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Águas subterrâneas: o essencial escondido
Relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2022, mostrou que as águas subterrâneas representam 99% de toda a água doce líquida da Terra, respondem por metade do abastecimento humano e por cerca de 25% da irrigação. Na apresentação do documento, cujo subtítulo é “Fazer visível o recurso invisível”, a diretora-geral da entidade, Audrey Azoulay, afirma que “cada vez mais recursos hídricos estão sendo poluídos, superexplorados e esgotados pelo ser humano, às vezes com consequências irreversíveis”.
A extração mundial de água doce – de rios, riachos, lagos, aquíferos e reservatórios artificiais, as chamadas fontes de “água azul” –, que era de aproximados 600 km³/ano em 1900, saltou para 3.880 km³/ano em 2017. O volume total de água doce líquida subterrânea varia, conforme o estudo, entre 11 e 16 milhões de km³.
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Benefícios e oportunidades
Como em geral a qualidade das águas subterrâneas é boa, elas podem ser usadas de forma segura e acessível em termos financeiros, sem exigir muitos recursos de tratamento. Tudo, no entanto, precisa ser conduzido com um olho no presente e outro no futuro, de modo a impedir o comprometimento dessa “poupança hídrica”, na síntese do doutor em Geologia Paulo Rodrigues, do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN).
Para aproveitar sustentavelmente esse vasto potencial, a Unesco recomenda três frentes de ação: impulso na produção de informações e conhecimento; fortalecimento “dos regulamentos ambientais”, já que “a poluição das águas subterrâneas é praticamente irreversível”; e “reforçar os recursos humanos, materiais e financeiros”, já que “em muitos países, a falta geral de profissionais” nesse campo, bem como de “financiamento e apoio insuficientes”, “dificultam a gestão eficaz”.
Perto de Casa
Minas Gerais tem ao menos quatro regiões que chamam a atenção nesse tema: o Norte, cujas águas subterrâneas sofrem pressão do crescimento industrial e agrícola num quadro de escassez de chuvas e de águas superficiais; Sete Lagoas e seu entorno, onde o volume de água consumida ultrapassou a taxa anual de recarga do aquífero desde 2017; o Quadrilátero Ferrífero, por conta da intensa atividade minerária; e a delicada região cárstica de Lagoa Santa. As três últimas áreas estão na bacia do Rio das Velhas.
O professor Paulo Galvão, doutor em geologia pela USP e professor do Instituto de Geociências da UFMG, adverte: “As águas do Aquífero Guarani, na região central de São Paulo, têm mais de 60, 70 mil anos. Em Alter do Chão, no Pará, uns 18 mil anos. Se esgota, dificilmente será renovável no tempo humano”. E constata: até há pouco, “o debaixo da terra era terra sem lei”
Proteção
Embora “em comparação aos países desenvolvidos ainda precisemos percorrer caminho longo”, Galvão vê avanço na gestão das águas subterrâneas no estado. Remetendo ao mote do relatório da Unesco, o professor avalia que “Minas, com o IGAM [Instituto Mineiro de Gestão das Águas], a Semad [Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável], a ABAS [Associação Brasileira de Águas Subterrâneas], universidades e empresas, está trabalhando para tornar visível o invisível”.
Para o diretor-geral do IGAM, Marcelo da Fonseca, “temos observado aumento significativo da exploração da água subterrânea”. Isso, diz, tem “nos preocupado, pois a água é uma só, tem que ter visão integrada”.
Fonseca ressalta as “ações preventivas e repressivas” adotadas e os aspectos legais: “Avançamos em normativas, num trabalho conjunto com o Serviço Geológico do Brasil e universidades, para aprimorar a gestão”. Segundo ele, um grupo de trabalho transformou as recomendações em deliberações”, especialmente a DN 76/2022, do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH), que define critérios para a regularização dos usos das águas subterrâneas em Minas Gerais.
Marcelo da Fonseca acrescenta que a “avaliação das reservas do Norte de Minas está concluída e que a “metodologia vai ser empregada na análise de processos de outorga para o resto do estado” e, ainda, “que um novo convênio com o Serviço Geológico do Brasil vai fazer o estudo das Águas do Centro-Sul”.
Paulo Rodrigues questiona, contudo, a capacidade de fiscalização: “Falta estrutura aos órgãos públicos, servidores de carreira. Não temos dados de qualidade de águas subterrâneas, até nas superficiais é uma penúria, só 300 pontos [de monitoramento] para um estado do tamanho de Minas”.
