unidade que os ajudou a sobreviver, como o foi a religião para os cristãos, os judeus e os muçulmanos. Com antecedência, no dia 29 de agosto, tinha informado que “embora as críticas não tenham faltado — tanto por parte das instituições da União Europeia (UE) quanto por parte da igreja católica, a ONU e o amplo leque de organizações a favor da migração — Sarkozy insiste em expulsar e deportar centenas de cidadãos da Bulgária e da Romênia — e, portanto, de cidadãos europeus – sob o pretexto do suposto caráter ‘criminoso’ desses cidadãos”. “É difícil acreditar que, no ano 2010, — conclui La Jornada — após o terrível passado da Europa no que se refere ao racismo e à intolerância, seja ainda possível criminalizar toda uma etnia por ser considerada um problema social.” Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

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Algumas vozes espalham o ceticismo, na imprensa, nas universidades, de repente já passaram do ceticismo ao cinismo, não importa nada, tudo é ruim, cambalache, tudo é igual, o mundo vai para o pior dos mundos possíveis. Foi uma atitude que foi amadurecendo ao longo das últimas décadas, passou a achar que o século XX tinha sido muito ruim para a humanidade, o pior dos séculos etc. Uma atitude de melancolia, desencanto, desânimo, abandono da luta, traduzida no ceticismo, na crítica. Todos os governos, os partidos, os processos traem, decepcionam, se corrompem. O socialismo teria dado em totalitarismo – e se somam à direita nisso. Os sindicalistas só querem defender seus interesses – idem. A esquerda e a direita são iguais – idem ibidem. Como as teorias parecem ser maravilhosas e as práticas concretas, não, preferem ficar com as teorias – se possível, misturando um pouco de Nietzsche, de Foucault, de Tocqueville. Pronto, o pessimismo está pronto. Encontra lugar na velha imprensa para escrever, contanto que se concentre em criticar a esquerda – a União Soviética, Cuba, Venezuela, o PT, Lula. Termina fortalecendo a direita e desalentando aos jovens, enquanto ainda mantêm seu prestigio. Depois de um certo momento, já nem isso, porque se confundem com a direita. O ceticismo não é marxista. O marxismo parte da realidade concreta, mas sempre na perspectiva da sua transformação. Esse pessimismo, somado ao catastrofismo, fortalece o mundo tal qual ele é. Uma análise dialética da realidade supõe a apreensão das contradições que articulam o concreto, desembocando em linhas de ação e não apenas na perplexidade, na melancolia ou no ceticismo. No momento em que o povo brasileiro, no seu conjunto, pela primeira vez, começa a melhorar substancialmente seu nível de vida, e o expressa em um apoio como nenhum governo anterior teve, é triste ver uma parte da intelectualidade, de costas para o povo, melancolicamente continua a pregar que tudo está tão ruim ou pior do que antes, brigando com a realidade, em um isolamento total em relação ao país realmente existente. O otimismo, por si só, não é revolucionário, mas todos os grandes líderes revolucionários foram e são otimistas, porque acreditam sempre nas possibilidades de transformação revolucionária da realidade. Enquanto que o ceticismo leva à inação e, muitas vezes, até mesmo ao cinismo. sugestões de leitura Leituras críticas sobre Maria Conceição Tavares

Org: Juarez Guimarães Editora Fundação Perseu Abramo Diante da crise global

Org: Ulrich Brand e Nicola Sekler Editora da Uerj Prolegômenos para uma ontologia do ser social

Gyorgy Lukács Boitempo Editorial

Emir Sader é cientista político.

