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VÍNCULOS RECONSTRUÍDOS

Adoção de crianças devolvidas é desafio também para novos pais, que precisam construir vínculos, resgatar a confiança e estabelecer filiação

MARISLA MENDES

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Aadoção é uma oportunidade de recomeçar. Encontrar uma nova família e estabelecer vínculos fazem parte do processo de ressignificar a própria história. Um dos problemas enfrentados, no entanto, é quando, após ser rejeitada pelos pais biológicos, a criança é devolvida novamente, nesta segunda vez pela família que a adotou. A sensação que fica é do eterno abandono. O trauma, segundo especialistas, permanece por toda a vida. “É uma dor profunda que leva muitos anos, às vezes só na fase adulta e com terapia é que essa criança, esse indivíduo, vai se resolver. O abandono não tem cura emocional imediata”, explica a psicóloga e terapeuta de família Vera Lemos.

Foi assim com Nicolas, hoje com 10 anos. Apenas aos 7 anos ele encontrou uma nova casa. Ficou por lá por menos de dois anos, quando foi entregue após a alegação dos pais adotantes de “dificuldade em estabelecer vínculos”. Com menos de uma década de vida, conquistou a terceira família. Na nova casa, a readaptação foi difícil e, por cerca de três meses, o choro era diário. O processo de ruptura foi tão forte que ele pediu para trocar de nome. De Michel, passou a Nicolas. “Ele tem um ressentimento grande com essa história. Não falava nada, mas a gente imaginava o que era. Lá na frente ele vai processar tudo

isso, mas hoje percebo que está sempre em sofrimento”, relata a mãe, a professora Aira Pereira.

O desafio nesse processo é para ambos os lados, tanto para as crianças, quanto para os pais dispostos a adotar. “Algumas crianças acrescentam alguns comportamentos e sentimentos muito contundentes, muito difíceis para os novos pais adotantes”, relata Vera. Violência, desrespeito, medo e sofrimento estão entre eles. “Para as crianças, a negligência é a expressão de amor”, afirma a psicopedagoga Cibele Vogel, mãe de Rafaela, hoje com 7 anos, que deixou o segundo lar aos 5. Se os filhos têm dificuldades em estabelecer vínculos, os pais enfrentam obstáculos para construir a filiação. É preciso uma espécie de “pré-natal emocional”, com a preparação para a chegada da criança e para lidar com os problemas que podem vir juntos. “Eles já chegam acreditando que não

vai dar certo”, relata Cibele. O desafio é resgatar a confiança da menina ou menino, que muitas vezes enxerga deslealdade naqueles que têm a função de cuidar deles. “O relacionamento é o maior desafio”, concorda Vera.

O número de devoluções tem aumentado no Distrito Federal. Ao longo do ano passado, foram quatro. Apenas nos dois primeiros meses de 2018, a Vara da Infância e da Juventude já registra três. Segundo o Cadastro Nacional da Adoção (CNA), foram 18 adoções no DF até abril. O total de crianças adotadas tem crescido ano a ano. Em 2017, foram 82, contra 54 registradas em 2015.

Até chegar a um novo lar, no entanto, o processo pode ser longo. Após a Vara da Infância e da Juventude ser notificada, a criança passa a ser acompanhada, desde o abrigo provisório até pelo menos um ano depois de estar com os novos pais. Psicólogos, assistentes sociais e advogados atuam nesta fase para preservar os direitos das crianças. São feitas várias reuniões e socializações. “Explicamos o quão traumática será uma nova ruptura”, explica a psicóloga da entidade, Karina Machado.

Na maioria dos casos de devolução, segundo ela, os pais adotantes culpabilizam as crianças, argumentando que “ela é difícil”. “Muitas vezes percebemos que essas devoluções ocorrem do romantismo que eles têm, acham que quando encontrarem aquela criança vai ser mágico e, às vezes, ela pode nem abraçar. Cada caso é um caso”, afirma Karina. A psicóloga observa que durante todo o tempo é trabalhada a responsabilidade do adulto em fazer dar certo. “Mas muitos adotantes se perguntam: e se elas não gostarem de mim?”, relata.

O trabalho começa no chamado estágio de convivência, o período em que os pretendentes à adoção e as crianças se conhecem e começam a criar vínculos. Esta etapa pode variar. No caso dos bebês, dura duas semanas e, com crianças maiores, pode chegar a três meses ou até mais. “Recomendamos que a família vá todos os dias ao abrigo, quanto mais vezes melhor”, diz Karina. Em geral essa etapa é marcada pelo encantamento. O sinal de que algo não vai bem ocorre quando, já com a criança em casa, os pais passam a não frequentar as chamadas vivências. Quando decidem pedir ajuda, costuma já ser tarde demais.

