Ed. 160 - Revista Caros Amigos

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RIO DE JANEIRO

Teatro da Maré renova arte popular

PARTO HUMANIZADO

sob o controle da mulher

DIREITOS AUTORAIS

A urgente revisão da lei

ano XIV número 160 / 2010 R$ 9,90

CURSINHOS POPULARES Opção para vestibulandos POR DENTRO DO PCC Valores e funcionamento da organização AMEAÇA RADIOATIVA no sul de Minas Entrevista

Frei Betto

“O Brasil é o paraíso do capital especulativo”

Trabalho ESCRAVO

O que impede a erradicação ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JANAÍNA WAGNER JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA TATIANA MERLINO

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CAROS AMIGOS ANO XIV 160 JULHO 2010

Foto de capa PAULO PEREIRA

EDITORA CASA AMARELA

sumário

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Por mais que se diga que o país está em franco desenvolvimento e situado entre as maiores potências econômicas do Planeta, que o triunfo do neoliberalismo aplaca as lutas sociais e leva os pobres a ingressarem nas classes médias aos milhões, existe um fato concreto que atrela o Brasil ao seu mais terrível passado: é a persistência até hoje das condições humilhantes de trabalho e análogas à da escravidão. Nem dá para afirmar que se trata de algo anacrônico, na medida em que a prática do trabalho escravo tem sido utilizada sistematicamente pelos setores mais atrasados e mais adiantados do capitalismo. Está presente na expansão das fronteiras rurais para a instalação do agronegócio, no desmate da floresta para a pecuária e na lavoura da cana para o etanol. Está, igualmente, no seio do operariado que trabalha nas confecções de grife para as grandes redes de lojas dos centros urbanos. A reportagem da Caros Amigos procura não apenas mostrar a dimensão do problema, registrar a diversidade do trabalho escravo na “moderna” economia brasileira, mas principalmente questionar por que essa situação perdura além de todo o aparato disponível existente nas instituições da sociedade. Entre as várias forças que fecham os olhos ou sustentam a exploração do trabalho escravo está a bancada ruralista no Congresso Nacional, que há muitos anos impede a aprovação de projeto de lei que autoriza a desapropriação de terras com a prática de tal ilegalidade. Além dessa reportagem, a revista apresenta excelentes matérias, entre as quais a entrevista exclusiva com Frei Betto, conhecido por sua história de militância social e política; entrevista com os antropólogos Karina Biondi e Adalton Marques, sobre os valores e o funcionamento do Primeiro Comando da Capital (PCC); reportagem sobre os cursinhos populares que contribuem para que jovens de baixa renda disputem vagas no ensino superior; e outras reportagens sobre a ameaça radioativa no sul de Minas Gerais, a urgente revisão da lei de direitos autorais, as várias alternativas de partos naturais e a renovação da arte popular com o grupo de teatro da Maré, no Rio de Janeiro. Enfim, uma edição com conteúdo denso, diversificado, relevante e de boa qualidade jornalística. Aproveite!

Caros Leitores José Arbex Jr. lembra que a direita europeia continua antissemita. Joel Rufino dos Santos comenta o racismo e o Getúlio Vargas do futebol. Guilherme Scalzilli defende o direito democrático de não votar.

REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

Combate ao trabalho escravo

Guto Lacaz

Ferréz presta homenagem ao escritor que escrevia com total liberdade. Gilberto Felisberto Vasconcellos questiona: quem pode falar em natureza?

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Marcos Bagno critica o português engessado pelos gramáticos normativos. Mc Leonardo debate se a ocasião faz o ladrão ou se o ladrão faz a ocasião.

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Pedro Alexandre Sanches em Paçoca: as compositoras de todos os tempos.

Entrevista com Frei Betto: análise crítica do poder e da realidade brasileira. Glauco Mattoso em Porca Miséria: o nazismo fascina os cineastas. Eduardo Matarazzo Suplicy elogia a moda como fator de inclusão social.

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Rodrigo Vianna em Tacape: a liderança de Dunga versus Rede Globo. Fidel Castro alerta sobre o fanatismo terrorista do Estado de Israel.

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João Pedro Stedile espera que os candidatos debatam os problemas do povo. Ana Miranda conta a história da diversão improvisada nas beiradas do Brasil.

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Joelma Couto denuncia a ameaça do lixo nuclear em Poços de Caldas (MG). Frei Betto analisa a mercantilização da água no lugar do direito humano. Cesar Cardoso lembra a formação do Novo Mundo Europeu pelos tupinambás.

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Ensaio Fotográfico de Janaina Wagner: a escola reciclada da Tailândia. Lúcia Rodrigues revela os interesses que sustentam o trabalho escravo. Tatiana Merlino mostra a importância dos cursinhos populares pré-vestibular. Gershon Knispel: Israel é um pequeno império que se condenou à autodestruição. Bárbara Mengardo conta porque as mulheres defendem o parto humanizado.

Entrevista com Karina Biondi e Adalton Marques: uma radiografia do PCC. Marcelo Salles desvenda o bom trabalho artístico do grupo de teatro da Maré. Juliana Sada mostra como está a luta para mudar a lei dos direitos autorais. Renato Pompeu Ideias de Botequim: estudo sobre as capacidades dos candidatos. Emir Sader contesta a tese de que PT e PSDB são iguais. Claudius

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITORES ESPECIAIS: José Arbex Jr e Renato Pompeu EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon SÍTIO: Débora Prado de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 160, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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ALTERCOM

Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação

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Caros leitores Aniversário A revista Caros Amigos completou 13 anos de existência, sob o comando do editor Hamilton Octávio de Souza e com a contribuição de José Arbex Jr. e Renato Pompeu, pesos-pesados do jornalismo nacional. Conta, ainda, com articulistas de renome. De circulação mensal, mantém um time de colunistas sem precedente. A revista alçou ao cenário midiático o espetacular Ferréz, talentoso cronista da periferia de São Paulo e dos melhores escritores da nova geração, e, recentemente, abriu espaço para outras vozes dos movimentos culturais, como o cantor e compositor MC Leonardo e o jornalista Pedro Alexandre Sanches. Toda edição traz, ao menos, uma entrevista, com as mais diferentes personalidades, que tem em comum a pertinência do assunto, a relevância dos pontos de vista e a importância do entrevistado. De tiragem limitada, a Caros Amigos é mais que um veículo de comunicação, é um órgão de resistência à grande mídia que tem como característica a independência editorial. Não conta com patrocínio das corporações capitalistas nacionais ou multinacionais e nem por isso prescinde da qualidade, ao contrário, prima pela elegância na forma e pela consistência no conteúdo. A assinatura é barata e acessível. Muitos duvidaram que um projeto tão audacioso e revolucionário pudesse dar certo. E já se passaram 13 anos e 157 edições. Vida longa à revista Caros Amigos. Luís José Bassoli, Taquaritinga/SP

Caros Amigos Gosto muito da revista. Já fui assinante e sempre levei a Caros Amigos para a sala de aula com os meus alunos. Vivo em Lisboa onde, infelizmente, nunca encontro a revista, e por isso leio pela internet. Lilian Moura Gostaria de sugerir uma entrevista com Marilena Chauí, filósofa e historiadora de filosofia brasileira; uma importante figura intelectual. Aproveito para parabenizar a resista, que promove uma opção inteligente e verdadeiramente crítica de jornalismo. Monique Calvo

Joel Rufino e Chico Xavier Nossa intenção aqui não é submeter Mestre Didi ao crivo dos “critérios de verdade” do “ceticismo racionalista” defendido por Joel Rufino dos Santos para lançar Chico Xavier na fogueira ou “vala comum” em seu artigo publicado em maio (edição 158). Acredito que o médium Chico Xavier foi colocado em situação desrespeitosa. A linha de argumentação se tornou ainda mais infeliz diante da pergunta seguida de resposta que o autor apresenta no seguinte tom: “por que a idade da ciência e da técnica é também a da crença, do misticismo, da astrologia, da cientologia, dos gnomos, dos Chico Xavier? Bom, primeiro porque é um bom negócio”.Mas por que trazer até nós Mestre Didi, líder espiritual da comunida-

de Nagô no Brasil? Apenas para lembrar ao Joel Rufino que o ceticismo-racionalista manifestado por ele foi parcial e preconceituoso e visou atacar a crença espírita e não outra, talvez por um motivo pragmático admitido por ele ao reclamar que “hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas confrontarem professores”. Parcial e preconceituoso porque certamente Joel Rufino não deixaria de ir a um programa de rádio que abordasse a vida e a obra de Mestre Didi, com o fez na ocasião em que o personagem em foco seria Chico Xavier; ainda mais justificando sua desistência com o argumento de que seu “ceticismo sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte etc. acabaria ferindo a susceptibilidade de algum ouvinte crente”. Alexandre Ramos de Azevedo, Rio de Janeiro/RJ

Ferréz E aí Ferréz, seus escritos são de tirar o chapéu. O conhecimento é a principal arma contra a opressão, suas palavras comprovam isso. Só gostaria que você incluísse na sua comunidade as mulheres que foram pioneiras na área de filosofia, que também sofreram perseguições e preconceitos. Se queremos eleger mulheres na política, não podemos deixá-la apenas como a pilota de um fogão ou cuidando dos filhos. Parabéns, Ferréz. Espero que você nunca desista do prazer da escrita que transforma o cotidiano de sua comunidade. Maria de Lourdes de Oliveira, Sumarezinho/SP

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Caros leitores

Prezados Caros Amigos, venho parabenizálos pelos treze anos de muita luta à frente desse ideal solidário de fazer notícia com seriedade e verdade. José de Alencar Godinho Guimarães

CIDADANIA Sou leitor ferrenho e assinante da exímia revista Caros Amigos, a qual considero muito educativa, tanto por suscitar ações atreladas à cidadania, quanto por robustecer a consciência acerca de fatos importantes que ocorrem no Brasil e no mundo, mas que passam à distância ou com distorções pela mídia gorda. O perfil de jornalismo investigativo traçado pelos articulistas/colunistas tem produzido excelentes matérias, dignas de suporte para qualquer tipo de discussão em âmbitos institucionais de toda ordem. Aproveitando, então, esse veio de comprometimento com a verdade e com a efetivação do ideal democrático, eu deixo uma sugestão para uma matéria importante, que abrange interesse nacional: a questão do partilhamento dos dividendos da exploração do petróleo do Pré-Sal, cujo bem pertence à União. João P. Guedes

MINERADORA VALE Prezada Tatiana: Li sua matéria na revista Caros Amigos nº. 158 – sobre as sacanagens da Vale contra os trabalhadores e o meio ambiente. Gostaria de parabenizá-la pela brilhante matéria, e ao mesmo tempo dizer que o maior crime que a Vale comete é contra os aposentados que ao longo de muitos anos, ajudaram a construir esta potência que é hoje a Vale e que foi privatizada pelo governo FHC a preço de banana. Antonio Vitor Ramalho, Diretor Presidente da APECOVALE – Associação dos Aposentados e Pensionistas da CVRD

MARCO DO PETRÓLEO Estava eu assistindo Bom Dia Brasil, no dia 31 de março, quando me assustei com uma frase da jornalista Miriam Leitão. Após anunciar

as mudanças propostas pelo Senado brasileiro para a distribuição dos royalties do petróleo (que não são nada animadoras), a jornalista questionou: pra que mudar uma coisa que já vem dando certo no país há mais de 10 anos? Gostaria que a revista Caros Amigos me oferecesse oportunidade de devolver uma pergunta à jornalista. Deu certo pra quem? Para os grandes investidores internacionais? Para aqueles que embolsaram os grandes lucros do petróleo? Toda vez que sobrevoo de helicóptero a cidade petrolífera de Macaé-RJ, para embarcar nas sondas de perfuração, vejo tanta pobreza, tantas favelas espalhadas pela cidade, fico me perguntando onde foi parar todo esse lucro do petróleo. Com certeza não foi nas mãos do povo. Sugiro que a jornalista Miriam Leitão faça uma visita à cidade de Macaé e pergunte ao povo macaense se esse modelo vem dando certo para eles. Agradeço à Caros Amigos por nos oferecer essa oportunidade de questionar, e por estar sempre nos conscientizando a lutar por um país mais igualitário. Matheus Rufino Oliveira - Engenheiro de Petróleo – Petrobras

CINEMA POPULAR Marcelo Salles, gostei muito da forma como contou a história dos dois cineastas cariocas (Júlio Pecly e Paulo Silva)-publicada na edição 158. A forma como cada um buscou ser profissional da sétima arte, as dificuldades que tiveram e ainda tem até hoje fizeram com que lesse com muito mais atenção o artigo desse grande “manancial” de ideias chamado Caros Amigos. Ao ler sobre a história desses dois grandes homens sigo com esperança de ver o aumento de filmes com identidade e originalidade tipicamente brasileiras. Afinal, a revolução pode estar aí também. Pedro Eugenio Castro Muniz. Olá, Marcelo, parabéns pela matéria (sobre o cinema de Júlio e Paulo): objetiva, enxuta, com conteúdo e que nos faz acreditar que tudo tem jeito. Muito legal mesmo. Leitura deliciosa. Marilson Ottoni

CRIME HEDIONDO Na edição de fevereiro de 2010, no brilhante artigo do escritor Frei Betto, houve um erro. Tortura é crime hediondo, inafiançável e insuscetível de graça ou anistia como diz a lei 9.455, de 7 de abril de 1997, e não imprescritível como fez referência o autor. Espero poder colaborar mais com essa excelente revista e permanecer em contato apesar de não ser assinante. Lucas Filho

Resposta de Frei Betto A tortura é um crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica e afeta toda a humanidade, na medida em que a condição humana é violentada na pessoa submetida a esse crime. Quando alguém é torturado, somos todos atingidos duplamente: em nossa humanidade e em nossa cidadania. A prática da tortura é inaceitável e seus executores deverão ser punidos a qualquer tempo. O Brasil é signatário de tratados internacionais que o incluem em diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, inclusive se submetendo ao julgamento de organismos internacionais, especialmente ao International Criminal Court (Tribunal Internacional), criado pelo Estatuto de Roma, que não estabelece prescrição para os crimes contra a humanidade, entre eles definidos a tortura e a prática de outros atos desumanos que causem grande sofrimento, ou sério dano ao corpo ou à saúde mental e física de um indivíduo. O Brasil é igualmente signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que o vincula aos conceitos dessa Convenção, na medida em que tais conceitos foram assumidos pelo nosso País, em 6 de novembro de 1992, através do Decreto nº 678, nos termos do seu artigo 2º, para o fim de alterar a sua legislação interna, visando à defesa e à integridade física e moral do indivíduo. Os dois tratados internacionais citados, assinados pelo Brasil, são suficientes para esclarecer que a República não compactua com a prática de atos que violem a dignidade da pessoa humana, por ser este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e um direito inalienável do indivíduo.

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Uma guerra antissemita para salvar o capital “Israel é a nossa primeira linha de defesa em uma agitada região que está constantemente sob o risco de cair no caos; uma região que é vital para a segurança energética mundial devido à nossa dependência excessiva de petróleo do Oriente Médio; uma região que forma a linha de frente na luta contra o extremismo. Se Israel cai, todos nós cairemos. (...) O Ocidente está atravessando um período de incerteza com relação ao futuro do mundo. No sentido amplo, esta incerteza é causada por uma espécie de dúvida masoquista sobre nossa própria identidade; pela regra do politicamente correto; por um multiculturalismo que nos obriga a curva-nos diante dos outros; e por um secularismo que, cinicamente, nos cega, mesmo quando somos confrontados por membros do jihad promovendo a encarnação mais fanática de sua fé. Deixar Israel à sua própria sorte, neste momento crucial, serviria apenas para ilustrar o quanto afundamos e como nosso declínio inexorável agora se torna eminente. (...) Israel é uma parte fundamental do Ocidente. O Ocidente é o que é graças às suas raízes judaico-cristãs. Se o elemento judeu dessas raízes for retirado e perdemos Israel, também estamos perdidos. Quer queira ou não, nosso destino está interligado.” Os trechos acima fazem parte de um texto de José Maria Aznar, primeiro ministro da Espanha entre 1996 e 2004, publicado no Times de Londres, em 17 de junho. O texto tem o mérito da extrema clareza, equiparável ao seu cinismo colonialista. Aznar faz um diagnóstico correto da crise mundial: “O Ocidente está atravessando um período de incerteza com relação ao futuro.” Nesse contexto, Israel – “parte fundamental do Ocidente” - joga um papel essencial no Oriente Médio, “região que é vital para a segurança energética mundial”. O raciocínio é sintetizado pela sentença: “Se Israel cai, todos nós cairemos.” Aznar não é um fulano qualquer, ainda que o sobrenome reflita sua vocação intelectual. Ele é filho dileto

do franquismo e expressa os sentimentos mais atrasados, reacionários e conservadores da Europa branca, católica e chauvinista. Aznar é um cruzado, como aqueles que propunham o extermínio dos semitas (judeus e mouros) na Idade Media, especialmente na Espanha de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Mas, dado o papel geopolítico de Israel no mundo contemporâneo, Aznar é obrigado a fazer o elogio dos judeus, reservando a babação antissemita ao Islã. É um discurso bizarro, num país que viveu mais de sete séculos sob influência moura, e de onde foram expulsos pela Inquisição de Torquemada (ele próprio, um cristão novo) centenas de milhares de judeus que procuraram abrigo exatamente nos países islâmicos. Discurso bizarro, mas coerente com a estratégia e os sentimentos da Igreja Católica. Não por acaso, o Vaticano se opõe frontalmente à entrada da Turquia na União Europeia, apesar de todas as reformas “ocidentalizantes” feitas pelos turcos desde 1920, quando Kemal Ataturk assumiu o poder e tratou de liquidar o que ainda existia do Império Otomano. Em 2004, o então cardeal Joseph Ratzinger declarou ao Giornale del Popolo, da diocese de Lugano (Suíça), que a eventual entrada da Turquia na UE seria um ato anti-histórico. “Histórica e culturalmente, a Turquia pouco pode partilhar com a Europa, pelo que, com todo o respeito que tenho para com esse país, seria um grande erro englobar a Turquia na UE”, afirmou o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (a atual Inquisição). Um país muçulmano não tem lugar numa Europa cristã, ainda que as reformas “modernizantes” da Turquia tenham permitido, por exemplo, a participação de mulheres em eleições antes de Portugal e de vários países europeus (e do Brasil). Resumo da ópera: os islâmicos, em particular os turcos, até são bons o suficiente para servirem de bucha de canhão da Otan, da qual são membros, mas jamais para conviver em igualdade com os europeus. É também a convicção do recém-eleito presidente do Conse-

lho Europeu, o belga Herman Van Rompuy, democrata cristão e católico fundamentalista. Suas posições inflexíveis sobre o Islã e a Turquia foram fundamentais para conseguir o apoio do presidente francês Nicolas Sarkozy e da chanceler alemã Ângela Merkel (também democrata-cristã) à sua nomeação ao cargo de presidente do Conselho. Como é a posição do primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi, neofascista que chegou a afirmar publicamente a “superioridade da civilização ocidental” comparada ao mundo islâmico. O discurso de Aznar é, ao mesmo tempo, um diagnóstico correto da profundidade da crise e uma cínica preparação para uma guerra de grandes proporções. O capital, como todos estão carecas de saber, resolve suas crises econômicas e financeiras com atos selvagens de destruição em massa – como aconteceu nas guerras mundiais do século passado. Se, para “salvar a Europa” (especialmente a Espanha, onde 40% dos jovens estão desempregados) e o capitalismo for necessário armar uma guerra total ao Islã, que assim seja. Israel está no Oriente Médio como posto avançado do “Ocidente” e deverá cumprir sua parte na nova cruzada, ainda que a pretexto de defender sua própria existência. Aznar é o porta-voz do “choque de civilizações”, pseudo “teoria” sem qualquer fundamento na realidade, mas tão útil aos propósitos do capital quanto, nos anos 30, o foram as fantasias mirabolantes dos “protocolos dos sábios do Sião” para um sujeito chamado Adolf. O povo israelense e os judeus de todo o mundo não deveriam se iludir com a aparente simpatia demonstrada pela extrema direita europeia. Ela continua tão antissemita como sempre: os seus tambores da guerra oferecem novamente os filhos de Israel em holocausto, mas agora em nome da defesa dos “valores ocidentais”. Se depender da vontade de Aznar e similares, o capital será recomposto sobre os cadáveres de milhões de judeus e islâmicos. E a região, “vital para a segurança energética mundial”, será reconstruída pelas imensas empreiteiras e corporações europeias e estadunidenses, para ser novamente transformada em um civilizado protetorado “ocidental”. Simples assim. José Arbex Jr. é jornalista. junho 2010

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José Arbex Jr.

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

O direito

O GETÚLIO DO FUTEBOL

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de não votar

somente a árvore, é dada pelo conhecimento histórico. A história do nosso futebol – ausente de quase todas as obras que atulham as livrarias perto da Copa do Mundo – mostraria uma inflexão correspondente à Revolução de Trinta. Houve uma revolução também no futebol, o que levou alguém a chamar Leônidas, o Diamante Negro, de “o Getúlio Vargas do futebol”. O jogador negro se tornou hegemônico, conferindo ao nosso futebol uma maneira original. Tanto é assim que só então se diferenciou do argentino, uma outra maneira original. Essa maneira, logo chamada de futebol-arte, seduziu o mundo. Desistindo de imitá-la, os europeus se contentaram em importar jogadores-artistas. O futebol europeu tinha, naturalmente, a sua maneira, o futebol-atletismo. Foi esse, em linhas gerais, o panorama até os anos 1970. A globalização que se seguiu criou um padrão único de jogo: o futebol-força, de resultados, que aí vemos. O que tem isso a ver com racismo? Racismo é uma forma social de esquizofrenia: trocamos a consciência do que nos caracteriza pelo delírio. Separamos o negro do Brasil. Essa é a floresta. Joel Rufino é historiador e escritor.

O voto obrigatório ofende os princípios democráticos. O exercício da cidadania pressupõe liberdade ampla e soberana de escolha, inclusive a de abster-se do processo eleitoral. A autonomia do indivíduo deve ser preservada com a mediação legal, jamais tolhida por ela. Impor direitos a quem os desfruta é um absurdo conceitual. O fato de o Estado brasileiro ser pródigo nessas contradições não as torna mais aceitáveis. Os paralelos distorcidos entre o comparecimento às seções eleitorais e outros “deveres cívicos” apenas realça o caráter despótico de rotinas que, se não foram instituídas por ditaduras, nasceram de semelhante espírito. O serviço militar, por exemplo, é um arcaísmo prejudicial que não serve a comparações positivas. Não se trata de louvar o abstencionismo, e sim de aceitá-lo como opção válida, entre tantas mais ou menos discutíveis. Ao cidadão já é permitido recusar instrumentos de atuação política, registrar votos úteis e de protesto ou até anulá-los. Sua presença física empresta uma ilusão de legitimidade ao sistema democrático, mas nem de longe o faz representativo. O sufrágio desempenhado a contragosto alimenta falsos consensos e perpetua uma fragilidade institucional perigosa, pois artificial e oportunista. A afirmação de que o povo brasileiro não possui maturidade ou instrução para decidir revela preconceito elitista e autoritário. O voto facultativo assusta as facções hegemônicas porque transformaria a relação entre candidatos, partidos e eleitores. Para todos os efeitos, seria um mecanismo de conscientização política: mesmo a indiferença generalizada constrangeria governantes e legisladores a recompor os vínculos perdidos com a sociedade. O plebiscito é a maneira mais pedagógica e inquestionável de resolver a questão. Não surpreende, portanto, que seus adversários o repudiem duplamente. Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: hke...

