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O RETRATO DA POBREZA NA CAPITAL

Enquanto o Distrito Federal lidera o ranking das unidades da federação com maior renda per capita do Brasil, situações de pobreza e extrema pobreza se escondem no Planalto Central.

AFONSO FERREIRA

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Aos 27 anos, grávida de sete meses do quarto filho e desempregada, Kelly Karine mora com os filhos, a irmã e os primos em dois barracos de madeira com telhados de lona, às margens da Via N4 Leste, no Setor de Embaixadas Norte, no centro da Capital Federal. A distância entre o ponto onde os barracos estão e o Palácio do Planalto é de pouco mais de 2 quilômetros.

Mas a proximidade do mais alto poder político do Brasil não traz condições dignas para ela e a família viver. Kelly Karine faz parte de um triste dado da Capital Federal. Ela está entre as 67.582 famílias que vivem em extrema pobreza no quadrado do Planalto Central. Os dados são da Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, UM PEDAÇO de madeira se transformou em um outdoor de pedido de ajuda redemoinho . ano 09 . número 14

Igualdade Racial e Direitos Humanos – (SEDESTMIDH). Os números são de março de 2018 de acordo com Cadastro Único, instrumento do governo que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda.

Ao lado de um dos barracos, um pedaço de madeira se transformou em um outdoor de pedido de ajuda. Pintado à mão, com a frase “Precizamos (sic) de alimentos, roupas, brinquedos, enxoval e material

escolar”, a placa revela a situação de extrema pobreza em que a família vive.

“Vivemos de doação de quem passa por aqui. Não deixo meus filhos passarem fome, se for preciso até pedir esmola, eu peço para não ver meus filhos passando fome e dormindo no relento”, relata Kelly.

Vizinha da área nobre

A moradora, que tem como vizinhas as sedes das Embaixadas, recebe por mês, do governo, pouco mais de R$ 200. São R$120 do programa Bolsa Família e R$90 do programa DF Sem Miséria. Em todo o Distrito Federal, 18.431 famílias são beneficiárias do programa Bolsa Família e 63.409 recebem o programa DF sem Miséria, de responsabilidade do governo local. Para sustentar os filhos, além de pedir ajuda, como alimentos e roupas aos moradores da Asa Norte, a desempregada cata latinhas e vigia carros na região nobre da capital. “Faço de tudo para não ver meus filhos passando aperto”, conta a moradora das margens da Via N4 Leste.

Em vulnerabilidade social, a família de Kelly é considerada para o Governo como em situação de pobreza. Conforme tipificação do Ministério do Desenvolvimento Social, a família em extrema pobreza é aquela cuja renda per capita não ultrapasse R$85. Já as famílias em situação de pobreza possuem renda per capita entre R$85,01 e R$170.

Retrato da desigualdade

A Síntese dos Indicadores Sociais 2017, apresentada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em dezembro de 2017, mostrou que 14,2% da população do Distrito Federal vive, por dia, com pouco mais de R$ 12, ou seja R$387 por mês. Essas pessoas estão classificadas de acordo com o IBGE como população em situação de pobreza monetária. Na contramão dessa situação, atualmente, o Distrito Federal lidera o ranking das unidades da federação com maior renda per capita do Brasil. No DF, a renda média por habitante é de R$ 2.548, mais que o dobro da média nacional, que é de R$ 1.268.

Para o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de

“Brasília é uma das cidades mais desiguais do Brasil. A pobreza e extrema pobreza existem, mas estão escondidas” Thiago Aparecido Trindade, professor da UnB

Brasília (UnB), Thiago Aparecido Trindade, de 34 anos, os dados mostram o cenário de desigualdade da capital.

Entre os brasilienses que sobrevivem com o que tem está dona Helena Rosa de Jesus, de 72 anos, que em busca de uma vida melhor saiu do Nordeste, há 48 anos, rumo a Capital Federal. Há mais de 20 anos, ela tenta se aposentar e não consegue. A justificativa, de acordo com a idosa, é que ela não tem tempo de contribuição junto ao Instituto Nacional do Seguro Social. Com a ajuda de vizinhos e recebendo um salário mínimo no valor de R$ 954, dona Helena tem em uma das paredes do barraco em que mora de favor em Samambaia, a bandeira do Brasil estampada. A idosa paga as contas de luz, água e ainda compra os remédios para o coração. O dinheiro mal dá para a idosa se alimentar. “É uma vida difícil, sou pobre, não estudei porque me criei na roça. Às vezes, olho para as panelas e só tem arroz e feijão”, conta dona Helena.

A idosa, que carrega no olhar as marcas de sofrimento, tenta sair da linha da pobreza. Um sonho que ela carrega consigo é o de ter uma casa para chamar de sua. Há mais de 20 anos na fila de espera da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab) para ter a tão sonhada casa própria, não perde a esperança de ter uma casa em seu nome. “Eu sonho de noite numa felicidade tão grande tendo minha casinha própria para eu não precisar de viver de favor na casa dos meus sobrinhos”, relata a idosa.

Ao contrário da situação de pobreza e extrema pobreza que vivem Kelly Karine e Dona Helena, dos mais de 3 milhões (3.039.444) de habitantes do Distrito Federal, cerca de 40% vivem com uma renda acima das que a idosa e a desempregada vivem. De acordo o IBGE, no ano passado a renda mensal de 1,2 milhão de pessoas chegou acima de R$ 2.548.

Entre essa população está Vera Lúcia Vieira de Almeida, de 48, servidora do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com uma estabilidade econômica, ela, que tem o salário de R$ 10 mil, conseguiu dar para as duas filhas, de 20 e 22 anos, uma educação de qualidade. As filhas sempre estudaram

em escola particular durante todo o período de estudos. A filha mais nova, recentemente, passou para o curso de Relações Internacionais na Universidade de Brasília, maior instituição de ensino superior do Centro-Oeste.

O acesso à educação da servidora e das filhas mostra que o principal problema quando se fala em desigualdade é a educação. Umas delas estuda na Unb, a outra, em particular. “ Com certeza, a mais nova passou na UnB, boa parte por causa

da escola particular e também porque fez cursinho preparatório. Mas ela tem uma inteligência acima da média e é muito interessada”, conta a servidora pública.

Mesmo sabendo do esforço da filha, Vera Lúcia reconhece que ela vive em uma das cidades mais desiguais do país. “A Capital Federal é um retrato da desigualdade do país. É mais gritante, porque concentra as camadas da classe média ligadas ao serviço público, o que acaba ‘puxando’ para cima a renda per capita. A forma de administração que foi desenvolvida na cidade também criou uma massa de excluídos em volta. As oportunidades não são bem distribuídas por conta da orientação política utilizada”, acredita Vera.

Alerta

Erradicar a extrema pobreza no mundo é o objetivo número 1 da agenda global de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) para os próximos 12 anos, período em que a ONU estabeleceu priorizar a proteção do planeta e a luta contra as desigualdades. O plano, batizado como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, foi acordado em setembro de 2015 por 193 países das Nações Unidas, grupo do qual o Brasil faz parte desde 24 de outubro de 1945.

Até 2030, a ONU quer erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas que vivem com menos de R$ 6,65 por dia, ou seja quase R$ 200 por mês. Além disso, a organização pretende reduzir pela metade a proporção de homens, mulheres e crianças, de todas as idades, que vivem na pobreza, em todas as suas dimensões, de acordo com as definições nacionais. Para isso, a ONU, até 2030, quer implementar, em nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo pisos, e atingir na cobertura substancial dos pobres e vulneráveis.

Mas a agenda de 2030 pode estar ameaçada. A coordenadora de cooperação técnica do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Samantha Salve, de 29 anos, alerta que há o risco de não se alcançar a meta até 2030, devido à crise

econômica que o país enfrenta. “Nos últimos 3 anos temos visto o número de pessoas em pobreza extrema aumentar no Brasil por conta da crise econômica que o país passa. Entre 2016 e 2017, cerca de 1 milhão e meio de brasileiros retornaram ou se tornaram extremamente pobres, esse é um número que nos preocupa bastante. É um sinal de atenção a que o governo e toda a sociedade precisam estar atentos para reverter esse quadro”, alerta a coordenadora da ONU.

De acordo com a coordenadora de cooperação técnica do Programa das Nações Unidas, a situação de crescimento da extrema pobreza no DF não é diferente. Entre os anos de 2014 e 2015, por exemplo, mais de 2.200 pessoas na Capital Federal entraram para a linha da extrema pobreza. “No Distrito Federal, se comparado com o restante do país, é um número mais baixo. Mas entre os últimos anos da pesquisa, tivemos crescimento, isso representava 0,97% da população em 2014 e em 2015 cresceu para 1,01%, assim como no restante do país a extrema pobreza cresceu”, lembra Samantha Salve.

Tchau extrema pobreza

Mesmo com o crescimento da pobreza no DF, há quem conseguiu sair dessa situação. Há pouco mais de dois anos, Rogério Soares de Araújo, de 46 anos, conhecido como Barba, fez algo impossível para ele que até pouco tempo atrás vivia nas ruas do DF: alugou uma casa para chamar de sua em Taguatinga. Na verdade, a primeira de toda sua vida. Ele passou por orfanatos, morou de favor na residência de conhecidos e em lugares onde conseguia trabalho. Passou 30 anos vivendo nas ruas que também foi o lugar onde nasceu.

Rogério começou a estudar e conheceu a revista Traços, que apoia moradores de rua e os emprega como vendedores, por meio do Centro para Pessoas em Situação de Rua (POP). Ele acreditou no projeto e virou agente

“Dou graças a Deus com o que tenho, pobre não tem direito de comer carne” Helena Rosa de Jesus, moradora de Samambaia

67.582 FAMÍLIAS vivem em extrema pobreza no quadrado do Planalto Central

“A CAPITAL Federal é um retrato da desigualdade do país”, afirma Vera Lúcia, servidora pública

social para o mercado de trabalho na publicação, ajudando a trazer novos trabalhadores para o grupo. Atualmente, tem a carteira de trabalho assinada pela empresa.

O ex-morador de rua chegou a receber ajuda do governo com benefícios sociais como o DF Sem Miséria, Bolsa Família e outros benefícios. Mas no ano passado ele abriu mão dos benefícios, porque julgou que não precisava mais. Ele conta que o recebimento da ajuda do Governo o ajudou a construir uma nova vida. “Todos os auxílios do governo que se imaginar eu recebi. Mas eu abri mão, depois que comecei a trabalhar vi que eu não precisava mais”, conta Rogério Soares.

Atualmente, cursa o Ensino Médio pelo EJA – Educação para Jovens e Adultos – e tem planos de cursar Assistência Social. Há quatro anos longe das ruas, ele tem certeza de que nunca mais quer voltar para a vida antiga.

Sobre o futuro, nem pensa antes de responder: “A sociedade me ajudou e me abraçou. Eu brigo pelas pessoas em situação de rua, porque eu venho da rua. Quero ter uma casa para receber moradores de rua e tratar todo mundo com dignidade. Meu prazer está em atender à rua, sou casado com ela. Me sinto na obrigação de atender essas pessoas que vivem como eu vivi”, finaliza o ex morador de rua.

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