Um dos abrigos de Brasília, a Casa Ismael, já soma duas devoluções apenas este ano. Uma delas, de uma adoção tardia, com um menino de 13 anos. A assistente social e coordenadora de acolhimento Vivian Pereira Queiroz reforça o que os dados divulgados pelo CNA mostram: a preferência é por crianças pequenas, geralmente entre zero e dois anos, meninas e sem deficiência. Tanto que o país registra 40 mil pessoas cadastradas como adotantes e menos de 10 mil crianças para serem adotadas.

Um dos casos marcantes para a assistente social ocorreu em 2016. Uma menina de 3 anos foi devolvida sob a alegação de que não sabia receber amor. “Como assim uma criança

Apenas este ano, a Vara da Infância já registra três devoluções de crianças no DF

nessa idade não sabe receber amor, os pais são os adultos da situação”, afirma Vivian. Segundo ela, meninos e meninas que passam por negligência, maus tratos e até abuso conseguem refazer a história com tratamento. “Já as crianças que são abandonadas não. É um buraco que fica. Não conseguem ressignificar o abandono”, declara.

A ong Aconchego também trabalha com crianças a serem adotadas. Atende pais em estágio de convivência e em outras etapas da adoção. Presidente da entidade, a psicóloga Soraya Pereira observa que depois que os adotantes são habilitados pela Vara da Infância, passam pelo projeto Laços, com a preparação para a chegada da criança. “Dentro do grupo do projeto damos apoio com psicanalista, psicólogos, educadores e assistentes sociais para que possam superar esse estágio de convivência e não ocorram devoluções”, ressalta Soraya.

A construção da filiação é um dos pontos centrais. Quando esse processo não acontece, alguém vira o vilão da história. A maioria das pessoas se diz mais preparada quando se trata de adoção de bebês, ficam menos amedrontadas por uma história que está se iniciando. Crianças maiores têm consciência de todo sofrimento que um adulto pode gerar, têm lealdade aos genitores e às histórias deles.

Segundo Cibele, quando a criança é inserida em ambiente onde terá regras, é natural o estranhamento. A magia que os pais tanto esperam não acontece, assim como na maternidade pode não ocorrer. Para ela, o nascimento de um filho tem três formas: parto normal, cesáreo e adoção. “Talvez algumas adoções não se efetivem, porque as pessoas precisam trabalhar muito bem o seu filho idealizado ao se deparar com seu filho real”, declara.

A história de Rafaela inclui a separação não só dos pais por duas vezes, mas também do irmão. O menino, dentro do perfil buscado pelos adotantes, estava em um abrigo. Ela, então com 4 anos, foi retirada posteriormente de uma situação de negligência com a mãe biológica e não chegou a passar pelo abrigo. Os adotantes decidiram ficar com os dois. Após oito meses, no entanto, optaram por não ficar com Rafaela sob a alegação de falta de vínculos, de reconhecimento da filiação. “Ela não queria ficar com a outra família, mas queria que o irmão viesse conosco. Chegou a verbalizar que nós não queríamos o irmão e explicamos que ele era feliz com a família dele, que toda criança encontra sua mãe. Para ela elaborar isso foi bem doloroso”, lembra Cibele. A mãe diz que o caminho foi garantir que a presença do irmão nunca seria problema. “Outro dia ela falou: mãe, aposto que quando a gente crescer vamos nos achar no Facebook”.

Nicolas também foi separado da irmã quando seguiu para a segunda família adotiva. Aira, a nova mãe, fazia parte de um grupo que estava no estágio de convivência porque tinha acabado de adotar dois irmãos biológicos: Rodrigo e Cauã. Os primeiros pais de Nicolas, no entanto, alegaram na reunião que não queriam mais ficar com o menino, afirmaram que não conseguiam se relacionar com ele. “Um dia a mãe dele me ligou e perguntou se eu queria ficar com o Michel, que era como ele se chamava. Eu disse que sim”.

Quem devolve

A bancária Débora Alves e o marido já tinham dois filhos quando resolveram adotar outro pela segunda vez. Optaram por um casal: Michel, 7 anos, e Geovana, 3 anos. A vinculação com a menina foi rápida, com o menino não. Segundo ela, não havia problema de incompatibilidade, mas a maternidade não fluiu naturalmente. O menino ficou na casa da família por um ano e oito meses. “Fizemos terapia, frequentamos o grupo de apoio à adoção. Recorremos a tudo, mas a gente não nutria por ele um vínculo afetivo de filiação. Foi um ano até o momento que falei: já deu”, conta. Ela afirma que todo o processo foi muito difícil e até hoje se sente julgada. “Ninguém adota uma criança para não ficar com ela”, declara a bancária.