Às vésperas da Copa do Mundo na África do Sul as livrarias se encheram de livros sobre futebol. Como combinei que só trataria nessa coluna de livros antigos, perderei a oportunidade de apresentar ao leitor Quem derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira Vilarinho, ex-líder sindical e pesquisador de primeira. Ele destoa da livraiada pela sólida contextualização histórica. A função do historiador é nos contar como uma coisa – qualquer coisa – se transformou em outra. Tanto que uma forma comum de ignorância, até de intelectuais e doutores, é tomar a verdade de um momento como a verdade de sempre. O senso comum, essa fase elementar do pensamento, toma a árvore pela floresta. É preciso, em todos os casos, que o cientista social, especialmente o historiador, coloque em nosso campo de visão o conjunto que a árvore esconde. Esse conjunto, oculto à primeira visada, é que permite compreender (mais que explicar) o seu exemplar isolado. A história é a ciência social encarregada da duração da floresta. Dos livros sobre futebol que enchem as livrarias hoje, a maioria ignora a história. Alguns são interessantes, bem escritos, mas a dispensam. Em geral, tratam os fatos – jogos, jogadores, torneios, copas do mundo etc. – como o legista trata os órgãos do cadáver: sem passado ou futuro. Como não há mais vida – outro nome de duração – podem extraí-los e dissecá-los fora do corpo. Alguns desses livros contam casos de racismo em nosso futebol. Tanto explícitos, documentados, como disfarçados e “sutis”, exclusões, xingamentos, preterições. Os autores, ao relatar esses casos, invariavelmente demonstram indignação, ressalvando que não fazem sentido numa democracia racial como a nossa. Reproduzem uma crença do nosso senso comum, desgastada nos últimos tempos, mas ainda assim viva. O passado e o presente brasileiros estão repletos de preconceito racial e não apenas, aliás, contra negros, agredindo índios, mestiços, nordestinos, judeus, orientais e, em escala bem menor, mas não desprezível, turcos, galegos, gringos, polacas, alemães e outros. Isso é constatado pelo senso comum, é fácil de ver. A possibilidade de escapar a este senso comum, de enxergar a floresta, e não

Guilherme Scalzilli

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

Capitalismo verde é sujeira: Marina e Gabeira

Agora todo mundo capitalista deu para ser verde. A General Eletric prega a “ecoimaginação”, ou este oxímoro insano: “carvão limpo”. Na propaganda ela põe um elefantão cantando “Singing in the rain”. O barão da mídia, Murdoch, que está louquinho para derrubar Chávez, declarou: “sinto orgulho de ser verde”. É impossível existir capitalismo sem toxina. A mistificação do capitalismo verde é reproduzida por aqui com Gabeira e Marina. Como é que alguém a favor do lucro capitalista evangélico pode falar em natureza? A única coisa verdecoevangélica que existe é a nota verde do dólar. Marina é pró-capitalismo, portanto é antiecológica. Seus assessores almofadinhas e janotas são udenistas e tucanos de corpo e finanças, portanto contra a minhoca, o arado natural, Eles são entusiastas da Monsanto que inventou o herbicida round up devastador da natureza e que financia a biotecnologia e a engenharia genética. Marina, me dizia Marcelo Guimarães, não moveu uma palha pelo projeto das micro-destilarias a álcool em pequenas propriedades; agora ela se diz devota do álcool e óleos vegetais, só que produzidos em economia de escala com plantation latifundiária para exportação multinacional. Marina é adversária da reforma agrária radical, portanto joga no time do ecocídio, Serra batalhou pela aprovação da lei das patentes para felicidade das grandes corporações multinacionais na Câmara e Senado. A agricultura capitalista multinacional arruína a terra e envenena as pessoas. Tudo isso sob o comando dos grãos geneticamente manipulados pela Monsanto, que é a Rede Globo da agricultura. A juventude não poderá cair na esparrela agrobiocancerigenotucano. O descalabro da natureza é causado pelo regime social chamado capitalismo, por conseguinte crítica ecológica que não seja anticapitalista é conversa de urubu com bode. E Gabeira? É a ideologia pós-moderna do Banco Mundial em ação, que no Rio de Janeiro é a expressão da burguesia comercial e imobiliária, de onde provêm Carlos Lacerda e César Maia. Nunca entendi a notoriedade de Gabeira. Chegou da Suécia de tanguinha de crochê na praia pousando de “candidato jovem” pré-Collor para destruir os CIEPs de Darcy Ribeiro. Glauber Rocha tinha a maior bronca dele porque queria tacar fogo no filme Terra em Transe. Glauber dizia que a ambição de Gabeira era freqüentar a casa de Caetano Veloso, que convenhamos não é o barraco de Goethe. Glauber escreveu: “traíram Jango em 1964 e 1974, destruíram o projeto de nação que ficou no esqueleto do Gabeira”. Sobre as flores do estilo, pergunto quem foi o gênio linguista que bolou o mote gerundiano da campanha de Dilma? Refiro-me à palavra de ordem: “Para o Brasil seguir mudando”. Que coisa feia. É isso que dá colocar campanha política em agência de publicidade. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Ferréz

LIberdade

De 1a ponta a outra do globo viajar voar, deslizar por uma montanha, escalar um iceberg um canto do mundo inexplorado um planeta solitário, uma casa de madeira, abdução alienígena uma ilha com 2 pessoas você de manhã, e outra você de tarde sem cercas, cobranças jogando bola descalço mais feliz que os cheios de $ e logos mais feliz em plena tarde de domingo não está confinado, nem no condomínio fechado nem no barraco. uma visita inesperada, é ela, ela chegou e trouxe a paz entrar no oculto um pensamento sem carga uma ideia desbaratinada sem pensar demais para falar, sem imaginar quem vai ouvir, o que vai achar não precisar prestar conta ser feliz de ponta a ponta desapegar, deixar de comprar deixar de colecionar coisas que só te fazem cansar existência livre, como era o fator primordial existir sem culpa como era antes o principal sem precisar usar a palavra maldita “politicagem” ser transparente sem precisar montar movimento pra poder amar, pra poder transar pra poder beber, pra poder se abstinar sem ter que provar nada torcer para ninguém viver um dia por vez sem planos pro futuro, que cansam e na moral não se realizam sem postura, sem falar a realidade pura e nua ser chamado de sincericida não falar a mais porque pode pagar com a vida não falar que volta depois não dizer que gostou só para ser simpático é verdade, colar num lugar pela poesia, pela arte não pela bebida e vaidade num ter elo com ninguém a não ser quem agente gosta não esperar virar para falar pelas costas quero isso, e vou perseguir, mesmo que o público se restrinja mesmo que não lote mais a mesa de autógrafos mesmo que o show não seja apoteótico porque no inicio era assim, o coração batia do inicio ao fim e hoje já tá tão desgastado, que as vezes bate mas por embalo a fita é essa e não da mais para prolongar nem pagar simpatia para o número de toques alcançar resumindo tudo ao espiritual não a nada de mais para continuar escrevendo que valha a pena vocês estarem lendo a não ser para terminar ir até onde dar, sem ponto para finalizar Ferréz é datilógrafo e reside em regime semiaberto na periferia de São Paulo. julho 2010

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falar brasileiro Marcos Bagno

A ocasião

LÍNGUA DIFÍCIL?

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faz o ladrão?

Tenho feito essa pergunta a diver-

guês” passou a ser aplicado a uma modalidade muito específica de língua: a norma-padrão codificada pelos gramáticos normativos. Essa norma-padrão, estreitamente vinculada à língua escrita mais monitorada, sobretudo a literária, é uma entidade que se pretende homogênea, uniforme e duradoura. Pelo processo inevitável da mudança linguística, esse modelo idealizado de língua “certa”, que já nasce distanciado da língua viva, real, se torna ainda mais estranho, anti-intuitivo, quase uma língua estrangeira. É essa norma-padrão do português, que não leva em conta a língua realmente falada pelos brasileiros, inclusive os chamados cultos, que é difícil, incompreensível muitas vezes, ilógica quase sempre. Querer que até hoje se aprenda a conjugação verbal com o pronome “vós”, negando ao mesmo tempo a predominância do “você” e do “a gente”, é um absurdo sem tamanho. Sugiro ao senhor reitor que consulte os linguistas de sua própria universidade, um dos quais recentemente publicou uma excelente gramática, voltada para a descrição do português brasileiro. Talvez assim ele possa defender o sistema de cotas sem chafurdar em outros preconceitos. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

sas pessoas, e as respostas têm sido “não” na maioria das vezes. Mas esse “não” vem acompanhado de explicações diferentes como: “Se a pessoa é honesta não existe ocasião na qual ela possa roubar.” Ou: “Cansamos de ver casos onde o sujeito tem oportunidade e necessidade e não rouba.” Mas foi do meu irmão Lucio que eu ouvi a seguinte definição: “A ocasião não faz o ladrão, a ocasião faz o ladrão roubar”. Bom, se formos nos basear pela definição dele podemos chegar à conclusão que todos nós somos ladrões, já que todos nós já roubamos alguma coisa, por menor que seja o valor. Eu prefiro ficar com a tese que o ladrão é aquele que faz a ocasião, busca a oportunidade de roubar ou almeja uma posição que o levará ao fato. Mesmo que os mais variáveis tipos de roubos do mundo sejam praticados por sujeitos trajados de terno e gravata, na maioria das vezes temos em mente a imagem do ladrão como é cantada pelos manos do grupo de Rap Racionais MCs, na música Capítulo 4 Versículo 3: “Aquele moleque de touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca...” E na musica Mágico de Oz eles falam assim: “Se diz que moleque de rua rouba. No governo, na política do Brasil quem não rouba? Ele só não tem diploma pra roubar, ele não se esconde atrás de uma farda suja...” Quando nós falamos dos produtos piratas que usamos por praticidade, comodidade ou necessidade, tais como as músicas e filmes que baixamos na internet e mesmo os livros que fazemos cópias dentro das próprias universidades, nos vemos na obrigação de mudarmos a legislação ou nos assumir como criminosos ladrões. Mas esse é outro assunto que eu prometo falar mais adiante em alguma outra OCASIÃO, isso é, se ninguém roubar o espaço que ocupo aqui. Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com

Deu na televisão. O reitor de uma universidade pública, ao apresentar uma avaliação do sistema de cotas usado pela instituição, explicou que os alunos cotistas apresentam dificuldades maiores que os não-cotistas nas áreas de português e matemática. E concluiu com a seguinte pérola: “[o português] é uma lingua muito difícil, em geral. E os brasileiros ainda a maltratam demasiadamente. Mas esse é um problema, porque os setores populares falam um português no cotidiano muito errado, muito diferente do português douto”. Transcrevo as palavras do site da emissora. É impressionante o absoluto descaso que tantos pesquisadores de outras ciências humanas dedicam à linguagem. Tomam a linguagem como um dado, como algo pronto e acabado, uma entidade monolítica, um ponto pacífico, quando na verdade a linguagem é um fato social que tem de ser analisado, a cada momento, como palco de conflitos, como arma simbólica na luta pelo poder, como uma mercadoria cuja posse confere prestígio a uns, que estigmatizam os demais. Mais impressionante, para não dizer chocante, é descobrir, pesquisando sobre o reitor, que ele é psicólogo social e trabalha com as noções de representação. Numa fala tão breve, o magnífico conseguiu alinhar três dos principais mitos que configuram o preconceito linguístico: a língua é “difícil”, os brasileiros “a maltratam” e que as camadas populares falam “muito errado”. Meio século de pesquisas importantes da sociolinguística e da análise do discurso, bem como de outras disciplinas, desconstruiu esses mitos, demonstrando que são meras superstições culturais, decorrentes - precisamente daqueles conflitos sociais e políticos que referi acima. Mas, por alguma razão misteriosa que vale a pena investigar, os resultados das pesquisas dos linguistas não conseguem ultrapassar os meios acadêmicos. Aliás, são barrados dentro do próprio ambiente universitário, como evidencia a declaração do reitor. O português não é uma língua difícil porque nenhuma língua é difícil para seus falantes nativos. Difícil é um brasileiro aprender húngaro, tagalo ou xavante, línguas sem nenhum parentesco com a nossa. O problema é que, ao longo da história, o nome “portu-

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

Brasil, um país de “Boiar no mar é de graça, é de graça, é de graça/ eu vou fazer uma ciranda pra botar o disco/ na lei de incentivo à cultura, à cultura, à cultura/ mas é preciso entrar no gráfico/ no mercado fonográfico/ mas eu não sei negociar/ eu só sei tocar meu tamborzinho e olhe lá.” Não era de esperar que o labririnto das leis de incentivo se prestasse a virar tema de música pop, mas é o que acontece na Ciranda do Incentivo, uma das 13 faixas de Eu Menti pra Você, de Karina Buhr. Nascida na Bahia e criada em Pernambuco, ela já era conhecida como integrante do grupo pernambucano Comadre Fulozinha, mas em Eu Menti pra Você chega à estreia solo e à maioridade como artista autora da própria obra. A ironia de Ciranda do Incentivo é leve e bem-humorada, mas vem fazer companhia a flagrantes de posicionamento ainda raros na música jovem brasileira – exemplo recente notável de engajamento é Reforma Agrária no Ar (2008), de Wado. “É contra o artista mudo, é contra o ouvinte surdo, é contra o latifúndio das ondas do rádio”, vibra a letra cantada pelo catarinense criado em Alagoas. Mais sutil, Karina distribui críticas afetuosas nas quais a leveza é o mote condutor, como acontece no reggae anti-estresse Plástico Bolha: “Hoje eu não estou a fim de corre-corre, confusão/ eu quero passar a tarde estourando plástico bolha”. “Vou ficar mais um pouquinho/ para ver se acontece alguma coisa nessa tarde de domingo/ congelo o tempo pra eu ficar devagarinho/ com as coisas que eu gosto e que eu sei que são efêmeras.” O pedido de mais calma e serenidade, por favor, inicia a faixa-título do primeiro CD de Tulipa Ruiz, que sabe que as coisas são efêmeras e ela também é, e batiza a estreia de Efêmera. Tulipa é paulista de Santos, cresceu em Minas Gerais, canta com fluência e leveza e assina (sozinha ou em parceria) dez das onze canções do disco – a décima-primeira, Às Ve-

zes, foi composta por seu pai, Luiz Chagas, que foi guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção. As interligações com a chamada “vanguarda paulista” afloram em Efêmera, mas prioritariamente Tulipa gosta de se comunicar e de, como dizia Gal Costa em 1973, “cantar como um passarinho”. “A ordem das árvores não altera o passarinho”, canta (e compõe), como um passarinho, em A Ordem das Árvores. Integrante da trupe multivalente conhecida como Orquestra Imperial, a carioca Nina Becker estreia solo com dois discos simultâneos, um chamado Azul e outro, Vermelho. Dona das rédeas, ela surge discreta, serena, desapressada e... autora, em baladas como Madrugada Branca. “No vapor da madrugada/ no sono dos sons/ um sonho dorme profundo/ e esconde uma verdade/ que não se adivinha/ enquanto escrevo meu mundo/ que tem bordas invisíveis”, ela tateia seu próprio mundo. Plural, Nina se divide entre parcerias com colegas (rapazes) como Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Nervoso, interpreta novos como Romulo Froes (em Flor Vermelha) e reinterpreta antigas de Jorge Mautner (Samba Jambo e Lágrimas Negras, esta lançada em 1974 por Gal Costa). Em todos os campos, sai-se igualmente bem, e soa igualmente elegante. O rap é a linguagem-guia de Lurdez da Luz, integrante do grupo paulistano Mamelo Sound System e autora-rimadora do CD solo inaugural Lurdez da Luz. Gal Costa também sobrevoa seu trabalho, como no sampler que conduz a última faixa, de Meu Nome É Gal, composta por Roberto e Erasmo Carlos para a porta-voz tropicalista cantar, em 1969. Não seria absurdo afirmar que sua homenagem é prima-irmã da ironia fina de Karina na Ciranda do Incentivo. O rap Fim da Egotrip começa com os acordes iniciais de Meu Nome É Gal, e a voz de Lurdez ameaça: “Meu nome... Meu nome é... Meu nome é o de menos agora”. Sim, já temos um passado grandioso a reverenciar, mas os tempos de agora são outros, profundamente diferen-

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tes dos anos heroicos da tal MPB – mas nem por isso piores ou inferiores, como o pessimismo popular brasileiro adora martelar. Fim da Egotrip prossegue e vira um manifesto de orgulho feminino. “Eu quero é dizer outros nomes/ peço licença a Quelé, Lady Day, ‘a Guerreira’, ‘a Pimentinha’”, tratando pelos apelidos Clementina de Jesus, Billie Holiday, Clara Nunes e Elis Regina. A letra evolui com citações à genial violonista Rosinha de Valença, às míticas “Janaína, Jussara, Jurema, Iara”, à freudiana Elektra, à dama do lotação... “Se é pra se perder, que seja na realidade”, afirma, em reação afetiva (mas nada submissa) aos versos “se eu tiver que me perder/ seja com você/ ou pensando em você/ só perdendo o juízo eu acho a cabeça”, da balada Os Dentes Brancos do Mundo, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, interpretada em 1969 por vozes como as das só-cantoras Evinha e Claudette Soares. Os exemplos acima são só exemplos: é impressionante a quantidade de compositoras que têm apresentado trabalhos de brilho. Exemplos, por ordem alfabética? Aline Calixto, Ana Cañas, Andreia Dias, Céu, Ceumar, Cibelle, Érika Machado, Gabi Amarantos, Lulina, Marcela Bellas, Paula Fernandes, Roberta Campos, Tiê, Tita Lima, Vanessa Bumabgny, (para não falar, já falando, das mais consolidadas comercialmente Ana Carolina, Mallu Magalhães, Fernanda Takai, Pitty, Teresa Cristina, Vanessa da Mata)... Somos um lugar absurdamente musical que já gostou de se intitular “país das cantoras”, em proposição que por décadas escondia atrás de si um insidioso “recolha-se ao seu lugar”. Num plantel dominado por clubes machistas do Bolinha, não foi nada fácil ser Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Sueli Costa, Luli e Lucina, Marina Lima... Pois temos mudado à beça, e caminhamos resolutamente para ser um país de compositoras. Pedro Alexandre Sanches é jornalista. julho 2010

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foto: jesus carlos. ilustração: lux tavares.

compositoras

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entrevista

FREI BETTO

Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino. Fotos Paulo Pereira

f

“O Brasil se tornou o paraíso do capital especulativo”

rade dominicano, jornalista, escritor, autor de 52 livros, Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, foi militante contra a ditadura civil-militar, ajudou na fundação da CUT e do PT. Foi assessor da Presidência da República para assuntos sociais, onde coordenou o programa Fome Zero. Nesta entrevista, Betto fala sobre o período em que trabalhou como jornalista, a chegada do PT ao poder, os rumos da esquerda do país e sobre o governo Lula. Para ele, embora o governo atual seja “o melhor da história republicana do Brasil”, o PT e um grupo hegemônico que o comanda “trocaram um projeto de Brasil por um projeto de poder”. Entre as lições que aprendeu no período em que esteve no Planalto, uma delas é que “o governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão”.

Hamilton Octavio de Souza - Fale sobre você, onde nasceu, onde estudou, como começou a ter militância? Frei Betto - Sou mineiro, e como diz o Drummond, a gente sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Meu pai era advogado e terminou a sua vida profissional como juiz. Era homem de extrema direita e terminou de extrema esquerda. A única vez que saiu do Brasil foi para ir a Cuba. A minha mãe é uma especialista em culinária, tem oito livros de culinária, entre eles o “Fogão de Lenha, trezentos anos de cozinha mineira”. É considerada a maior especialista nesse tema no Brasil. Éramos oito irmãos; um já faleceu, o mais novo. Hamilton Octavio de Souza - De que cidade

de Minas? Todos de Belo Horizonte. É um caso raro em uma cidade que tem pouco mais de 100 anos. Meus pais também nasceram em Belo Horizonte. Mais raro ainda: os dois e os oito filhos estudaram no mesmo grupo escolar Barão do Rio Branco, que há pouco fez 90 anos. Tive uma infância extremamente feliz, de moleque de rua, não havia a psicose televisiva. Brincava-se muito na rua, havia muita leitura, porque meu pai tinha duas manias: padaria e livraria. E ele comprava muito mais livros do que tinha tempo para ler, e não havia cômodo na casa para servir exclusivamente de biblioteca. Todos os cômodos, menos o banheiro e a cozinha por razões óbvias, tinham livros. Creio que minha vocação literária tenha a ver com isso. Meus pais escreviam, minha mãe na culinária e ele cronista dos principais jornais de Belo Horizonte durante mais de quarenta anos. Bem, depois, com treze anos, entrei na militância estudantil através da Juventude Estudantil Católica, a JEC.

Tatiana Merlino - Em que ano foi isso?

Frei Betto fala sobre a chegada do PT ao poder, rumos da esquerda e governo Lula.

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Em 1959. Na mesma época entrou o Henriquinho, que o Brasil conhece como Henfil. Nós dois éramos considerados muito crianças para pertencer à JEC. E esse desafio nos levou a nos firmar como

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militantes. Claro que o Henfil entrou por influência do Betinho, um dos fundadores da JEC de Belo Horizonte e depois foi para a Juventude Universitária Católica (JUC). E através da JEC é que eu comecei precocemente a ler muito filosofia, teologia e literatura. A primeira vez que eu enfrentei a repressão foi no dia 25 de agosto de 61, quando o Jânio Quadros renunciou à presidência. Depois, com 17 anos, fui indicado para a presidência da JEC. Então, me mudei para o Rio, onde fiquei de 62 a 64 numa república de estudantes, onde moravam doze rapazes e recebíamos mais uns 20 por mês que vinham de outros Estados para a UNE, entre eles o Betinho e o Zé Serra. Nesses três anos eu percorri o Brasil todo duas vezes, articulando o movimento. Em 64 entrei na faculdade de jornalismo. Vocês vão morrer de inveja: meus professores eram o Tristão de Ataíde, Hermes Lima, Barbosa Lima Sobrinho, Danton Jobim.

Hamilton Octavio de Souza - Qual a

faculdade? Chamava Universidade do Brasil, depois acabou. Tinha grandes figuras da história do jornalismo brasileiro. Para contrabalançar, tinha o Hélio Viana, de extrema direita e cunhado do general Castelo Branco. Em junho de 64 eu estava na faculdade lá no Rio e fui preso pela primeira vez quando houve o arrastão da Ação Popular. Fiquei 15 dias preso, confundido com o Betinho, por conta dessa coisa de Beto, de JEC e JUC de Belo Horizonte. Eles estavam atrás do Betinho, que foi o grande fundador, a grande figura da Ação Popular, que depois conseguiu sair do país. Daí surgiu aquela dúvida: será que Deus quer que eu seja religioso? Crise vocacional forte. E convencido de que eu não tinha vocação, decidi entrar nos dominicanos em 65, porque não queria chegar aos 40 anos, olhar para trás e falar: “Ih! Acho que eu errei de caminho”... Mas eu queria tirar a limpo, ver no que vai dar. Entrei e isso já são quarenta e cinco anos.

Hamilton Octavio de Souza - Era um

seminário? Não, porque eu já tinha vinte anos. Os dominicanos no Brasil não têm seminário. Só aceitam quem terminou o ensino médio completo ou está na universidade. Que é melhor porque a pessoa é mais lúcida, essa ideia de seminário eu acho muito antipedagógico, é até desumano você colocar uma criança de 13, 14 anos no seminário. Eu acho que é por isso que tem tanto problema de pedofilia, de violência sexual. O cara vive naquela redoma patriarcal, machista e onde a sexualidade é sempre considerada pecado, enfim... Mas aí entrei nos dominicanos em Belo Horizonte. Em 66, eu vim para São Paulo para fazer filosofia, fiquei aqui de 66 a 69, aí aconteceram muitas coisas.

Hamilton Octavio de Souza - Você trabalhou

na Folha, não é? Trabalhei primeiro na revista Realidade. De lá, fui para a Folha da Tarde, que foi refundada com Jorge de Miranda Jordão. E lá fiz de tudo, desde geral até editoria de polícia. Cobri muito movimento estudantil e depois fui chefe de reporta-

gem, e fui assistente do Zé Celso na montagem do Rei da Vela. Fui colega do Merlino, na Folha da Tarde. Além disso, eu estudava Filosofia de manhã e à noite fazia o curso de antropologia na Maria Antonia. Em 69 houve o AI-5, eu já estava bastante pressionado pela repressão. No início de 69, eu decido ir para o Rio Grande do Sul, porque o cerco estava se fechando, meu projeto era passar um tempo fora do Brasil, iria para a Alemanha estudar teologia. Fui para São Leopoldo, onde tinha um seminário de jesuítas, muito bom, e aí o Marighella me pediu para montar um esquema de fazer sair gente pela fronteira Sul com a Argentina e Uruguai. Um mês antes de eu ir para a Alemanha, os dominicanos, aqui em São Paulo são presos. Afinal, sou cercado no Rio Grande do Sul, consigo fugir uma semana, fui preso, caí numa cilada. Fiquei quatro anos preso, em São Paulo, só fiquei um mês preso em Porto Alegre, depois vim para cá. Foram dois anos como preso político e dois anos como preso comum, caso raro.

Hamilton Octavio de Souza - Foi na

Tiradentes? Foram oito prisões diferentes, a Tiradentes foi uma. Descrevo em detalhes num livro lançado no ano passado, que ficou quarenta anos guardado, chama Diário de Fernando, da Rocco. É um diário que foi do Fernando, um amigo meu, e a gente levou quarenta anos para publicar.

Lúcia Rodrigues - Por que levou todo esse

tempo? Primeiro, o Fernando não é jornalista nem historiador, mas teve o cuidado de anotar em papel celofane que saía dentro de canetas na visita. O frade levava uma caneta exatamente igual à que ele tinha e no meio da conversa trocava a caneta. Dentro vinha um celofane, depois se desmontava. Então, nos papéis, tinha coisas assim: “Paulinho foi para o Doi-Codi”. Ora, que Paulinho? Que data? Que aconteceu? O Fernando queria fazer o diário, mas não era do ramo, nem historiador e nem jornalista; depois de muitos anos ele falou: “Não Betto, você faz”. Aí teve toda uma pesquisa para decifrar cada papelzinho daquele, foi tudo computadorizado, teve até que ler com lente, porque ele mesmo às vezes não entendia, não lembrava a anotação. Nos últimos anos, de 2006 a 2009 me dediquei quase que exclusivamente a esse livro. Ele descreve os que a gente ficou como, primeiro, preso político, depois comum. Fomos condenados a quatro anos, e o recurso nosso no Supremo Tribunal Federal foi julgado, e reduziram a nossa pena de quatro para dois anos quando nós completávamos os quatro anos. Eu brinco que a gente tem um crédito com a liberdade de dois anos.

Tatiana Merlino - O senhor pediu indenização para o Estado brasileiro? Respeito muito quem pediu, mas nunca pedi. Primeiro porque não quero transformar uma questão política em uma questão financeira. Acho que não há dinheiro que pague o que sofri. Depois, porque embora tenha muita gente que eu respei-

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te e por quem até lutei para que merecessem a indenização, acho que tem muita gente que foi com sede no pote de ouro, gente que recebeu indenizações milionárias e foi interrogado, esteve uma semana preso, enfim. Acho que virou uma certa farra esse negócio, então preferi não pedir. Em terceiro, porque eu não preciso do dinheiro do governo, eu consigo sobreviver do meu trabalho. Isso é dinheiro público, se fosse do bolso dos generais eu até aceitaria, iria reivindicar, mas não é, e não quero usar em benefício pessoal.

Tatiana Merlino - Essa não foi uma maneira

do Estado brasileiro reconhecer que essas pessoas foram realmente presas e torturadas? Haveria outras maneiras. Por exemplo, o Estado até hoje não pediu perdão à nação pelo erro que ele cometeu. Essa é uma das dívidas, inclusive do governo Lula, que devia pedir perdão, em nome do Estado, assim como o papa pediu perdão à humanidade pela condenação de Galileu e agora de Copérnico.

Lúcia Rodrigues - Mas no governo Lula,

nesse caso recente do STF e da OAB, mais uma vez manteve a impunidade aos torturadores. Eu gostaria inclusive que abrissem os arquivos das Forças Armadas, continuo lutando por isso. Fiquei perplexo e horrorizado com a decisão do STF, porque não só é uma forma de absolvição legal de crimes hediondos, de lesa-humanidade, imprescritíveis, inclusive pela legislação dos tratados internacionais firmados pelo Brasil. Também é uma forma de abonar a tortura que continua nas delegacias praticada pelos policiais civis e militares Brasil afora. Enquanto eu viver lutarei para reverter essa situação. Tenho dedicado minha obra literária à memória desses anos de chumbo. São vários livros, o Cartas da Prisão, Batismo de Sangue, Dia de Anjo, Canto na Fogueira, que fiz com Frei Fernando e Frei Ivo, e agora o Diário de Fernando. Esqueci algum? Acho que não. As Catapuntas, que é o Cartas na Prisão, enfim. Assim como 60 anos depois a memória do sofrimento dos judeus por causa do nazismo continua viva, daqui a duzentos anos a memória do sofrimento das vítimas da ditadura militar também estará. Quer dizer, é um equívoco do STF, do governo, dos militares pensar que essa memória se apaga.

Hamilton Octavio de Souza - Quando você saiu da prisão, o que fez? Saí no fim de 73.

