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CICATRIZES INVISÍVEIS

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ABUSO EM CASA

ABUSO EM CASA

Uma em cada quatro brasileiras que deram à luz sofreu abusos no parto, aponta estudo da Fiocruz

Aenfermeira subia na minha barriga, colocando todo o peso enquanto eu gritava. Elas me mandavam ficar quieta e disseram: ‘Na hora de fazer é bom, né? Agora aguenta.’ Com muito sofrimento minha filha nasceu, porém, sem vida”, conta Juliana Nunes Carvalho, 22 anos.

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“Os médicos e os enfermeiros me chamavam de gorda e disseram: ‘Não irei fazer cesária nesse monte de banha’. Fiquei depressiva, não tinha vontade nem de amamentar, parecia que aquelas palavras estavam sendo repetidas constantemente na minha cabeça”, rememora Lucileide Corrêa, 36 anos.

“Eu não tinha passagem e me cortaram sem minha permissão, levei 23 pontos. Passei seis meses em acompanhamento psicológico pelo trágico parto que tive”, afirma Maria Nathalya Batista, 19 anos.

Esses relatos são de mulheres que sofreram violência obstétrica. É muito comum meninas e mulheres passarem por procedimentos humilhantes e dolorosos na hora de dar à luz. De acordo com pesquisa coordenada pela Fiocruz, em 2014, uma em cada quatro brasileiras que deram à luz sofreu abusos no parto.

NATÁLIA RIBEIRO

Estima-se ainda que esse número possa ser maior, levando em consideração que os relatos quase nunca chegam de fato à denúncia formal. No DF, por exemplo, de acordo com o Núcleo de Estudos e Programas na Atenção e Vigilância em Violência, não há registros de reclamação de violência obstétrica no período entre 2015 e 2017. No entanto, a realidade é completamente diferente.

Violência obstétrica são as diversas formas de violência que a mulher sofre da gestação ao parto, durante os cuidados obstétricos realizados pelos mais diferentes profissionais que atendem a gestante, parturiente ou puérpera. Os procedimentos des

necessários e danosos – como episiotomia, clister, tricotomia, uso de ocitocina rotineira, impedimento do acompanhante, cesarianas desnecessárias, o não alojamento conjunto, o não aleitamento materno na primeira hora quando há condições – são formas de violência obstétrica.

A psicóloga perinatal Rafaela Schiavo – especializada no atendimento psicológico da mulher ou do casal, tanto na fase que antecede a gravidez, como no parto e no pós- -parto – explica que esse tipo de violência pode ser velada : o poder simbólico é invisível. “A pessoa sente-se mal com a ação do outro, entretanto, aceita, por acreditar que aquilo é um ato normal ou certo. Como a relação médico-paciente é hierarquizada, onde o médico está no topo e detém o poder técnico e ‘científico’ de decisão sobre o corpo do outro, a paciente acaba aceitando a situação, mesmo que a incomode.”

As consequências da violência obstétrica podem durar a vida inteira e gerar traumas irreversíveis para a relação mãe-bebê e para a vida sexual da mulher. “Cada uma poderá reagir de uma forma diferente, vai depender muito do tipo de violência obstétrica que sofreu. Mas, no geral, a mãe pode sentir que o momento do nascimento de seu filho foi um dos piores de sua vida.”

Patrícia Adriana Schnorr, 24 anos, sempre teve o sonho do parto normal e humanizado. Mesmo com o planejamento e o plano de parto elaborado, seu desejo não foi respeitado. No hospital, foi condicionada à cesárea e submetida a pressões psicológicas para aceitar a dilatação induzida. “A médica perguntava o tempo todo se eu queria matar o meu filho, pois, segundo ela, ele estava em sofrimento.” Quase dois anos depois do parto, Adriana pediu o prontuário e descobriu que, na verdade, tinha passado por uma cesárea desnecessária e que tinha todos os requisitos para um parto normal. “Fui refém de um sistema onde não podemos questionar, afinal não estudamos igual eles, não podemos sequer questionar suas justificativas.”