outubro 2010

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

“ZERO”, a obra maior de Ignácio de Loyola Brandão, reeditada depois de 35 anos O livro de ficção em que mais se recria o ambiente sombrio e opressivo dos chamados anos de chumbo, “Zero”, romance de Ignácio de Loyola Brandão, lançado inicialmente na Itália em 1974, e só publicado no Brasil no ano seguinte, em meio ao auge da repressão do regime militar, está sendo relançado, em edição comemorativa, pela Global Editora. Trata-se de um álbum gráfica e esteticamente primoroso, que inclui, além do texto do romance, com “tudo o que fora ocultado: a violência, a tortura, o esquadrão da morte, a sexualidade, a luta armada, a repressão, a dificuldade de viver uma vida sem liberdade”, também as reproduções das capas das edições do livro em inglês, alemão, castelhano, húngaro, tcheco e coreano. E ainda o making of do livro e sua trajetória: como foi concebido e produzido e o histórico das tumultuadas peripécias que se seguiram à sua publicação. O livro foi proibido no País logo depois de ter sido lançado e só foi liberado em 1979. Em ato público em fevereiro de 1977, pedindo a liberação da obra, disse a famosa escritora Lygia Fagundes Telles: “O escritor – o artista, em suma – é a testemunha de seu tempo, da sua sociedade com tudo que ele tem de coisas boas e ruins. Principalmente ruins. Ele não pode cancelar uma realidade (pelo menos para ele), sob o pretexto de essa realidade ser inoportuna. Ou desagradável”. Loyola escreve de modo agradável sobre essa realidade desagradável, o que é característico das obras da grande arte. Outro romance importante relançado agora, pela José Olympio Editora, é “Ganga-Zumba – A saga dos quilombolas de Palmares”, de João Felício dos Santos, publicado originalmente em 1962, em meio à efervescência cultural que seria atropelada pelo golpe militar que derrubou o governo do presidente João Goulart. Trata-se de um clássico da negritude brasileira, que faz o que só a arte pode fazer: transforma em mito a história do Quilombo de Palmares. E outro livro relançado sobre o regime militar, mas desta vez factual e de não-ficção, é “Confesso que peguei em armas”, do jornalista Pinheiro Salles, que foi preso político por ter participado da luta armada, publicado originalmente em 1979 e agora reeditado pela Editora Universidade de Goiás. Segundo o falecido sociólogo Eder Sader escreveu em 1979, “pelas páginas do livro passam Carlos Alberto Brilhante Ustra, Sérgio Paranhos Fleury, o delegado Pedro Sellig, o inspetor Nilo Hervelha, que se compra-

zia em urinar na cara dos presos, e outros exemplos dos torturadores que ajudaram a manter a ditadura”. E, segundo o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que fez a apresentação, “alguém tinha de gritar aos quatro cantos do país que não é verdade que fossem terroristas. Eram, são e serão revolucionários. Os vivos, os mortos e os desaparecidos”. Os trabalhadores caminhoneiros, sempre à voltas com a angustiante situação de serem ao mesmo tempo trabalhadores e pequenos proprietários ou aspirantes a pequenos proprietários, são celebrados no álbum de luxo “Caminhoneiro herói”, da TT Editora, com belíssimas fotos de Ricardo Ferreira e Melina Resente, e textos de Gabriela Potenza e Francisco Reis, estes últimos os únicos autores citados na capa.. Também tem belíssimas ilustrações outro álbum de luxo, “E os italianos chegaram”, com textos em português e inglês, obra assinada por José Eduardo Heflinger Júnior e Paulo Masuti Levy, editada pelo Carlota Schmidt Memorial Center. O livro retrata não só a saga dos imigrantes italianos que vieram trabalhar nas fazendas de café do Estado de São Paulo, mas também dos portugueses, alemães e suíços. As ilustrações são ao mesmo tempo lindíssimas e bem informativas. Finalmente, e mais uma vez desmentindo a tese teimosa da “índole pacífica do povo brasileiro”, temos uma bem organizada coletânea de pesquisas sobre as lutas armadas que assombraram o Rio Grande do Sul, das quais é herdeira a maior politização da população desse Estado em relação a outras do Brasil. Trata-se do livro “O continente em armas – Uma história da guerra no Sul do Brasil”, organizado pelos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Eduardo Santos Neumann e Luiz Alberto Grijó, publicado pela Editora Apicuri. Ênfase especial é dada à Guerra dos Farrapos e à Guerra do Paraguai. Vale a pena ler e estudar. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP. outubro 2010

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No palco, crianças. Nos bastidores, todo o apoio da CSN.

A Fundação CSN promove projetos que melhoram a vida das crianças, assim elas se tornam mais felizes em casa, na rua e na escola. O Projeto Garoto Cidadão funciona no contra-turno escolar com atividades artísticas, aulas de português, matemática e inclusão digital. Em 2010, o projeto chegará a mais de 1.300 atendimentos em 7 unidades educacionais. Iniciativas como o Caminhão para Ziraldo e para Jorge Amado, permitem o acesso ao teatro, formam platéias e incentivam a leitura. Desde 2006, o caminhão já percorreu 65 mil quilômetros em mais de 184 cidades em 20 estados brasileiros. A Orquestra Sinfônica Jovem estimula a inclusão social por meio da música. Formada por jovens em situação de vulnerabilidade social, oferece bolsa de estudo para o aprendizado de música e os valores do trabalho coletivo e solidário. O ponto em comum entre todos eles? Um futuro melhor para nossas crianças. Para saber mais sobre esses projetos, acesse www.fundacaocsn.org.br

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