Tatiana Merlino - Poderia falar sobre o

período que ficou em São Paulo militando e trabalhando como jornalista? Congresso da UNE é um bom exemplo. Quem conseguiu o local do Congresso foi o Frei Tito, lá em Ibiúna, um sítio, por isso que ele foi tão barbarizado na tortura a ponto de ser levado à morte. Eu conhecia o local e armei um esquema com o pessoal da ALN e com o Frei Tito de que qualquer sinal que a repressão tivesse notícia do local do Congresso, esse sinal viria através dos sejulho 2010

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toristas do jornal. Naquela época nós já tínhamos os setoristas no Dops, no exército e etc. Eu daria um aviso para que eles pudessem se safar. E, de fato, o setorista do Dops chegou na redação e disse: “tão falando lá no Dops que tem um pessoal que estaria reunido lá pelo lado de Ibiúna e tão querendo investigar e tal.” Aí eu chamei o repórter Rogério e disse: “Você vai agora avisar a direção que a polícia está indo para lá”. O Rogério foi, mas cometi um grande equívoco. Não me passou pela cabeça que o carro da Folha, com a sua logomarca na lataria, iria ser hostilizado pela segurança do Congresso. Resultado: o Zé Dirceu me disse depois que a notícia chegou à direção do Congresso, que eles podiam ter se safado, mas surgiu um problema de consciência: “e esses mil companheiros e companheiras que estão aqui?” Aí decidiram esperar, e deu no que deu, foram todos presos. Muitas vezes eu sabia de ações revolucionárias antecipadamente e armava o jornal para isso, por isso que a Folha da Tarde era quem melhor cobria a esquerda na época. Bem, voltando ao período da saída da prisão, no fim de 73, e com muita pressão da família, da Igreja e da repressão para ir para fora do Brasil, me veio uma questão de consciência: “quando vou voltar? Quero lutar no Brasil, não se muda um país estando fora dele”. Por outro lado, “esses caras já me fizeram ficar preso o dobro do que eu merecia segundo eles. Não vou embora não, vou ficar aqui”. Então decidi ir para Vitória, que naquela época era uma cidade politicamente mais calma. Fui morar na favela de Santa Maria. Comprei um barraco lá, que está tombado, física e emocionalmente tombado. Lá mora uma amiga, a quem eu “vendi” por 50 reais com o acerto de que o dia que ela sair de lá eu tenho que ser a primeira pessoa a quem ela vai oferecer o barraco.

Gabriela Moncau - E você desenvolveu o quê

em Vitória? Fiquei cinco anos nessa favela fazendo trabalho de comunidades eclesiais de base em Vitória e assessorando a disseminação de CEBs em todo o país. Em 78 comecei a vir muito para São Paulo. Estava começando o processo de abertura, movimento sindical, movimento popular explodindo, me liguei a uma equipe de educação popular aqui de São Paulo, que existe até hoje, chamada Cepis, Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae. Trabalhei quinze anos no Cepis. A gente viajava todo o país, articulando movimentos populares, assessorando. Vim para São Paulo em 79 e fui para o ABC. Dom Cláudio era o bispo e me nomeou como o responsável pela Pastoral Operária. Fiquei vinte e dois anos na Pastoral Operária do ABC. Há duas coisas que todo mundo pensa que eu sou e nunca fui: militante do PT e padre. Nunca fui. Por que estou dizendo isso? Porque muita gente estranha. Como é que eu me tornei amigo do Lula e de outros? Por causa da Pastoral Operária, não por causa de partido, embora eu tenha ajudado muito a construção do PT. E todo balanço dessa experiência eu escrevi no livro A Mosca Azul - Refexão sobre o Poder. Logo que saí do governo fiz dois livros: um é um balan-

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ço desse processo todo de quarenta anos de construção do movimento social no Brasil; e um outro é um diário dos dois anos que eu trabalhei no Planalto, chamado Calendário do Poder.

Hamilton Octavio de Souza - Você

acompanhou o nascimento do PT e da CUT. Como vê esse processo? O meu primeiro encontro com o Lula se deu em janeiro de 1980. E a fundação do PT estava marcada para um mês depois. Chamei a atenção do Lula: “Olha, fundando o partido, vocês correm o risco de atropelar todo o movimento social”. E o Lula disse: “olha, você tem razão, e o que a gente faz?” Eu disse: “temos que fundar uma articulação de movimentos sociais e sindicais que garanta essa distância, preservando a autonomia e independência dos movimentos sindicais e populares diante do PT”. Ele concordou e no início de fevereiro, antes da fundação do PT, fizemos outro encontro de onde saiu a famosa carta de João Molevade, que até hoje o Lula cita, porque foi muito bem feita no sentido de colocar as bases da relação partido, sindicato, movimento popular e Igreja muito claramente colocando que são segmentos social e politicamente complementares. E aí, a Anampos foi fundada, Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais. Depois, com a fundação da CUT em 83, o “s” de sindicais passou a ser só o plural do Populares. Em 90, fundamos a central de movimentos populares, que não se firmou como a CUT, mas, enfim, foi fundada. Hoje, vejo que foram duas ferramentas, junto com o MST, com vários movimentos populares, movimentos de mulheres, enfim, toda essa riqueza, que levaram o Lula à presidência. Não foi a Carta aos Brasileiros, foi a articulação de brasileiros pobres, dos meios populares dos anos 70, 80 e 90. Foram trinta anos de um trabalho muito sério de base, que o PT contribuiu muito. Hoje, lamento que, uma vez chegando ao governo federal, não tenha se mantido todo aquele discernimento elaborado nos documentos da Anampos. Em outras palavras, o governo federal cooptou uma parcela importante do movimento social brasileiro, entre eles, a CUT. Ao meu ver a CUT hoje representa muito mais o governo junto ao trabalhador do que os trabalhadores junto ao governo. E, por sua vez, o PT e um grupo hegemônico que o comanda trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. E isso eu analiso detalhadamente no livro A Mosca Azul. A ponto de ao invés de se apoiar, apoiar a sua governabilidade, como fez o Evo Morales, nos movimentos sociais no primeiro mandato do Lula esse apoio foi descartado e se buscou o tradicional apoio do Congresso. Como o Congresso é dominado por forças políticas tradicionalmente conservadoras, contrárias a tudo aquilo que inspirou a criação e afirmação do PT, ele acabou refém dessas forças conservadoras e isso é simbolizado hoje pela importância que o PMDB tem no processo de sucessão do Lula.

Lúcia Rodrigues - E por que o governo Lula

optou por essa saída? Porque o governo Lula não percebeu a força social que tinha em mãos para implementar as reformas

de estrutura do País. Devo dizer com toda a clareza, considero o governo Lula o melhor da história republicana do Brasil. Segundo, Brasil, América Latina e mundo são melhores com o Lula do que sem o Lula, essa é a minha posição. E terceiro, quero que essa política implementada pelo governo Lula prossiga, com todas as críticas que eu tenho, com todas as reservas que eu faço, principalmente no âmbito internacional e no que diz respeito às políticas sociais, embora lamente que Fome Zero criado pelo governo tenha sido assassinado pelo próprio governo. E no lugar de um programa que tinha um caráter emancipatório, se introduziu um programa de caráter compensatório que é o Bolsa Família. É bom? É bom, o Fome Zero era ótimo.

Tatiana Merlino - Por conta dessa opção o

governo teve que fazer muitas concessões? Na minha opinião, a maior concessão que o governo fez é na parte econômica. Se a gente considerar que o governo joga através dos títulos da dívida pública quase trezentos bilhões de reais para fomentar a especulação no mercado financeiro e apenas 44 bilhões na saúde, um pouco menos na educação. Então, é uma desproporção muito grande. Depois essa política de juros altos. Tem hoje uma dívida interna de 2 bilhões de reais, dívida externa tende a crescer. O Brasil se tornou o paraíso do capital especulativo. Louva-se, como se fosse um grande mérito, o fato do capital estrangeiro vir ter esse afluxo para o Brasil, como se isso não tivesse um ônus sério a longo prazo, para este país. E, por outro lado, a principal crítica que eu tenho é que serão oito anos sem nenhuma reforma estrutural, nem agrária, nem a tributária, nem a política, nem a da saúde, da educação. E, apesar disso, continuo achando que foi o melhor governo que tivemos, mas eu esperava mais.

Tatiana Merlino - E como é que o senhor

avalia a situação das forças de esquerda hoje no País? Com muita preocupação. Primeiro, porque a queda do muro de Berlim abalou e desmobilizou o que eu chamo de esquerda ideológica, retoricamente ideológica. Aquela que conhecia toda a obra de Marx, de Engels, de Lenin, de Trotski, de Mao Tse-Tung, de Guevara, mas não conhecia o povo. Foi um alívio o muro de Berlim cair para essa gente, porque hoje eles se tornaram burgueses sem culpa. E há uma esquerda que vinha tendo como referência da sua postura pró-socialista favorecer a libertação dos pobres da pobreza, principalmente a esquerda de tradição cristã, a esquerda que fazia trabalho de base, que ia para a periferia, o pessoal das comunidades eclesiais de base das pastorais populares. Por exemplo, de onde resultou o MST, a Comissão Pastoral da Terra, o Cimi, essa esquerda continua e é o que restou da esquerda. E hoje, antigos companheiros da esquerda, fico indignado na maneira como eles professam em público com tanta convicção de que o capitalismo é humanizável, reformável. Ou seja, só há uma explicação para isso: é quando você troca o projeto de um povo, de emancipação de uma nação, por um projeto pessoal ou coletivo de poder. Aí faz uma série de concessões

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“A principal crítica que eu tenho (ao governo Lula) é que serão oito anos sem nenhuma reforma estrutural, nem agrária, nem a tributária, nem a política, nem a da saúde e da educação”. e a crise do Maranhão são sintomáticas, são duas crises que eu conheço a fundo. Então, isso mostra que ainda há luz no fim do túnel do PT.

Gabriela Moncau - Você acredita numa

transformação social concreta por meio do aparelho estatal? Não, acredito numa transformação por meio da mobilização popular que, por sua vez, pressiona o aparelho estatal. Aprendi no governo duas grandes lições: governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão. Só que quem mais pressiona o poder público são as elites através dos lobbies muito bem pagos e organizados. Nós, movimentos sociais, precisamos fazer a mesma coisa. E, depois que saí do governo, hoje sou um feliz ING, Indivíduo Não-Governamental. Tenho me dedicado, além de escrever, a assessorar movimentos sociais, só faço isso. E a segunda, é que o governo não muda ninguém, o poder faz as pessoas se revelarem.

Tatiana Merlino - Não corrompe, revela?

que ferem os princípios que eram anteriormente defendidos. E, ao mesmo tempo, não contempla o que é mais importante, que é a drástica redução da desigualdade social deste país.

ela venha, para que ele volte a ser o partido que representa os setores mais oprimidos da nação e volte a ser o partido que se caracteriza pela sua ética e atividade política.

Hamilton Octavio de Souza - Você acha que

Hamilton Octavio de Souza - Recentemente

o PT ainda tem energia transformadora? Acho que sim, existem muitas pessoas sérias e íntegras, ideologicamente consistentes dentro do PT. Mesmo alguns grupos organizados dentro do PT, que não são lamentavelmente os grupos hegemônicos, mas com condições, ao meu ver, de a médio prazo ganhar a luta interna. Então, até porque eu não sou favorável a essa multiplicidade de partidos de esquerda, isso acaba criando uma grande fragmentação e só favorece o fortalecimento da direita. Assim como eu vivo numa Igreja que é estruturalmente, histórica e tradicionalmente conservadora, às vezes repressora, mas é porque eu acredito que só dentro, só estando dentro de uma instituição é que a gente pode mudá-la. Eu também acho que o PT é vulnerável sim a uma mudança, e tomara que

teve o Congresso da CPT, e a Assembleia Popular. O que se percebe nesse conjunto de forças é uma desconfiança cada vez maior ao PT e uma efervescência na construção de um outro instrumento. Sim, agora, já foram criados outros instrumentos, como é o caso do Psol. E temo, como uma síndrome da ingenuidade esquerdista, temo o antipetismo. Creio que o PT, com todas as suas falhas, é um aliado de um projeto emancipatório do Brasil e, portanto, embora hoje eu tenha muita simpatia pelo PSol, como tenho por setores do PCdoB e do PSB e até do PSTU... não posso generalizar e dizer que todo o PT foi responsável pelo mensalão, todo o PT está compactuado com as forças retrógradas do PMDB. Veja a crise de Minas. A crise de Minas

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Há um ditado espanhol que é fantástico: “Se queres saber quem é Juanito, dê-lhe um carguito”. Então, isso é verdade, mas acho que a transformação social, a mudança social vem por essa pressão da mobilização popular, como tem ocorrido na América Latina. Hoje olho e dou graças a Deus, olho com muito otimismo para o ascenso social na América Latina, chamo de primavera democrática. Tivemos nesses últimos cinquenta anos, primeiro um ciclo de ditaduras militares, depois um ciclo de presidentes messiânicos neoliberais. Todos fracassaram. E agora nós estamos no terceiro ciclo que é absolutamente uma enorme novidade na história. Os eleitores dentro dessa democracia burguesa estão elegendo políticos que não vêm das oligarquias tradicionais e que pelo menos retoricamente têm um compromisso com mudanças sociais. Isso é absolutamente fantástico, por isso considero que essa política externa do Lula tem que ser preservada e prosseguir. Porque o Brasil joga um peso inestimável nessa nova geopolítica latinoamericana e caribenha. Inclusive com o apoio que dá a Cuba.

Lúcia Rodrigues - Eu queria retomar quando o senhor colocou a questão da Carta aos Brasileiros que não foi que fez o Lula ganhar o governo. Mas, em 89, o PT com o Lula tinham sua recepção na massa e não ganharam. Eu não diria que o Lula não ganhou em 89, eu diria que o Lula quase ganhou em 89. Ou seja, apesar de todo o seu discurso ideologicamente mais radicalizado na época, ele quase ganhou. Ele mesmo não esperava chegar ao segundo turno, estava julho 2010

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zido o Bolsa Família, sob controle dos prefeitos. Enfim, evidentemente trazem dividendos chamados votos. Porque os prefeitos ameaçavam não respaldar o governo federal se eles não tivessem esse trunfo na mão. E a segunda razão, é porque minha vocação é escrever e trabalhar com movimento social, então, eu saí do governo aliviado. Saí bem, descrevo lá no Calendário as conversas com o Lula, cartas e bilhetes que trocamos, tudo isso, mas jamais voltarei a trabalhar em poder público ou em iniciativa privada.

Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros

você escreveu.. Você tem uma obsessão fantástica pela escrita... Eu tenho disciplina. Na verdade, as duas coisas que eu mais gosto nessa vida é orar e escrever. E há muitos anos, desde 1986, eu reservo 120 dias no ano só para fazer essas duas coisas, eu me isolo. E aí são os milhares dos meus pensamentos.

Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros

são? São 52 só de autoria própria, tem outros de coautoria. Meu pai brincava: “Você já leu todos os livros que você escreveu?” Muitos foram superados pelo tempo, pelo tema, pela ocasião e etc.. Agora, eu não posso passar mais de 48 horas sem escrever, senão me falta ar. É compulsivo. Não é só disciplina, é uma coisa lá dentro muito forte.

Hamilton Octavio de Souza - Nesse quadro convencido que era o Brizola que ia passar para o segundo turno. Lula se surpreendeu quando se viu no segundo turno. E ele não perdeu pelo discurso que fazia, ele perdeu pelas falhas da própria campanha, como o debate final e também por algumas manipulações televisivas que favoreceram. Estou convencido que mesmo sem a Carta aos Brasileiros o Lula ganharia em 2002 por causa do acúmulo desse processo social que começou lá nos anos 70. Evidente que não sou totalmente contra a Carta aos Brasileiros. Acho que um candidato a presidente tem que dialogar com todas as forças vivas do País. Mas atribuir a ela a vitória do Lula é menosprezar o acúmulo dos movimentos sociais em todos esses anos, toda a mobilização ocorrida no País, e isso de maneira alguma eu posso aceitar. Embora hoje a gente saiba, sempre a mídia tem um papel muito importante em processo eleitoral e, por sua vez, o dinheiro para ter acesso a essa mídia é determinante.

ta maneira, isso aconteceu no Brasil com a eleição do Lula. Os movimentos sociais, ao invés de se manterem mobilizados, ficaram celebrando que o Lula com a varinha de condão faria todo o milagre das nossas reivindicações e anseios, que seriam todos atendidos. Então, houve sim uma desmobilização dos movimentos sociais por um lado. E eu fui convocado para trabalhar exatamente na mobilização social, como eu descrevo com detalhes no livro Calendário do Poder, e não tive suficiente apoio do governo. A duras penas consegui montar dentro do governo uma rede de educação popular que é atuante até hoje, que permanece, que deve ser a primeira vez na história do Brasil que a partir da estrutura do poder público federal existe uma grande equipe de profissionais e voluntários fazendo o trabalho de base no Brasil através dessa rede de educação popular a duras penas. Mas não tive o respaldo que esperava ter, uma das razões pelas quais deixei o governo.

Tatiana Merlino - Por que de 2002 para cá a

Tatiana Merlino - O senhor saiu indisposto

força desses movimentos sociais que levaram o Lula a chegar ao governo federal não serviu de suporte para que o próprio governo avançasse mais nas reformas? Um dia o Fidel me disse que um dos erros da revolução é que nós prometemos tanto para o povo que quando chegamos ao poder, aquele povo que havia se mobilizado para respaldar a revolução caiu na inércia, e descobrimos que ele olhava para a revolução como quem olha uma grande vaca que tem que ter uma teta para cada boca. De cer-

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com o governo? Indisposto? Não. Primeiro eu saí do governo por duas razões mais fortes: pelo governo ter criado e matado o Fome Zero, e eu discordei dessa mudança. Fome Zero era um trabalho de mobilização social importante, todo baseado nos comitês gestores eleitos naquela época, no fim de 2004 em mais de dois mil municípios brasileiros sem nenhuma interferência dos prefeitos. E, de repente, a Casa Civil decidiu erradicar todos os comitês gestores e passar o cadastro do Fome Zero, aí foi introdu-

hoje, quais as perspectivas, que tipo de lutas você vê que deve se levar, o que você está fazendo, no que você está acreditando? Qual é o futuro imediato nosso? O meu maior medo hoje é o que chamo de elitização da política. Ou seja, quando eu recebo a notícia de que cada candidato a presidente gastará em média 200 milhões de reais em campanha, eu digo virtualmente: “isso não é democracia”. Porque a democracia supõe uma certa isonomia. Uma certa, uma partilha do direito de pessoas, independente do poder financeiro. Eu considero a tarefa mais importante hoje reforçar os movimentos sociais, criar uma sociedade civil fortalecida, mobilizada, consciente e capaz de propor um novo projeto para o Brasil, os outros mundos possíveis, não só o outro, os outros. Porque eu creio que temos que pensar num futuro plural, embora eu considere no conjunto, esse plural, eu continuo chamando de socialista, porque não vejo futuro para a humanidade sem a partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho humano.

Gabriela Moncau - Qual é a sua avaliação

em relação ao processo eleitoral deste ano e como fica o cenário político do Brasil daqui para frente, depois das eleições? Sou amigo dos quatro candidatos, da Dilma, da Marina, do Serra e do Plínio.

Lúcia Rodrigues - Com mais tendência para

qual lado? Quero muito que haja continuidade do governo Lula, essa é a minha posição.

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Eduardo Matarazzo Suplicy

porca miséria! Glauco Mattoso

MENGELICA CONNEXÃO [SONETO 3286]

servar a vida a qualquer custo (E bota custo nisso, em termos de hospital e remedio!), parece que os medicos se “esqueceram” de que não adeanta prolongar uma sobrevida si não houver bem estar. Um paciente terminal interminavelmente entubado numa UTI é o mesmo que um prisioneiro num campo de concentração, submettido à tortura “scientifica”. Outrora, ou se vivia minimamente com saude, ou se morria com mais rapidez e menos soffrimento artificial. Será que estamos todos, subtil e machiavellicamente, virando cobayas dum immenso nazismo medicinal? E a quem serviria tal nazismo disfarsado? Ao cerebro psychotico dalgum scientista genocida ou dalgum dictador racista? Nada disso! Serviria a uma lucrativa industria pharmaceutica, a um lucrativo commercio hospitalar e a um lucrativo mercado segurador. Ou não? O que eu ja gastei em operações e remedios contra o glaucoma! E fiquei cego mesmo assim, só que pagando mais e soffrendo ainda mais...

A moda, que já foi fator de exclusão, é hoje fator de inclusão, na avaliação de Glorinha Kalil, uma das pessoas que mais acompanham o que acontece com a moda. Se analisarmos as repercussões da São Paulo Fashion Week – SPFW, vamos nos deparar com números e dados muito significativos. Esse evento se tornou um marco na história da moda no Brasil e no mundo. Ele contribuiu para a economia, gera empregos, valoriza a cultura brasileira, a beleza e a arte. Em cada versão, se aprimora mais e mais. Paulo Borges, idealizador da SPFW, veio de São José do Rio Preto para a Capital, nos anos 70, para estudar computação e comércio exterior. A moda foi um acaso em sua vida. Acaso que deu certo! Ele disse que tinha como objetivo criar uma cultura de moda no Brasil. Em 1996, na Morumbi Fashion Week, surgiram os nomes das modelos de sucesso, como Gisele Bündchen, Ana Cláudia Michells, Isabelli Fontana, bem como grandes nomes do mundo da moda brasileira, inclusive masculina, como Ricardo Almeida, Ronaldo Fraga e Reinaldo Lourenço, para citar alguns exemplos. Em 1993, havia apenas quatro escolas de moda; agora, segundo Paulo Borges, há 150. Hoje a SPFW envolve uma cadeia imensa de profissionais e gera mais de cinco mil empregos diretos. Atualmente, há no mercado da moda 30 mil empresas que movimentam cerca de R$ 50 bilhões ao ano e empregam 1,7 milhão de brasileiros. O setor é responsável por 17% do nosso Produto Interno Bruto. A SPFW, encerrada no dia 14 de junho, recebeu cerca de R$ 11 milhões de reais em investimentos, tornando-se o evento de moda mais famoso da América Latina. É importante ressaltar que a SPFW tem patrocinado, através do projeto Ofício Moda, o treinamento de costureiras, modelos, modelistas e piloteiras nos bairros mais carentes – como Heliópolis, Paraisópolis e outros – a também realizarem ações de moda. Em Heliópolis, uma cooperativa de costureiras realiza desfiles com suas criações. No ano que vem, a edição de junho da SPFW será ampliada e ocupará outros espaços com desfiles e exposições de 100 designers brasileiros, além de debates que envolverão um número maior de pessoas de forma a consolidar esse setor de maneira mais consciente e consistente. O que é bom tem que ficar e ser cada vez melhor, pois a geração de emprego e renda proporcionados pela moda é visível fator de inclusão social.

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Terror ou scientifica ficção? Ha filmes que p’ra manga panno dão. Agora, no circuito americano (Será que tambem chega ao brasileiro?), um classico me intriga, e aqui o explano: De medico e de monstro ha nelle um mix, pois liga um scientista a bocca ao anus num bicho transformando trez humanos: “The human centipede”, de Tom Six. No chão come o primeiro e, pelo cano anal come o segundo. No terceiro a merda é recagada. Insano plano! É, para a “centopéa”, a digestão peor na engattinhante posição. O phantasma do nazismo continua fascinando os cineastas, a julgar pelo filme que, ainda ignorado pela nossa midia, ja circula virtualmente e provoca o maior buchicho no publico internauta: “The human centipede”, do hollandez Tom Six. No portal cronopios.com.br commentei mais detalhadamente esse longa de horror, no qual trez cobayas humanas (um homem e duas mulheres) são cirurgicamente interligadas num unico apparelho digestivo (pela connexão anal-buccal) nas mãos dum medico allemão, resultando essa “siamezação” numa especie de centopéa. Sem entrar nas implicações sadomasochistas daquillo que eu chamo de “bacchanal buccoanal” ou de “suruba cubuccal”, quero aqui levantar uma questão ethica. De passagem, rejeito a nomenclatura “systema digestorio” como rejeito a orthographia phonetica. Mas a dictadura da medicina, questiono, não se restringe às monstruosas experiencias nazistas que celebrizaram o doutor Joseph Mengele e inspiraram personagens como o villão deste filme. Sob o pretexto de pre-

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Ilustração: bruno paes

A moda como fator de inclusão social

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tacape Rodrigo Vianna

Fidel Castro

Dunga X Globo: o fim dos privilégios

O golpe

Quando essa revista

estiver em suas mãos, caro leitor, a velha imprensa brasileira já terá decidido se Dunga é “um técnico limitado e teimoso, que conduziu o Brasil ao fracasso”, ou “um treinador obstinado, que contra tudo e contra todos comandou o Brasil rumo à vitória”. Na imprensa esportiva, as análises são - quase sempre - feitas assim: ao vencedor, as batatas! A única exceção talvez seja a seleção de 82. Apesar de não ter vencido, pouca gente tem coragem de negar que aquele time dirigido por Telê Santana - e conduzido dentro de campo por Falcão, Sócrates e Zico - foi uma das mais talentosas esquadras já montadas pelo Brasil. Mas voltemos a Dunga. O caso dele é mais dramático. Dunga não foi um grande jogador, e não é um grande técnico. Isso é fato. Dunga era um volante brucutu, que jogava o adversário no alambrado, e é um técnico inexperiente. Ponto. Mas Dunga é, sim, um líder. Impossível negar a capacidade de liderança que ele exerceu como capitão na Copa de 94. Inegável também a habilidade de Dunga para “fechar o grupo”, agora como técnico. Vejam a balbúrdia que acometeu França e Inglaterra na Copa da África do Sul. “Excesso de estrelas”, diz a imprensa européia. Os técnicos Capello e Domenech não conseguiram controlar um bando de jogadores estelares, novos-ricos da bola, milionários que gostam de desfilar com namoradasmodelos e de exibir o seu poder. Dunga conseguiu. Montou um grupo. Fez escolhas. Desagradou muitos. É um líder. Há várias maneiras de ser líder, dirão alguns. É verdade. O líder pode ser alguém que articula, soma, reduz as zonas de conflito. Mais ou menos como Lula faz no Brasil – para irritação de muitos (entre eles, esse humilde escrevinhador) que gostariam de vê-lo comprando algumas brigas. E há o líder que luta, briga e confronta. Como faz Chávez na Venezuela. Ou como fazia o velho Brizola no Brasil. Dunga está mais para Brizola. A diferença é que o ex-governador – apesar de combativo – era homem afável no trato pessoal. Dunga, não. É desagradável, irritadiço, sofre com mania de perseguição. Mas ainda assim é um líder. E, justo durante a Copa, ousou desafiar o maior poder estabelecido no Brasil: a TV Globo. Transformou-

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se numa espécie de Brizola da bola! Dunga acabou com as “salinhas” exclusivas da Globo. Em outras Copas era assim: a Globo pagava pelos direitos de transmissão, e achava que tinha comprado – junto – o direito de exclusividade para falar com jogadores. Tudo sob os auspícios da CBF. Dunga acabou com essa bagunça. A Globo, que em outros tempos tramaria a derrubada do técnico nos bastidores, mostrou-se inabilidosa, e resolveu apelar: fez um editorial contra o técnico. Ficou tudo exposto, didaticamente, para o grande público. As enquetes na internet também mostraram que o tiro da Globo saiu pela culatra. Entre Dunga e a Globo, o público ficou com o primeiro – numa proporção de 8 a 2. Isso não faz dele uma pessoa especial. Nem acho que Dunga fez bem ao atacar publicamente, com palavrões, um comentarista da emissora do Jardim Botânico. Mas Dunga teve o mérito de expor para o Brasil os bastidores de um esporte que move multidões, mas é (ou era) controlado por dois ou três diretores da TV Globo.

astucioso à espreita Nada de estranho seria que tanto Isra-

Escrevo essa coluna de Johannesburgo, onde vim trabalhar na Copa do Mundo, como jornalista da TV Record. Pouco antes de embarcar, participei de uma reunião para organizar o “Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas”. A idéia partiu do jornalista Luiz Carlos Azenha. Ele, aliás, já anunciou que tudo foi tramado na mesa de um bar em São Paulo. Quase uma “conspiração”, diz o Azenha. Além dele, Altamiro Borges, Eduardo Guimarães, Conceição Lemes e esse escrevinhador estiveram presentes. Paulo Henrique Amorim também se juntou ao grupo. Trata-se de uma “conspiração” anunciada publicamente. O Encontro dos Blogueiros já tem data marcada e local: Brasília, nos dias 20, 21 e 22 de agosto. A organização deve ficar por conta do “Centro de Estudos Barão de Itararé”. Não se imagina criar uma entidade, nem um Portal de blogueiros. O consenso é que o melhor é funcionar em rede, mas com o respeito à autonomia de cada um.

el quanto os Estados Unidos e seus estreitos aliados com direito ao veto no Conselho de Segurança, França e Grã-Bretanha, quisessem aproveitar o enorme interesse que desperta o Mundial de Futebol para tranquilizar a opinião internacional, indignada pela criminosa conduta das tropas elites israelenses na Faixa de Gaza. É, portanto, muito provável que o próximo golpe contra o Irã, depois da resolução do Conselho de Segurança impondo mais sanções ao país, se atrase algumas semanas, e inclusive, seja esquecido pela maioria das pessoas nos dias mais calorosos do verão boreal. Haveria que observar o cinismo com que os líderes israelenses responderão às entrevistas coletivas nos próximos dias, onde serão bombardeados com perguntas. Oportunamente, eles irão elevando o rigor de suas exigências antes de apertar o gatilho. Anseiam repetir a história de Mossadegh em 1953, ou levar o Irã à idade de pedra, uma ameaça da qual gosta o poderoso império em seus tratos com o Paquistão. O ódio do Estado de Israel contra os palestinos é tal, que não hesitaria em enviar o milhão e meio de homens, mulheres e crianças desse país aos crematórios em que foram exterminados pelos nazistas milhões de judeus de todas as idades. A suástica pareceria ser hoje a bandeira de Israel. Esta opinião não nasce do ódio, mas sim do sentimento dum país que prestou albergue aos judeus da Segunda Guerra Mundial. Uma etapa nova e tenebrosa abre-se para o mundo. O próprio Obama admitiu em seu discurso na universidade islâmica de Al-Azhar, no Cairo, que “em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam um papel na derrubada dum governo iraniano eleito democraticamente”, apesar de que não disse quando nem com que propósitos. É possível que nem sequer se lembrasse como o levaram a cabo contra Mossadegh em 1953, para instalar no governo a dinastia de Reza Pahlevi, o xá do Irã, ao qual armaram até os dentes. Naquela época o Estado de Israel não possuía uma só arma nuclear. O império tinha um enorme e incontrastável poder nuclear. Então, os Estados Unidos pensaram na arriscada ideia de criar em Israel um gendarme no Oriente Médio, que hoje ameaça uma parte considerável da população mundial.