E Adriana não foi a única. O Brasil é o segundo país que mais faz cesarianas no mundo: 84% dos partos na rede particular de saúde são feitos por meios de cirurgias. O número é alarmante, levando em consideração que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que o índice fique entre 10% e 15%, como medida de segurança para controle e redução de mortalidade materna e neonatal.

Apesar disso, o Ministério da Saúde garante que, no SUS, a taxa de partos cesarianos apresenta redução nos últimos anos. Em 2015, foram 1,3 milhão de partos normais de um total de 3 milhões. Em 2014 foram 1,2 milhão de partos normais de um total de 2,9 milhões. Entre os estados do Brasil com maiores percentuais estão Goiás de, baseado em evidências científicas e que serve de consulta para os profissionais de saúde e gestantes. Segundo as diretrizes, a partir de agora, toda mulher terá direito de definir o seu plano de parto, que trará informações como local onde será realizado, orientações e benefícios do parto normal.

Parto humanizado

O parto humanizado é aquele que promove o nascimento saudável, pois respeita o processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e o bebê. Diante das estatísticas assustadoras sobre a

“As consequências da violência obstétrica podem durar a vida inteira e gerar traumas irreversíveis para a relação mãe-bebê e para a vida sexual da mulher” psicóloga perinatal Rafaela Schiavo.

(67%) e Rondônia (66%). No DF, em 2017, foram realizados aproximadamente 43.529 partos nos hospitais da rede pública, sendo 19.549 normais e 23.980 cesáreos.

Os motivos seriam as ações de incentivo ao parto normal no Brasil que aconteceram no primeiro semestre de 2017. É a primeira vez que o Ministério da Saúde constrói um documento com essa finalidaviolência obstétrica, uma forma de se precaver e criar um ambiente agradável para a gestante é contar com os serviços e o acompanhamento das doulas durante toda a gestação, parto e pós-parto.

Além de informar e acolher a gestante, a doula pode auxiliar na elaboração de um plano de parto personalizado, que traz recomendações baseadas em evidências para

que a mulher possa se sentir segura de suas decisões e esteja preparada para os sinais que o corpo der.

A doula Yohanna Cordeiro ressalta que esse acompanhamento é especial. “Há um vínculo muito forte entre a gestante e a doula que permite que essa mulher se entregue de forma diferente para o parto. A simples presença da doula traz uma maior chance de parto espontâneo e vaginal, menos pedidos por analgesia, menor necessidade de instrumentalizar o parto, maiores índices de experiência positiva com o nascimento do filho.”

A policial civil Roberta Redorat, 32 anos, teve alguma resistência em contratar uma doula, pois não achava necessário. Com insistência do companheiro, contou com a ajuda da profissional no último mês de gravidez, para que ela auxiliasse no parto e no pós-parto. “Foi essencial ter o acompanhamento de doula no meu parto. Ela sabia pelo que estávamos passando, nos trouxe calma quando era necessário, esclarecimento nos momentos certos, acolhimento quando estávamos exaustos. Foi a melhor coisa do meu parto.”

A doula Beatriz Leal enxerga seu trabalho como uma forma de levar informação de qualidade e empoderar mulheres, para assim evitar a prática da violência. “Quando se fala em violência obstétrica, se pressupõe que é algo drástico e violento, mas em algumas vezes pode ser sutil. Pode ser um ponto a mais, para apertar o canal vaginal, pode ser um ‘fica quieta, mãezinha’”, diz.

Seus direitos

Apesar da luta dos profissionais e do movimento feminista para erradicar a violência obstétrica e levar informação de qualidade para as mulheres, o caminho ainda é longo. Isso porque, segundo a psicóloga Rafaela, vivemos em uma sociedade onde há o mito de que toda mulher grávida está plena e que a maternidade completa “o ser” feminino. “Quando uma grávida ou mãe não se sente bem em relação à gravidez ou à maternidade, acaba acreditando que tal sentimento só ocorre com ela. Inclusive ela sente medo e vergonha de procurar um profissional da saúde, pois tem o receio que o profissional também a condene”, explica.