O Carste
A palavra define um terreno exposto a processos de dissolução de rochas como o calcário, com drenagem subterrânea, cavernas e dolinas, e nomeia uma região única no mundo, localizada no Médio-Alto Rio das Velhas, em que a relação entre águas subterrâneas e superficiais se dá de forma especial.
Não é à toa que seu perímetro foi transformado na Área de Proteção Ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa. Segundo Galvão, a situação da APA coincide com a de Sete Lagoas, “sem contaminação das águas subterrâneas, só em lagos, com nitrato e coliformes fecais, e nos rios principais, como o Velhas, que traz a poluição de BH”.
Estudos anteriores na região comprovaram o uso intensivo das águas subterrâneas, em especial para fins agrícolas, em Matozinhos; industriais, em Vespasiano, e para condomínios e abastecimento público, em Lagoa Santa. Um novo projeto de pesquisa está em fase de captação de parceiros e recursos”, informa Galvão.
No aquífero em Sete Lagoas, igualmente cárstico, a “multiplicação de siderúrgicas, mineradoras e indústrias com forte uso de água”, torna inadiável “entender esse contexto de alto consumo de água subterrânea”, diz o professor da UFMG. Para garantir o abastecimento humano, antes totalmente proveniente, segundo o SAAE local, da captação por poços tubulares profundos, o município passou a captar água do Rio das Velhas como recurso complementar. Novas regras não permitem mais a perfuração de poços na região central da cidade. No norte e nordeste de Sete Lagoas, estudos envolvendo empresas, IGAM e UFMG buscam bases para um consumo sustentável, um “tempo para que o aquífero respire”, explica Paulo Galvão.
Na região de Pedro Leopoldo e sua famosa Lagoa de Santo Antônio, outra de formação cárstica, Conceição Lima e Márcia Lopes, da ONG Movimento Lagoa Viva e integrantes, respectivamente, dos Subcomitês Ribeirão da Mata e Carste, do CBH Rio das Velhas, denunciam “o nível de degradação, a retirada do solo original por grandes loteamentos, a falta de controle sobre a destinação de resíduos, o adensamento do vetor norte da cidade e as dificuldades nas políticas públicas de saneamento básico”.
Estudiosa da Lagoa, a professora Maria Giovana Parisi, do IGC, doutora em Geologia pela UFOP, ensina que “a depressão que forma a Lagoa é uma uvala, união de duas ou mais dolinas” e que, embora sofra “como outras, os impactos da urbanização do entorno”, “não tem contaminação de metal pesado, elemento químico, mas a proveniente de área urbana, de águas pluviais que trazem agrotóxicos, detergentes”.
A professora, com pesquisa em andamento no território, suspeita que há “conexão com o aquífero, pelo menos de alimentação. As águas pluviais não justificam a quantidade de água. Vamos investigar”.
Alto Rio das Velhas
Região de mineração intensiva e berço do rio que abastece quase metade da Região Metropolitana de BH, o Quadrilátero Ferrífero sofre, além dos riscos de rompimento de barragens e contaminação dos recursos hídricos, com o rebaixamento do lençol freático para a expansão das lavras.
Fonseca, do IGAM, realça que o rebaixamento “passa por avaliação dos CBHs e por etapa anterior”, de estudo hidrogeológico e simulações. A partir daí, vêm “as condicionantes para outorga”. De acordo com ele, estudos na Serra da Moeda vão permitir “uma visão global”.
Paulo Rodrigues, do CDTN, diz que “é preciso entender que quando você bombeia a água do aquífero e a transforma em superficial, é um péssimo negócio”, e traduz: “a velocidade de água subterrânea é mínima. Se fosse a mesma da superficial, parou de chover, secaria o aquífero. Estamos perdendo a resiliência do território”. E adverte: “Se você quebrar a caixa d’água, não adianta economizar água. Há um comprometimento para sempre pela destruição do aquífero do Cauê. O minério é o aquífero. Isso não volta”.
Assista ao webinário “Impactos da escassez hídrica na bacia do Rio das Velhas”: bit.ly/webinario-escassez-hidrica
Rebaixamento do lençol freático pelas atividades minerárias, transformando água de aquífero em superficial, é questionada por especialistas.
Preservação