Rodrigo Vianna é jornalista.

Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

Blogueiros, uni-vos

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João Pedro Stedile

Ana Miranda

O BRASIL,

Parque de

mais além do futebol...

diversões II

A sociedade brasileira é uma das de maior desigualdade social entre

A chuva desabou desde o pôr do sol e

todos os 186 paises do mundo! Isso choca ainda mais, por termos recursos naturais, fontes de energia, minérios, matérias-primas... Entre 1930-1980, crescemos a 7,6% ao ano em média, a cada dez anos dobramos a riqueza produzida. Somos a oitava economia mundial em volume de riquezas. O Brasil é o maior exportador de soja, açúcar, carne de boi, mas, se não fosse a bolsa família, 11 milhões de famílias, ou seja 44 milhões de brasileiros, continuariam passando fome. Temos 16 milhões de brasileiros adultos, que produzem riquezas, mas que não tiveram o direito a conhecer as letras! Apenas 10% da juventude frequentam uma universidade. E pior, a ampla maioria deles paga faculdades particulares, enquanto os filhos da burguesia se acomodam nas universidades públicas. E tem gente que reclama das quotas aos jovens pobres e de origem afrodescendente. Sabemos os volumes de recursos que as filiais de transnacionais enviam para as matrizes, para manter os elevados padrões de consumo de seus acionistas com o suor brasileiro. Temos uma reserva enorme de dólares, do governo, depositados em bancos norte-americanos recebendo taxas de 2% ao ano, enquanto o próprio governo paga por uma mal explicada divida interna 10,25% ao ano aos bancos daqui. E nem a universidade, nem os intelectuais e muito menos a imprensa e os políticos se preocupam em analisar por que então seguimos sendo uma sociedade tão desigual? O máximo que chegam é às nossas raízes históricas de quatro séculos de escravidão, que estão na base da formação socioeconômica brasileira. O que é verdadeiro, mas insuficiente. As causas de nossas mazelas estão claramente identificadas na situação estrutural da economia: - Apenas 1% dos proprietários controla a metade de todas as terras. - A concentração da propriedade das fábricas, comércio, nas cidades. - A concentração da riqueza ao longo de décadas, produzida pelo trabalho de milhões de brasileiros, mas apropriada por uma minoria de 10%. O capital ficou com ao redor de 60% de todos os bens, enquanto quem trabalha fica com 40%. - A concentração do direito à escola. - A concentração da indústria, seja em algumas empresas, seja em termos geográficos. - Não mais de dez bancos controlam toda a movimentação financeira do país. - Jornais, revistas, rádios e televisões de poucos donos se tornaram mecanismos de ganância e reprodução do pensamento da classe dominante. - A nossos melhores hospitais e atendimento medico só têm acesso os ricos, e a classe media se resigna em pagar pesadas mensalidades de planos de saúde particulares. - A cidade de São Paulo tem 420 mil imóveis vazios, enquanto milhares de famílias vivem em barracos e condições desumanas. Esperamos que agora na campanha eleitoral os candidatos e os partidos criem vergonha na cara e tenham coragem de debater os verdadeiros problemas da sociedade com o povo brasileiro.

noite adentro alagou ruas, deixando a cidade quase deserta, aqui e ali vultos abrigados em marquises, ou um pedestre apressado, debaixo de uma sombrinha. Os carros passavam com suas luzes assombrosas, e na avenida inundada desenvolviam a velocidade levantando a água empoçada, formando como que fontes luminosas que irrigavam o canteiro entre as pistas. Estava na hora. O pai contou umas moedas, fez sinal aos dois filhos adolescentes, vestiram calções velhos e camisas fora do uso de tão velhas e rasgadas, tiraram as chinelas. Desceram as escadas do pequeno e humilde apartamento na periferia da avenida, percorreram a rua com os pés chafurdando nos lamaçais, no mesmo sentido da enxurrada, ladeira abaixo. No caminho encontravam outros que seguiam na mesma direção e se cumprimentavam com gritos ou acenos. Pararam num bar, tomaram um copo de cana, uma só dose dividida entre os três, que os aqueceu por dentro. Seguiram com mais ímpeto, num sentimento de alforria que os transportava a outros mundos, esquecidos das vazantes de uma vida petrificada e reversa, até que afinal chegaram à margem da rodovia. Esperaram que o sinal perto dali se fechasse e atravessaram a primeira pista. No canteiro central já estavam alguns homens e crianças em pé, bem perto do meio-fio, aguardando em silêncio, concentrados. O pai e os dois filhos se puseram ao longo da grande poça que se formara numa depressão, saudaram os companheiros, e também esperaram. Quando o sinal abriu, os carros saíram rugindo, vinham como um trem fantasma, sem rosto, aumentavam a velocidade à medida que se aproximavam, diminuíam diante do alagamento da pista, tomavam marcha reduzida e atravessavam as águas, levantando altas ondas douradas pelos faróis, avermelhadas pelas luzes traseiras, azuladas pela luz dos postes ou dos relâmpagos. Os caminhões eram os mais aplaudidos, pois formavam verdadeiras torrentes. Pai e filhos recebiam as ondas sobre o corpo, fazendo algazarra, numa folia de criança diante daquele mar improvisado. Assim foi até quase de madrugada, quando cessou o movimento de carros. Voltaram para casa fatigados, mas refeitos com aquela fantasia que sabiam farrear.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Ana Miranda é escritora. julho 2010

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Joelma Couto

lixo radioativo

Cachoeira das Antas, em Poços de Caldas, no rio que pode ter sido contaminado por dejetos de depósito radioativo.

Vereadores da cidade querem que os materiais radioativos mesotório e torta ll, estocados nas instalações do Complexo Industrial de Urânio de Caldas (MG), sejam retirados de lá.

q

uem nasceu na região do planalto de Poços de Caldas, Minas Gerais, após 1977, cresceu ouvindo muitas histórias sobre a mina de urânio Osamu Utsumi, localizada no município de Caldas. Uns contam que na infância ouviam dizer que lá se fabricava a bomba atômica, outros ouviam boatos que ligavam o

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urânio ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, confirmados no livro “Saddam, O Amigo do Brasil”, do jornalista Leonardo Attuch. Segundo narra Attuch, “Entre os anos de 1976 e 1990, Brasil e Iraque foram grandes parceiros comerciais. Uma das mais sigilosas operações entre os governos do general João Batista Figueiredo e de Sa-

foto Joelma do Couto

ameaça região de Poços de Caldas

ddam Hussein aconteceu no dia 14 de janeiro de 1981. Foi quando dois aviões iraquianos decolaram das pistas do Centro Tecnológico Aeroespacial, em São José dos Campos, e voaram em direção a Bagdá, carregados com o urânio que vinha das minas de Poços de Caldas”. Em 1982, deu-se início à operação comercial para produção de concentrado de urânio, que durou até 1995. Não se sabe exatamente quantas toneladas de urânio foram extraídas da mina, que fica em um local conhecido como Campo do Cercado. Sabe-se que a produção foi muito pequena, algo em torno de 4.500 toneladas, segundo o site oficial da INB, e 1.200 toneladas segundo folder sobre a produção da mina.

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Vereadores preocupados No último dia 6 de abril, o gerente de descomissionamento da Indústrias Nucleares do Brasil - Caldas, Luiz Augusto de Carvalho Bresser Dores, compareceu à sessão da Câmara Municipal de Poços de Caldas, a convite do vereador Tiago Cavelagna (DEM). Bresser afirmou que mais de 12 mil toneladas de torta ll estão estocadas na unidade de Caldas, mas não trazem nenhum tipo de risco para a população. Os números são altos: 7.588.726 toneladas de rejeitos radioativos, 2.302 toneladas de mesotório em silos aterrados e 1500 toneladas estocadas na barragem de rejeitos, além de 10.159 toneladas de torta ll em bombonas e o restante em silos de concreto aterrados. Outra preocupação é o chamado bota-fora: milhões de toneladas do que sobrou da lavra de urânio e que contêm minerais ricos em enxofre (sulfetos). Estes minerais sofrem um processo de oxidação natural e em contato com a água da chuva produzem ácido sulfúrico. O ácido dilui na água e solubiliza os metais pesados, como por exemplo o urânio. Mesmo que em quantidades pequenas, quando a água é drenada estes metais também são transportados para a barragem de drenagem ácida. Esta mistura de metais pesados e ácidos tem caráter nocivo e pode alcançar os mananciais

Vereadora Maria Cecília Figueiredo Opípari.

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Caldas, pois existem indícios de que o material radioativo não está acondicionado com segurança. A reportagem teve acesso a fotos que seriam dos depósitos da INB-Caldas, que mostram o comprometimento na armazenagem de grande parte do material, com latões enferrujados e amassados, pallets de sustentação comprometidos.

ou mesmo o lençol freático da região, comprometendo o meio ambiente. Quando chove forte, existe a possibilidade da barragem transbordar e esta água ácida cair no Ribeirão Soberbo, que faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Verde, que flui para o município de Caldas, com prejuízo para a fauna e flora da região. Também está dentro dos limites da mina a Bacia Hidrográfica das Antas, que flui para Poços de Caldas. A vereadora e médica Regina Cioffi (PPS) entregou ao Ministério Público de Poços de Caldas, no dia 18 de junho, um dossiê com denúncias contra a INB-Caldas. Ela afirmou que “a INB é uma estatal, está sob jurisdição federal, por isso pedi ao MP de Poços de Caldas que encaminhe as denúncias ao Ministério Público Federal”. Já a vereadora Maria Cecília Opípari (PSB) quer que a torta ll e o mesotório depositados em Caldas voltem para São Paulo. “Tenho medo que a INBCaldas se torne um depósito de lixo radioativo proveniente de todo o país”, afirma a vereadora. Maria Cecília levará as denúncias contra a INB para Brasília, onde participará da Conferência Nacional das Cidades, como delegada do Estado de Minas Gerais e da cidade de Poços de Caldas. Segundo Maria Cecília, existem indícios de que no dia 28 de maio houve um rompimento em uma barragem que fica dentro do complexo da INB-Caldas e cujas águas são despejadas no Ribeirão das Antas. “Não quero alarmar a população, mas temos que tentar buscar esclarecimentos”, afirma a vereadora. Estudos feitos em vários países comprovam o aumento da incidência de câncer em crianças que moram perto de instalações nucleares. Dados estatísticos de órgãos públicos da saúde atestam altos índices de câncer nos municípios de Santa Rita de Caldas, Ibitiura de Minas, Caldas, Andradas e Poços de Caldas, todos na região onde se localizam os depósitos de lixo radioativo. Segundo Regina Cioffi nunca se produziu torta ll e mesotório na unidade da INB-Caldas. Para ela, “quem produziu o lixo, que arque com as consequências”. A Câmara Municipal de Poços de Caldas formou uma comissão composta por cinco vereadores, que deverão visitar as instalações da INB-

Rejeito ou estoque?

foto divulgação

Após a paralisação total das atividades de lavra, iniciou-se outra polêmica na região. Em São Paulo, a Usina de Santo Amaro (Usam), também conhecida por Nuclemon, entrou em processo de descomissionamento, processo de desativação de uma instalação nuclear ao final de sua vida útil, observando-se todos os cuidados para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores, das pessoas em geral e também do meio ambiente. No entanto, para se descomissionar é necessário desmontar todas as construções envolvidas, retirar até mesmo a terra que se tornou radioativa e depositá-los em um local seguro. Como no Brasil não existem depósitos definitivos, assim como no resto do mundo, a solução foi enviar para a área da antiga mina de urânio de Caldas. A população da região se revoltou. Milhares de toneladas dos materiais radioativos torta ll e mesotório produzidos pela Usam já estavam estocados no local, e os moradores da região ainda teriam que mais uma vez aceitar estes vizinhos indesejáveis? Maria Augusta Barbosa, moradora de Caldas, conta: “Ficamos revoltados, não fomos nós que produzimos este lixo, por que devemos aceitálo aqui?” Depois de muito barulho da população, apoiada pelo Greenpeace, e da intervenção de autoridades, como o ex-juiz da comarca da Caldas, Ronaldo Tovani, e do ex-secretário de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais, Tilden Santiago, o então governador Itamar Franco proibiu a entrada no Estado de Minas de lixo radioativo oriundo de outros Estados. O pouco que restou em São Paulo ficou no depósito da Usina de Interlagos, ao lado do terreno que abrigará o futuro templo do Padre Marcelo Rossi.

Uma das questões que se levanta sobre o material depositado no complexo é se mesotório e a torta ll são rejeitos ou estoque estratégico de urânio. Em 2002 foi assinado um termo de compromisso com o IBAMA. Este termo se referia ao licenciamento ambiental das instalações do complexo industrial. Participaram das negociações o Município de Caldas, a CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear – e a FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente, com o objetivo de viabilizar os testes de processamento da monazita, e estabelecer as diretrizes para o licenciamento ambiental e o processamento contínuo destas. O termo de compromisso criou para a INBCaldas, dentre outras obrigações, a de definir medidas efetivas para recuperar as áreas degradadas existentes na Unidade de Tratamento de Minérios – UTM de Caldas, decorrentes das atividades anteriores às atualmente pretendidas pela empresa (produção de concentrados de terras raras). Mas retirar o urânio da torta ll mostrouse economicamente inviável. Para que seja dado um destino final a este material, é preciso definir se é rejeito e – assim sendo, ele deve ser levado para um depósito próprio e definitivo para lixo radioativo – ou, se é material passível de reaproveitamento no futuro, deverá ser acondicionado da forma mais segura possível. Outra questão normalmente levantada pela população da região diz respeito às prioridades do governo: é mais importante para o Brasil definir o que vai fazer com o lixo radioativo e como, ou investir bilhões em novas usinas nucleares? Não sabemos sequer o que fazer com a torta ll existente no país há pelo menos 50 anos? E o mais grave, qual será o destino do combustível dos reatores de Angra? Não menos importante é saber que destino a INB dará à unidade de Caldas. Segundo relatório anual da empresa em 2006, “as atividades da Unidade de Tratamento de Minério (UTM) da INB, situada em Caldas (MG), foram interrompidas, ficando operacionais somente as atividades de controle e monitoração do meio ambiente, tratamento de águas marginais, efluentes, controle da barragem de rejeitos e aquelas relacionadas com manutenção. A unidade de Caldas será submetida ao processo de descomissionamento que inclui o Plano de Recuperação das Áreas Degradadas – PRAD. O processo licitatório prevê a apresentação de propostas para fevereiro de 2007”. Já o relatório anual 2008 diz que “a INB tomou a decisão de transformar esta unidade num centro de excelência laboratorial para análise de conteúdos radioativos de materiais de toda empresa, os laboratórios já estão sendo modernijulho 2010

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zados e o quadro de material especializado está sendo ampliado”. Mais uma vez, a empresa não deixa claro quanto tempo levará para finalizar o descomissionamento da mina do Cercado. A unidade será um depósito definitivo?

Depósito definitivo No Brasil, apenas em Abadia de Goiás existe um depósito definitivo para rejeitos radioativos. O depósito foi criado para acondicionar o lixo radioativo produzido pelas cerca de 19 gramas de césio 137 encontradas por um catador de materiais recicláveis em Goiânia. O acidente de Goiânia foi o maior em área urbana do mundo e é estudado por cientistas norte-americanos, como o cenário de um possível atentado nuclear terrorista. Apenas 19 gramas foram suficientes para contaminar diretamente 6.500 pessoas. Odesson Alves Ferreira, presidente da Associação das Vítimas do Césio 137 e do Conselho Estadual de Saúde, participou da Oficina Anti-nuclear do Nordeste, realizada em abril deste ano, onde relatou sua história e de outros atingidos pelo césio 137. Odesson falou do preconceito de que é vitima até os dias de hoje. Além de perder a sobrinha, a casa, tudo que lembrava sua história, fotos, documentos, tudo que pertencia a ele foi para o depósito. Odesson conta que perdeu familiares, amigos, emprego. Quando foi autorizado a voltar ao trabalho, foi vítima do medo que todos tinham dele. Ninguém se aproximava, nem mesmo o médico trabalhista, que o aconselhou a aposentadoria. “Quando fui comprar uma nova casa, tive uma surpresa que não esperava: a vizinha fez um abaixo assinado exigindo que eu e minha família não pudéssemos morar naquela rua, orientada por seu médico particular, afirmava que a radiação emitida pela família poderia agravar seu estado de saúde. Reconstruir a vida, recomeçar não é fácil”, afirma Odesson. É consenso entre especialistas da área e ambientalistas que se crie no País um órgão regulador autônomo e independente para a fiscalização das áreas de radioproteção e segurança nuclear. Rogério dos Santos Gomes, físico e doutor em Engenharia Nuclear, explica que “na área de rejeitos o Brasil possui uma legislação caótica sobre a seleção de locais e construção dos depósitos que dispõe que cabe à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), projetar, licenciar, construir, operar e fiscalizar os depósitos, enquanto a Convenção Internacional sobre a segurança do combustível usado e segurança de rejeitos, aprovada pela Agência Internacional de Energia Atômica, assinada pelo Brasil, aprovada pela Câmara e pelo Senado e sancionada pelo Presidente da República, dispõe que cada país deverá assegurar a efetiva separação entre os órgãos que licenciam e fiscalizam e os que constroem e operam locais de rejeitos.” Que garantia podemos ter se o mesmo órgão que executa é o que fiscaliza? Além do Brasil, apenas Paquistão e Irã mantêm esta estrutura. Ainda segundo Rogério Gomes “em julho de 2008 foi criado pelo presidente da República o Comitê de

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Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB), sob coordenação da ministra-chefe da Casa Civil e compreendendo 11 outros ministros de Estado, tendo sido consenso entre todos a necessária criação de uma agência reguladora nuclear, promovida através da separação da CNEN. Hoje, passados quase dois anos, nada de prático foi alcançado, com a coordenação do CDPNB tendo passado para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que no seu documento sobre os rumos do Brasil até 2022, não contempla a necessária criação de um órgão regulador independente. Ao que parece, o discurso de aumento do programa nuclear brasileiro não estará associado à criação de estruturas para garantir que toda a atividade nuclear se desenvolva evitando riscos à população e ao meio ambiente”.

Custos muito altos Vendo a energia nuclear pela lógica do aquecimento global, ela parece perfeita, mas, quando colocamos na ponta do lápis toda a contabilidade e os impactos ambientais causados por ela desde a mineração até a destinação final de seus rejeitos, será que realmente estamos prontos para investir no nuclear? Nos Estados Unidos, a grande polêmica da construção do depósito definitivo no Estado de Nevada ainda não terminou. O governo dos Estados Unidos gastou, só com estudos prévios para definir qual seria o melhor local para o depósito, 7 bilhões de dólares. Os custos da construção estão estimados em 58 bilhões, com vida útil de pelo menos 10 mil anos. Críticos ao projeto temem que o material possa escoar pelos campos ao redor da montanha e contaminar o meio ambiente, além do risco de se transportar o material altamente radioativo por longas distâncias. Caso o depósito da Montanha de Yucca não se concretize, os norte-americanos voltam à estaca zero: onde depositar seu lixo radioativo? Vazamentos estão por toda parte, até mesmo em um depósito no deserto do Estado de Washington. Colocar num ônibus espacial e enviar para outro planeta? Quais seriam as consequências se acontecesse um acidente com um ônibus espacial carregado de lixo radioativo? A NASA já teve dois sérios acidentes envolvendo ônibus espaciais. O tsunami que atingiu a Indonésia em 2004 removeu do fundo do mar da Somália, contêineres de lixo radioativo jogados ilegalmente em sua costa. A população da Somália sofreu com hemorragias em vários órgãos, sangramentos na boca, queimaduras de pele, além da contaminação das águas e do solo. Ainda existe a possibilidade que estas pessoas contaminadas possam desenvolver câncer e anomalias genéticas nas próximas décadas. De acordo com a médica Maria Vera de Oliveira, do Centro de Referência do Trabalhador-Santo Amaro, em São Paulo, “não existem níveis seguros de contato com a radiação”. Por estarem sempre ligados a militares, estes estudos são dificultados. Por mais que se diga que a energia nuclear deva ser usada para fins pacíficos, ela sempre estará muito próxima daqueles que fazem as guerras. No caso de Nagasaki e Hiroshima até hoje não

se sabe quais foram as reais consequências para as futuras gerações Acredita-se que os estudos foram dificultados e até mesmo impedidos para que não se soubesse os reais danos causados pelos Estados Unidos ao Japão, mesmo estando a guerra praticamente acabada e o país destruído.

Questões éticas Ex-trabalhadores da Nuclemon afirmam que a torta ll e o mesotório produzidos na Usam eram estocados no terreno de Interlagos e depois carretas levavam os produtos até Poços de Caldas, onde eram jogados na ribanceira. Um dos entrevistados mostra a cicatriz na barriga, perdeu um rim e tem muitos problemas de saúde. Mas enche os olhos de lágrimas quando conta que ia a Poços de Caldas para ganhar um “extra”, sem saber o alto preço que pagaria. Diz que o pior foi quando ficou sabendo que tipo de trabalho fazia, e que tipo de material jogou na ribanceira. “é triste pensar que posso ter prejudicado muita gente”. Este trabalhador é mais uma vítima do descaso com que o Projeto Nuclear Brasileiro é conduzido. Heitor Scalambrini, doutor em Energética da Université d’Aix-Marseille III e professor da Universidade Federal de Pernambuco, questiona se é ético deixar para as futuras gerações resolverem os problemas do lixo radioativo que nós produzimos. Ainda segundo Scalambrini, “o PNB nasceu na ditadura e até hoje depende de demandas de alguns setores das forças armadas, fascinados pelo poder que a energia nuclear lhes traz. Outros grupos de interesse que fazem “lobby” são os setores industriais “preocupados” com o risco de um apagão, grupos de cientistas, pelo prestígio e oportunidades de novas pesquisas e pelo comando do processo, os fornecedores de equipamentos e as empreiteiras, por motivos óbvios”. O professor Scalambrini acredita que uma matriz energética diversificada seria a solução para o País, inclusive para aproveitar todo o potencial de fontes alternativas que existem por aqui. Para ele, a energia nuclear talvez seja o futuro, mas ainda há muito o que estudar. Não se pode subestimar os riscos com segurança. Rogério Gomes acredita que o Programa Nuclear Brasileiro não está maduro, que corremos o risco de um acidente como o de Alcântara, próximo a usinas nucleares. Um estudo feito pela pesquisadora Geórgia Reis Prado concluiu que a população de Caetité, na Bahia, está 100 vezes mais exposta à contaminação por urânio que a média mundial. A lavra de urânio está associada a metais pesados. Segundo o pesquisador Lamego, um estudo realizado na área de mineração de urânio de Poços de Caldas indica que a “emissão de manganês era muito mais significativa, do ponto de vista da saúde humana, do que aquelas relativas aos elementos radioativos, que sofriam (e ainda sofrem) um rígido controle pela Comissão Nacional de Energia Nuclear”. O debate aberto e democrático deveria ser prérequisito para se decidir qual o tipo de energia queremos, e que sociedade queremos construir. Joelma Couto é jornalista.