Gabriela Repolho, ativista e presidente da ONG Humaniza Coletivo Feminista, acredita que não há uma fórmula para evitar a violência obstétrica, mas há muito engajamento e luta nesse sentindo. O coletivo realiza rodas e palestras para debater o tema com usuárias de postos de saúde, maternidades, profissionais e estudantes da área de saúde e jurídica. Além disso, é responsável por fazer a mediação entre as mulheres e os órgãos competentes, encaminhar as denúncias de violência e acompanhar todo o processo. “Juntas debatemos e realizamos ações pra prevenir e combater os casos de maus tratos às mulheres desde o pré-natal ao pós- -parto.”

A advogada Ruth Rodrigues sentiu, na pele, o que antes ela só tinha ouvido falar. Após planejamento de um parto natural em casa, viu-se obrigada a ir ao hospital por causa de complicações no pós-parto e foi lá que o sonho do parto perfeito acabou. “Sofri retaliação e violência obstétrica por ter chegado à instituição particular sem bebê e com placenta retida. Me trataram como uma mulher que tinha feito aborto e me deixaram sangrando por seis horas.”

No entanto, diferentemente de muitas mulheres que não possuem informação, Ruth logo percebeu que havia sofrido violência obstétrica e não se calou. Além de buscar ajuda para si, se especializou por meio do Curso de Capacitação Jurídica da Artemis, ONG que luta pelo direito das mulheres, e há cinco anos faz pesquisas e estudos sobre a humanização do parto e a violência obstétrica, ajudando outras mulheres juridicamente.

O BRASIL é o segundo país que mais faz cesarianas no mundo: 84% dos partos na rede particular de saúde são feitos por meios de cirurgias

O MINISTÉRIO DA SAÚDE GARANTE:

• Liberdade de posição: a gestantes podem escolher a posição mais confortável na hora do parto; • Enfermeiro obstetra na condução dos partos de risco habitual; • Presença de doulas e acompanhante; • Privacidade: respeito da presença da família e intimidade da gestante; • Dieta livre: jejum não é obrigatório; • Contato pele-a-pele imediato com a criança logo após o nascimento; • Métodos de alívio da dor (banhos quentes, massagens, técnicas de relaxamento); • Uso da anestesia; • Restrição de intervenções rotineiras (rompimento da bolsa, episiotomia, ocitocina); • Estímulo à amamentação na primeira hora de vida do recémnascido.

Ela conta que, apesar de ter buscado apoio na justiça, coisa que poucas mulheres fazem, o processo é longo, demorado e dificilmente a mulher ganha a causa, o que torna tudo ainda mais propício para as práticas abusivas. Quase dois anos após seu parto, ela ainda briga pela indenização por parte do hospital e dos médicos. “Na área jurídica, vejo pouca atuação ainda, mas as informações e a importância que o tema tem ganhado junto às mídias auxiliam bastante no descortinamento da violência obstétrica e no seu enfrentamento pelas mulheres e profissionais mais atualizados.”

No Hospital Universitário de Brasília (HUB), o Grupo de Gestantes, Paridas e Casais Grávidos oferece informação e apoio às mulheres que estão passando pela fase de gestação, parto e pós-parto. Além da troca de experiências e orientações clínica, a principal função do grupo é acolher e empoderar para a gestação, informando sobre o parto humanizado e preparando psicologicamente e fisicamente para o grande momento.

As reuniões do grupo ocorrem às sextas-feiras, das 10 às 12 horas, na sede do HUB. Não é preciso fazer nenhuma inscrição prévia, apenas comparecer ao encontro.

GLOSSÁRIO

Epsiotomia: Corte cirúrgico feito na região entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto Tricotomia: Raspagem dos pelos pubianos Clister: Lavagem intestinal Ocitocina sintética: Medicamento que promove as contrações e as deixam mais doloridas Alojamento conjunto: Sistema hospitalar em que o recém-nascido permanece com a mãe 24 horas por dia Parturiente: Mulher que se encontra em trabalho de parto ou acabou de dar à luz Puérpera: Mulher que deu à luz há bem pouco tempo

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