O estágio de convivência, na opinião de Débora, não faz com que os pais tenham certeza da adoção. Ela

UM DOS abrigos do DF, Casa Ismael já soma duas devoluções este ano

tinha a decisão do juiz ao seu favor, a adoção já havia sido aprovada, e todo o processo estava na fase final. Débora pediu para anular a sentença e suspender a adoção. “Quando as pessoas vêm me falar algo, digo: foi a melhor coisa que eu fiz. A minha relação com ele não seria boa como mãe e filho. Eu permiti a ele ter uma família”.

As leis e direitos

Segundo o advogado e especialista em direito da família Antônio Roger, a taxa de devolução de crianças no Brasil é pequena. Mas, se o processo de adoção estiver integralmente concluído e os pais decidirem por não ficar com a criança, podem ser responsabilizados por abandono afetivo. “O poder familiar é o mesmo. Então as consequências que tem para o abandono biológico, também ocorrem para o abandono afetivo. A principal consequência é a perda do poder familiar, mas em alguns casos o juiz pode fixar uma indenização patrimonial”, explica.

Nos casos de devoluções, os argumentos que o advogado diz ouvir com frequência são incompatibilidade de gênio, emocional, personalidade e adaptação. “O pai que abandona um filho afetivo (adotado) já tem traços de conduta de que abandonaria um filho biológico também”, afirma o especialista.

Do encontro com uma criança com o perfil desejado até a guarda definitiva e o processo de adoção concluído podem levar meses, às vezes até dois anos. Um projeto em análise no Senado visa agilizar o processo. O PLS 373/2016 altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para estabelecer prazo máximo de 365 dias para a conclusão do processo de adoção.

Para o conselheiro tutelar Vinicius Ribeiro, apesar dos problemas, já se podem comemorar os muitos avanços. Ele lembra que até bem pouco tempo casais homoafetivos não podiam participar do processo. “Pessoas que tinham completa condição, mas não conseguiam, em alguns casos, por impedimento jurídico”, comenta. Segundo ele, existem ferramentas e mecanismos muito frágeis de se fazer o estudo completo sobre as famílias que estão recebendo aquela criança. No caso das devoluções, ele ainda destaca a expectativa frustrada da criança e o temor de eterno abandono. Além disso, é comum que ela tenha a adoção dificultada. “Tem pessoas que não querem adotar crianças devolvidas por acharem que elas são problemáticas”, observa.

Adoções que deram certo

A jornalista Dagma de Macedo e o marido dela, o autônomo Norberto de Macedo, decidiram adotar uma criança em 2011. Inicialmente, buscavam uma criança de zero a 2 anos. Passaram pelo curso obrigatório de pré-habilitação e perceberam que se mantivessem o perfil não conseguiriam adotar, pois era o mesmo sonho da maioria dos que queriam um filho afetivo. Foi assim que decidiram acolher um grupo de até dois irmãos, independentemente do sexo, de zero a 5 anos. Hoje, comemoram a família que têm e da qual fazem parte os fi-

1º passo: A família demonstra interesse para a Vara da Infância e da Juventude. É feito o Cadastro Nacional de Adoção. Os interessados entram na fila e informam o perfil desejado. 2º passo: É feito um curso preparatório psicossocial e jurídico para adoção. Com várias etapas do curso, dura cerca de dois meses. 3º passo: A Vara da Infância avisa quando surge uma criança com perfil desejado. Os pretendentes à adoção passam por entrevista, assim como as crianças. Eles são apresentados, caso ambos os lados tenham interesse. 4º passo: É iniciado o estágio de convivência, no qual os pretendentes vão aos abrigos dar início a esse processo, caso a criança também tenha interesse. Com acompanhamento da justiça são feitas visitas e são autorizados pequenos passeios 5º passo: É ajuizada ação da adoção. O juiz entra com o processo e é entregue a guarda provisória para adaptação da criança no novo lar, com validade até concluir o processo. A equipe técnica continua acompanhando o processo.

lhos Yuri, 7, e Isabela, 5. “De lá para cá temos vivenciado a experiência de termos dois filhos pequenos em casa, que não vieram de dentro de nós, mas que são amados da mesma forma”, declara a jornalista.

Já a funcionária pública Josmária Madalena Lopes sempre teve a adoção entre seus planos. Pedro, 11, e Paula, 12, foram para o novo lar há um ano, e estão no estágio de convivência. Ela esclarece que o processo de habilitação não demorou, uma vez que queria crianças maiores. Durante a preparação, participou também de reuniões com o grupo Laços, da Aconchego. “O início do estágio de convivência foi difícil, em virtude dos ajustes a serem feitos, da criação de uma rotina, o fortalecimento do vínculo afetivo se dá em meio a isso”, avalia.

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