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Frei Betto

Cesar Cardoso

ÁGUA COMO

os tupinambás

MERCADORIA

e a formaçåo do novo mundo europeu

O capitalismo mercantiliza os bens da natureza, os frutos do trabalho humano, todos os aspectos de nossa vida. Aprendemos na escola: 71% de nosso corpo são água, a mesma proporção existente em nosso planeta. Bebemos litros de água no decorrer do dia. Do velho e bom filtro? Não. Em geral, de garrafas pet vendidas em supermercados. Quem garante que a água engarrafada é mais potável que a filtrada em casa? A propaganda; ela faz nossa cabeça e direciona nossos hábitos. De olho no faturamento, empresas transnacionais procuram incutir na opinião pública a ideia da água como mercadoria de grande valor econômico, capaz de tornar-se uma fonte de renda para um país como o Brasil. Retira-se da água sua dimensão de direito humano, seu caráter vital, sua dimensão sagrada. Quem se opõe a esta ideologia é rotulado como “contrário ao progresso”. Porém, é na defesa da água como direito e bem comum que reside a possibilidade de salvarmos o planeta Terra – “Planeta-Água” – da desolação, e assegurarmos a vida das gerações futuras. O raciocínio da mercantilização da água é simples: tendo que pagar, a sua utilização será mais racional e cuidadosa. Ora, isso não implica incluir a água na categoria de mercadoria regida pelas leis do mercado. Este argumento tem sua parte de verdade – cuida-se melhor daquilo que é mais caro. As consequências, porém, podem ser graves se a água for regida pela lei da oferta e da procura. A cobrança pelo uso da água pode ser um mecanismo de gerenciamento desde que se estabeleçam preços diferenciados conforme a concessão de uso. Uma fábrica de cerveja retira do poço artesiano toda água que necessita, sem pagar nada por ela. Depois descarrega parte dessa água, agora poluída por detergentes e dejetos, no rio mais próximo. O lucro com a venda da cerveja é todo dela; a perda no lençol subterrâneo e a poluição do rio são da comunidade local. Uma boa gestão cobraria preço baixo pela água usada como insumo e alto sobre o esgoto industrial, de modo a obrigar a indústria a filtrar dejetos antes de lançá-los de volta ao rio. Também é preciso estabelecer preços diferenciados conforme o uso da água (consumo humano, esgoto, energia elétrica, produção industrial, agricultura irrigada, lazer etc.). Nas zonas urbanas já pagamos pelos serviços de captação, tratamento e distribuição da água, não pela água em si. A novidade é que, além dos serviços, deveremos pagar também pelo metro cúbico de água utilizada. Se este preço adicional vier a excluir alguém do acesso à água, tal medida será eticamente inaceitável. O princípio que obriga a quem usa, pagar, não pode ser aceito ao contrário: “quem não paga, não usa.” Não sendo a água uma mercadoria, mas bem de domínio público, o princípio só se aplica como norma reguladora de uso, seja quantitativa (quem usa mais água, paga mais), seja qualitativamente (quem usa para fins lucrativos paga mais do que quem usa para consumo pessoal). Se assim não for, a água deixará de ser direito de todos os seres vivos, criando-se um impasse ético e uma tragédia: a dos excluídos da água. Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.

Não foi por acaso que, em 1500, os Tupinambás saíram do porto do Rio de Janeiro e navegaram até as terras do Novo Mundo, batizando-as de Europa. Eles sabiam muito bem o que iam fazer por lá: levar o primeiro processo de globalização ao continente desconhecido. É verdade que de início se limitaram à retirada do Pau-Europa, mas com o ciclo da beterraba iniciaram a produção de açúcar, que exportaram para todo o Velho Mundo, desde a Argentina até o Canadá. Junto com o lucro vieram os conflitos com os índios europeus – franceses, ingleses, portugueses, espanhóis e os temidos holandeses, que se aliaram aos Xavantes quando estes invadiram o Nordeste da Europa em 1630, liderados por Juruna de Nassau e sua Companhia Xavante das índias Ocidentais. Nos anos 1700, para explorar o ouro descoberto no interior da Europa, os Tupinambás são obrigados a importar mão de obra estrangeira, já que a indolência do europeu o torna incapaz de trabalhar nas minas. É criado assim o tráfico negreiro para a Europa, que dura até 1888, quando os Tupinambás promulgam a Lei Áurea e dão liberdade a todos os escravos. No século XX, chegam as guerras de independência, com Churchill, De Gaulle, Stalin e outros líderes terroristas sacudindo uma Europa até então pacífica. E se no século XXI já não há mais colônias, há os populistas como Sarkozy e Berlusconi oferecendo milagres à população. Mas a dura realidade histórica é que nada disso altera o quadro do subdesenvolvimento europeu. Afinal, seria ele resultado de séculos de imperialismo tupinambá ou do inóspito clima frio do continente somado à preguiça natural dos índios, sejam eles ingleses, portugueses, franceses ou alemães?

Cesar Cardoso é historiador e leciona na University of Tchucarramãe. abril 2010

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ensaio Janaina Wagner

Chiang Dao. Interior norte da Tailândia, 750 km da capital do país, Bangcoc. Em meio a tantos templos, mulheres “girafas”, orquidários e turistas, a paisagem interiorana acaba se parecendo com alguma outra qualquer região de Terceiro Mundo: pobre, muito pobre. A escola aqui fotografada atende aos pequenos dos vilarejos de seu entorno. São crianças que só poderão frequentar uma verdadeira escola tailandesa após terem aprendido a ler e a escrever na língua oficial de seu país. A escola não tem energia elétrica, água canalizada e dispõe de escasso material escolar. As crianças fazem o que sabem melhor: brincam. Pneus, bambus, troncos de árvores, latões de lixo e restos de construção formam o parquinho dos sonhos. Sorriem, fazem graça, dizem que são felizes. Brincadeira de criança? Brincadeira de gente grande.

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Lúcia Rodrigues Trabalhador resgatado da escravidão em fazenda de Eldorado dos Carajás, Pará.

Agronegócio escraviza

milhares de trabalhadores no culturas da cana, soja e algodão, a pecuária, as campo Ascarvoarias e o desmatamento da Floresta Amazônica são as atividades preferidas dos exploradores do trabalho escravo. Fotos Leonardo Sakamoto/Repórter Brasil

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impressão que se tem é a de que se está entrando no túnel do tempo e retornando alguns séculos no calendário gregoriano. Aos olhos dos mais desavisados, pode parecer estranho e até mesmo irreal que ainda hoje existam pessoas sendo submetidas à escravidão em nosso país. Mas infelizmente essa gravíssima violação aos direitos humanos é uma dura realidade no Brasil do século 21. Milhares de pessoas ainda são submetidas a trabalho forçado e a condições degradantes no campo e na cidade. Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2005, estimava em 25 mil o número de trabalhadores mantidos em condições análogas a de escravos no país. Destes, 80% atuavam na agricultura e 17%, na pecuária. Os números do organismo internacional, no entanto, parecem estar subdimensionados se levarmos em conta o total de trabalhadores libertados pelos agentes do governo federal na gestão do presidente Lula. De 2003 a maio de 2010, foram retirados da condição de escravos 31.297 pessoas, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego. A prática criminosa não está restrita apenas ao Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou no mesmo ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores eram vítimas da sanha de latifundiários e empresários inescrupulosos pelo mundo. O fenômeno da globalização nos anos 90 foi decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo em escala mundial. As transações comerciais e financeiras disseminaram ainda mais a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira encontrada por esses patrões, para reduzir o preço final de seus produtos, se deu pela drástica redução do custo-trabalho. Os escravagistas do século 21 não prendem mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem chibatadas. A escravidão contemporânea tem suas particularidades, mas nem por isso esses patrões deixam de ser considerados escravocratas. O artigo 149 do Código Penal brasileiro é absolutamente claro na definição do que seja praticar escravidão nos dias de hoje. “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, afirma o texto penal. Apesar de soar extemporânea, a prática escravista está arraigada no cotidiano brasileiro mais do que se pode imaginar. “É uma mentalidade da elite econômica e política do país”, afirma o se-

A bancada ruralista no Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição para coibir a prática da escravidão. nador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil. Segundo o senador, a bancada ruralista no Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para coibir a prática criminosa. Neste momento, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 438 em defesa da erradicação do trabalho escravo no país. A PEC 438 já foi aprovada em primeira e segunda votação no Senado e em primeira, na Câmara, e aguarda a ida ao plenário para a segunda votação. O dispositivo é necessário para que a matéria possa se transformar em lei. O sucesso de sua aprovação ainda este ano está ameaçado. “Apresentamos 280 mil assinaturas ao presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer) e a todos os lideres partidários pedindo a urgência na votação da PEC. Mas as lideranças do governo estão criando várias dificuldades. Dizem que não querem discutir e votar matérias polêmicas no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito à dignidade e ao bem-estar das pessoas. Não concordo com esse tipo de atitude que impede a legislação de avançar no combate ao trabalho escravo no Brasil”, ressalta Nery. O parlamentar quer pelo menos incluir a matéria na pauta de votação da Câmara logo após o término do segundo turno das eleições. “Estamos tentando arrancar do presidente da Câmara e dos líderes partidários esse compromisso.” O secretário de políticas sociais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney, é menos otimista que Nery. O sindicalista considera que a PEC só será votada na próxima legislatura. “Entre por na pauta e não aprovar é melhor jogar para a frente. É melhor recuar taticamente. O Congresso é muito conservador, a maioria é ruralista”, afirma. Pelo texto da PEC 438, as propriedades rurais e urbanas que forem flagradas com trabalhadores escravos serão expropriadas para efeito de reforma agrária no campo e destinadas a programas sociais de moradia popular em áreas urbanas. O arco de alianças eleitoral e da base de sustentação do governo, além de interesses econômicos dos parlamentares, impede que a maté-

Para Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses dos aliados políticos do governo Lula. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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ria avance com celeridade em Brasília. Apesar de ninguém defender publicamente o trabalho escravo, na prática ele é tolerado. O ex-presidente da Câmara, deputado Inocêncio de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades flagradas por auditores fiscais do trabalho com a prática da escravidão, não sofreu nenhum tipo de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas vezes o cargo de presidente da República durante o mandato de Itamar Franco. Mais recentemente o senador João Ribeiro (PR-TO) também foi acusado de se utilizar de trabalho escravo dentro de sua propriedade. O Ministério do Trabalho e Emprego não divulga mais detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma que informações sobre pessoas físicas e jurídicas só podem ser divulgadas após o término do processo administrativo. O Ministério também mantém uma lista com o nome de quem usa o trabalho escravo no País. A lista suja, como é conhecida a relação de escravagistas, é atualizada semestralmente e pode ser consultada em http://www.mte.gov.br/trab_ escravo/lista_suja.pdf

CPT X latifúndio Para o bispo emérito de Goiás e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo argumento é utilizado para explicar a não realização da reforma agrária no país. “Por que não há reforma agrária? Porque mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica fácil de entender. O trabalho escravo cresce com o agronegócio, que é a menina dos olhos da política governamental. Apesar de ter apresentado um plano de erradicação para o trabalho escravo, o governo continua elogiando os usineiros, chamando-os de heróis. A concentração do capital em poucas mãos com o apoio governamental está criando uma desigualdade social brutal. O Brasil é o segundo país do mundo em concentração de terra, em latifúndio. Só perde para o Paraguai”, critica o religioso. Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding do setor sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em suas usinas, para demonstrar a falta de compromisso do agronegócio com a dignidade humana. A Cosan é a maior empresa produtora de açúcar e álcool do mundo. É proprietária das marcas do açúcar União e Da Barra. Em dezembro de 2008, a companhia também passou a controlar a operação de ativos da distribuição de combustíveis da Esso. E assumiu o controle da produção e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos setores de alimento e combustíveis, a Cosan tamjulho 2010

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bém atua na área de produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar. O exemplo de pujança que a empresa tenta demonstrar mascara uma realidade nada agradável. A Cosan engrossa a lista suja de empresas que utilizam trabalho escravo em suas unidades, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A companhia ingressou no ranking escravista no final do ano passado. Seus advogados se apressaram e obtiveram liminar na Justiça para retirá-la da lista suja. O Ministério tenta agora cassar a liminar expedida, para inseri-la novamente na lista dos escravagistas. Ícone do desrespeito às normas mais elementares da dignidade humana, a Cosan é responsável, em parceria com a ExxonMobil, pelo patrocínio do principal prêmio do jornalismo brasileiro: o Prêmio Esso. A empresa que pratica escravidão em suas propriedades também tem em seu Conselho de Administração um ex-ministro da Fazenda. Maílson da Nóbrega integra seu conselho administrativo desde dezembro de 2007.

Repressão Os auditores fiscais do trabalho sentem na pele o peso da repressão dos latifundiários escravistas enfurecidos com aqueles que atravessam seus caminhos. A presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Rosangela Silva Rassy, relembra a chacina de Unaí, município mineiro, onde quatro funcionários do Ministério Trabalho foram assassinados, a mando do prefeito da cidade, Antério Mânica (PSDB), quando inspecionavam terras de sua propriedade, em 28 de janeiro de 2004. Até o momento ninguém foi julgado. “É um negócio difícil de a gente entender. Ninguém foi punido. Foram nove indiciados, mas só dois estão presos (os acusados de serem os executores). Os mandantes foram os primeiros a serem soltos, dois empresários: o prefeito e seu irmão. Com certeza, se valeu do cargo. Inclusive o processo dele corre apartado dos demais, porque se beneficia da imunidade parlamentar”, revela Rosangela. Logo após os crimes de Unaí, as fiscalizações foram suspensas naquela área por medida de segurança. “Ninguém ia lá. Isso é tudo o que o mau empresário quer. Há uma certeza de impunidade”, enfatiza a sindicalista. Depois desses assassinatos, o Congresso aprovou o porte de arma para os auditores fiscais do

Francisco, 74 anos, libertado durante fiscalização em fazenda em Marabá (PA).

trabalho. Mas para que a lei entre em vigor, precisa ser regulamentada pelo Poder Executivo. “É uma lei inócua, porque até hoje não foi regulamentada.” Para o delegado da Polícia Federal e chefe da Divisão de Direitos Humanos do órgão, Delano Cerqueira Bunn, os assassinatos praticados em Unaí demonstram que o crime organizado está enraizado no trabalho escravo. “Estamos mapeando as rotas dessas organizações criminosas que praticam crimes financeiros, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha. A realidade do trabalho escravo está presente em todas as regiões do país, tanto urbano quanto rural. É rentável para o grande empresário e inversamente proporcional a imagem do Brasil no cenário internacional.” O delegado Delano destaca a força política exercida pelos fazendeiros nessas regiões. “São pessoas influentes que têm poder de mando na política lo-

“O combate à escravidão depende de se acabar com a extrema pobreza, qualificar as pessoas, dar educação e reforçar a punição aos empresários”.

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cal e nas estruturas de segurança pública.” Rosangela também critica o número reduzido de auditores do trabalho para a fiscalização de todo o país: 2.899. O sindicato da categoria defende a realização de concursos públicos para resolver o problema. “Hoje existem 750 cargos vagos, porque as pessoas morrem, se aposentam. No mínimo o concurso deveria preencher essas vagas.” O Estado do Pará, que é recordista em trabalho escravo, possui apenas 105 auditores fiscais. Para o secretário executivo da Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, José Guerra, a pobreza faz com que o trabalhador aceite qualquer coisa e se torne presa fácil de aliciadores. “Esses trabalhadores derrubam matas para fazer pasto, para fazer carvão, cortam de cana, lidam com o gado, arrancam tocos, fazem o trabalho sem qualificação”, diz. Ele considera que o combate a essa prática depende de “se acabar com a extrema pobreza, qualificar as pessoas, dar educação e reforçar a punição aos empresários – para que não acreditem que vale a pena explorar o trabalho escravo.”

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Capital paulista abriga escravidão Prática criminosa cresce no coração do capitalismo com utilização de mão de obra sulamericana na indústria de confecção. Se engana quem pensa que o trabalho escravo é uma característica apenas dos rincões mais afastados das áreas urbanas. Apesar de um maior número de trabalhadores escravizados se encontrarem na zona rural, a prática criminosa se propaga também na principal cidade do país. A indústria da confecção desponta como a principal área de absorção da mão de obra escrava na cidade. A Associação Brasileira da Indústria Têxtil calcula que a demanda por roupa cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo, não há estatísticas oficiais que projetem com segurança o número de pessoas nessas condições, embora se saiba que não são poucas. A quase totalidade desses trabalhadores vem de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai, castigadas no passado recente por décadas de ditadura feroz. “Todos os dias chegam ao Brasil de três a cinco ônibus lotados de pessoas para trabalharem nessas oficinas”, afirma a Defensora Pública Federal, Daniela Muscari Scacchetti. A precariedade das condições de vida em seus países de origem e a falta de instrução escolar as torna presas fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas. Apesar de os atravessadores serem as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador são os grandes magazines os responsáveis pela prática criminosa. A rede de lojas Marisa, por exemplo, já levou 49 autos de infração dos auditores fiscais do trabalho e foi autuada em R$ 600 mil. “Mas a gente acredita que a imensa maioria da produção têxtil paulista, o que costuma ser comercializado por C&A, Renner, Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins, é resultado de mão de obra escrava de trabalhadores sulamericanos”, conta o chefe da Seção da Fiscalização do Trabalho da Superintendência Regional de São Paulo, Renato Bignami. Além de jornadas extenuantes de trabalho, precarização das condições de trabalho e do cerceamento à liberdade, com ameaças a vida do trabalhador e de seus familiares no país de origem, o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para fazer uma camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a R$ 0,50. Um casaco mais elaborado que leva até três horas para ficar pronto pode render no máximo R$ 1,50. A mesma peça é vendida na loja de departamento por R$ 300.

A expropriação da mais valia do trabalhador é avassaladora. Quando flagradas praticando a escravização, essas empresas alegam que não têm controle sobre o fluxo de produção. Afirmam que o trabalho é terceirizado e que desconhecem as condições em que ocorre. “Nossa tese é de que no mínimo (a empresa) é solidária, quando não diretamente responsável. Mas essa é uma discussão jurídica quase eterna e nova. A legislação não é absolutamente clara, nos casos de terceirização e subcontratação a lei é quase ausente”, enfatiza Renato. A precariedade das instalações de trabalho dessas oficinas remonta ao início do século passado. Há ambientes improvisados onde funciona a oficina e existe o espaço da cama. O risco de acidentes é iminente. As condições de segurança e saúde são péssimas. As oficinas de costura têm o risco adicional de sofrer um incêndio, por causa de muita fiação exposta e pouca ventilação. Descumprem completamente as normas do Ministério do Trabalho. O mais recente incêndio ocorreu, em fevereiro deste ano, em Bangladesh. Os 21 trabalhadores mortos produziam para a sueca H&M. As crianças também sofrem muito nessas condições de precariedade total. Geralmente ficam presas dentro de quartos sem lazer e educação, enquanto os pais trabalham nas máquinas. Quando conseguem escapar, se arriscam por entre as polias das máquinas. Se fazem alguma travessura são punidas muitas vezes pelo dono da oficina. “No caso das lojas Marisa tinha uma mãe com um bebê no colo costurando e dando de mamar ao mesmo tempo. Outro caso envolvendo o magazine era o de uma menininha com cabelo comprido perto da polia (da máquina) que poderia puxá-lo (causando um grave acidente)”, relata o chefe da fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo. A denúncia que resultou na autuação da Marisa partiu do Sindicato das Costureiras. A fiscalização foi até ao local e encontrou a produção destinada para a loja de departamentos com as etiquetas. “A sociedade precisa saber disso”, destaca a defensora Daniela ao se referir a publicização dos nomes das empresas que se valem do trabalho escravo.

VO A ESCR O H L TRABA

Torneira fechada Para o coordenador da Repórter Brasil, ONG de defesa dos direitos humanos, Leonardo Sakamoto, uma forma eficaz de combate ao trabalho escravo é informar o consumidor sobre a origem do produto. “O governo tem de garantir a rastreabilidade do produto. Sem a rastreabilidade da cadeia produtiva a campanha é útil, mas pouco eficaz”, diz. A lista suja do Ministério do Trabalho com o nome das empresas envolvidas em trabalho escravo é hoje uma das principais medidas de combate à prática, porque traz desconforto e preocupação aos maus patrões. Eles perdem financiamento e contratos. Os cerca de 200 signatários do pacto pela erradicação do trabalho escravo no país, assinado em 2005, cortam a compra dos produtos dessas empresas escravistas. Exemplo disso foi a atitude dos hipermercados ao cancelaram a compra de açúcar União e Da Barra, da Cosan, no início do ano porque a empresa utiliza trabalho escravo em suas plantas. Leonardo destaca que desde 2004 os bancos públicos federais não financiam empresas que usam trabalho escravo. Mas nem todas as empresas estão dispostas a aderir ao pacto da civilidade. “A Teka, Karsten, Hering, Marisol, que têm trabalho escravo em sua cadeia produtiva, não assinaram (o documento).” A Gerdau e todas as montadoras também não assinaram o pacto. “Há trabalho escravo na cadeia do aço”, enfatiza o coordenador da Repórter Brasil. O chefe da Seção de Fiscalização do Trabalho destaca que na área de construção civil também vem sendo detectada a presença de trabalhadores em regime análogo ao escravo. “Já ouvi colegas comentando que empreiteiras que estavam trabalhando no PAC tinham trabalho escravo.” A sociedade também precisa fazer a sua parte para eliminar essa chaga. Parcela de responsabilidade pela perpetuação dessa prática também pode ser debitada na conta dos consumidores. Muitas vezes a própria demanda da população acaba por conduzir a esse tipo de situação. Renato explica que a moda exibida nas novelas acaba pressionando por uma produção rápida e barata. “Sai na novela uma roupa indiana, no dia seguinte a consumidora ou o consumidor quer uma, igual. A demanda por esse tipo de roupa faz com que o empresário corra para produzir o mais rápido possível. E produção rápida só é conseguida com precarização da mão de obra. Não tem outro modelo por enquanto”, conclui. O problema é falta uma ação coordenada das autoridades, serviços públicos e sociedade civil para erradicar essa brutal violação dos direitos humanos. Lúcia Rodrigues é jornalista luciarodrigues@carosamigos.com.br julho 2010

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Fechando o fosso entre

a pobreza e a

universidade Cursinhos populares proporcionam o acesso à educação superior no Brasil para estudantes de baixa renda

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magine uma sala de cursinho pré-vestibular. Imagine o perfil dos alunos que estudam ali. Provavelmente, a maioria das pessoas pensaria em jovens brancos, de classe média. Esse seria o cenário dos cursos preparatórios para o ensino superior não fosse a existência de cursinhos pré-vestibular populares. Surgidos a partir da década de 1990 com o objetivo de auxiliar na democratização do acesso à universidade, tais cursinhos ajudam jovens (e não tão jovens) de baixa renda a conquistarem o sonho do diploma de uma universidade. De acordo com Henrique Nagao Hamada, coordenador do Cursinho da Psico, ligado à Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), “os cursinhos populares realizam um trabalho de inserção de jovens e adultos de baixa renda em universidades públicas, partindo do princípio do direito à educação. Eles ajudam a diminuir o abismo existente entre essas pessoas e as universidades públicas. Também auxiliam na democratização do acesso à universidade como medida paliativa para uma transformação maior na educação brasileira”.

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Hamada explica que essas instituições foram criadas num contexto histórico marcado pelo “sucateamento do ensino público e mercantilização da educação privada”. O vestibular, por sua vez, “tem se tornado cada vez mais uma barreira de seletividade econômica, que desconsidera as condições sociais concretas de jovens populares”. Para ele, há uma suposta objetividade oferecida pelos exames de admissão, assumidos como um instrumento igual para todos aqueles aptos a prestá-los. “Como fruto desse processo, observamos a naturalização de desigualdades social e historicamente produzidas”.

Processo seletivo Em muitos casos, os cursinhos populares são fundados por iniciativa de professores, grêmios ou centros acadêmicos das próprias universidades, a exemplo do Cursinho da Poli, de iniciativa da Escola Politécnica da USP, e o Cursinho Popular da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Há, também, os oferecidos por movimentos sociais, como a Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes) e a Uneafro (União de Núcleos da Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora). Porém, nem todos são absolutamente gratuitos, a exemplo dos que não possuem instituições responsáveis por sua manutenção. Nesses casos, suas estruturas são garantidas por meio de pagamento de taxas simbólicas. Em alguns, os professores são estudantes voluntários, em outros, recebem uma “ajuda de custo” pelo trabalho realizado. Para assegurar que os inscritos sejam pessoas de baixa renda, a admissão é feita após um processo seletivo em que se avalia a condição socioeconômica do candidato. O perfil dos alunos atendidos pela Uneafro é semelhante ao de Anderson Lima da Silva, de 21 anos. Morador do bairro Pedreira, na zona sul de São Paulo, o jovem estuda no cursinho da entidade há oito meses. Entre suas opções para o vestibular, estão geografia, ciências sociais ou serviço social. Filho de pernambucanos que vieram tentar a vida em São Paulo, o rapaz, além de aluno, é voluntário na secretaria do cursinho. “No começo, meus pais não aceitavam, porque diziam que eu tinha que dar preferência para trabalho remunerado, que isso não ia encher barriga”, relata. Filho de mãe faxineira e pai pedreiro, Anderson acredita que o cursinho ajuda “na inclusão das pessoas que vêm da base”. Segundo ele, o foco da instituição é preparar os alunos para as universidades públicas federais e estaduais “que não foram feitas para nós, negros, trabalhadores e toda essa massa das bases”.

“Os pré-vestibulares populares não funcionam apenas como formadores de candidatos aptos a passar no vestibular, mas também como questionadores do modelo excludente de educação do País”. Bairros periféricos O cursinho da Uneafro é organizado em núcleos. Cada um deles é responsável por uma unidade do curso. São 42 espalhados pelo Estado de São Paulo, em cidades como Atibaia, Bragança Paulista, Campinas, Ribeirão Preto, Jundiaí e Piracicaba. Na capital paulista, há cursos organizados em bairros periféricos como Parque São Rafael, Jardim São Francisco e Penha. Na região central, está o núcleo que Anderson frequenta, localizado na rua da Abolição. A maioria dos cursos da Uneafro é realizada aos fins de semana, com poucas exceções, entre elas, o frequentado por Anderson, que funciona de segunda a sexta-feira, das 19h às 22h45. Os demais são aos sábados, das 8h às 17h. “Cada núcleo pode cobrar no máximo R$ 20 dos alunos, variando de acordo com as necessidades”, explica Vanessa Cristina do Nascimento, coordenadora da Uneafro. Como os professores são voluntários, o valor cobrado dos alunos é revertido para o lanche oferecido no intervalo das aulas, para a condução dos professores e para a manutenção do núcleo, formado por quatro ou cinco coordenadores. Segundo Vanessa, a proposta do cursinho é oferecer, além do conteúdo cobrado no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e no vestibular, formação política. “Discutimos temas que estão na mídia. A gente dá a versão diferente do que a Globo divulga. Estamos formando alunos críticos”. Tais aulas, explica, têm a mesma carga horária que as disciplinas tradicionais, “pois não adianta o aluno ser craque em matemática se ele não é politizado”. Porém, ela garante que são cobradas todas as matérias.

