6 minute read

Várzea, onde o futebol germina

O futebol de várzea nasce à beira-rio e personifica o espírito comunitário do esporte que se tornou sinônimo de brasilidade no mundo inteiro

Ainda que, quando trazido para o Brasil, o esporte bretão praticado em clubes tenha sido exclusividade das elites paulistanas do século XIX, não demorou muito para que germinasse e florescesse espontaneamente nas planícies de inundação dos Rios Tietê e Pinheiros, protagonizado por operários das indústrias e pelos lavradores das fazendas de São Paulo. Assim começou o futebol de várzea. Não é preciso dizer que, no Brasil, basta um local minimamente plano e tranquilo para que haja duas ou mais pessoas reunidas em nome de Pelé e Garrincha batendo uma bola. Pode ser a rua, a garagem de casa, um terreno baldio, à beira do rio… E é por isso que a várzea de diferentes cursos d’água do território brasileiro foi o terreno fecundo para que comunidades ribeirinhas e periféricas pudessem exercer aquilo que mistura lazer, paixão e laços comunitários em torno do futebol. Ali onde o rio inunda, a terra é plana e fértil.

Advertisement

Ao longo também do Rio das Velhas e seus afluentes, foram muitos os campos de várzea que viram os pés de trabalhadores mineiros desfilarem habilidade num esporte cuja principal e mais elementar regra exige que seus jogadores não utilizem as mãos enquanto direcionam a bola para o espaço delimitado no fundo do campo adversário. Mesmo sendo acossado, especialmente nas grandes cidades, pela especulação imobiliária e pelo “progresso” que sepulta os rios sob o asfalto, expulsando ribeirinhos, desfazendo comunidades e demolindo campos, o futebol de várzea resiste, seja à beira do rio ou nos “terrão” da periferia. Ali, na várzea, esses trabalhadores encarnam o espírito comunitário num esporte que se tornou sinônimo de brasilidade no mundo inteiro.

Na várzea, todo jogo socioambiental se ganha de virada

Aquela comum dinâmica territorial urbana, em que uma área é considerada mais “nobre” e a população com menos recursos financeiros é empurrada para as bordas da cidade, num movimento sempre contínuo, também acontece em Belo Horizonte, cuja periferia já foi vizinha do Centro. Nesse movimento urbanizante, os cursos d’água da cidade se tornam ruas e canais de esgoto, os ribeirinhos são desalojados e vão sendo levados a regiões com menos infraestrutura e com mais problemas. A várzea do rio desaparece e já não há mais espaço para o campo comunitário – até porque também a comunidade já nem está lá mais. Isso coloca de cara uma desvantagem: o futebol de várzea já começa o jogo com o placar negativo.

Mas na várzea, todo jogo é uma vitória, e é de virada. Os problemas comuns das periferias, esquecidas pelos poderes público e econômico, são enfrentados por esquemas táticos ofensivamente ousados. O futebol de várzea é, para além de um jogo, um terreno de construção social comunitária. Ali, os uniformes são feitos por pessoas da comunidade, o campo é preparado em mutirão e, depois do jogo, tem churrasco e cerveja gelada com os vizinhos. E é assim que questões como inundações e carência de infraestrutura são enfrentados: em comunidade.

Luiz Fabiano Filho, ou Luizinho do Ideal, como é conhecido em Raposos, tem 73 anos de idade e, desde os dez, está no futebol de várzea. Foi artilheiro da Copa Itatiaia de 1987 e, às margens do Rio das Velhas, é dirigente do Ideal Sport Club, time fundado em 1928. Ele presenciou as mudanças do rio que, segundo ele, passou a sofrer com mais enchentes depois de ser assoreado por mineradoras e represado por hidrelétricas. Passou por três grandes inundações: uma em 1997, destruindo o muro e a quadra – que nunca foi recuperada –, uma em 2020, sem maiores consequências, e uma em 2022 – que deixou o clube parado por 10 meses. “E ainda teve a pandemia, né? Então, juntando, foram dois anos”, lamenta.

Mas, se não tem bola rolando, tem trabalho social, que não pode parar. “Temos quase 200 alunos. Aqui a gente trabalha com reforço escolar, ajuda como pode as famílias desses meninos e formamos uma ONG que se chama ‘Ideal do Amanhã Guaicuí’ – e esse ‘Guaicuí’ aí é do Rio das Velhas, né?”, conta, lembrando o nome indígena do rio. O solo varzeano do Ideal guarda muita história. Segundo Luizinho, o campo já foi palco da Copa do Mundo de 1950: lá treinava a seleção da Inglaterra, que estreava na competição.

Cara ou coroa: campo ou bola?

