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ABUSO EM CASA

Traumas vividos nos relacionamentos familiares durante a infância, tais como negligência e violência física e emocional, podem ficar por toda a vida se não contarem com rede de apoio adequada

Afamília é o primeiro relacionamento que o ser humano conhece. Gestos, palavras e comportamentos são aprendidos neste grupo mais próximo. Porém, a desestrutura no lar ou o distanciamento afetivo, especialmente entre pais e filhos, pode gerar traumas por toda a vida. O ambiente familiar abusivo contribui, por exemplo, para o alcoolismo, o transtorno de ansiedade, a depressão, a propensão à obesidade e o déficit de atenção. O evento traumático, sobretudo na infância, costuma atrapalhar o desenvolvimento do sistema nervoso, da saúde mental, emocional e física. “O trauma inibe aquilo que se sonha fazer na vida, há uma sobrecarga na capacidade de respostas, trazendo sensações como perda de controle, medo ou sensação de impotência”, explica a psicóloga especializada em trauma Ana Carolina Fernandes. As consequências, no entanto, variam de pessoa para pessoa. “Cada caso deve ser analisado, é importante não simplificar as experiências de um indivíduo sem que antes se entenda o seu quadro geral”, adverte . Sentimentos de solidão, ansiedade e necessidade de se isolar também podem ser desencadeados, assim como doenças como depressão e transtornos de personalidade. Os traumas vividos na infância, advindos de negligência, abuso, físico, emocional, são conhecidos com traumas de desenvolvimento. Lucas*, 15 anos, esteve exposto a um lar violento desde a infância. Hoje, apresenta sintomas típicos de alto grau de estresse. Desequilíbrio, tremores e isolamento são comuns. “Ele fala que está tudo bem, mas guarda uma mágoa muito grande do pai”, conta a mãe, Laura*, 39.

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A agressividade do pai também foi determinante para Aline*, 14. Usuário de drogas, frequentemente batia na mãe, sempre na frente da filha e mesmo após a separação. No início, ela apenas guardava para si os efeitos da relação conturbada. Depois, passou a tentar interferir e tentar proteger a mãe fisicamente. “Não sabiam conversar direito. De tanto ver as brigas, também passei a ser agressiva e

AS AGRESSÕES físicas podem deturpar a forma como os filhos enxergam o relacionamento

hoje tenho dificuldade para controlar a raiva”, conta a adolescente.

Mesmo que o alvo das agressões não seja a criança, o abuso familiar afeta a forma como ela encara o mundo. No caso da violência doméstica, os traumas podem se estender para os relacionamentos amorosos na fase adulta ou contribuir para situações de vulnerabilidade social, pois a criança aprendeu que a violência é uma “forma natural” de comportamento. A psicóloga clínica Rafaela Schlottfeldt Brandão reforça a importância do modelo dos pais na infância. “Tem um fenômeno que se chama teorias da aprendizagem, que defende que a gente aprende com modelos. Então, a forma como a gente interage com o mundo também pode ser aprendida com os pais”, comenta.

Pais e mães que demonstram que a violência é a forma de solucionar conflitos não garantem aos filhos habilidades sociais para lidar com os problemas na vida adulta, não só em casa, mas também no a m b i e n t e de trabalho. Porém, não é só a violência que pode produzir esses efeitos. Famílias que ignoram os sentimentos dos filhos afetam a forma de ele se comunicar com o mundo. O sofrimento com o bullying escolar, por exemplo, não percebido pelos pais, pode levar a criança a se refugiar em outras atividades, como o uso excessivo da internet ou a comida, na tentativa de preencher a solidão.

Além do bullying, humilhações e coerção também contribuem para a baixa autoestima. A psicóloga clínica Suelen Ruas, que trabalha no atendimento a vítimas de violência no programa Pró-Vítima do Governo do Distrito Federal, ressalta que as agressões psicológicas são decisivas para a baixa autoestima. “Essas crianças expostas a tantas agressões costumam ter mecanismos mais frágeis, dificuldades de tomar decisões na vida adulta, reagir em situações de estresse”, diz. “Crianças expostas a agressões e situações vexatórias podem ter mecanismos mais frágeis, dificuldade de tomar decisões e reagir em situações de estresse”

Suellen Ruas, psicóloga do Pró-Vítima

Nem sempre os abusos partem dos pais. Familiares próximos também podem ser responsáveis, inclusive em casos de abuso sexual. É o caso da auxiliar de limpeza Clara*, 56 anos, que viveu esse tipo de violência praticada por um membro da família sucessivas vezes. Todas vieram à tona recentemente. A filha e a sobrinha e, mais recentemente, a neta foram estupradas pela tia avó. “A minha filha ficou sabendo que uma outra sobrinha ia ficar com essa tia-avó, e começou a passar mal. Foi quando ela contou para a gente que a tia avó ‘mexia’ com ela”, lembra. O caso está na Justiça e a menina, hoje com 4 anos, conta com medida protetiva.

Um dos motivos alegados pela filha dela para nunca ter denunciado foi o medo de abandono do pai, que já tinha problemas com a bebida. “Ele não era agressivo, mas a tia a ameaçava dizendo que se ela contasse o pai iria abandoná-la”, afirma a mãe da vítima. Na época dos abusos, ela tinha 6 anos. Em casos mais severos, esquizofrenia, transtornos de personalidade boderline e antissocial podem estar associados ao abuso familiar. Hoje, Laura tem uma medida protetiva do marido e recebe atendimento psicológico no programa Pró-Vítima, da Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF). O filho também iniciará tratamento em breve.

Desestrutura Familiar

A assistente Social do Pró-Vítima Eliane Alves da Silva, 54 anos, relata que muitos casos são mais complexos do que o abuso, incluindo fatores sociais como vulnerabilidade e violência familiar a gerações. “A gente acaba constatando ao longo da entrevista que tem um histórico de violência familiar, não em todos os casos, por exemplo, a violência contra a mulher pode ser psicológica, pode ser física, pode ser patrimonial. A violência não tem classe social. Pode acontecer em qualquer família”, comenta. Ao denunciar a violência contra a mulher, é possível se evitar que se estenda aos filhos, tornando-se um ciclo de agressão que se estende na vida adulta, com novas vítimas ou abusadores em relacionamentos conjugais.

O Distrito Federal tem programas para atendimento de vítimas em situações de vulnerabilidade social, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Além disso, existe um programa voltado especialmente para o atendimento de vítimas, o Pró-Vítima, da Sejus-DF. O programa oferece atendimento psicológico e social a crianças, adolescentes, mulheres, idosos e familiares, vítimas de violência, homicídio, tentativa de homicídio, latrocínio ou tentativa, sequestro, acidente de trânsito com vítima fatal, estupro, desaparecimento de pessoas, feminicídio e violência contra a mulher, junto com o atendimento psicológico para as vítimas, que em geral duram 12 encontros.

O que diz a lei

A vítima de violência na infância pode denunciar quando adulta, porém depende do prazo de prescrição do crime, como explica a defensora pública Cláudia Navarro, Coordenadora da Defensoria Pública do Núcleo de Infância e Juventude. “No caso de lesão corporal leve, agressão, a vítima tem seis meses para denunciar após completar 18 anos e antes que o crime prescreva. Nos casos de lesão corporal grave, o prazo é de oito anos, mas com a apresentação de provas. Agora, em caso de abuso sexual, o prazo é de 20 anos”, explica.

Um dos desafios, no entanto, é conseguir provas suficientes que comprovem o abuso mesmo após tantos anos. Uma proposta aprovada pelo Senado e em análise na Câmara dos Deputados torna o crime de estupro imprescritível. Já a violência contra a mulher, prevista como crime pela Lei Maria da Penha e do Feminicídio, pode ser denunciada na Delegacia da Mulher, independentemente de o agressor ser parente da vítima. Ser vítima não é sentença

Os especialistas destacam que ser vítima de abuso na infância não é uma sentença de que as sequelas ficarão por toda a vida, desde que as vítimas tenham apoio adequado. Cada um reage de um jeito. “A presença de figuras protetoras na vida das crianças ajuda a amenizar os possíveis traumas, contribuindo para que venham a constituir uma vida familiar saudável”, afirma a psicóloga Rafaela Schlottfeldtb.

O acompanhamento psicológico, por exemplo, ajuda as crianças e adolescentes a não repetirem as atitudes dos familiares. Aline* faz acompanhamento psicológico para lidar com os problemas familiares. “Hoje, eu me dou melhor com a minha mãe, vejo que só porque na minha casa era assim, não preciso ser também, a violência não leva a nada”, enfatiza. O filho de Laura, também tem consciência da importância de separação das atitudes do pai e das dele. “Meu filho me diz que tudo o que ele não quer ser é igual ao pai, tem consciência disso”, ressalta a mãe do adolescente. *Nomes das vítimas alterados a pedido delas.

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