Formação política O incentivo à formação político-cultural está presente em muitos cursinhos populares, e é uma das características que os diferem dos cursinhos comerciais. “A diferença entre o popular e o comercial está basicamente no valor e nos objetivos de cada um: o comercial tende a ter suas atividades voltadas quase exclusivamente para os vestibulares, enquanto os populares tendem a oferecer, além da preparação para os vestibulares, um olhar voltado para a formação cidadã”, explica Gilberto Alvarez Giusepone Jr., diretor-geral do Cursinho da Poli.

“Os cursinhos populares ajudam a diminuir o abismo existente entre estudantes de baixa renda e as universidades públicas”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Esse aspecto foi preponderante para João Victor Pavesi de Oliveira na hora da escolha do curso pré vestibular. “Comecei a fazer o cursinho da Acepusp [Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da USP, criado por um grupo de ex-alunos da Universidade] por uma questão política. O lado financeiro também pesou, mas não foi o decisivo”. Ao final do ano, João foi aprovado no vestibular da USP, no curso de Geografia. Meses depois, passou a trabalhar como professor plantonista do cursinho e, depois, como professor. O jovem também lecionou nos cursinhos pré vestibulares da Poli e Psico, e acredita que a existência de cursinhos populares é muito relevante, por questionarem o problema do acesso à educação pública. “Mas, para que ele seja efetivo, tem que ter como plano estratégico o seu fim, que é o acesso universal à educação”. Assim, os cursinhos populares não funcionam apenas como formadores de candidatos aptos a passar no vestibular, mas também como questionadores do modelo excludente de educação do País. “A gente pressiona por políticas públicas”, afirma Vanessa, da Uneafro. “Um dos desafios é buscar participação popular ativa na reformulação e no desenvolvimento de vias alternativas de acesso à universidade”, elucida Hamada. Por conta dessas concepções, parte dos cursinhos se autodenomina pré-universitário, ao invés de pré-vestibular. “Nossa proposta não é apenas preparar os alunos para as provas seletivas das universidades, mas levar os jovens a terem consciência de sua importância na formação da sociedade”, explica Giusepone Jr. Para Hamada, “essa distinção permite assumirmos o vestibular não como um fim em si (foco exclusivo de nossos esforços), mas como um meio (se não obstáculo) para algo maior: a inserção e relação dos estudantes com a universidade”. Para manter o debate político, a Uneafro realiza encontros de formação. Uma vez ao mês, prepara uma aula pública. “Pegamos lousa e carteira e vamos para lugares como a Praça da Sé para fazermos uma aula ao ar livre. É uma maneira de debater o modelo de educação”. O Cursinho da Psico mantém um espaço chamado de Arena, onde, periodicamente, ocorrem rodas de debate, que servem como exercício de argumentação e articulação entre os alunos.

Universidade pública Os cursinhos populares incentivam os alunos a ingressarem em universidades públicas. No entanto, “como a gente sabe que eles vêm do ensino público, que é muito defasado, e, pela realidade de estudarem apenas aos sábados, não dá julho 2010

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para comparar com o aluno que está estudando regularmente”, diz Vanessa. Entre os estudantes, há os recém-egressos do ensino médio e também aqueles que terminaram a escola há mais de 10 anos. “Então, não há limite de faixa etária”. Para os mais velhos e “com mais pressa de entrar na faculdade”, a Uneafro tem convênio com faculdades particulares que oferecem bolsa de estudos, conta a coordenadora do cursinho. “Para esse perfil de aluno, temos ações afirmativas”. Segundo Vanessa, entre os que frequentam o cursinho, a maioria é proveniente de famílias cujos membros não possuem ensino superior. “E os coordenadores são pessoas que foram alunos há alguns anos e que, como contrapartida à ajuda que tiveram, abrem um núcleo ou ajudam na coordenação de um já existente”. Entre as histórias de alunos, a coordenadora gosta de uma em especial. A de uma empregada doméstica de Bragança Paulista, “mãe de família que tinha terminado o ensino médio há muito tempo”. Depois de um ano de cursinho, ela conseguiu entrar na faculdade, por meio de uma bolsa, no curso de engenharia mecânica. “É uma satisfação para a gente”. A ex-aluna está cursando o primeiro semestre da faculdade e continua trabalhando como doméstica. A Uneafro oferece, também, cursos preparatórios para concursos públicos e seleção de bolsas de estudo. Dá, ainda, cursos e oficinas de teatro e capoeira. A organização também mantém relações com movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, com quem realiza atos e atividades em conjunto.

PreseNça em sala de aUla No cursinho popular da UFSC, o critério para ingresso também é o aluno ser de baixa renda e

oriundo de escola pública. “Temos casos de alunos que ficaram 30 anos sem estudar. Aqui, a faixa etária vai de 16 a 80 anos”, conta o professor Otavio Auler, coordenador e idealizador do projeto, criado em 2003. “Eu sempre estudei em escola pública e, quando me formei, senti a necessidade de criar projetos que dessem mais oportunidade para os alunos entrarem na universidade pública, oportunidade que eu não tive e que me rendeu o dobro de trabalho para entrar na faculdade”, relata. O professor afirma defender “que pré-vestibulares populares façam a diferença e garantam a chance de se disputar uma vaga em pé de igualdade com os alunos de setor privado”. Organizado pela pró-reitoria de graduação da UFSC, com apoio do governo do Estado e da Secretaria Estadual de Educação, o cursinho está presente em 30 cidades de Santa Catarina, onde há aulas regulares de segunda a sexta. Por estarem localizados em bairros de baixa renda e próximos a terminais urbanos, o acesso dos alunos torna-se mais fácil. Segundo Auler, o grande diferencial do cursinho é que ele é absolutamente gratuito, todos os professores são contratados e não há voluntariado. “O nosso modelo de gestão é cobrar do aluno a sua presença em sala de aula. Caso ele falte quatro vezes sem justificativa, é excluído do projeto”, explica o coordenador, que conta que há uma fila de espera de seis meses para estudar na instituição da UFSC. O professor mostra preocupação em “definir o que são cursinhos populares. Considero aqueles que cobram como não populares. Popular é aquele que é 100% gratuito. Defendo termos cuidado em diferenciar o que é pré-vestibular popular de projetos feitos com objetivo de ganhar dinheiro com esse público”. A seleção dos alunos é feita por meio de uma avaliação da renda familiar e do rendimento es-

cursinhos populares CURSINHO DA POLI

CURSINHO DA PSICO

Unidades em todo o Estado de São Paulo Endereço (sede) Rua Abolição, 167, Bela Vista/SP Informações: (11) 3105-2516 Site: www.uneafrobrasil.org/contato.asp

Instituto de Psicologia-Cidade Universitária/SP Informações: (11) 3532-1992 Site: www.cursinhodapsico.org

CURSINHO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC)

Unidades Lapa, Zona Leste, Santo Amaro/SP Informações: (11) 2145-7654 Site: www.cursinhodapoli.org.br

CURSO PRÉ-VESTIBULAR ACEPUSP (Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da USP) Endereço: Rua da Consolação, 1909/SP Informações: (11) 3258-1436 Site: www.acepusp.org.br

CURSINHO DA EDUCAFRO Unidades nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo Informações: (11) 3119-0341 Site: www.educafro.org.br

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CURSINHO DA UNEAFRO

Unidades distribuídas em 20 municípios do Estado de Santa Catarina Endereço: Campus UFSC, Reitoria, Sala 8, Florianópolis Informações: (48) 3721-8319 Site: www.prevestibular.ufsc.br

CURSINHO POPULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE (UFRN) Endereço: Campus da UFRN, em Natal Informações: (84) 3215-3325 Site: www.dce.ufrn.com.br

colar do ensino médio do candidato. “Assim, entra o aluno que mais precisa e que mais estudou”, explica. Além das aulas regulares, o cursinho da UFSC realiza palestras sobre HIV, antitabagismo e prevenção de drogas. Mesmo que o foco de atuação do cursinho sejam as universidades estaduais e federais, “com as transformações no ensino público brasileiro, começamos a incentivá-los a fazer o novo Enem para conseguir bolsas no ProUni [Programa Universidade para Todos] a partir de 2011”, explica. Embora o peso que os estudantes de cursinho popular nas porcentagens de ingressantes nas universidades seja pequeno, sua qualidade reflete nos índices de aprovação dos alunos no ensino superior, relata o professor. Segundo ele, “44% dos nossos alunos entram em universidades públicas”, orgulha-se.

Processo de eXPaNsão Nos cursinhos populares que cobram mensalidades inferiores a dos comerciais, como o da Psico, coordenado pelos estudantes de Psicologia da USP, há a possibilidade de negociação de uma bolsa de estudos. “Nossa mensalidade é de R$ 95, incluindo material didático e curso regular de segunda a sexta, com atividades aos sábados”, conta o coordenador do curso Henrique Nagao Hamada. O Cursinho da Poli, criado em 1987 a partir da iniciativa de um grupo de estudantes da Escola Politécnica da USP, é coordenado pelo grêmio dos estudantes da faculdade. Inicialmente, só cobrava dos estudantes os custos com material didático, mas, em 1996, deixou o campus universitário e iniciou um processo de expansão, passando, assim, a cobrar mensalidades. Mesmo assim, comparado a outros cursinhos tradicionais, tem as mensalidades mais baixas e oferece bolsas de estudo. O valor de um curso de fim de semana para a próxima turma de agosto é de R$ 140 por mês, de acordo com dados da página do cursinho na internet. Já para os cursos matutino e noturno, de segunda a sexta, o valor é de R$ 191. De acordo com o diretor do cursinho, “as matrículas estão abertas a todos os públicos. O Cursinho da Poli oferece, porém, bolsas de estudos a alunos em situação de vulnerabilidade social: os alunos interessados em participar do processo de concessão de bolsas passam por uma avaliação socioeconômica, realizada por uma equipe de assistentes sociais, na qual são analisadas sua situação de emprego e renda, sua condição de moradia, de saúde e educação familiar. Além disso, mantemos parcerias com diversas instituições que atuam com grupos historicamente excluídos, como a Fundação Casa, a Funap e entidades que atendem mulheres em situação de violência doméstica, por exemplo”. Para Raphael Rodrigues de Freitas, de 19 anos, aluno do Cursinho da Poli que pretende prestar vestibular para Publicidade, o principal motivo da escolha por esse pré-universitário foi o valor da mensalidade inferior ao dos outros cursinhos comerciais. “É mais acessível para mim”. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Gershon Knispel

Será um

império?!

“Deixe os outros falarem dos males deles, Eu vou falar dos meus” (Bertolt Brecht, no prefácio das Poesias no exílio)

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o fim de julho de 1967, algumas semanas depois de baixar a poeira das dunas do deserto da Guerra dos Seis Dias, fui levado como oficial da reserva de Israel, na tarefa de repórter de guerra, a um grupo de comandantes dos batalhões dos paraquedistas, para fazer uma expedição e tirar conclusões sobre os combates no deserto do Sinai. Mas a verdadeira razão para eu ser convidado para isso foi escolher um lugar determinado e ali criar um monumento de comemoração em homenagem aos paraquedistas da divisão que nós havíamos perdido nos duros e sangrentos combates com os soldados egípcios, em Um El Catef. Quando terminamos a patrulha de reconhecimento inicial, meu amigo de infância, comandante da divisão, Chezi Shelach, um dos mais competentes comandantes de Israel, sugeriu que continuássemos a patrulha bem mais para o sul, com destino ao famoso Mosteiro de Santa Catarina, conhecido mundialmente. Quando o comboio de carros de combate encalhou nas dunas traiçoeiras, fomos obrigados a pedir ajuda a um grupo de beduínos bem folgados, abrigados na pouca sombra que havia restado de uma árvore sem folhas e que nos olhavam sem interesse. Perguntamos quanto tempo levava para ir a pé até esse mosteiro tão famoso. Um deles, em câmara lenta, como é típico para os beduínos, apontou o indicador para leste e afirmou: “Comecem a andar”. Por quê, perguntamos. “Para ver o tempo que vocês levam para andar. E daí poderemos dar a resposta”. O mais velho do grupo chegou para ajudar e gaguejou: “Uma distância de 22 cigarros”. Se esclareceu que o modo deles de medir o tempo era o número de cigarros que são fumados durante a caminhada, levando em conta que, para economizar fósforos, eles acendem cada cigarro na bituca do fumado imediatamente antes. Antes que

nos despedíssemos, quisemos saber como eles se sentiam com o fim do regime egípcio no Sinai. Com uma risada desbragada, que mostrou a boca sem nenhum dente, o velho respondeu, apoiado no cajado; “Com os cruzados, nós os exterminamos, porque não sabiam lidar com os traidores que deviam ser mortos. Os otomanos deixaram o país para os britânicos, os britânicos desapareceram sem deixar vestígios. E vocês chegaram, e o destino de vocês não vai ser diferente.” Meditando sobre isso, continuamos rastejando pelas areias ferventes... E é verdade; também os destinos dos grandes e pequenos impérios nunca foi diferente. Enquanto nós, de um modo obsessivo, tentamos nos transformar num império e as miragens do Grande Israel fizeram enlouquecer o mais alto nível da nossa liderança, essa liderança ficou faminta de ocupações e com sede de expansão. Quanto mais ela se expandiu pelos territórios alheios, apertando o cerco e impondo torturas e humilhações aos vizinhos sob a ocupação, as dúvidas e as inquietações, mais a desesperança, vêm atingindo mais e mais a população. O povo começou a agir como a avestruz que, impotente diante do perigo, enfia a cabeça na areia, e internalizou todas as frustrações, enquanto a catástrofe da corrupção no topo da liderança se avolumou. O Estado de Israel desencadeou o cerco a Gaza e esqueceu de olhar para trás, demorando para perceber que eles mesmos estão cercados e isolados por todas as nações do mundo. Nunca esse “império” se achou tão ameaçado. Fomos obrigados a proibir a liderança governamental e a liderança militar de saírem do país, por causa do medo de que sejam capturados e levados ao banco dos réus dos tribunais de crimes de genocídio. A companhia aérea estatal El Al se viu obrigada a proibir os pilotos e os comissários

O quadro acima é do artista israelense David Reeb, que dedicou a maior parte de suas obras para denunciar a ocupação dos territórios palestinos pelo Estado de Israel. Ele e outros artistas plásticos – israelenses e palestinos – concordaram em ilustrar os artigos de Gershon Knispel na Caros Amigos.

de saírem às ruas, no mundo inteiro, com o uniforme da companhia. Governos que nos apoiaram até ontem viraram as costas para nós. Impérios ruíram, e seus soldados desmoralizados voltaram combalidos para casa. Assim foi o destino dos impérios antigos, até os maiores dos nossos tempos, como os otomanos, liquidados pelos britânicos. E os britânicos, não voltaram envergonhados para o Reino Unido? Os rostos agoniados da “raça inferior” foram retratados da maneira mais real e documentada no filme A queda, que foi feito pelos próprios alemães, e isso não é surpresa; eles mesmos sentiram isso na pele. Os comboios da Wehrmacht, abalados, com esqueletos vivos dentro dos uniformes que no passado deram tanto orgulho para eles, voltaram para a pátria completamente destruídos, lembrando as próprias vítimas deles nos campos de concentração. Até as armas mais sofisticadas que eles empunhavam não podiam mudar esse destino. E os americanos no Vietnã, e a humilhação que sofrem se chafurdando na lama do Iraque e do Afeganistão, de onde até a nossa grande esperança, Barack Obama, não consegue retirá-los. Mas também, como já aconteceu no Vietnã, o dia da retirada vai chegar, com os soldados humilhados voltando juntamente com os caixões cobertos pela bandeira americana. Esse dia vai chegar com certeza. Vai também chegar a hora do nosso “império”. Para onde vamos voltar? Alguém pensou nisso... Em 1935, em carta enviada do exílio na Suíça, Brecht escreveu a seu grande amigo, o pensador judeu Walter Benjamin, que estava na França: “Ouvi rumores de que os judeus pretendem criar um Estado. Judeus nacionalistas, você acredita que isso exista?” Gershon Knispel é artista plástico. julho 2010

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Bárbara Mengardo

Mulheres defendem

parto sob controle É cada vez maior o número de mulheres que optam pelo parto humanizado, que devolve autonomia à elas e possibilita uma postura ativa no momento de dar a luz. Foto Karina de Oliveira

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número de cesarianas realizadas hoje no Brasil é altíssimo. Por medo da dor, pressão do obstetra, desinformação sobre as possibilidades de realização de partos ou pela comodidade de agendar o momento de parir, são muitas as mulheres que escolhem ter seus filhos por meio de uma cirurgia. Até o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, admitiu que precisamos combater a atual “epidemia de cesarianas”. O Brasil é o campeão mundial em partos cesarianos realizados na rede particular de saúde. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera 15% a taxa máxima aceitável destas cirurgias em qualquer região do globo. Porém, no Brasil, essa indicação parece ser ignorada. No Sistema Único de Saúde (SUS), 30% dos partos realizados são cesarianas, e o número é ainda maior no sistema privado, com um índice de 80% do procedimento. Os dados são do site da campanha Parto Normal Está no Meu Plano, promovida, entre outros, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e pelo Ministério da Saúde. Além do emprego descontrolado das cesarianas, hoje existe uma série de procedimentos-padrão nas maternidades que deixam o bem-estar da mãe em segundo plano para acelerar o processo de nascimento. O objetivo dos hospitais é ter seus leitos livres mais rapidamente e evitar que médicos demorem muito tempo em cada parto. No entanto, na contramão desta tendência, é crescente o número de profissionais da área da saúde que afirmam que não há motivo para se orgulhar do Brasil ter altos índices de cesarianas. É cada vez maior também o número de mulheres que optam pelo parto humanizado, que, segundo defensoras da prática, devolve à mulher a liberdade, autonomia e possibilita uma postura ativa durante o momento do parto.

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Grávida que optou pelo parto humanizado fotografada por Karina Oliveira.

Dando as cartas “O parto humanizado não comporta pressa nem agenda” define a obstretiz paulista Ana Cristina Duarte, que há 10 anos segue a linha humanizada em seu trabalho. Para ela, um dos pontos fundamentais do parto humanizado é seguir o ritmo do bebê e da mãe, esperando o tempo necessário até o momento do nascimento, sem utilizar procedimentos que artificialmente levarão a um parto mais rápido. Diferentemente da prática normalmente empregada em hospitais, o parto humanizado coloca a mulher, e não os médicos, como a figura central durante o nascimento do bebê. “A mulher deve ser a protagonista de seu parto para que ela possa exercer o seu parir da forma mais completa que escolher” afirma a psicóloga carioca Gabriela Prado, integrante da Equipe Parto Ecológico. Segundo ela, cabe à mulher dizer qual é a maneira mais confortável e que lhe dá menos dor du-

rante o trabalho de parto, e por isso é fundamental que a futura mãe tenha a possibilidade de andar, deitar, ficar de cócoras, entrar na água ou ficar dentro da banheira ou piscina durante seu parir. No parto humanizado é a mulher quem dá as cartas, e cabe aos profissionais que estão acompanhando o parto dar apoio e indicar como o processo acontecer mais tranquilamente. “O parto humanizado tenta devolver para a mulher aquilo que nós, médicos, tiramos dela, que é o protagonismo do parto. Eu não faço parto, assisto partos”, afirmou o ginecologista obstetra Jorge Kunh. Para garantir que a mulher tenha mobilidade, as equipes podem levar ao local do parto pequenas piscinas para serem cheias de água quente, que diminuem as dores, banquetas próprias para o parto de cócoras. O mais importante, explicam, é que a mulher sinta confiança na equipe, fique confortável no ambiente onde o parto está sendo realizado e te-

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nha direito a buscar maneiras que facilitem a ela passar por este momento da maneira mais prazerosa e tranquila possível.

Planejamento Jorge Kunh afirma que é importante que toda mulher, independente se escolheu uma equipe humanizada ou não, escreva um plano de parto, que deve ser discutido juntamente com o seu obstetra. Este plano de parto indicará para o médico quais condutas a mãe gostaria que fossem seguidas durante o nascimento de seu filho. Cabe ao profissional dizer se os itens podem ou não ser seguidos “Toda gestante deve fazer um plano de parto pensando que o processo pode ter várias nuances e problemas. Caso o plano não possa ser seguido, a gestante tem o direito de saber por quê”, afirma Khun. O procedimento auxiliará também a mulher a perceber se aquele profissional é adequado o ela, por isso a importância de escrever o plano logo no começo da gravidez. O plano de parto deve conter temas como se a mulher deseja realizar um parto vaginal ou cesariana, onde gostaria de dar à luz, se quer segurar o bebê logo após o nascimento, se deseja que o bebê se alimente somente de leite materno no período que passar na maternidade, se o acompanhante dela deseja dar o primeiro banho, quem ela quer que esteja na sala durante o parto, se quer ouvir música, se ela não quer que seja feita a episiotomia (corte cirúrgico feito no períneo- região muscular que fica entre a vagina e o ânus). Além do médico já poder dizer antecipadamente se será possível ou não obedecer a todos os pontos, o plano de parto possibilita que a mulher seja consultada caso tenha de ser realizado algum procedimento que foge ao que ela gostaria. “O plano de parto é uma carta de intenções que o médico vai ler e ver se é possível realizar” resume Ana Cristina.

Ambiente hospitalar Hoje, existem muitas possibilidades de locais onde a mulher pode dar à luz. Se a equipe estiver ciente dos desejos da gestante, é possível ter o parto da maneira que mais agrada à mulher, no hospital, em casas de parto ou mesmo em domicílio. São poucos, mas existem hoje hospitais que realizam o parto humanizado. Outros possibilitam que a equipe traga equipamentos para realizá-lo, como bolas de pilates, piscinas infláveis ou banquetas para realizar partos de cócoras. Em hospitais, no entanto, alguns procedimentos são utilizados rotineiramente, e é necessário que a mulher decida e discuta com a equipe se ela deseja que estes sejam utilizados. Um destes procedimentos é o uso da ocitocina, um hormônio que a mulher produz naturalmente, e que causa as contrações uterinas. Essa substância é colocada junto ao soro, fazendo com que o número de contrações aumente repentinamente. Muitos profissionais da área da saúde criticam o uso indiscriminado desta substância. “Aproximadamente 95% a 98% dos partos normais a utilizam para que o processo seja mais rápido, porque ela provoca mais contrações, então o bebê

nasce mais rápido. Para a mulher, isso é péssimo, porque provoca mais dor. Para o bebê é perigoso porque pode provocar mais contrações do que ele pode aguentar. Inclusive a bula da ocitocina cita que um dos efeitos colaterais é morte fetal” afirma Ana Cristina. Outro procedimento utilizado em quase todos os partos naturais hospitalares é a episiotomia, como vimos, um corte feito no final da vagina com o objetivo de facilitar a passagem do bebê e proteger a musculatura da pélvis da mulher, evitando uma laceração maior. A utilização como rotina, no entanto, é questionada pela OMS, por trazer muitas consequências à mulher. Após o procedimento, explica Gabriela Prado, muitas mulheres costumam sentir muita dor na região dos pontos, tendo dificuldade de sentar e achar posição para amamentar. Além disso, podem acontecer inflamações, e às vezes há perda da sensibilidade no local da cicatriz ou dor durante relações sexuais. “Ela deve ser utilizada em casos extremos, mesmo porque quando o bebê nasce em um parto tranquilo o nível de lacerações é quase zero” afirma. Roberta Marcinkowski, integrante da rede virtual Parto do Princípio, também critica essa intervenção: “Ela é geralmente feita sem o consentimento da parturiente, o que por si só é antiético. A necessidade de sua utilização deve ser avaliada durante o período expulsivo (nunca durante o pré-natal nem durante o trabalho de parto), de acordo com a evolução do parto, da posição do bebê e da musculatura vaginal. Quando aplicada com critério, as taxas de episiotomia não ultrapassam 15% do total de partos de um médico e/ou instituição. Qualquer número maior que isso indica que o procedimento está sendo usado como rotina, sem que cada caso seja avaliado em suas peculiaridades”.

Casas de parto Outra opção para as gestantes é procurar uma casa de parto, onde o procedimento será realizado com enfermeiras obstetras. Porém, tais locais estão cada vez mais escassos, pois sofrem boicotes constantes. Os médicos não costumam informar às pacientes que existe a opção de realizar o parto fora de um hospital, ou fazem campanha contra estas instituições. “Eles acham que um parto não pode acontecer sem eles”, afirma Ana Cristina. Nas casas de parto, a mulher vai encontrar um ambiente muito diferente dos hospitais, mais descontraído, aconchegante e com profissionais treinados para realizarem massagens para diminuir a dor do parto natural. Outra característica destes locais é integrar o acompanhante ao processo do parto. É garantido e desejável que a mulher esteja junto do pai da criança ou outro conhecido durante o momento de dar à luz e também nos pré-natais. Uma terceira possibilidade cada vez mais utilizada pelas mulheres é a realização do parto em casa, que deve ser feito apenas em casos de gravidez de baixo risco, quando as saúdes da mãe e do bebê estão perfeitas. Para tanto, é necessário que a mãe entre em contato no começo da gesta-

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ção com uma equipe que realize esse tipo de parto, para fazer um pré-natal detalhado. Os defensores do parto domiciliar apontam que sua principal vantagem é, além de ter a possibilidade de mobilidade e poder utilizar os recursos de que o parto humanizado dispõe, a mulher ainda está em um ambiente familiar e aconchegante, que lhe trará segurança durante o parir. Gabriela Prado acredita que em casa as mulheres aguentam mais facilmente as dores do parto por conta da segurança de estar em seu domicílio: “Existe um coquetel de hormônios que circulam no trabalho de parto que são os mesmos que ocorrem durante uma relação sexual ou a amamentação. Podemos dizer em um linguajar comum que esses hormônios são ‘tímidos’, facilmente inibíveis. Então é necessário que a mulher esteja em uma situação de segurança e conforto para que eles sejam liberados. Em domicilio você está no seu ambiente, propiciando uma sensação de privacidade e segurança maior”. Thais Medeiros, professora de ginástica que trabalha com gestantes há 32 anos, já assistiu partos humanizados em hospitais, casas de parto e em domicílios, mas prefere o último: “Em casa a mulher não sofre intervenções, tem o seu momento de protagonismo respeitado, e desta forma pode focar sua atenção no parto. O parto em casa é como deve ser: um evento íntimo e familiar”.