O jogo socioambiental do futebol de várzea não é pelada em que “o último cata”. Ele é construído com organização coletiva, e esse é o esquema mais usado por todos os times, não só o Ideal. O Ica Futebol Clube, por exemplo, do bairro BeijaFlor, em Belo Horizonte, tem como principal rival a questão territorial. Fundado em 1948 e sob ameaça de despejo, o campo fica na incerteza de seu futuro, sem poder investir em melhorias. Localizado na divisa entre Belo Horizonte e Sabará, foi construído onde antes era a Fazenda Capitão Eduardo, na mesma época e local em que surgiram vários bairros, como o Paulo VI e parte do Ribeiro de Abreu, bem às margens do Rio das Velhas. Mas o terreno foi vendido, e o novo dono não abre mão do local onde se encontra o campo do Ica. “Temos dois campos, o de cima e o de baixo, mais perto do rio. O local já é de usucapião nosso, mas o antigo dono vendeu pra outra pessoa um terreno que não seria mais dele. Aí foi pra Justiça. A gente tentou um acordo com o rapaz que comprou o terreno, porque a gente ficava feliz só com um campo, mas ele não aceitou, quer fazer um bota-fora lá”, conta Luciano Moreira, presidente do clube, que relata também insegurança de quem quer investir num campo de futuro incerto.

“Moro do lado do Rio das Velhas desde que nasci aqui, pertinho do campo, cinco minutos a pé. A empresa do lado contrário, eles estão levantando demais o rio, eles conseguem alvará em Sabará. Na minha casa nunca tinha vindo água porque é um barranco alto, mas, com o passar do tempo, o meu terreno ficou comprometido com as enchentes mais fortes”. O campo de várzea, ali, não abriga só o futebol, como também os encontros dos moradores da comunidade Beira-Linha. “Fizemos um jogo e uma festa no dia 15 de outubro, depois teve churrasco, ficamos até 21h lá. A gente não tem muita opção na comunidade Beira-Linha, então, em 2023, vamos fazer um Natal para as crianças no campo. Nossa relação aqui é muito mais social, de confraternização. Queria fazer um alambrado e um vestiário, mas fico com medo de fazer e o dono ir lá e derrubar tudo”, conclui.

Bola dividida

As questões ambientais também não passam despercebidas para quem tem no futebol de várzea sua primeira e mais duradoura paixão. “Sou morador do Jardim Felicidade há 33 anos, a minha atuação social na comunidade é toda voltada para o meio ambiente. Contribuí para um trabalho de catalogação de nascentes urbanas que foi publicado pelo Projeto Manuelzão.” Esse é o Marcos Paulo Vieira Torres, dirigente da Associação Atlética Felicidade, que fica no Conjunto Felicidade, região Norte de Belo Horizonte. “Nosso campo é ao lado do Ribeirão Isidoro, afluente direto do Onça. Quando a gente joga e a bola sai, ela cai dentro do rio”, graceja. “Nas categorias de base a gente ensina aos meninos a importância da proteção das nascentes, da sustentabilidade, da coleta seletiva de lixo. Sempre fui engajado com essas questões. Eu conto pra eles como é o processo do rio: ‘Olha, essa nascente aqui dá origem ao Córrego do Tamboril, o Tamboril chega no Isidoro, o Isidoro cai no Onça, que vai parar no Velhas, o Velhas vai para o São Francisco, e o São Francisco deságua no mar, onde você vai tomar banho de água salgada’.

Aí o pessoal pergunta: ‘Nossa, Marquinho, isso tudo?’, aí eu respondo: ‘sim, é por isso que a gente tem que cuidar aqui para ninguém sofrer lá embaixo’.

Marquinho, como gosta de ser chamado, se queixa bastante do poder público, que, segundo ele, deveria estar mais presente nas comunidades mais distantes do centro, pois lá é que estão a maioria das nascentes da Região Metropolitana de Belo Horizonte. “O pessoal na periferia é muito carente desses assuntos, e o poder público não demonstra muito interesse em atender a essa demanda. Mas o lugar certo é aqui embaixo, na periferia, onde a maioria dos cursos d’água têm suas nascentes, a maioria dos rios que não estão tamponados estão aqui. Quando eu levo os meninos pra ver o Rio Arrudas na região central eles não conseguem ver, porque está “sepultado”, como eu costumo dizer. Aí eu tenho que levar eles lá no Pompeia e dizer: ‘este aqui é o Arrudas que seu pai fala com vocês que era ponto de referência da capital’”.

A urbanização que sepultou rios da capital de Minas Gerais como o Arrudas também agiu para afastar a população trabalhadora do Centro e para transformar antigos campos genuinamente varzeanos em estacionamentos e shoppings. Mas a várzea, para o futebol amador, deixou de ser um lugar físico à beira-rio para se tornar uma entidade imaterial que vaga procurando um solo fértil onde o futebol comunitário possa germinar.

This article is from: