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O PERIGO QUE MORA NA GAVETA

Seja pela falta de acesso a médicos ou por hábito, tomar remédio por conta própria é uma grave ameaça à saúde. Prática pode matar e é responsável por 25 mil intoxicações por ano no país

Énaquela caixinha de remédio aparentemente inofensivo e usado para aliviar sintomas como dores de cabeça, azia e cólica, por exemplo, que está uma das maiores ameaças à saúde das pessoas. A automedicação e o consumo de remédios fora do prazo de validade são responsáveis por 33% de todos os casos de intoxicação que chegam aos hospitais. Por ano são pelo menos 25 mil ocorrências no país, segundo levantamento do Sistema Nacional de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox). O Brasil é líder mundial em automedicação.

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Esse hábito de tomar remédio sem receita médica, apenas por recomendação de amigos ou balconista de farmácia, é consequência da junção de três fatores: acesso à informação pela classe média que se sente empoderada pelos dados na internet, a dificuldade de acesso ao sistema de saúde pela população de baixa renda e a chamada “empurroterapia”, venda forçada de remédios, admitida por profissionais ouvidos na reportagem. Para as autoridades, a automedicação é um caso de saúde pública.

A automedicação é um problema agravado ainda pela venda livre de remédios e pelo livre acesso a informações sobre doenças, pela internet. Um estudo realizado em 2016 pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) quanto mais alta a escolaridade das pessoas, maior a automedicação.Com fiscalização ineficiente e na falta de uma política severa de controle do setor, basta uma pessoa identificar sintomas, traçar um falso diagnóstico e entrar em uma farmácia onde a maioria dos remédios está ao alcance das mãos ou é fornecida ao consumidor, diante de um simples pedido. Segundo o Instituto de Ciência e Tecnologia e Qualidade (ICTQ) a prática comum em todo o país é ainda mais evidente em Brasília, fruto das estatísticas, que apontam o DF como a região mais conectada do país. Aqui, 85,3% das pessoas estão conectadas à rede, enquanto a média nacional é de 64,7%.

O estudante de engenharia da computação Cláudio Barros, de 20 anos, já teve de ficar internado por duas semanas, para se tratar de uma intoxicação provocada pelo uso exagerado de remédios, por conta própria. Diagnosticado com dengue em 2015, Cláudio ignorou as recomendações medicas. “O médico indicou que eu tomasse o remédio de seis em seis horas ou quando a febre aumentasse. Acabei exagerando na dose e tive uma intoxicação”. Cláudio conta que logo depois da ingestão dos remédios ele começou a sentir tonturas, dores na região do fígado e que acabou desmaiando dentro de casa.

Como o fígado do rapaz estava comprometido e sem condições de metabolizar qualquer medicamento, ele teve de suportar as dores e a sensação de mal-estar, durante todo o período. ‘É que o fígado e os rins, dois órgãos vitais, costumam ser os mais afetados pelo uso inadequado ou exagerado de remédios. Por isso, esse tipo de intoxicação pode ser fatal.

Fitoterápicos

Mesmo quem alega não gostar de tomar remédio geralmente recorre aos “produtos naturais”. Mas eles também oferecem risco. O alerta é da fitoterapeuta Maria Helena Oliveira. Além disso, diz a médica, os medicamentos ditos “naturais” podem prejudicar a imagem dos produtos feitos à base de plantas e que realmente auxiliam no tratamento de doenças. Esses recebem o nome de fitoterápicos. Segundo Maria Helena, os remédios fitoterápicos são aqueles que contêm substâncias derivadas de plantas, que tiveram eficiência comprovada e que ajudam no tratamento de uma série de problemas de saúde.

Desde 2013, a procura por esse tipo de medicamento vem crescendo exponencialmente, segundo Maria Helena. Até o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a adotá-los. Mas a fitoterapeuta alerta que eles também oferecem risco se forem tomados de maneira incorreta, seja na dosagem ou na combinação com outros produtos. “É bom lembrar que das dez substâncias mais tóxicas que se conhecem, oito são naturais”, alerta. “Todo produto natural, assim como os medicamentos, possui um princípio ativo e seu uso indiscriminado pode levar a intoxicação”, explica a médica.

Em relação a esses tipos de medicamentos, também é fundamental que o paciente seja orientado por um especialista. Segundo Maria Helena, é importante saber que o uso fitoterápico é recomendado apenas em casos de doenças mais simples. Nos casos mais graves os produtos podem apenas complementar o tratamento, desde que informado ao médico.

Para o Conselho Brasileiro de Fitoterapia (Conbrafito), o principal risco ao usar esses produtos está ligado ao consumo exagerado e à falta de fiscalização. Sem controle do governo, esses produtos são vendidos até na rua e pela internet. Os riscos são levar para casa remédios vencidos ou com a composição alterada e até mesmo placebos, aqueles compostos por substâncias sem propriedades terapêuticas. Muitos medicamentos também são vendidos de forma a se passar por naturais e alguns podem conter uma série de substâncias que são prejudiciais ao organismo, segundo a Conbrafito.

Principais riscos

Outra causa de intoxicação é a interação medicamentosa, quando a combinação dos remédios anula ou potencializa o efeito um do outro. E não é apenas a automedi

OS REMÉDIOS naturais ou fitoterápicos também podem causar sérios problemas ao organismo, principalmente em casos de consumo exagerado

cação que provoca esse incidente. A omissão durante uma consulta também pode levar à interação inadequada. Por isso, segundo o clínico geral Luiz Renato Navega, é fundamental informar ao médico o consumo de qualquer remédio, ainda que ele seja aparentemente inofensivo. A mesma recomendação vale para as alergias.

O médico explica que tomar o remédio sem prescrição é só um dos vários comportamentos perigosos. “A falta de conhecimento a respeito de um medicamento também pode levar ao uso de substâncias que causam alergia, por exemplo. E algumas reações alérgicas podem ser graves a ponto de levar uma pessoa a morte”, conta o médico.

Uma das consequências desastrosas do uso indiscriminado de remédios no Brasil foi o surgimento das bactérias resistentes à maioria dos antibióticos. É que até setembro de 2010 esse tipo de remédio era vendido livremente nas farmácias. Foi preciso mudar a legislação para que eles passassem a ser vendidos apenas com receita especial, com identificação do médico, do farmacêutico responsável e do comprador. Hipocondria

Todo mundo conhece ou tem na família aquela pessoa que nunca está se sentindo bem, que conhece todos os sintomas de doenças e é capaz de traçar um “diagnóstico” instantaneamente, diante de qualquer queixa. Essas pessoas, em geral, mantém um estoque de remédio nas gavetas e jamais se recusam a indicar um comprimido para quaisquer males. São os hipocondríacos. A hipocondria é uma doença e está diretamente relacionada à automedicação. Raramente um hipocondríaco se reconhece como tal.

A hipocondria é um transtorno mental que se caracteriza pelo vício em remédios, e também com a preocupação excessiva com a saúde. Para os pacientes com hipocondria, sintomas comuns são interpretados como sinais de doenças graves e a visita ao médico acontece, na maioria das vezes, de forma desnecessária. Ainda assim, o paciente sente sintomas reais de doenças imaginárias, o que torna o diagnóstico e tratamento muito difícil. A dona de casa Maria Lúcia, de 62 anos, é um desses casos.

Basta um sintoma e dona Maria recorre aos remédios. Ela explica que parte desse comportamento veio da forma que foi educada, coisa de família. Ela diz “Eu sei que o que eu faço é errado e que eu corro muitos riscos tomando remédio sem me consultar, mas cresci assim” Maria Lúcia, dona de casa, 62 anos

que a mãe costumava dar remédios para tratar os sintomas mais simples. “Quando eu fiquei mais velha passei a fazer a mesma coisa”, admite. “Ir ao hospital requer muito esforço e nem sempre a gente sai de lá com uma receita na mão. Então eu opto por comprar os remédios e me virar da forma que dá”, diz.

Apesar disso, dona Maria faz questão de dizer que não aconselha a automedicação para ninguém. “Eu sei que o que eu faço é errado e que eu corro muitos riscos tomando remédio sem me consultar, mas cresci assim e para mim isso se tornou algo normal. Não acho que tomar remédios dessa forma seja melhor que ir ao médico. Muito pelo contrário”, conta Maria.

Automedicação no Brasil

Uma pesquisa feita em 2016 pelo Instituto de Ciência e Tecnologia e Qualidade (ICTQ) aponta que 72% dos brasileiros se automedicam. Além do uso incorreto de remédios, muitas pessoas têm o hábito de usar a internet para se autodiagnosticar e se automedicar. O mesmo estudo apontou que a dor de cabeça é o sintoma mais procurado.

Segundo o estudo, quanto maior o grau de escolaridade, maior é a prática da automedicação. Em relação a gêneros, os dados apresentaram uma pequena diferença: 76,7% dos homens e 75,1% das mulheres se automedicam.

A compra de remédios pela internet tem contribuído com esses dados, de acordo com mesmo insti-

O CLÍNICO Luiz Renato já teve que lidar com diversos casos de intoxicação medicamentosa

tuto. Além disso, comerciantes ilegais contribuíram para a criação de um mercado paralelo de medicamentos controlados negociados sem prescrição, onde é possível comprar com facilidade produtos que nem podem ser comercializados no país.

Intoxicação

Quando se tratam dos casos de intoxicação por uso de medicamentos, os números também assustam. Segundo dados divulgados em janeiro de 2016, pelo Sinitox, mais de 25 mil casos de intoxicação medicamentosa foram registrados e 24 pessoas morreram, na maioria homens. Isso mostra que em uma hora, três brasileiros se intoxicam por uso incorreto de remédios. Em termos de comparação, por exemplo, os atendimentos por picadas de animais peçonhentos e consumo de produtos químicos representam apenas metade disso.

Segundo o mesmo estudo, os medicamentos que mais provocam intoxicações costumam ser aqueles livres de prescrição, como analgésicos, anti-inflamatórios e antialérgicos que estão à mão dos pacientes nas prateleiras das farmácias.

Venda de medicamentos

O Brasil é o sétimo país do mundo em venda de medicamentos, com cerca de 70,4 mil farmácias e alguns dos medicamentos vendidos nesses locais, mais especificamente os sem tarja, são comercializados livremente. Além desse “livre comércio”, muitos balconistas admitem tentar vender mais remédios, sem necessidade, para bater metas. Essa prática é chamada de “empurroterapia”, um comportamento abusivo vedado pelo Código de Defesa do Consumidor que infelizmente acontece diversas vezes.

Segundo um balconista de farmácia entrevistado nessa reportagem, a empurroterapia acontece por conta do movimento no comércio. “Quando o movimento tá mais vazio, tentamos empurrar um remédio sim, nem que seja um melzinho”, conta o balconista. Ele ainda diz que devido as farmácias online, muitas pessoas correm o risco de comprar o remédio errado, ilegal ou até placebo. “Com certeza tem muita gente que ganha dinheiro vendendo mercadoria que não condiz com o que a pessoa precisa”, conta o balconista.

Para que haja a comercialização, todo remédio precisa ser registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), seguindo uma calssificação de tarjas. Na venda desses medicamentos tarjados, a prescrição é indispensável, uma vez que os produtos apresentam possíveis efeitos colaterais.

O que fazer

Segundo o Conselho Regional de Farmácia do DF (CRF), a população parece não estar atenta aos riscos da automedicação. E por conta dos inúmeros casos de intoxicação que acontecem todos os anos, o Conselho Federal de Farmácia vem realizando diversas campanhas para mostrar à população o risco da automedicação e estimular a busca de informações sobre medicamentos em fontes seguras, entre elas o farmacêutico, profissional que atua na elaboração e testes em medicamentos e produtos estéticos.

As campanhas também têm o intuito de informar sobre a conservação correta de medicamentos. Elas informam que importante seguir as recomendações que estão na embalagem desses produtos como mantê-los protegidos da umidade, do calor e da claridade. O guarda- -roupa é o melhor local, pois o quarto costuma ser arejado, com temperatura amena e longe da umidade. Outro cuidado é colocá-los no alto, longe do alcance das crianças. Outro alerta verificar o prazo de validade. Medicamentos vencidos podem matar. Nestes casos, o correto é descartar qualquer remédio depois do vencimento, de preferência em postos de coleta nas farmácias.

Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde instituiu o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos (CNPURM) para orientar e propor ações, estratégias e atividades para a uso correto de remédios no âmbito da Política Nacional de Promoção da Saúde, estabelecendo um plano de ações que contempla quatro áreas: regulação, educação, informação e pesquisa.

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