Possibilidades da cesárea Mesmo quando uma cesariana é necessária ou inevitável, há atitudes que a mulher pode cobrar do médico. Primeiramente, ela tem o direito de ser informada sobre os riscos que essa intervenção pode gerar. “A cesariana é uma cirurgia de porte considerável, o risco de infecção é dez vezes maior. Muitas mulheres sentem dor na cicatriz por muitos anos, a mortalidade materna é maior e a recuperação é mais lenta. Muitas mães ainda se sentem frustradas por não poderem participar do nascimento”, explica a carioca Lia Haikal, médica que está atualmente passando por cursos preparatórios para ser parteira tradicional na Paraíba. Gabriela concorda: “A cesariana salva vidas. Antes dela, as mulheres morriam de parto, os bebês morriam na barriga da mãe, mas só deveria ser feita apenas em situações extremas”. A mulher pode também exigir o direito de segurar o bebê assim que ele nascer, escolher o seu acompanhante e que o pano possa ser abaixado quando o bebê sair, para que possa vê-lo nascendo. A paranaense Patricia Merlin, professora do fundamental, teve um filho por meio de uma cesariana desnecessária e uma filha em parto domiciliar. A segunda experiência foi muito importante: “Poder me movimentar, comer, gritar, tomar banho, rir, chorar, escolher a posição para parir, fazer força quando tivesse vontade fez a experiência do parto ter a minha cara. Foi do jeito que eu quis e em nenhum momento eu ou a minha filha estivemos em perigo. Meu parto me deu a certeza de que o corpo é perfeito e que mulheres precisam de paz e segurança para parir”. Bárbara Mengardo é estudante de Jornalismo. julho 2010

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Gabriela Moncau e Júlio Delmanto

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Os antropólogos Karina Biondi e Adalton Marques discutem a organização e os valores do Primeiro Comando da Capital. dor que está de fora possa revelar a eles mesmos. Isso pra gente é inconcebível”. A Caros Amigos conversou com os dois antropólogos sobre os princípios e a organização do PCC, essa facção criminosa tão grande quanto pouco compreendida pela população do Estado com a maior população carcerária do Brasil.

Caros Amigos – Como os presos reagiam ao

saber que vocês estavam trabalhando numa pesquisa acadêmica? Karina Biondi - Quando saiu uma coletânea com o resultado da premiação da graduação eu coloquei o livro lá dentro e pedi para eles darem uma olhada e dizerem o que achavam. E eles disseram “olha só, a mina entende mais que a gente, vamos afixar isso nas celas que aí a gente não tem mais que explicar nada pra ninguém que chega, [presos novatos]”. Pensei, ‘poxa, que legal que eles curtiram, viram que não era meu objetivo fazer uma denúncia, escrever algo que

pudesse ser usado contra eles’. Agora, com a publicação desse livro eu gostaria que algum preso conhecesse a obra. Mas uma coisa que me deixou muito chocada nesses dias é que a esposa de um preso queria colocar o livro dentro da prisão, mas como há censura do que entra, provavelmente a entrada desse livro vai acarretar um aumento de prisão de seis meses para quem receber.

Sob qual critério eles censuraram a entrada do livro? Adalton Marques – Na verdade não é nem o critério, é a falta de critério que existe nas prisões. Isso configura a prisão como uma máquina de surdez. E quando você se coloca na condição de pesquisar um objeto sobre o qual não se pode falar e que ninguém pode ouvir dele, por causa da posição jurídica e até moral em que ele está posto, tem uma série de inconvenientes desse tipo. Tecnicamente, qual é o problema de um cara ter acesso à literatura?

fotos: Sxc.hu

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arina Biondi e Adalton Marques se conheceram na época em que ambos terminavam seus cursos de graduação, e logo identificaram grande afinidade entre suas pesquisas antropológicas, voltadas para a compreensão da prisão através dos discursos dos presos e não das administrações penitenciárias. A partir daí tornaram-se amigos e parceiros intelectuais. Karina, autora do livro recém-lançado Junto e misturado: uma etnografia do PCC (Editora Terceiro Nome), estudava sem pretensões de seguir carreira acadêmica quando seu marido foi preso. Durante as visitas, decidiu estudar a unidade prisional onde ele estava, mas acabou percebendo que nada poderia ser compreendido sem um olhar mais atento para o Primeiro Comando da Capital (PCC). Adalton inicialmente estudava a conversão religiosa dentro das prisões. Mas percebeu que as relações entre os presos giravam sempre em torno de ter ou não ter “proceder” e decidiu descrever esse conceito a partir dos relatos dos maiores especialistas na questão: os próprios presos. Consolidou tal abordagem em sua dissertação de mestrado: Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. Em suas pesquisas, Karina e Adalton valorizam as “verdades” produzidas por seus objetos de pesquisa. Como explica Marques, a tensão de forças existente entre os discursos dos presos e da administração penitenciária não dá ao intelectual o direito de se colocar acima, na condição de julgar o que é ou não correto. Biondi reforça, apontando as implicações políticas dessas escolhas, que levam o texto a ser escrito quase na mesma linguagem dos presidiários: “É não tratar aquilo como contradição ou como algo que encobre um inconsciente que está por trás, uma verdade que só o pesquisa-

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Karina Biondi – Até jornal é proibido! Qual o critério não sei... Televisão, rádio, pode.. Mas a proibição de certas literaturas parece obedecer a algum critério mais institucionalizado: não conheço nenhuma prisão que permita a entrada de revistas e jornais. Vocês podiam voltar à formação do PCC? Karina Biondi – Quando eu comecei a pesquisa de campo, cada um falava uma versão: surgiu da facção Serpentes Negras ou de outra, Armas e Rosas. Falavam que nasceu em 1988 no Carandiru, ou em outra data. De repente todas essas versões sumiram e uma predominou, a que é contada no livro Cobras e Lagartos [de Josmar Jozino]. E como é a versão?

Karina Biondi – Ela diz que o PCC nasceu em 1993, no anexo de Taubaté, a partir de um jogo de futebol entre o Primeiro Comando Caipira e o Primeiro Comando da Capital. Tinha um acerto de contas, um cara do Comando Caipira morreu e os da capital se reuniram para tomar um conjunto de medidas para se defenderem das sanções que essa morte causaria. Adalton Marques – Eles estavam no anexo que na época era conhecido como “piranhão”, como inferno. Era a cadeia mais dura, o mesmo diretor do Pavilhão 9 do Carandiru na época do massacre. Karina Biondi – E o Carandiru teve um reflexo nisso também, na linha de “olha, se a gente não se unir isso pode voltar a acontecer, todos os abusos e torturas podem acontecer de novo”. E daí teria sido fundado o PCC, que começa a se espalhar após transferências que levam essa ideia a outras unidades – não sem derramamento de sangue nesse primeiro período. A ideia era sedutora, estabelecer uma relação de não opressão entre os presos e de união contra a administração penitenciária, só que existiam resistências, foi a época das grandes guerras, que eles falam. Adalton Marques – Surgiram outros comandos nesse processo. Surgiu o Comando Democrático da Liberdade (CDL), o Comando Revolucionário Brasileiro do Crime (CRBC), a Seita Satânica já era consolidada. Começa uma guerra de disputa de território, e o que está atravessando toda essa questão é quem é certo. E essa guerra foi vencida pelo PCC? Karina Biondi – Ele conseguiu se expandir a ponto de tomar conta de territórios e conduzir outros grupos para territórios apartados, e mesmo acabar com alguns bandos. Adalton Marques – Esse processo é muito interessante, pois algumas perspectivas normativistas sempre tentam mostrar de que modo as políticas penitenciárias podem ter sucesso na ressocialização do preso. É sempre a linha de mostrar os sucessos e as falhas desse vetor administrativo. Quando seu interlocutor é o preso, você começa a perceber também de que modo que as lutas entre os presos incitam processos de modificação no corpus prisional. De 1993 até

1998, mais ou menos, era impensável se falar, por exemplo, de cadeia de um comando. A administração comanda o ingresso dos presos, os trata como reeducandos e pronto. Havia “convívio” e “seguro”. Se um cara deu uma mancada ele vai para o “seguro”, mas é o espaço dos presos, não é um espaço do PCC, ou de qualquer outro. A partir dessas lutas começa a se produzir a possibilidade de distribuir esses homens de acordo com seus pertencimentos e de suas relações com os comandos. Karina Biondi – Em 10 anos aconteceu esse processo... Adalton Marques – Aí mostra uma coisa interessante: não só como os corpos dos presos são produzidos pelo corpus penitenciário, mas como os corpos dos presos produzem esse corpus penitenciário. O Estado não passa incólume nessa relação. Hoje eu diria que a maioria das cadeias, para não dar um número preciso, são cadeias do Comando, tal como definido por eles e definido pelos inimigos deles também. O segundo maior comando hoje, pelo que a gente sente em campo, é o CRBC, que tem pouquíssimas cadeias. E tem essas cadeias que tem um pavilhão de um e um pavilhão do outro. Existe também o Terceiro Comando da Capital, que tem uma ou duas unidades. O CDL, a Seita e o Armas e Rosas praticamente se extinguiram.

De que maneira vocês inserem esse crescimento e fortalecimento do PCC com o crescimento do índice de encarceramento, especialmente em São Paulo? Adalton Marques – No começo da década de 1990 somam-se processos externos e processos internos, que estão acontecendo no Brasil, que vão incitar esse encarceramento em massa: 1) há uma série de reações conservadoras às demandas expressivas por “humanização” dos presídios; 2) começam a repercutir as políticas de tolerância zero de Nova York, do ex-prefeito Rudolph Giuliani e tal, analisadas pelo Wacquant; 3) tem um acontecimento fundamental: o Massacre do Carandiru; e posteriormente o surgimento dos comandos. Nesse processo, o PCC, por força ou por convencimento, depende de quem fala disso, ele apresenta uma proposta muito interessante pros presos. Ela é no mínimo interessante. Por que como um coletivo político consegue arregimentar tanto apoio, tantas relações e tantas atualizações de sua política se não pelo fato de que apresenta uma questão relevante? Então, tentar pensar uma causalidade unívoca entre o PCC e a expansão da população carcerária, e vice-versa, acho que empobrece o processo. Tem milhares de processos acontecendo aí. Por outro lado, parece mais absurdo ainda dizer que não tem relação. Karina Biondi – Acho que talvez não tenha a ver com a hegemonia do PCC, mas com o crescimento está vinculado. Adalton Marques – A gente triplicou a população carcerária né? Karina Biondi– E também expandindo, porque essas pessoas não ficam presas pra sempre.

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Adalton Marques – É aquela coisa, até 1998, 2000, a gente não ouvia falar de vila do Comando. Hoje é difícil uma quebrada que você vá e não se veja o Comando, e todo mundo sabe disso, a polícia sabe disso. Esses processos estão muito ligados, inclusive com a questão da queda de homicídios. Karina Biondi – Um exemplo, quando a gente vai pra campo na periferia e pergunta “por que não se mata mais aqui?”, ninguém fala “porque a gente tem medo de ir preso”. Nunca nenhum pesquisador ouviu uma coisa dessa, sempre se fala “agora que o comando tá aqui não pode mais matar”. Falem sobre a organização do PCC, da disputa de concepção que se dá depois do Marcola. Karina Biondi– Quando eu comecei a fazer pesquisa, via uma hierarquia bem forte na relação entre os presos. Não é uma coisa que acontece num estalar de dedos, mas depois de algum tempo começou a se falar de igualdade, o que começa a ser esticado pra tudo quanto é lado. E isso implica em muita coisa, você não poder ter uma palavra de comando num comando... Não que não existiam debates antes, mas a necessidade de se debater as coisas parece que vai crescendo e a decisão nunca pode ser isolada, porque uma pessoa que decide está querendo ser mais do que as outras. Então a igualdade é atribuída ao lema, e não só ao lema, a todas as práticas. E diz-se que isso foi feito pelo Marcola. Adalton Marques – Como estava saindo de um processo marcado por personificações, é quase como se, por continuidade, se tivesse personificado a virada no nome dele. Em que época foi isso?

Adalton Marques – 2002 pra 2003. Karina Biondi – Ele chega a falar isso num

depoimento, “eu distribuí o poder”. Acredito que o que ele está querendo dizer é torná-lo solúvel, pulverizar o poder. Hoje você não vê uma hierarquia colada a uma pessoa, algo como “essa pessoa é piloto ou general”. Ela vai transitando, não adquire um status que leve consigo.

Queria que vocês explicassem esses “cargos” dentro do Comando: primo, irmão, piloto, torre... Adalton Marques – Sempre se espera uma repetição de alguns processos burocráticos que acontecem no Estado, e a coisa não é exatamente desse modo. Por exemplo, quando o cara tem uma posição de funcionamento dentro do Comando, isso não significa exatamente que tem um estatuto colocado dizendo que ele tem uma palavra maior, qual função ele tem. Digamos que ele é uma espécie de ponto em que as atualizações dos valores do Comando estão melhor representados, ele é um ponto de exemplo. Não sei se é uma mediação e nem um fiscal, é uma atualização carnal de um valor do comando. Essa virada de 2002 pra 2003 incita uma permanente despersonificação das posições de julho 2010

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comando (o que não significa dizer que as posições foram, definitivamente, despersonificadas), colocando em destaque uma única coisa, o comando. Me parece que é essa coisa que deve ser compreendida. Karina Biondi – Mas isso também não quer dizer que não existam esses caras. Existe o piloto, o irmão, o primo. O que a gente está falando aqui é que não dá pra dispô-los numa estrutura hierárquica. Mas explicando: o primo é o cara que corre com o comando, nos termos deles. Não quer dizer pertencer nem quer dizer não pertencer. É o cara que está em cadeia do PCC, portanto que vive de acordo com a ética do PCC, mas ele não é batizado no PCC. O irmão é batizado. E aí tem algumas variações...O irmão excluído, que não é nem primo nem irmão, as cunhadas que são as mulheres dos irmãos. Faxina é uma coisa que já existia antes do PCC, é o nome de uma cela na verdade. Cela da faxina e tem o homem da faxina, tem a faxina e o faxina. Adalton Marques – Quase sempre quando se fala dessas coisas, a gente replica questões estatais. Como se esses caras estivessem numa posição de subjugar e manipular a população carcerária, a massa. E é de algum modo tratar o resto como massa, sem consciência, apenas alvos de políticas. Esse é o modelo, a propósito, que usamos para julgar aqueles que votam num ano na Heloísa Helena e noutro no Collor: “Não sabe de política; não tem consciência política; é manipulado”. A gente tem esse ranço de achar que na verdade a política só acontece quando está norteada por algum princípio que a gente acha correto. E temos a mania de replicar isso pra prisão: “ah, é a massa, que diante de uns caras um pouco mais fortes ou um pouco mais inteligentes, não pensa, não faz porra nenhuma”. Liderança não é simplesmente mandar no outro, porque dentro desse processo de constituição desses homens, ser mandado por outro é se tornar o que eles designam de lagarto. E lagarto é a pior coisa do mundo. Ladrão é cabuloso, troca tiro com a polícia, ladrão tem um ethos guerreiro, sei lá, ladrão é ladrão. E ser mandado por outro ladrão é a pior coisa que tem no mundo, é ser esquema do outro, é ser lagarto. Esses caras falam assim: você tem que ficar atento porque todo mundo que foi líder do PCC, que foi fundador, general, que atribuiu posições de chefia pra si mesmo, o que aconteceu com esses caras? Ou morreram ou foram expulsos. Então o que é mandar dentro desse comando? Talvez mandar dentro desse comando seja se colocar na posição do próximo a ser morto.

E o que são os salves? Karina Biondi – Muita gente fala que o salve é uma ordem, mas não é. Adalton Marques – É uma ideia. Karina Biondi – O PCC está fora do regime jurídico, então as coisas não funcionam na base da lei, do quem cumpre e quem não cumpre, quem manda e quem não manda. O salve eu diria que são mais orientações, recomendações, já que ninguém é obrigado a nada.

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E eles partem de onde? Karina Biondi – Existem salves gerais, que vêm das torres e se espalham para as quebradas. As torres são posições políticas da onde partiriam esses salves. Adalton Marques – Onde que está a torre? Ela está numa cela exclusiva dentro de uma cadeia? Não, ela está tirando cadeia nas mesmas celas com outros homens, sai pro pátio com outros homens, escuta ideias de outros homens... Karina Biondi – Ou às vezes a torre é designada uma cadeia inteira, essa cadeia é torre. O que não implica que todos os presos de lá sejam torres. Adalton Marques – Pensar que a ideia parte da cabeça do torre é muito jurídico. Como é que se constitui um salve? Ele pode se constituir, imagino eu, a partir de um acontecimento específico que exige uma reflexão para a qual talvez as situações passadas não dão conta de resolver. Karina Biondi – Como o exemplo de quem dorme ou não na cama. Antes era o preso que cumpriu mais tempo de pena que dormia na cama, e os outros dormiam no chão, porque são 40 presos por cela e 12 camas só, como se decide? Dizem que antes era pela força, ou vendiam-se as camas, isso é uma coisa que dizem que foi abolida pelo PCC. Só que aí acontece um caso em que um cara cumpriu 20 anos, foi pra rua e voltou uma semana depois. “O cara foi pra rua, se não ficou por lá a culpa é dele, eu já subi pra cama e estou há 12 anos aqui, ininterruptos”. Antes o critério era o tempo total de cadeia, e isso foi para debate. E aí se decidiu que o que vale é o tempo ininterrupto, se saiu nem que foi meio dia na rua, você desce pra dormir no chão. Então são situações que aparecem. Alguns salves são lidos. São passados por telefone, transcritos sabe-se lá como. E são lidos no pátio da cadeia, na presença dos funcionários. E outros só importam aos que estão na faxina, aos que são pilotos... Adalton Marques – Tem uma política colocada pra esses caras que é manter a paz entre os ladrões e bater de frente com a polícia. Daria pra gente dizer, forçando um pouco a barra, que são salves permanentes. Orientações permanentes. Onde que surgiram essas orientações? Elas surgiram em 93 num jogo de futebol? Não. Surgiram depois num processo depois de pensar num estatuto? Não necessariamente. Eu tenho dados de 74, 76, 78, em que essa questão de parar de se matar, e de bater de frente com agente e com polícia já era colocada. Então isso não é um enunciado que apareceu, essa coisa estava colocada. O PCC coloca isso num patamar diferente de considerações, mas as coisas não saem do nada, saem de relações. Têm que ser procuradas nas relações.

Adalton Marques – A noção de crime organizado é uma figura que não possui definição jurídica constante em nossa legislação, ainda não saiu do campo doutrinário. Está totalmente imbricada com as noções de bando e de quadrilha, oriundas do artigo 288 do Código Penal. Tem também a definição da Convenção de Palermo, da qual somos signatários. A questão é que crime organizado não tem definição, ou pelo menos têm várias. Algumas quantificam o número de pessoas associadas ao crime, outras elencam características estruturantes do tipo disposição empresarial, hierarquia, divisão de funções, motivação financeira, etc. Seja como for, a noção de crime organizado não parece funcionar bem conceitualmente. E, ao que me parece, mais difícil do que conceituar precisamente o que é crime organizado, é a tarefa de dizer o que é o PCC e outros comandos. Apesar disso, a noção de crime organizado está funcionando a pleno vapor, enquadrando presos no Regime Disciplinar Diferenciado – a despeito de uma série de posições que apontam a inconstitucionalidade desse dispositivo penitenciário. Isso seria um instrumento da repressão para rotular o inimigo mais facilmente e poder

Nesse sentido de não hierarquia, como isso contrasta ou não com o enquadramento de crime organizado? O PCC é uma organização criminosa? Tem fins econômicos puramente, tem um caixa?

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incidir militarmente sobre ele como crime organizado? Na Região Sudeste se verifica uma dificuldade de se obter maconha cada vez maior. O discurso da polícia é que o PCC teria optado pelo crack e pela cocaína, que seria mais rentável e teria deixado a maconha de lado. O PCC teria capacidade de tomar decisões empresariais como essa? Karina Biondi – Quando alguém fala “o PCC fez isso”, eu fico imaginando: quem? Porque se você chega pra qualquer irmão e pergunta “quem é o PCC?”, “a gente aqui né, tá tudo junto e misturado”. Não existe um PCC ou alguém que fale pelo PCC, não existe representatividade. Não poderia ser um salve, por exemplo? Karina Biondi – Nunca fiquei sabendo de salve no sentido empresarial, é mais sobre conduta, sobre ética. Adalton Marques – É difícil um salve recomendar os negócios particulares de um ladrão. É a correria do cara. O PCC é um emaranhado de redes de alianças que parecem um rizoma; os pontos não estão necessariamente todos interligados. O que confere sentido pra eles é essa coisa que é conhecida por todos, que não é uma pessoa, são os valores, a disciplina do comando como eles di-

zem. O termo PCC é tão forte que ele se atualiza quando um moleque está jogando bola na quebrada dele, agora os meninos não mandam o outro tomar no cu e quando acontece alguma coisa eles falam “vamo debater essa fita”. Por efeitos diversos, de algum modo isso está atualizando o jeito de ser do PCC, é uma coisa muito louca. E homogeneizar esse processo passa a impressão que milhares de presos das 147 unidades prisionais, entre 150 mil pessoas, estão conectados e todos funcionam do mesmo jeito. Tipo todos decidiram não vender mais maconha, todos decidiram tal coisa, é muito complicado.

Uma pergunta sobre maio de 2006. Lendo trechos do depoimento do Marcola na época, ele dizia que não teve uma fonte específica que deu uma ordem, seria uma revolta generalizada. Dizem que inclusive fugiu do controle. Vocês têm dados para explicar então por que tudo parou ao mesmo tempo? Karina Biondi – De todas as versões que eu ouvi, a versão do Marcola me parece a mais consistente. Sobre o jeito desordenado de funcionamento do PCC. Eu ficaria muito mais perplexa que deu tudo tão certo por meio da ordem de um cara. Não existe um controle tão grande. Por isso acho que faz muito mais sentido em termos de revolta generalizada e lealdade, e que assim como todos foram se comunicando e essa revolta foi pipocando em vários lugares, todos foram se falando pra parar. E quanto à versão de um acordo com um governo pra encerrar a revolta? Adalton Marques – O Marcola diz que houve a tentativa clara de fazer uma negociação e argumenta que ele nem sabia que aquilo estava em curso. Um dado forte que torna a versão deles plausível é a seguinte indagação: se o Estado, através da sua inteligência e investigação, decidiu isolar setecentos e poucos presos considerados lideranças em uma cadeia de segurança máxima, Venceslau II, esses homens que representam esse topo da hierarquia tinham condições materiais de dar o comando? Karina Biondi – Se isolaram os supostos “cabeças” e tiraram eles de qualquer comunicação, será que essa própria história não comprova a não hierarquia do comando? Como se dá o comportamento dos presos e dos integrantes do PCC em relação às mulheres? Existe um respeito a elas, ou é um respeito em relação ao homem que é visto como dono da mulher? Karina Biondi – A postura que se tem em relação à mulher é uma questão fortíssima. Não se dirige a palavra, existe a postura corporal mesmo, de estar de lado, quase de costas para a mulher, e o que está em jogo é a relação entre os homens, os presos. Implica a honra dos homens. Particularmente parece que você é invisível. Às vezes, mesmo quando queriam falar comigo, falavam para o meu marido, mas para que eu ouvisse. Eu poderia pensar isso como um

desrespeito, mas talvez seja um excesso de zelo e de respeito a ele.

O Adalton coloca em sua tese que o projeto de prisão é a sua reforma, que não se busca outros modos, o máximo é uma melhoria do que está aí. Você acredita que mesmo a esquerda está dentro dessa lógica, de punição? Adalton Marques – O que eu diria é que a questão da segurança, pelo menos no último pleito eleitoral à presidência, norteou um pouco discussões da esquerda e da direita. Mas pelo menos entre aqueles que se pretendem elegíveis, é difícil que alguém vire e fale “acho que a tática pra hoje não é reprimir mais, mas abrir um diálogo”, acho quase impossível. E na esquerda que não se pretende elegível? Adalton Marques – Pensando um pouco no [Gilles] Deleuze, eu diria que não tem uma máquina abstrata alternativa à disciplina e ao controle pra pensar nos presos. O preso é sempre aquele que precisa ser ressocializado. Aí quando você parte de uma colocação desse tipo, está sempre implicado um modo de fazer incidir sobre ele uma ortopedia social específica. E eu não tenho uma alternativa pra isso. Essa coisa de tornar o indivíduo próprio para o trabalho, para o lugar certo na família, o “socializado”. Como alternativa à disciplina, a gente passa a ter muito mais aquilo que eu chamaria de contenção. Não incide na totalidade dos presos, incide naqueles que são elegíveis por decisões penitenciárias, para ficarem reclusos, 365 dias por ano, 23 horas por dia, sem direito a educação, a banho de sol, a trabalho, com visitas controladas e filmadas... A gente tem que se perguntar se o resultado de um poder disciplinar, como disse [Michel] Foucault, é a produção de delinqüentes, ou seja, se a derivação da disciplina produz crime, o que vai derivar desse outro poder? E aí temos que levar a sério até o nome desse tipo de cadeia: Regime Disciplinar Diferenciado, RDD. Não é mais a disciplina, é a diferença da disciplina, é a contenção até a última ponta. E o que vai sair daí a gente não tem bagagem histórica pra falar. Karina Biondi – O raciocínio é como se o problema sempre fosse a falta de Estado. Então a solução é colocar mais Estado. E não é só que a prisão seja vista como o remédio, mas é a potencialização da prisão dentro da própria prisão. Sobre os movimentos sociais, de esquerda, faz anos já que eu vi enunciados de presos dizendo que “na época dos presos políticos o pessoal se mobilizava e olhava aqui pra dentro, agora não tem ninguém deles preso aqui, então a gente foi esquecido”. Acho que isso é forte para os movimentos pensarem também: os presos porque eram políticos valiam uma mobilização, e agora eles são menos políticos? Ou estão fazendo outra política? O que se entende por política, ou por resistência? Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo. Julio Delmanto é jornalista. julho 2010

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Marcelo Salles

teatro da Maré mostra a força da favela

A Cia Marginal de Teatro, grupo formado por atores-moradores da Maré, maior bairro popular do Rio de Janeiro, realiza ações para democratizar o seu método de trabalho.

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foto: Q Naldinho Louren

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udo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta de cigarro acesa dança, em movimentos cadenciados. Aos poucos, a luz se abre. E rufam os tambores! No centro do palco, surge, vagarosamente, uma pomba-gira. Sentada com seu enorme vestido branco, caprichosamente deitado em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado, enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e duas ajudantes entram em cena. Mais duas palmas e elas enchem seu copo. De repente, uma pastora evangélica, dessas bem escandalosas, entra no palco. Sua pregação coincide com a saída de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Jesus no seu coração!” e outras palavras de ordem. A transição se completa. A pomba-gira e suas ajudantes saem completamente de cena, e a pastora conquista, definitivamente, o palco. O trecho acima está em cartaz com o espetáculo Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Teatro. Trata-se de uma das muitas histórias de Nova Holanda, uma das dezesseis favelas do Complexo da Maré, conjunto habitacional às margens da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com beleza e rigor histórico, a substituição das religiões de matriz africana pelas neopentecostais no Rio de Janeiro – processo que muitas vezes expulsou das favelas, com violência, os praticantes de umbanda e candomblé. A peça conta diversas histórias de Nova Holanda, entrecortadas por depoimentos pessoais dos atores, que são também moradores da Maré. O processo de criação que deu origem ao espetáculo teve como ponto de partida uma pesquisa de campo realizada nesta favela. Durante dois ou três meses os atores entrevistaram alguns dos moradores mais antigos da comunidade até se

Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional.

chegar à formatação das histórias. “Depois, fizemos um processo de seleção e reflexão em cima desse material”, explica a diretora do grupo, Isabel Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos atrás, mas que são atualizadas pelos depoimentos dos atores”. Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andrade, de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro não é mais um desses que se proliferam nas fa-

velas pelas mãos de ONGs comprometidas apenas consigo mesmas. Priscilla fala de seu primeiro Fórum Social Mundial, narra a evolução do engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e lembra de quando moradores fecharam a Avenida Brasil após o assassinato do menino Renan, 3 anos, durante operação policial em 2006. “A gente também faz protesto!”, afirma. Uma segunda passagem do espetáculo conta

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Cena antológica A diretora Isabel Penoni explica que tentou conjugar as celebridades do terrorismo internacional com a banalização da violência entre crianças (Minie), enquanto a figura do Carlitos, única a não portar nenhuma arma, pula de um lado para outro tentando escapar com vida. “O importante é que o uso das máscaras de Bush, Saddam e Bin Laden nessa cena amplia a reflexão sobre a guerra que se vive hoje nas favelas cariocas, conectando ou associando-a aos grandes conflitos internacionais”, diz Isabel. O espetáculo aproveita as histórias dos moradores da Nova Holanda para problematizar questões tabus, como a homossexualidade, abuso sexual e os diversos preconceitos ainda enraizados no país. No total, são 13 cenas, entre as representações das histórias contadas pelos moradores mais antigos e os depoimentos pessoais dos atores. O momento em que a plateia mais riu foi diante da interpretação da história das palafitas duplex. Muitas pegaram fogo, os donos perderam tudo, uma desgraça sem fim. Mas a pose estava mantida. “Mas era duplex”, repetia, orgulhoso, entre uma e outra tragada no cigarro. Uma outra cena que diz muito pela atualidade da reflexão proposta é a que mostra o papelão prestado por muitas ONGs que atuam em comunidades. Pegam os favelados mais fudidos e os inscrevem num projeto social qualquer. Depois, os que aprendem a batucar qualquer coisa são atirados à mídia e pressionados a defender muros, caveirões e UPPs. É a nova rolagem da máquina de moer gente, diria Darcy Ribeiro. Gizele Martins, moradora da Maré, assistiu à peça pela quarta vez e se emocionou mesmo assim. “Eu me vejo representada em cada situação representada. A peça é essencial para o resgate da nossa história”, disse.

A atriz Priscilla Andrade conta que a Cia Marginal é um projeto de vida. “Foi por ela que eu parei de resistir em tentar ser atriz. No Brasil há uma ideia de não-valorização da cultura, mas o teatro foi mais forte, foi me puxando e não teve jeito”, diz ela, para quem a arte tem um importante papel político. “Eu acredito na arte. E primeiro de tudo tem que ter um papel político. A arte questiona, problematiza as questões envolvidas na história. Ela toca na ferida. Se não toca na ferida, não é arte, é só entretenimento”. Wallace Lino, ator que interpreta a pomba-gira da cena inicial, se encontrou no teatro, mais especificamente nesse grupo. “A Cia Marginal é minha vida”, diz. “Foi o único espaço em que consegui construir um vínculo que não consigo e nem quero me desligar”. Em sua opinião, encenar uma peça sobre a Maré é um privilégio, pois “as pessoas que construíram esse lugar são exemplos de resistência. Não só na Maré, mas na maioria das favelas”, diz. Wallace critica a forma como o poder público age nesses espaços, e pergunta: “Por que aqui ele atua totalmente diferente da Zona Sul?”.

Histórico A Cia Marginal é um grupo formado por atores-moradores da Maré, maior bairro popular do Rio de Janeiro. Nesse espaço, o grupo desenvolve, desde 2005, atividades em parceria com a orAtores contam histórias e fazem depoimentos pessoais.

João Penoni

um pouco da história do traficante varejista Jorge Negão, que durante muito tempo reinou absoluto na favela. O ator caminha lentamente. Três mulheres o acompanham, com gritinhos de Jorge, Jorge. Quando ele vira o boné pra trás, todas se calam e deitam, imóveis. Apavoradas, procuram esconder o rosto. O bandido desvira o boné e volta a caminhar. Gritinhos, boné pra trás, mulheres no chão. Tragicômico: os moradores mais antigos contam que quando Jorge Negão saía de sua casa com o boné virado pra trás era porque estava indo matar alguém. Uma outra cena que retrata a violência diz respeito a uma trégua do Jorge Negão e dos Irmãos Metralha, grupos rivais que durante anos dominaram a região. Era dia de votação para a Associação de Moradores – este o motivo da bandeira branca. De repente estoura o funk Rio Chumbo Quente, dos MCs Júnior e Leonardo, adaptação da música “Chumbo Quente”, da dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho, que surgiu em 1969, em Goiânia. Ao contínuo, os atores entram com máscaras de Bush, Saddam Hussein, Bin Laden, Minie e Carlitos. Seguram foices, armas de fogo, munições. E dançam, percorrem todo o palco.

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ganização Redes de Desenvolvimento da Maré. Seu nome reflete a prática a que se propõe, que aponta para a liberdade que se encontra às margens dos sistemas e padrões dominantes. A Cia realiza ações voltadas para a democratização do seu método de trabalho, como oficinas teatrais oferecidas para jovens da favela. Em 2006, o grupo foi contemplado com o Prêmio de Teatro Myriam Muniz, da Funarte, que permitiu a montagem do espetáculo Qual é a nossa cara?. Em 2009 foi agraciada com patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro para a manutenção de suas atividades. Para a temporada 2010/2011, a Cia Marginal pretende trabalhar o projeto Do outro lado, que vai tratar do universo dos presos em regime fechado. “Me interessa saber como eles passam o tempo, como constroem a privacidade num lugar onde a premissa é a subtração da privacidade, como dão sentido à passagem do tempo”, explica a diretora Isabel Penoni. O objetivo é mostrar ao público um pouco da subjetividade de quem está preso, sobre quem é a pessoa que está ali, geralmente tida como um número, uma massa homogênea de criminosos. “Também me interessa ver como vai se dar a interação com os atores durante o processo de pesquisa, pois na favela também há uma série de limitações, como muros, fronteiras impostas pelo tráfico, entre outras”, diz Isabel, que trabalha há dez anos na Maré. A missão da Cia Marginal é realizar projetos de pesquisa, criação, produção e democratização da prática teatral, através de uma gestão coletiva. O grupo atua em diferentes espaços e está voltado para um público diversificado, contribuindo para a descentralização da difusão artística da cidade do rio de Janeiro, através de um teatro autoral, contemporâneo e feito com qualidade, comprometido com a formação de um pensamento crítico e reflexivo. A direção da Cia está a cargo de Isabel Penoni. Em seu elenco estão Priscilla Andrade, Geandra Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino, Diogo Vitor e Rodrigo Souza. A ficha técnica do espetáculo Qual é a nossa cara? é a seguinte: Concepção e Direção: Isabel Penoni; Pesquisa e Criação: Cia Marginal; Supervisão de Dramaturgia: Rosyane Trotta; Direção de Arte: Rui Cortez; Direção Musical: Isadora Medella; Iluminação: Daniela Sanchez e Rogério Emerson Magalhães; Programação Visual: João Penoni; Foto e Vídeo: Davi Marcos; Produção Executiva: Cia Marginal e Bianca Fero. O público que esteve presente na noite de 19 de junho, um sábado, no Centro de Artes da Maré, assistiu a tudo com uma atenção exemplar. E riu e chorou. E quando a apresentação terminou, todos aplaudiram de pé por intermináveis minutos. Não à toa. Os atores estiveram impecáveis, a iluminação precisa, o figurino estupendo. Esse espetáculo, esse grupo, poderia estar em qualquer teatro do mundo. Marcelo Salles é jornalista. Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo. julho 2010

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Juliana Sada

Direitos autorais,

a luta pelo acesso ao conhecimento A reforma da lei atual de direitos autorais, em vigor desde 1998, é uma demanda de diversos grupos que a consideram muito rígida em alguns pontos e desatualizada.

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aula ou da reprodução de uma obra esgotada, também no âmbito escolar. Outro problema apontado é que a lei priorizaria os interesses dos intermediários, sendo estes os que mais lucram sem que os autores recebam remuneração. Um estudo feito pelo Gpopai (Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas para o Acesso à Informação) aponta que, no caso das editoras, de três partes recebidas, duas ficam para o intermediário e uma para o autor. Neste ano, a organização “Consumers International” realizou uma pesquisa em 34 países sobre o impacto do direito autoral sobre o acesso ao conhecimento. O Brasil ficou em 28º lugar. Para Pablo Ortellado, professor da USP e membro do

Gpopai, o direito autoral é um monopólio de exploração de uma determinada obra, e por isso deve ser “altamente regulamentado. O impacto de haver um monopólio sobre um bem tão importante para a educação, para a cultura, é enorme”. A regulamentação viria pela criação de exceções e limitações do direito autoral, de modo a garantir o acesso da população às obras. Ortellado cita um estudo feito pelo Gpopai que revelou que 30% da bibliografia básica dos cursos universitários está esgotada, a única maneira legal do estudante ter acesso a estes conteúdos é pelas bibliotecas, que em geral não tem um acervo capaz de atender a demanda.

imagem de domínio público

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m meados de junho deste ano, o Ministério da Cultura (MinC) apresentou o anteprojeto de reforma da lei de direitos autorais. Se aprovadas, as modificações propostas colocarão na legalidade uma série de práticas cotidianas, além de corrigir alguns graves, e óbvios, problemas da lei. Professores poderão usar filmes e músicas em sala de aula sem estar cometendo nenhum crime; cinematecas, museus e bibliotecas poderão fazer reprodução de seus acervos para fins de conservação; peças teatrais de fim de ano poderão tocar música sem ter que pagar direito autoral; quem comprar um CD poderá passá-lo para um MP3 player; e as festas poderão tocar “Parabéns a você” sem correr o risco de ser importunadas pelos fiscais do direito autoral. O processo de reformulação da legislação teve início em 2007, quando foi realizado o Fórum Nacional de Direito Autoral, promovido pelo MinC. A partir da constatação da necessidade de mudança na lei, o órgão se dedicou a debater com os diversos setores “levantando suas demandas e os problemas que eles viam no tocante ao direito autoral e passamos a estudar e debater possíveis soluções”, conta Marcos Souza, diretor de Direitos Intelectuais do MinC. Com o material em mãos, o Ministério formulou a proposta de lei. Até o final de julho, o órgão recolherá contribuições da sociedade civil para formatar um projeto de lei que será encaminhado aos parlamentares. A reforma da lei atual de direitos autorais, em vigor desde 1998, é uma demanda de diversos grupos que a consideram muito rígida em alguns pontos e desatualizada, devido à expansão da internet. A lei brasileira é considerada muito restritiva pelas poucas exceções permitidas, ou seja, situações em que não é necessário o pagamento de direito autoral ou de autorização de seus detentores, como no caso de um professor exibir uma obra em sala de caros amigos julho 2010

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Especialistas da área jurídica alertam para a necessidade de equilibrar o direito autoral com outros direitos do cidadão. Guilherme Varella, advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) explica que além de proteger os direitos do autor, de modo que ele continue produzindo, “existe uma outra função da lei que é a esfera pública e de atendimento do interesse público e consagração de alguns direitos que são fundamentais, que são os direitos à educação, à cultura e o acesso ao conhecimento”. Esta visão é compartilhada por Marcio Schusterschitz, promotor do Ministério Público Federal, para quem o direito autoral não é um “direito isolado” e sim “transversal” funcionando como o “porteiro que vai deixar ou não as pessoas terem acesso à informação e ao conhecimento”.

Nova lei em construção Diante da constatação destes problemas, o MinC criou a proposta de lei que agora está em consulta pública para receber sugestões da sociedade civil, que posteriormente poderão ser incorporadas ao projeto. Algumas das mudanças propostas resolvem questões praticamente consensuais como a cópia de livros esgotados; execução de músicas e filmes em igrejas, escolas, cineclubes e no âmbito doméstico; e a cópia privada (de um livro ou CD adquirido). Entrariam na legalidade também a revenda de obras, praticada pelos sebos, e o próprio empréstimo de livros por bibliotecas, que teoricamente só pode ser feito mediante autorização do detentor dos direitos autorais. Inovações importantes trazidas pelo anteprojeto são a proibição do jabá (pagamento para execução de uma música nas rádios); a numeração de cópias, de modo que o autor possa saber quantas foram produzidas e evitar fraudes por parte das gravadoras e editoras; e a criação da licença compulsória – mecanismo que outorga ao presidente o poder de autorizar, quando requisitado, o licenciamento de uma obra se estiver esgotada; se os detentores dos direitos criarem empecilhos não razoáveis à exploração de uma obra e se não for possível determinar o autor de uma obra. De todas as propostas de modificação apresentadas, duas já se mostram polêmicas: a permissão de xerox nas faculdades e a fiscalização das organizações de gestão coletiva. Essas mudanças mexem diretamente com os interesses da ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), que reúne editoras, e o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), responsável por recolher os direitos autorais decorrentes da execução de músicas. A primeira modificação tornaria regular uma prática cotidiana e fundamental no ensino superior. No entanto, prevê o pagamento de direitos autorais e estabelece que os detentores de direito têm que autorizar a reprodução da obra. Para Ortellado, esse modelo trará uma oneração muito grande aos estudantes, já que um aumento de dois ou três centavos por cópia representaria oitenta reais anuais a mais. Além disso, o pesquisador acredita que a ABDR não irá autorizar a reprodução das obras. Esta seria uma situação que poderia ser corrigida pelo licenciamento

compulsório, entretanto, Ortellado crê que o governo não tem força política para fazer isso em massa. Marcos Souza, do MinC, discorda e contra argumenta que a simples existência do mecanismo resolve este potencial problema.“Não é a aplicação constante do mecanismo que vai garantir a sua observância”, defende. Já a fiscalização das organizações de gestão coletiva está incomodando especialmente o Ecad, entidade responsável por recolher direito autoral de estabelecimentos que tocam música como rádios, igrejas e festas. Além de arrecadar o dinheiro, o Ecad é responsável por distribuí-lo aos autores. Entretanto, o pagamento não é proporcional à quantidade de vezes que cada artista foi tocado. Nem todos que tiveram sua obra executada recebem os dividendos, apenas os que tiveram maior destaque. No entanto, este processo e seus critérios não são considerados suficientemente transparentes e por isso se tornaram alvos de intensas críticas. Como a feita pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP): “o Ecad é uma instituição sem controle da sociedade e nem do seu segmento específico que é o autor, que não tem nenhuma garantia que será remunerado devidamente”. Para resolver esta questão, explica Marcos Souza, o anteprojeto de lei pretende “dotar o sistema de arrecadação e distribuição de transparência, de modo que seja possível o seu controle social por parte dos principais interessados que são os autores e artistas”. Entretanto, para o parlamentar, a melhor solução seria “extinguí-lo e promover um órgão transparente no qual os autores participem para fiscalizar seus ganhos”.

Demanda da indústria O pano de fundo da disputa pelos direitos autorais é muito mais amplo que a alegada defesa do criador. Diversos acordos internacionais estabelecem normas para a área e o Consenso de Washington, que definiu as diretrizes do neoliberalismo, estabelece como uma de suas dez regras básicas o direito à propriedade intelectual. Uma das maneiras de ingerência externa nesta questão são os acordos bilaterais feitos pelos Estados Unidos, que exigem como contrapartida uma elevada proteção ao direito intelectual. No entanto a medida mais abrangente vem da Organização Mundial do Comércio (OMC), já para ser membro desta é necessário aderir ao “Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”, conhecido como Trips, que forçou a criação de leis de proteção à marcas e patentes em diversos países. Essas restrições e exigências internacionais são frutos de investidas das indústrias do campo do direito autoral (fonográfica, audiovisual, editorial, games e softwares), a partir da década de 80. Pablo Ortellado conta que a indústria do direito autoral se associou com a indústria de patentes (sobretudo de fármacos) e “começaram a imaginar o mundo que elas queriam daqui a 30 anos”. Gradualmente foram introduzindo restrições de direito autoral aos países com os quais os Estados Unidos mantinham relações bilaterais. O segundo passo foi incorporar a exigência de

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respeito aos direitos autorais no dispositivo 301, que é um mecanismo que dá benefícios tarifários para países em desenvolvimento para exportar aos EUA. A cada ano é feito um relatório que analisa a legislação de direitos autorais de cada país e seu cumprimento e apresenta um julgamento - o Brasil já foi criticado pela questão dos medicamentos genéricos e pela cópia de livros. Finalmente, a indústria introduziu na OMC o dispositivo Trips que “em um golpe só obrigou todos os países a cumprir prazos muito altos de proteção de patentes e direito autoral”, explica Ortellado. Atualmente, há duas iniciativas de endurecimento de legislação de direitos autorais no mundo. A primeira é a chamada “resposta gradual” com o intuito de combater a pirataria na internet, que prevê advertências a usuários de internet que fizerem downloads ilegais e, se houver reincidências, a conexão de internet seria cortada. Esse tipo de regulamentação foi debatida em diversos países europeus, sempre acompanhada de protestos e controvérsias.

Projeto em disputa Diante deste quadro de ofensiva da indústria e enrijecimento da proteção ao direito autoral mundialmente, o anteprojeto brasileiro se apresenta como um avanço progressista. Para Marcos Souza, do MinC, é possível apontar três áreas de avanço na proposta: maior proteção aos autores, como por exemplo pela “possibilidade explícita de autores reverem contratos de cessão [de direitos] em determinados casos”; melhor harmonização entre “os direitos conferidos aos autores e os do cidadão de ter acesso a cultura e ao conhecimento”; e, por fim, mais segurança aos investidores da cultura, por dar clareza a alguns dispositivos da lei. Na mesma linha, Pablo Ortellado acredita que a grande inovação da lei é estar na contramão do movimento mundial e aponta como melhorias o aumento de proteção dada ao autor frente aos intermediários e o maior acesso que o público terá ao conhecimento. Ainda assim, faz críticas a determinados pontos e, sobretudo, a um assunto que não foi discutido: o compartilhamento de arquivos entre internautas, o chamado P2P, prática extremamente disseminada, mas que segue na ilegalidade. Entretanto, muitas modificações poderão ser feitas, tendo em vista que o anteprojeto receberá contribuições da sociedade até o fim de julho para então tramitar no parlamento. Este modelo de consulta pública já foi utilizado no debate do marco civil da internet e muito elogiado, pela sua possibilidade de participação e transparência. Após a sistematização da consulta pública e formulação de um novo projeto, a proposta será encaminha à Câmara dos Deputados, provavelmente ainda neste ano. O deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP) acredita que a iniciativa é a favor da sociedade e do acesso ao conhecimento, mas reconhece que há “uma pressão dos produtores no sentido de restringir, inclusive deixando de entender que a indústria pode ganhar muito com a difusão cultural na internet”. Juliana Sada é jornalista. julho 2010

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

As capacidades dos

CANDIDATOS

Senac publica livro de psiquiatra que exige controle da democracia, como o exame biológico dos candidatos.

A Editora Senac São Paulo acaba de lançar o livro Cérebro e poder, em que o psiquiatra forense catalão Adolf Tobeña, catedrático da Universidade Autônoma de Barcelona, demonstra, segundo a apresentação do próprio Senac, que “a biologia humana impõe que, para liderar ou governar, devem prevalecer capacidades como a astúcia, a persuasão, a audácia, a manipulação, a falsidade, a crueldade... a fim de que se possa aproveitar da necessidade que os indivíduos sentem de ser conduzidos e de sonhar com ilusões de um grande futuro. Sempre foi assim, e as atitudes que assumimos ao interagir socialmente dependem de nossos circuitos neurais e das modificações dos estímulos hormonais de que todos somos portadores – atributos esses que têm uma influência decisiva nas competições entre os humanos”. O próprio Tobeña afirma, na conclusão: “Entre os políticos de renome, e também entre os de segundo e terceiro escalão, há uma proporção descomedida de delinquentes e de paradelinquentes. (....) É assim e continuará sendo. Todo mundo sabe, Deus e o mundo estão perfeitamente conscientes disso”. E deduz: “Por isso é tão importante ir criando mecanismos na democracia, que atenuem a tendência ‘natural’ para a absorção do governo por parte dos aproveitadores de diferentes laias e dos seus comparsas”. Conclui Tobeña que “a diversificação de poderes institucionais que tendem a compensar e a autovigiar-se é imprescindível”, sendo ainda melhor “a limitação temporal do período de governo das administrações”. Finalmente, diz: “Mas essa engenharia institucional terá de ir se sofisticando e refinando-se sem cessar, além de ir pondo em prática detectores – procedimentos diagnósticos, em resumo –, de quem se associa incondicionalmente a bandidagens. Porque, para domar a biologia parasitária, requerem-se esforços sistemáticos. Esforços que começam, é claro, por não negá-la em assuntos de poder e domínio”. UM ROMANCE DO TIMOR LESTE, Bolsa Família, Walter Benjamin, prostitutas...

O escritor e militante timorense do leste Luís Cardoso já teve

livros traduzidos para o alemão, francês, holandês, inglês e sueco. Mas só agora chega ao Brasil, apesar de falarmos a mesma língua em que ele escreve. Seu romance Requiem para o navegador solitário acaba de ser

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lançado pela Língua Geral. Tratase de uma jovem que, enquanto luta para recuperar as terras que sua família perdeu sob o domínio indonésio, sonha em receber no porto um navegador solitário francês, cuja viagem conhece por leituras e que acha que vai mudar sua vida. O Timor Leste da época é apresentado como “ilha-prisão” Já a Editora Perseu Abrano, ligada ao PT, publicou a segunda edição, revista e atualizada, do livro Bolsa Família – Avanços, limites e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil, do pesquisador Marco Aurélio Weissheimer. A conclusão é que, embora tenhamos chegado ao “ponto mais alto”, na história do País, da luta contra à pobreza, esta não pode ser reduzida de fato sem a reforma agrária. Um seminário na Universidade Federal Fluminense sobre o famoso ensaísta marxista heterodoxo Walter Benjamin, judeu alemão que se suicidou diante da iminência de ser capturado por tropas nazistas na fronteira da França com a Espanha, está na origem dos artigos publicados no volume Walter Benjamin: arte e experiência, organizado por Luiz Sérgio de Oliveira e Martha D’Angelo, lançado pela Editora da UFF e Nau Editora. Diz a apresentação, sobre Benjamin: “Foi a partir da avaliação sobre a impossibilidade da experiência humana se realizar por meios naturais na modernidade que a experiência do artista tornou-se fundamental para ele”. Também da Editora da UFF é o livro Vila Mimosa – etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca, da pesquisadora Soraya Silveira Simões. A obra retraça a trajetória dos habitantes e freqüentadores dessa vila da famosa “zona do Mangue”, no centro do Rio, que diante da demolição do lugar se organizaram em um novo empreendimento junto à antiga estação de trem da Leopoldina. Trata-se de “prostitutas, rufiões, cafetinas, birosqueiros e malandros” e de “habitués, frequentadores eventuais, clientes apaixonados, onanistas e voyeurs”. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editorespecial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

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Emir Sader

SE TUDO FOSSE IGUAL Há uma tese que corre em setores políticos distintos, mas que convergem em torno dela e, pelos equívocos que contém e pelas consequências desastrosas que gera, deve ser analisada. É a tese de que o PT e o PSDB são a mesma coisa, assim como os governos do FHC e do Lula. A tese leva a uma espécie de “terceirismo”, de candidaturas que definem equidistância em relação às candidaturas da Dilma e do Serra e que já teve posições de voto branco ou nulo no segundo turno entre Lula e Alckmin. Se os governos de FHC e Lula fossem iguais, a desigualdade teria diminuído e não aumentado durante o governo de FHC. Se fossem iguais, a reação do Brasil durante a crise econômica internacional recente teria sido a mesma de FHC: aumentar a taxa de juros a 48%, pedir novo empréstimo ao FMI e assinar a correspondente Carta de Intenções (deles), cortando recursos das políticas sociais, aumentando a recessão e o desemprego, levando o Brasil a uma profunda e prolongada recessão, que só foi superada no governo Lula. Se fossem iguais, não teria tido sentido a luta contra a ALCA – Área de Livre Comércio das Américas -, que FHC propugnava e que o governo Lula inviabilizou, para fortalecer os processos de integração regional. Dizer que são governos iguais ou similares é dizer que tanto faz privilegiar alianças subordinadas com as grandes potências do centro do capitalismo ou aliar-se prioritariamente com os países do Sul do REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 6/25/10 AM REVISTA mundo, CAROSAMIGOS.pdf 6/25/10 10:05 AM os Brics11entre eles. 10:05

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Se fossem iguais os governos FHC e Lula, o Estado mínimo a que tinha sido reduzido o Estado brasileiro seria o mesmo que o Estado indutor do crescimento e garantia da extensão dos direitos sociais da maioria pobre da população. O desenvolvimento, anulado do discurso de FHC, foi resgatado como objetivo estratégico pelo governo Lula, articulado intrinsecamente a políticas sociais e a distribuição de renda. É grave quem não consiga ver essas diferenças. Perde a capacidade de identificar onde está a direita – o inimigo fundamental do campo popular – correndo o grave risco de fazer o jogo dela, em detrimento da unidade da esquerda. sugestões de leitura DIANTE DA CRISE GLOBAL: HORIZONTES DO PÓS-NEOLIBERALISMO

Ulrich Brand e Nicola Sekler (orgs.) Eduerj

COMBATENDO A DESIGUALDADE SOCIAL: O MST E A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL

Miguel Cartes Edunesp

OS CANGACEIROS – Ensaio de interpretação histórica

Bernardo Pericás Boitempo Editorial

Emir Sader é cientista político.

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